1 Introdução
Do surgimento dos primeiros games até as mais modernas versões de jogos, a sociedade humana experimenta uma verdadeira revolução tecnológica que impulsiona relações novas e dinâmicas do homem com seu mundo social. Nesse universo, as relações com as pessoas e com as coisas estão sendo ressignificadas e novas formas de ser e conviver circunscrevem a constituição do que pode ser considerado subjetividade humana. Nessa reinvenção do humano, a imaginação conduz novas possibilidades de narrativas e os contatos são ampliados pela lógica da virtualidade. Nesse contexto, o tempo é redimensionado e o espaço, recriado. O mundo real se converte em “desafio protegido” e as fantasias e desejos recalcados ganham um dispositivo de expressão. Que universo é esse que tanto fascina? O que se esconde nesse encantamento cada vez mais explorado e rentável? Sem a pretensão de reduzir a complexidade da temática, o foco analítico se apoiará nos depoimentos de jogadoras universitárias de GTA.
Na revisão histórica desse tema, observa-se que, nos últimos anos, a produção do entretenimento se tornou mais híbrida e plural, e alguns dos principais vetores desse processo são os jogos eletrônicos. As primeiras pesquisas e investigações científicas sobre o uso do videogame começaram a surgir a partir do ano de 1997, e desde 2001 diversos estudos foram publicados com temas relacionados aos impactos causados pelo seu uso (MEZA-MAYA; LOBO-OJEDA, 2017). Nessa expansão, estudos têm sido desenvolvidos por diversas áreas de conhecimento, criando um campo de pesquisa principalmente relacionado a aspectos benéficos ou maléficos em relação a desenvolvimento, aprendizagem e relacionamentos, em especial no campo da educação (ANTUNES; RODRIGUES, 2022; KROEFF et al., 2019; SALDANHA et al., 2023).
As novas tecnologias utilizadas nos jogos virtuais atraem a atenção e popularidade dos consumidores, representando uma das atividades mais praticadas por pessoas de todo o mundo. Em decorrência dos avanços tecnológicos que ocorreram, para acessá-los, basta ter um smartphone, tablet, computador ou consoles específicos (DE NAPOLI; GOMES, 2017).
Da vida real para o universo dos jogos, muitas inspirações e criações de jogos surgem de fatos e atividades que ocorrem no dia a dia. Com o jogo GTA não foi diferente, uma vez que as aventuras transgressoras das narrativas evocam acontecimentos sociais dimensionados por uma visão estereotipada das comunidades periféricas e marginalizadas. Após seu lançamento, o GTA se tornou um fenômeno de vendas, sustentando um sucesso crescente entre jogadores de idades variadas, inclusive crianças. A exposição pública desses fatos começou a despertar críticas generalizadas, sobretudo pelos conteúdos de violência, transgressões e tratamento sexista que expunham o gênero feminino aos papéis monolíticos de objetos de uso sexual. Para melhor compreender a problemática de gênero e sexualidade aplicada ao jogo eletrônico GTA, inicialmente se faz necessário explicitar ambos os conceitos. A sexualidade é considerada aspecto integrante da subjetividade humana, sendo apontada como uma necessidade básica. Diferente do que algumas pessoas pensam, ela não se refere apenas ao ato sexual propriamente dito, abarcando também identidades e papéis de gênero, orientação sexual, erotismo, prazer, intimidade e reprodução. O fenômeno da sexualidade se expressa de maneiras diversas, como pensamentos, fantasias, desejos, crenças, atitudes, valores, comportamentos, práticas, papéis e relacionamentos (UNESCO, 2019). Gênero e sexualidade são conceitos amplos. O conceito de gênero, por sua vez, refere-se aos papéis sociais que são atribuídos a homens e mulheres e que acabam por orientar seus comportamentos em termos de adequação, consequentemente acentuando as diferenças entre os sexos, as quais provêm de uma construção cultural (LOURO, 2018; SCOTT, 1995;).
Butler (2018), em seu livro Problema de Gênero: feminismo e subversão da identidade, utiliza o conceito de performance para explanar a ideia de que o ser humano não nasce homem e mulher nem simplesmente se torna um ou outro; na verdade, a construção da masculinidade e da feminilidade se dá por meio dos comportamentos desempenhados diariamente, da forma como a comunicação ocorre, das vestimentas que se utilizam, sendo essas sempre referenciadas a uma norma hegemônica de gênero. Quando se fala em gênero, refere-se, portanto, a algo que é construído socialmente por meio de valores e símbolos que são interiorizados pelos indivíduos desde a infância e que sofrem influência de seus contextos histórico, social e cultural (SAFFIOTI, 1994). Segundo Bortolini (2011), a discussão sobre gênero envolve a reflexão acerca dos instrumentos de poder que produzem significados e da forma como tais significados se convertem em instrumentos de poder.
O presente estudo buscou responder ao seguinte questionamento: o que as mulheres que se julgam jogadores de GTA poderiam dizer sobre os impactos dos conteúdos do game e, consequentemente, como essa relação com o jogo interfere nos pensamentos, sentimentos, valores e comportamentos?
A partir do exposto, este estudo tem como objetivo analisar as representações sociais sobre os efeitos do jogar e os pensamentos, as crenças e os valores relacionados aos fenômenos sociais gênero, violência e sexualidade das jogadoras de GTA.
2 Método
Neste estudo de natureza qualitativa (MINAYO, 2007), a investigação de aspectos diferentes da sexualidade, representados por mulheres e estudantes universitárias, foi enquadrada como objeto de pesquisa com foco nas experiências vividas pelas participantes por meio do jogo. A delimitação realizou-se a partir da perspectiva das usuárias do jogo GTA e das suas concepções acerca da sexualidade e da violência, especialmente aquelas que envolvem relações entre os papéis masculino e feminino.
Para compor o núcleo das informações, a pesquisa utilizou a entrevista estruturada (CAMARGO, CORRER, 2011) como instrumento para a coleta de dados devido à sua abrangência metodológica e à possibilidade de interação entre pesquisador e pesquisado.
2.1 Participantes e local da coleta de dados
Do presente estudo participaram 10 estudantes universitárias, na faixa etária entre 18 e 28 anos, jogadora de GTA. O ambiente da investigação foi uma universidade particular no interior de São Paulo. Para a coleta de dados, utilizou-se, para a realização das entrevistas, uma sala que garantia conforto e privacidade, de acordo com as recomendações técnicas indicadas por Camargo e Correr (2011).
2.2 Procedimentos
De acordo com a Resolução no 510/2016 (Brasil, 2016) e obedecendo aos critérios éticos da pesquisa científica, o projeto de pesquisa foi apreciado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP/CONEP – PROCESSO nº 1.079.186). Os dados foram coletados por meio de encontro presencial, no qual foram apresentados os objetivos do trabalho, coletada a anuência das participantes no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e realizada a entrevista a partir do roteiro elaborado.
Foram desenvolvidas duas pesquisas, denominadas A e B, que integraram dois grupos (Sexualidade, Gênero e Sociedades e Comunicação, Mídia e Sociedade), dois Centros (Ciências Exatas e Sociais Aplicadas e Humanas), dois professores orientadores e duas pesquisadoras de dois cursos (Psicologia e Publicidade e Propaganda). Este artigo é parte do resultado obtido a partir da pesquisa B. Na primeira pesquisa, foram convidados para participar do estudo todos os estudantes matriculados em uma universidade particular do interior do estado de São Paulo, de ambos os sexos, que fossem usuários do GTA. Na pesquisa A, o convite foi veiculado em plataforma de rede social institucional (Facebook), com a utilização do recurso Google Forms, em que se trabalhou com uma amostragem não probabilística, definida por conveniência de 200 participantes, no universo total de 6.389 estudantes matriculados. Nesse questionário (pesquisa A), havia um item específico no qual o respondente poderia manifestar o interesse para participar de uma entrevista presencial (para a pesquisa B), tendo em vista aprofundar as questões relacionadas ao jogo a partir das entrevistas feitas com as mulheres. Os dados foram coletados seguindo-se um roteiro semiestruturado desenvolvido pelos pesquisadores. Para a elaboração desse roteiro foi realizado um estudo piloto com três voluntários que atendiam aos critérios de seleção da pesquisa. Para o registro dos dados utilizaram-se um gravador de voz e transcrição literal dos dados obtidos na entrevista.
2.3 Análise dos dados
Os dados obtidos foram submetidos a análise qualitativa mediante a Técnica de Análise de Conteúdo proposta por Bardin (1991), visando à desconstrução de estruturas e elementos de um conteúdo para estabelecer suas principais características e extrair sua significação. Procedeu-se à ordenação e à análise dos conteúdos das entrevistas, sendo o material selecionado em categorias em busca de ideias relevantes. Foi utilizado o aporte teórico da Teoria das Representações Sociais (TRS) para o levantamento dos elementos mais prováveis de serem associados à(s) questão(ões) indutoras(s) da evocação e da organização interna das representações sociais (RS) relacionadas a essas indagações (MOSCOVICI, 1977).
A categorização das respostas foi realizada por meio do seguinte procedimento: inicialmente, foi realizada uma leitura flutuante dos dados cujo intuito era apreender e organizar de forma não estruturada as principais ideias e os significados gerais de cada resposta. Em seguida, empreendeu-se uma segunda leitura das respostas, sendo identificadas as principais categorias gerais e subcategorias. Por conseguinte, na terceira leitura cada resposta foi identificada a partir das categorias e subcategorias. Após esse processo, o trabalho de categorização passou por um perito com experiência de pesquisa sobre o tema abordado.
As informações destacadas em itálico e com recuo representam relatos originados a partir dos registros e da transcrição ipsis litteris da entrevista. Para facilitar a compreensão perante a análise, as participantes foram codificadas com as seguintes nomenclaturas: a número 1, por exemplo, recebeu o código M (Mulher) 1. A número 2, por sua vez, recebeu o código M2, e assim sucessivamente.
3 Resultados e discussão
Diante da complexidade do objeto de análise deste estudo, optou-se pela utilização da TRS por ser convergente com a proposta de investigar a relação entre o jogo e a perspectiva das jogadoras.
Ao colocar no centro do debate o princípio de que o ser humano constrói a sua identidade por meio das relações existentes nos espaços públicos, o jogar na atualidade apresenta-se como símbolo que se desdobra e serve de mediação entre aquele que joga e a vida real da qual faz parte. Assim, recorrer às RSs como abordagem para apoiar a interpretação dos símbolos construídos coletivamente na interação de jovens universitários jogadores de GTA justifica-se pela possibilidade de compreensão dos valores e atitudes desse determinado grupo sobre os temas gênero e sexualidade. Nesse sentido, é importante buscar compreender a maneira como as representações de gênero e outros marcadores sociais da diferença são apresentados nos games e seu potencial para reforçar estereótipos e reafirmar formas de opressões, construindo, descontruindo ou reforçando papéis de gênero e sexualidades.
Para introduzir a apresentação dos resultados, a Figura 1 permite a visualização panorâmica dessas RSs. Representando o elo de um encadeamento, jogar GTA seria uma atividade de entretenimento com poderosa força de atração entre as participantes-jogadoras: ao lidar com uma necessidade psíquica inerente ao ato de jogar, as contradições que estão implicadas nas RSs colocariam no centro do problema as questões voltadas para sexualidade e as relações estabelecidas entre a sociedade e a expressão dos papéis de gênero.
3.1 Impulso para jogar GTA
A partir da evocação das impressões que a entrevistada tem sobre o impulso para jogar o GTA, a resposta mais emblemática, que ancora as representações das respondentes femininas, inscreve-se na ideia de transgredir os códigos.
Para TRANSGREDIR | ||
Simulador – vida social Distração – Catarse Fuga da realidade Diversão Redução de ansiedade VÁLVULA DE ESCAPE |
Missão – Aventura Disputa – Estratégia Liberdade - fazer tudo Autonomia Consumismo FAZER O QUE QUISER |
Sexualidade – Violência Denegrir – Feminino Explodir Atropelar Roubar DOMINAÇÃO MASCULINA |
CÓDIGOS |
Fonte: Elaborado pelos autores.
A transgressão é um indicador que, a partir dos elementos discursivos, parece capturar uma dimensão psicológica do jogador. No próprio processo de desenvolvimento das estratégias possíveis para se realizarem as missões no jogo está prevista a possibilidade de se burlarem os percursos, ou seja, ao se obterem os “códigos” (cheater, trapaceiro em inglês), um privilégio é alcançado.
M4 – você pode usar os códigos pra comprar mais carro, comprar não, para conseguir carros, aviões, você vai ganhando um respeito ali na comunidade local...
M10 – (...) Muitos códigos, na verdade você precisa pegar na internet né os códigos, senão você não sabe... (...) dentro de casa, armado, você pode fazer o que você quiser no jogo, que lá pode tudo. E você consegue pilotar avião (...)
Nessa direção, saindo do núcleo da representação dos elementos impulsionadores do ato de jogar, surgem, como eventos periféricos da atração inerente ao GTA, a ideia da liberdade de poder fazer tudo
M5 – (...) o que me motiva é a liberdade, que é um jogo em que você pode fazer tudo...
M10 – (...) consegue fazer sua própria história, você decide qual vai ser o fim do jogo...
Esse dado vai se alinhando às percepções de que o que atrai no jogo são as missões virtuais que se aproximam muito da realidade concreta e objetiva.
M2 – (...) por ser um simulador de vida social, (...) ia para as drogas e... um pouco sexual (...)ficar dirigindo no meio da cidade, e eu adorava, ficava, ia atropelando todo mundo (...)
A ideia de missão também aparece como um ponto de ancoragem. Nas representações que explicitam a atração inerente ao jogo, especificamente o GTA, o enredo amplia-se numa aventura que permitiria, de acordo com as depoentes, a oportunidade de redução das tensões cotidianas. As RSs percorrem elaborações conceituais. A diversão/distração estaria apoiada nas representações de “válvula de escape”, objetivada pelo conceito de “catarse”, que se aproximaria da explicação psicanalítica de investimento de energia psíquica para redução de ansiedade e fuga da realidade.
M1 – ( ) Ação, aventura, tem que passar fase, ter um estímulo pra jogar (...) Não sei dizer, acho que pelo lado das missões.
M4 – Terapia, é uma válvula de escape (...) nas férias eu jogo bastante por diversão (...)
M7 – (...) porque tem missão também, apesar de ser missão das coisas meio do mal lá, você é meio traficante, não sei o que eu sou lá. Mas é legal, é interessante sim, e quando você não faz missão é interessante porque você faz o que você quer (...)
Na linha das RSs, contudo, esse “poder fazer tudo” está direcionado para realizar ações de conflito deliberado, com enfrentamento virtual das normas sociais e referências legais, como se identifica na sequência de discursos das respondentes:
M1 – (...) tiros, do carro, de bater em todo mundo... é uma coisa legal, entre aspas.
M2 – (...) roubar no jogo, dinheiro, saber de todos os códigos, tem uma vantagem, suprema.
M5 – (...) Pode fazer o que você quiser e, pode explodir uma cidade (...)
M9 – (...) você não tem regra, você... é da máfia lá e você tem que fazer as missões da gangue.
Essa espiral de simulador do real–válvula de escape–transgressão começa a delinear os elementos centrais de análise deste estudo; as causas envolvidas no impulso/manutenção do jogar GTA, a violência e a sexualidade nas RSs das mulheres participantes e jogadoras; e o tratamento dispensado à figura feminina.
Dessa maneira, o destaque nos recortes discursivos a seguir dimensiona os elementos vinculados à violência:
M2 – (...) de tiro, por mais que não pareça por eu ser menina, e de luta.
M3 – (...) de violência são muito legais! Desconto minha raiva lá, mas nem por isso sou brava.
M6 – (...)tem a violência, mas não é uma violência que você pode transferir para realidade. Então é como se você tivesse raiva, daí você vai lá e desconta (...) é uma válvula de escape.
O jogo possui uma lógica própria de sentidos em que a tensão e a luta entre o real e o imaginário são permanentes, sendo resultado de um trajeto cultural, e está em expressividade constante. Lemos et al. (2014) destacam que, entre os conteúdos dos jogos eletrônicos, a violência é tema frequente e merece maior aprofundamento como elemento para se compreender esse fenômeno, que está presente na sociedade atual de maneira preocupante.
Em relação à sexualidade, as falas exortam relações sociais crivadas de machismo, sexismo e misoginia que naturalizam o estereótipo do masculino violento, competitivo, com sexualidade orientada para desvalorizar e subjugar o corpo e os papéis femininos.
M8 – (...) envolve muita sexualidade (...) para quem é mais novo acho que isso atrai bastante
M8 – (...) eu acho vulgar, violento, passa uma ideia da mulher muito... totalmente desvalorizada, e a mulher sai como uma... vaga... uma... Pode falar?... (risos) como uma vagabunda assim... na versão do jogo, como se fosse uma pessoa sem valor, não que prostituta não tenha valor, mas é... (...)
M9 – (...). você sai dirigindo que nem um louco, você tem que cumprir as missões, e aí você vai evoluindo, vai dominando as gangues, dominando território e até você ser o mais “fodão” do jogo, a gangue mais poderosa do jogo...
Em nossa sociedade, a construção de estereótipos ocorre de forma arbitrária, em que as diferenças de classe e as relações de poder constituem tais estereótipos. O impacto dessa desigualdade tem reflexos na vida pessoal e profissional e se manifesta nas artes, como, por exemplo, nos jogos eletrônicos, em que, em sua maioria, as mulheres são representadas de forma hipersexualizada (DE ABREU FRANÇA et al., 2019; MALTA, SABBATINI, 2016). Esse reconhecimento por parte das jogadoras revela como a sociedade está organizada. As resistências à dominação são neutralizadas e indicam uma atitude de resignação frente a uma explícita inferiorização da figura feminina. No intercurso narrativo do jogar, a postura do avatar segue reproduzindo papéis, externalizando, por meio de seus personagens, do design gráfico e da sua “jogabilidade”, os seus aspectos culturais, tornando-se um poderoso meio de expressão cultural (BRISTOT et al., 2017).
Os papéis de gênero e estereótipos estão interligados com a relação de poder, pois são articulados no sentido de definir e delimitar pessoas. Esse processo resulta em um padrão, no entanto inúmeras pessoas não se enquadram no padrão estabelecido devido ao pluralismo humano da forma física e da personalidade (MALTA, SABBATINI, 2016).
É importante considerar o público-alvo para os quais os jogos eletrônicos são desenvolvidos. O investimento, sobretudo na análise do perfil dos usuários, enfatiza o entendimento da forma como a mulher é representada. A característica negativa atribuída à imagem da mulher nos games indica a sua exclusão enquanto jogadora (BRISTOT et al., 2017), no entanto o que se observa é a adesão das mulheres universitárias, que ignoram as críticas quanto aos conteúdos disseminados pelo jogo e assumem a dimensão do entretenimento presente.
Aliviada |
Normal Tranquila Satisfeita Indiferente Feliz Prazer em Matar Cansada |
Realizada |
Fonte: Elaborado pelo autor.
A Figura 3 expressa uma dupla dimensão, em que, além de ser um alívio pelo ato de jogar, desencadeia uma sensação de realização, que levanta a possibilidade interpretativa de que jogar elevaria e igualaria, no plano virtual, a participação e o poder feminino. As jogadoras identificaram que jogar o GTA exerce um estranho papel de alívio
M10 – Aliviada! (risos) Porque às vezes no jogo você deixa tudo o que você quer colocar pra fora assim, você acaba atropelando todo mundo (risos) então o que às vezes você tem vontade de fazer no dia a dia e você não pode, você acaba fazendo no jogo.
e realização,
M2 – (...) realizada, na verdade. Porque você vivia, eu pelo menos, sentia como se eu tivesse vivendo aquela realidade, de tão focada que eu ficava. Então eu me sentia assim, realizada e cansada, porque eu ficava com dor de cabeça de tanto ficar na frente da televisão.
Essas frases indicam contradição acerca dos sentimentos de contrariedade, considerando as representações morais atreladas às atividades virtuais desempenhadas pelos avatares.
M3 – (...) fico mais calma porque gosto de matar as pessoas (voz baixa). Principalmente quando estou muito irritada, daí eu vou lá, ai acalma (...) Melhor matar no jogo do que na vida real.
Outras percepções acerca dos efeitos causados pelo jogo direcionam para representações ambíguas em que figuram normalidade, tranquilidade, indiferença e até felicidade diante das missões crivadas de confrontos legais e morais, como, por exemplo, o homicídio:
M1 – Feliz (Risos). Feliz, se eu conseguir passar a missão eu fico feliz, senão eu fico brava.
M6 – (...) feliz, aliviada! Como se o estresse tivesse saído.
M7 – (...) satisfeita, você tem vontade de jogar, joga e é legal... feliz eu acho, satisfeita.
Os games proporcionam grande interação e têm poder de influência devido ao controle de quem está jogando sobre a personagem. A vivência de controle leva à identificação com a personagem elencada, possibilitando uma projeção, vivenciando a situação e o sentimento de participação (BRISTOT et al., 2017).
Na Figura 4, observa-se a função atraente do jogo, que conduz a uma experiência virtual que permite reconhecer-se e sentir-se livre e encorajada a assumir um papel de independência e autonomia, ainda que vivenciando por intermédio da figura masculina:
LIBERDADE |
---|
Onipotência Tecnologia Simulador Realista Vício Decodificação Polêmico Consumismo Violência Sexualidade |
TRANSGRESSÃO |
Fonte: Elaborado pelo autor.
As respondentes retomam a liberdade virtual como uma objetivação das liberdades cerceadas no cotidiano real, unindo os núcleos temáticos liberdade de agir e transgredindo.
M5 – (...) tem essa fantasia (...) desperta o nosso id a fazer várias coisas que não é permitido (...)
A vivência de um simulacro extremado do real levaria ao deleite pelo conflito com as questões morais e legais, no entanto a onipotência experimentada pelo simulador reforça a ideia de um universo livre, de abertura para o consumo desenfreado e a ausência de limites para extravasar a agressividade e a sexualidade.
As constatações de como o jogador percebe o laço que o liga aos conteúdos, com a salvaguarda de clara separação entre a realidade e a fantasia mediada pela virtualidade tecnológica, transformam-se em uma espécie de racionalidade que justifica e legitima o “vício” em manter-se jogando, tornando-se porta-voz da sociedade polêmica e contraditória.
M1 – (...) as pessoas viciam nele. Eu acho que é um vício. (...) principalmente os meninos, gostam muito dessa matança, dessa coisa de atropelar todo mundo (...)
As representações periféricas ligam o afastamento moral a um processo de decodificação dessas amarras psicológicas.
M2 – (...) mulheres geralmente gostam mais de dirigir o carro e... e eles... (...) entra na casa e mata um cara pra roubar (...)
M8 – (...) joga o carro, sai correndo (...) atropela uma pessoa (...) tem até relação sexual com prostitutas no jogo (risos) (...)
Deixar-se levar pelo impulso de transgredir resulta numa fantasia de tudo poder, acima do bem e do mal, a onipotência como um alargador de possibilidades e antídoto para as frustrações sociais do cotidiano.
Retondar et al. (2016) enfatizam que os jogos virtuais demonstram amplamente a onipotência infantil perdida na infância. Os autores consideram que a prática com jogos é uma forma de fugir da realidade atroz, cansativa e inebriante, tendo na imaginação o ponto norteador para a criação de um mundo idealizado.
Os conteúdos hostis, violentos e de vingança possibilitam a vazão, no plano imaginário, de algo que se gostaria de ter vivido ou realizado na vida real. Dessa forma, exercem a função compensatória de válvula de escape. Há, portanto, outra questão que se pode considerar: tais conteúdos se apresentam como esquema da realidade, ou seja, estímulo e aprimoramento para a concretização dos ideais imaginários (FERNANDES et al., 2017; RETONDAR et al., 2016).
Em outra reflexão, em que se apontam os jogos como retrato social, Mota (2017) deixa o seguinte questionamento: “a sociedade estaria na busca de atitudes transgressoras, hostis e vorazes?”. O autor conclui que os jogos evocam vontades e desejos encobertos socialmente, desafiando a ordem imposta a partir de atos insanos.
Um possível viés analítico indica que a transgressão em jogos virtuais estimula no jogador, de maneira precisa, a sensação de liberdade, a vazão das emoções contidas, a impressão de alívio e a descarga das tensões. De acordo com Alves (2004), a violência e a agressividade apresentadas nos jogos trariam ao jogador efeitos terapêuticos, a partir da catarse realizada, na proporção do direcionamento de seus desejos, medos e frustrações. A autora considera, contudo, os jogos parte constituinte da elaboração de angústias, medos e conflitos.
3.2 Significado atribuído à sexualidade no GTA
Na evocação de RS, o polo de gravidade vai definindo um núcleo centralizador em torno das imagens que se formam em torno das idealizações acerca dos relacionamentos. A esse respeito, os fragmentos das falas das participantes são elucidativos:
M1 – Um laço entre duas pessoas, não que seja só homem e mulher.
M2 – (...) desejo pelo sexo oposto (...)
M5 – (...) é uma forma bem ampla tudo aquilo que pode remeter a pessoa ao prazer (...)
M6 – (...) seria uma relação de amor.
O jogo abre uma brecha para a liberdade em torno das relações heterossexuais (homem-mulher), mas acaba por justificar e legitimar relações assimétricas entre os gêneros. A palavra machismo condensa uma ideia recorrente e deixa pouco espaço para rupturas.
M2 – (...) no jogo a você pegar prostitutas, (...) é bem machista nesse sentido... então tem as prostitutas na rua, você pode pegar pra ir no carro, então ele é bem assim, e logo de capa já tem umas mulheres com o seio aparecendo, então, nesse ponto se você for pensar a sexualidade ela é bem assim, vender o corpo (...)
M4 – (...) só poder jogar com homens, todos os homens importantes só tem homem praticamente no meio do jogo, e quando tem uma mulher geralmente ela é representada por uma... assim... mina com um biquininho pequenininho andando na praia, entendeu, andando na rua, ou aquelas, por exemplo, prostitutas mesmo que ficam do lado dos caras da máfia (...)
As representações sociais oscilam entre a crítica a essa reprodução da realidade vivenciada pelas jogadoras, como mulheres que são, e a aceitação tácita dessa condição, em que se naturaliza a desproporção entre o universo dos papéis masculinos e a vitimização do feminino, tornado objeto de consumo.
LAÇO |
Liberdade Depende – jogador Homem/mulher Machista Desejo Opção Sexo Prazer Safadeza Pornografia Engraçado Inexistente |
RELACIONAMENTO |
Fonte: Elaborado pelo autor.
Nesse movimento pendular, o prazer emanaria, por si, do jogar e experimentar o papel invertido, permitido pela narrativa do avatar, ao mesmo tempo em que são destilados o pornográfico, a safadeza e a indiferença.
3.3 Relações desiguais e injustas
Considerando os estereótipos sociais existentes, Gasoto e Vaz (2018) acrescentam que os jogos eletrônicos e virtuais também mantiveram a mesma conduta misógina. Pontuam que, no início, os jogos tinham como foco o universo masculino, mas que, ao longo do tempo, as mulheres ganharam espaço nesse contexto. E, da mesma forma que na vida real, a relação de poder e a subjugação também estão presentes em jogos virtuais.
As personagens femininas dos jogos quase sempre aparecem hipersexualizadas, com partes do corpo expostas, reforçando estereótipos e impondo fragilidade à mulher. Sendo personagens coadjuvantes, que servem como apoio e suporte masculino, essas personagens não representam as jogadoras. Mesmo diante de tais características e funções nos jogos, não há incômodo dessas mulheres com a fragilidade apresentada (SANTANA et al., 2022).
Para Nascimento (2016), a idealização masculina heterossexual para a construção das personagens dos jogos contribui ainda mais para falta de identificação das jogadoras e sua exclusão. Considera o autor que esses estereótipos são padrões socioculturais que envolvem o corpo feminino idealizado, caracterizando-se como reflexos de um constructo sócio-histórico.
Nessa perspectiva, o machismo dominante transcende a esfera da vida real e se apresenta de forma expressiva e solidificada no mundo virtual.
3.4 Significado do masculino atribuído ao GTA
A Figura 6 expressa como foi caracterizada a imagem do masculino no GTA. As participantes identificam o papel masculino como a personificação dos elementos explorados pelas narrativas do jogo.
TRANSGRESSOR |
Superior Poder Hegemônico Submete a mulher Agressivo Brutalzão Violência Bandido Traficante Assassino Agressivo Imagem negativa “Íntegro” (ironia) |
MACHISTA |
Fonte: Elaborado pelo autor.
No discurso lúdico, observa-se que as RSs estão ancoradas na ideia do transgressor como ponto catalisador das ações. Essa imagem de homem transgressor articula enredos convergentes tanto na fantasia quanto na percepção de como funciona o tecido social. Ao percorrer expressões dos papéis sociais masculinos, o machismo salta como objetivação recorrente das RSs das respondentes.
M5 – (...) bem machista, claro (...)
M6 - Muito machista. Porque só tem personagem homem para jogar (...) não tem nenhuma mulher, então é meio estranho. (,..) achar que ele é o melhor, ele que é o superior (...)
M8 – Como se ele fosse o poder, como se ele que comandasse, ele mandasse (...) muito machista (...) não tem personagem mulher para você escolher para dirigir o carro, e sim só homem (...)
É relevante destacar os contornos dos conteúdos presentes no discurso de mulheres que jogam GTA. Elas reconhecem as ambiguidades expostas entre assumir o protagonismo no avatar do macho, bruto e agressivo e experimentar um estranhamento dessa contradição, na qual os conteúdos legitimam relações de dominação e de poder hegemônico do homem, o qual se impõe ininterruptamente como violento e marginal, especialmente na relação assimétrica com a mulher, como está destacado nas falas seguintes:
M1 – Acho bruto, muito bruto. Muito agressivo.
M3 – Podia ter uma mulher (...) é sempre o homem.
M4 – (...) papel de violência né... ele é tido como o brutalzão, ele soca as pessoas, dá tiro (...) compra armas, (...) luta de gangues (...) tem que matar alguém, roubar um banco (...) brutão, seja violento e consiga o mundo (...)
M2 – suficiente para matar, roubar e pegar prostitutas (...) É isso que faz no jogo, ele rouba, mata e pega prostitutas
M7 – (...) mulher, não é que é submissa, mas quem tem mais poder no jogo é sempre o homem, tem gangue e tem, tudo é homem lá, nas missões poucas vezes eu acho que tinha mulher, e eu acho que é tipo assim, uma força do homem que tem mesmo (...)
M9 – (...) personagem que você joga é bandido, um traficante... traficante... assassino...
M10 – (...) mais agressiva (...) é ele que mata, estupra, (...) que vai fazer o sexo (...) ele que vai roubar, vai atrás da mulher (...) que bebe, é a imagem do homem (...) ruim (...)
As RSs, nessa dimensão, indicam que as relações entre gêneros se mostram no percurso das narrativas demarcadas pelo GTA como um extrato ideológico, como os mesmos patamares de sustentação observados no tecido de sustentação da sociedade atual. A mulher se converte num objeto de consumo sexual do homem, esgotando outras possibilidades de expressão ou papel. O homem, por sua vez, é superior e submete a mulher e a sociedade a esse perfil “brutalzão”, como ilustra uma das falas transcritas.
3.5 Significado do masculino atribuído ao GTA
Neste escopo de análise, a RS do feminino recompõe os elementos periféricos na figura da prostituta. No universo hegemônico do masculino, em que jogo e sociedade retroalimentam a manutenção do mesmo status quo, a imagem do feminino se alinha aos papéis por ela circunscritos.
A objetivação de um papel que personifica a submissão do corpo à função unívoca de servir aos desejos e necessidades masculinas, com foco nas questões referentes ao sexo, criaria um vazio identitário para as mulheres que também são jogadoras de GTA.
M1 – É... todas são vistas como, ou personagem de classe baixa, favela assim, sempre tá com uma roupa de mano em festa, ou são putas, desculpa a palavra (risos), dificilmente vê uma personagem normal assim, sempre é para esse lado obsceno.
M2 – A feminina seria vender o corpo, seria a prostituição.
M8 – Como se fosse a pessoa desvalorizada, que está para servir o homem e suprir suas necessidades.
M9 – Puta! Puta. Simples assim.
PROSTITUTA | |
Imagens do feminino Papéis de mulher Ocupa um vazio | |
Depende Família Idade Princípios |
Pode Naturalizar situações enfrentadas Causar revolta Minoria se identifica |
Estereotipada Desvalorizada Papel secundário Suprir necessidades sexuais Lado obsceno Vende o corpo Biscate/Putinha/Puta Vagabunda Digna de apanhar Classe baixa/Favelada/Roupa de mano Loucona Patricinha Gorda/Velha Ingênua Feia | |
SERVIR O HOMEM |
Fonte: Elaborado pelo autor.
Esse papel adjudicado à mulher no jogo espelha a condição social do transformar-se em mulher. Nesse processo, algumas RSs apontam para a natureza individual de quem permite ser depositária de tais atributos:
M2 – (...) se a pessoa não tiver influência boa da família
M3 – e vai depender da idade também, crianças eu acho que até influencia (...)
M6 – (...) a mulher ela tem que ter um princípio, se ela não tiver um princípio ela vai buscar em outro lugar, e esse lugar poderia ser um jogo (...)
M7 – (...) minoria a mulher que vai se identificar com as mulheres que tem lá, e tem senhoras que também, mas as senhoras são coitadinhas, eu não me identifiquei com nenhuma mulher lá, assim, as que eu lembro são da senhora e da prostituta (...)
As respondentes encontram uma brecha para apresentar uma explicação das possibilidades de escolha, uma tese do livre arbítrio sobre aceitar essa imposição social, reproduzida pelo jogo, ou rebelar-se impondo-se como ser humano, sujeito e com direitos iguais aos masculinos.
M2 – (...) será que é assim que devo ser tratada? Será que é dessa forma que os homens tratam e a gente tem que aceitar?” Se arruma um marido e ele bate nela, ela fala tudo bem, é assim que devo ser tratada? (...) Também pode causar o oposto, uma revolta contra os homens: “poxa, fizeram um jogo que os homens só tratam a mulher mal”, causa uma revolta (...) “nossa, que jogo machista”, “nossa, os homens são os únicos beneficiados aqui...”
Essa abertura para o não determinismo social, esbarraria, no entanto, na dúvida sobre a interferência, pela exposição ao jogo, nos comportamentos sociais. Dessa maneira, o tratamento dado pelo homem estaria delimitado pela performance masculina.
M3 – Só tem velha, daí tem as mocinhas com as blusinhas curtinhas e os shortinhos... e só.
M4 – (...) trata a mulher no caso como prostituta mesmo, como aquela mina que você vai na rua e bate, e tenta pegar ela, ou aquela putinha que fica do lado do cara que tem dinheiro (...)
M5 – Bem estereotipada. (...) a mulher, ela no caso, sempre, ela se filia ao homem por uma questão de proteção e tudo mais (...) “locona” também, ela sai atirando nas pessoas (...) prostituição, a maioria que você vê na cidade, são prostitutas e as outras são “patricinhas”, burguesinhas que não dão moral, então isso é estereotipado, os dois polos.
M6 – (...) só aparece como prostituta ou mulher gorda (...) a feia (...)
A naturalização dos atributos masculinos e femininos tornaria crônicas as relações estabelecidas no jogo e na sociedade, visto que, uma vez que os games estão contidos na cultura, podem influenciar a formação identitária (ROMANUS, 2012). Para além de comportamentos de submissão, há também uma hipersexualização da figura feminina que, geralmente, está distante da realidade da maioria das jogadoras. Nessa perspectiva, os games não proveriam um modelo de identificação adequado, podendo representar ideais que as jogadoras não almejam (FORTIM, MONTEIRO, 2013). As RSs explicitam a tensão no reconhecimento daquilo que restaria à identidade feminina.
Quando a depoente é afrontada pela hipótese de que existiria uma conexão de causalidade entre o envolvimento recreativo do jogador e as maneiras pelas quais seriam orientadas suas RSs acerca da realidade, surge, como figura apaziguadora, em um polo, a singularidade e, em outro, “depende do jogador”, uma espécie de assepsia, deslocando a singularidade para um envelope fechado em si, em uma subjetividade que se encerraria em si mesma; “não influencia em nada” nas atitudes e nos comportamentos.
Na totalidade desses polos, a sorte é lançada pelo acaso, e seríamos determinados por fatores aleatórios, de influência externa:
M2 – (...) quando os pais, o pai, a mãe ou a vó, não sei, quem cuida da criança ou adolescente, fala: para de olhar esse jogo, porque isso vai te influenciar a ser violento. Isso guarda na cabeça do indivíduo e ele vai com certeza, acho que muito provável, ter, pelo menos, um pouco mais de violência na vida dele; eu acredito que pode, mas ao mesmo tempo não; depende, acho, que da criação do indivíduo, tanto da mulher quanto do homem, e também da fase, as vezes, até pode causar um pouco mais de violência... mas eu acredito que pode influenciar sim... dependendo...
M9 – (...) se influencia é porque... não tem educação, porque... respeito a gente aprende sei lá... não aprende com videogame... se os pais largam a criança só com o videogame ele vai aprender só isso (...)
Ou interna:
M2 – (...) pessoa que não tem uma cabeça firme, é muito jovem (...) muita influência ruim de como tratar uma mulher, porque no jogo inteiro nunca vi, ele ou alguém, tratando uma mulher bem, é só isso, é só a mulher se prostituindo, trabalhando em bares, como strip-tease, e essas coisas...
M3 – (...) vai muito da mente da pessoa, se a pessoa tem a cabeça fraca. Eu acho que assim, a pessoa já nasce com aquilo de ser ruim e querer fazer o mal para pessoa, eu acho que não vai ser um jogo que vai te influenciar a fazer isso ou não. Dentro do jogo eu mato todo mundo, mas fora... eu sou a tranquilidade, não mato uma barata, uma formiga! Então acho que se a pessoa já vem com isso de berço, já tem essa tendência a ser uma pessoa ruim, então acho que isso só vai acabar influenciando ela, porque ali você joga, mata, você sai correndo e você não é preso e cabo. Agora uma pessoa que já sabe que... já tem o certo, não vai influenciar.
DEPENDE DO JOGADOR | ||
Variações na influência Influência negativa Comportamento do usuário Está relacionado Forma da criação/Ausência de educação Muito jovem/Crianças/Sem supervisão dos pais-adultos Índole/Princípios/Quem não tem opinião “cabeça firme” GTA | ||
Reforçador – atitudes Gênero/Papel masculino Machismo Inferioridade feminina Desvaloriza a mulher |
Redutor – ansiedade Alívio emocional Frustração Alienação Substituto/real Diversão Distração |
Indutor –comportamento Violência Sexo Agressividade |
Efeitos Falta escolha para a mulher Conduta violenta dos homens Manutenção do machismo | ||
NÃO INFLUENCIA A VIDA REAL |
Fonte: Elaborado pelo autor.
Outro ponto emergente está ligando jogo e vida de maneira causal e funcional. Jogar implicaria incorporar uma função indutora de atitudes que causaria comportamentos crivados de:
1) Sexualidade degenerada e agressiva:
M2 – É uma influência (...) como se a mulher não tivesse valor (...) é um jogo machista (...) a qualquer momento ele pode ter uma mulher e também pode matá-la e... e ainda ganhar pontos, então isso influencia a pessoa a jogar e a bater só pra ganhar pontos.
M8 – Eu acho péssimo, porque a questão da mulher totalmente e o homem é muito violento, você chutar a pessoa até a morte pra recuperar o dinheiro porque teve relação com ela.
M3 – em casa eu tenho o meu irmão e o meu primo, que ele também mora lá, e a gente tá jogando, e meu irmão ele é um LORDE, e eu primo às vezes ele tá jogando e começa a gritar “morre vagabunda, morre vagabunda” daí a gente tá na rua e ele fala “olha uma prostituta, eu vou bater nela até morrer” (...) eu acho que o jogo já tá influenciando ele um pouco (...)
2) Violência gratuita:
M1 – (...) agressão. Principalmente criança, que queria agredir, por exemplo, um coleguinha ou alguma coisa dele mas ele sabe que não pode, aí ele vai lá e desconta no jogo.
M3 – (...) não fico matando, fico batendo (risos). Você tá em cima de um prédio, você pega uma mochila e sai voando, eu acho isso muito legal.
M7 – (...) é pura violência, porque quando você vai tentar seguir as regras ainda, se você dá uma batidinha no carro você já sai quebrando tudo, estourando tudo, e a polícia sai atrás, é violência pura eu acho (...)
3) Alienação:
M6 – (...) é divertido para mim, e por uma alienação (...) eu nunca fiz uma análise profunda dos meus jogos porque eu tive muito medo do que eu vou descobrir (risos), só faço uma análise superficial. Mas dá para perceber, a cada estado emocional meu eu interajo de forma diferente com o jogo, é bastante interessante até.
4) Ambivalência e isolamento da realidade:
M7 – (...) é uma coisa que você não poderia fazer na realidade, mas você pode fazer no jogo, isso é muito bom.
M8 – (...) você pode fazer muita maldade que você não pode fazer na vida real e não vai acontecer nada com você né, eu acho que é uma válvula com certeza!
M1 – (...) no jogo uma coisa legal, “legal” tipo, eu não acho certo... mas não só a prostituta mas acho que como todos os personagens, você pode matar e pegar o dinheiro... Mas não acho uma coisa legal, porém é uma coisa do jogo que você tem que fazer pra ter dinheiro, além dos códigos.
Numa sequência analítica, jogar implicaria acionar uma função que retroalimentaria atitudes reacionárias em relação ao gênero, e o papel masculino reproduziria o machismo estrutural. O efeito causal estaria envolvido na naturalização da inferioridade feminina, que conduz a uma brutal desvalorização da mulher.
M6 – Machismo puro. Inferioridade total. É como se o homem só conseguisse ver a mulher daquele jeito, e não de outro tipo.
M9 – Eu não faço isso, eu uso códigos. (...) porque não só prostituta né, qualquer pessoa que você matar você ganha dinheiro... não só a prostituta, mas... é um jogo machista então... infelizmente é um jogo machista. Devia ter a opção de escolher se você quer ser uma mulher, porque existe mulher traficante, existe até velhinha traficante (...) Mas... é um jogo americano E machista.
M5 – (...) acaba reproduzindo o que a nossa sociedade e o mundo em geral é. E não porque só o GTA faz isso, não, ele é um dos fatores que vai influenciar(...)
No olhar que amplia as RSs, outra dimensão de familiarização reduz o efeito do jogo e o insere na totalidade e complexidade do cotidiano social. Seria apenas mais um componente das intrincadas engrenagens sociais:
M6 – (...) Não tem uma relação que você pode transferir do jogo pra realidade, eu acho que tem que ser o contrário, da realidade você transferir pro jogo, porque se você fizer o contrário você vai ficar louco, você vai achar que você pode tudo e não é isso, o jogo é o jogo e a vida é a vida. Então você acha que por exemplo, os homens que jogam, vão lá e veem que a mulher tá sendo tratada de forma desvalorizada (...) como prostituta, isso não vai interferir na visão que ele tem de mundo real das mulheres.
M5 – (...) Claro que eu não concordo em dar um jogo desse para uma criança de 10, 11 anos... Mas eu não acho que ele incita a violência, até porque eu joguei a minha vida inteira e até hoje não tenho uma bazuca no bolso não matei ninguém (risos) então eu acho que não, muito pelo contrário.
Nesse sentido, não é possível negar o caráter pedagógico intrínseco aos games, sendo necessário compreendê-los como artefatos culturais que podem difundir discursos sobre estereótipos, papéis de gênero e levar ao reforço de práticas opressoras.
A sociedade cria os estereótipos, sendo estes físicos e psicológicos, no entanto essa construção acontece de forma arbitrária, pois esses estereótipos estão relacionados com as diferenças de classe e relações de poder. O impacto dessa desigualdade pode ser observado na vida pessoal e profissional e são representados, por vezes, nas artes (MALTA e SABBATINI, 2016).
4 Considerações finais
Os jogos eletrônicos representam um poderoso espaço de representação, entretenimento e expressão. Por meio de seus recursos eletrônicos, audiovisuais e de interface, os jogos trazem aos seus usuários a possibilidade de entrar no mundo virtual e representar um personagem, transcendendo o jogo tradicional. Possuem um discurso implícito, condensando uma visão do mundo, assim como conotações morais. (MEZA-MAYA; LOBO-OJEDA, 2017).
Nessa realidade, o jogador teria diante de si uma avaliação do bem e do mal na qual ele é reiteradamente convocado a assumir, de maneira impulsiva, o que deve ser feito. O sucesso na ação é recompensado e os erros são punidos. Nessa imersão, em uma realidade virtual planejada para ser pujante e sedutora, surge o questionamento: essa visão de mundo, homem e sociedade é permeável para o cotidiano dos jogadores?
De acordo com essa perspectiva podem-se entender os videogames como mediadores entre o usuário e seu modo de entender a cultura em que está inserido. Os jogos eletrônicos, portanto, não seriam considerados “neutros”, pois representam construções sociais e simbólicas, assim como instrumentos de transmissão cultural (MEZA-MAYA, LOBO-OJEDA, 2017). Toda a produção humana materializa a totalidade da natureza social e pode instrumentalizar os processos de desenvolvimento. Nesse aspecto, o posicionamento exposto por Napoli e Gomes (2017) reafirma que, durante a infância e adolescência, os jogos e as brincadeiras representam momentos de aprendizagem e assumem um papel na interface entre a sociedade e seus meios nos processos socializadores.
Em conclusão, este estudo oferece elementos para que se reflita acerca dos impactos causados pelo uso dos jogos de GTA, especificamente no que se refere aos retrocessos causados aos avanços obtidos pela sociedade por meio dos seus marcos civilizatórios. Exprime a maneira como a mulher é tratada socialmente, evidenciando o machismo estrutural. Logo, os jogos funcionam como recorte social em que, de maneira contundente, constroem-se os papéis de gênero socialmente impostos.