SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.33 número66Alfaletrar histogeográfico: narrativas e mapas mentais de La Serena – ChileA escola como espaço de emancipação dos indivíduos e suas coletividades: conversações em Marx e Gramsci índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Educação: Teoria e Prática

versão impressa ISSN 1993-2010versão On-line ISSN 1981-8106

Educ. Teoria Prática vol.33 no.66 Rio Claro  2023  Epub 07-Ago-2024

https://doi.org/10.18675/1981-8106.v33.n.66.s17932 

Dossiê

A dobra do espaço em Medo da eternidade (1970), de Clarice Lispector: do banal ao sagrado

The folding of space in Medo da eternidade (1970), by Clarice Lispector: from the banal to the sacred

El pliegue del espacio en Medo da eternidade (1970), de Clarice Lispector: de lo banal a lo sagrado

Filipe Rafael Gracioli1 
http://orcid.org/0000-0002-3240-9594

1Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro – Brasil. E-mail: filipe-rg@hotmail.com.


Resumo

Nesta escrita, buscamos compreender, em Medo da eternidade, crônica de Clarice Lispector publicada em 1970, a geografia estabelecida pela personagem central na relação consigo própria a partir de uma divagação no percurso até a escola, quando algo lhe atravessa: o medo da eternidade. Nesse itinerário, sob uma leitura do espaço percorrido pela personagem em uma cena aparentemente pouco geográfica, uma relação possível com o espaço geográfico se estabelece ao reorganizar o conceito para além da materialidade, tocado pelas linhas de fuga do pensamento da personagem. Com base em nossa experiência de leitura de fruição, pela leitura de mundo de Carlo Ginzburg com seu paradigma indiciário, que nos orienta para a busca pelos indícios na cena narrada, e também pela perspectiva de experiência em Walter Benjamin, que nos convida à atenção ao que nos toca, passa-nos e nos modifica, entendemos a crônica como uma dobra do espaço para além do material que se transforma em criação, reorganiza o banal e escapa para a vida infinita. Clarice nos oferece uma possibilidade de leitura de mundo a partir de uma noção geográfica abundante, na qual a experiência daquilo que nos transforma importa mais que a dureza da eternidade do conhecido e que indaga: que espaço é este que vivemos?

Palavras-chave Crônica; Experiência; Geografia; Leitura de Mundo; Narrativa

Abstract

In this text, we pursue, in Medo da eternidade, a short chronicle by Clarice Lispector published in 1970, the geography established by the central personage in the relationship with herself from a digression on the way to school, when something crosses her: the fear of eternity. In this itinerary, we search for a reading of the space by the character traversed, in a scene in which, apparently not very geographical, a possible relationship with the geographic space is established, by reorganizing the concept beyond materiality, touched by the lines of flight of the character's thought. Based on our experience of reading enjoyment, through Carlo Ginzburg's reading of the world with his evidential paradigm, which guides us in the search for evidences in the narrated scene and also through the perspective of experience in Walter Benjamin, which invites us to pay attention to what touches us, passes us and modifies us, we understand the tale as a folding of space beyond the material that is transformed into creation, reorganizes the banal and escapes into infinite life. In it, Clarice offers us a possibility of reading the world from an abundant geographical notion, in which the experience of what transforms us matters more than the hardness of the eternity of the known and which asks: what is this space we live in?

Keywords Chronicle; Experience; Geography; Point of View; Narrative

Resumen

En este texto, buscamos comprender, en Medo da eternidade, crónica de Clarice Lispector publicada en 1970, la geografía establecida por el personaje central en la relación consigo misma a partir de una digresión en el camino a la escuela, cuando algo le pasa: el miedo a la eternidad. En este itinerario, bajo una lectura del espacio recorrido por el personaje en una escena aparentemente poco geográfica, se establece una posible relación con el espacio geográfico, reorganizando el concepto más allá de la materialidad, tocado por las líneas de escape del pensamiento del personaje. Con base en nuestra experiencia de lectura de disfrute, a través de la lectura de mundo de Carlo Ginzburg con su paradigma indiciario, que nos orienta en la búsqueda de evidencias en la escena narrada y también bajo la perspectiva de la experiencia en Walter Benjamin, que invítanos a prestar atención a lo que nos toca, nos traspasa y nos cambia, entendemos la crónica como un pliegue del espacio más allá de la materia que se vuelve en creación, reorganiza lo banal y se escapa a la vida infinita. Clarice nos ofrece la posibilidad de leer el mundo desde una abundante noción geográfica, en la que importa más la experiencia de lo que nos transforma que la dureza de la eternidad de lo conocido y que indaga: ¿qué espacio es este en que vivimos?

Palabras clave Crónica; Experiência; Geografia; Lectura de Mundo; Narrativa

1 Introdução

Na escrita que apresentamos, buscamos compreender, em Medo da eternidade, crônica de Clarice Lispector (1920-1977) publicada em 1970, a geografia estabelecida pela personagem central do texto na relação consigo própria a partir da divagação por uma caminhada no percurso até a escola, quando algo a atravessa: o medo da eternidade. Neste curto e banal itinerário, a personagem, possivelmente Clarice criança, estupefaz-se com a rapidez do cinzento adquirido pelo chicle ganhado de sua irmã momentos antes de sua exegese. O fato leva a personagem a interpretar o objeto como um tesouro dos mais valiosos, que não se poderia perder. Neste diálogo do eu com(sigo), o espaço percorrido, mais que geográfico-material, transborda para uma dimensão existencial, e se perde na infinitude do pensamento, em um movimento de espiral ascendente, que se coloca em suspenso quando a perda da goma se faz presente ao - intencionalmente? - cair no chão e resgata a criança-personagem-fazedora de si para a realidade dura da cena-mundo ali experimentada.

Para tanto, e como movimento de situação epistemológica de nossa escrita, este trabalho desenvolve-se na aproximação entre os campos da Literatura e da Geografia, com base em uma perspectiva humanista para essa ciência, que aponta para uma dimensão de entendimento do conceito de espaço que posiciona o elemento humano em destaque ante suas ações no espaço geográfico, que exerce uma posição de protagonismo e de necessária existência para que o conceito se estabeleça na dimensão do humanismo associado à ciência.

Monteiro (2002) considera que a Literatura, em diálogo com a Geografia, vem para significar uma saída que leva à criação de geograficidades – a partir das subjetividades de seus leitores, de suas fantasias, devaneios e principalmente de suas visões de mundo, conferindo ao espaço e, sobretudo, ao homem, uma possibilidade de identificação e autorreconhecimento, a partir da dimensão espacial geográfica. Segundo o autor:

[...] excetuadas a ficção científica, a fantasia e a alegoria – a noção de “lugar”, embora sendo obra de imaginação e de criação literária, contém uma verdade que pode estar “além” daquela advinda da observação acurada, do registro sistemático dos fatos. Esta capacidade paradoxal encontrável na Literatura, ou a ela conferida pelo geógrafo, brota de um reconhecimento de que a essência ou a verdade do mundo transcende à interpretação de dados coligidos por geógrafos, historiadores e sociólogos. Não se trataria, de nenhum modo, de substituir a análise científica pela criação artística, mas apenas retirar desta (Literatura) novos aspectos de “interpretação”, reconhecê-la como um meio de enriquecimento.

(Monteiro, 2002, p. 14-15).

Da proposta de Monteiro, concebemos o espaço como “cenário intrinsecamente associado à história contada”, como “protagonista, seja físico-atuante seja psíquico-poético” (Wink, 2015, p. 52-53).

No domínio do campo de estudos da geografia humanista, o conhecimento de Geografia compreende-se como um campo aberto e em constante diálogo com outras áreas de saberes, como o literário, em nosso exemplo de investigação. Em uma perspectiva paralela, porém inserida neste domínio, a proposta da fenomenologia converge com a da geografia quanto ao objetivo de compreender o mundo a partir dos fenômenos que nele atuam, partindo, no entanto, da consciência humana, não da objetividade pura como propõe a ciência positivista: “é uma ciência da consciência sobre os fenômenos” (Holzer, 1997, p. 78) ou a consciência do mundo no mundo, do “ser-envolvido-no-mundo”.

De acordo com esse mesmo autor, “o projeto da fenomenologia é de reaproximar as ciências de nossas vidas, ações e projetos, a partir das experiências ante-predicativas (anteriores aos conceitos e aos juízos), ou seja, relativas à percepção do mundo e de seus objetos enquanto fundamentos dos conceitos” (Holzer, 1997, p. 78).

O campo de estudos que envolve as discussões entre o literário e o geográfico, embora não seja recente, somente nos anos 1990 ganhou força no espectro científico, em virtude da possibilidade de novos temas e discussões que emergiram com a virada cultural nas ciências sociais e humanas, lugar em que se insere a Geografia. E, para ilustrar esse momento histórico da Geografia acadêmica brasileira, trazemos uma pesquisa de tipo “estado da arte” do campo, pela qual podemos verificar que não são muitos os trabalhos que se dedicam à tarefa de aproximar essas duas vertentes de saberes, o que nos reforça a necessidade de estudos como o que apresentamos.

Segundo Ferreira (2002) e Romanowski e Ens (2006), as pesquisas denominadas “estado da arte” permitem-nos obter um panorama do que se tem produzido numa determinada área de conhecimento e podem significar:

[...] uma contribuição importante na constituição do campo teórico de uma área de conhecimento, pois procuram identificar os aportes significativos da construção da teoria e prática pedagógica, apontar as restrições sobre o campo em que se move a pesquisa, as suas lacunas de disseminação, identificar experiências inovadoras investigadas que apontem alternativas de solução para os problemas da prática e reconhecer as contribuições da pesquisa na constituição de propostas na área focalizada

(Romanowski; Ens, 2006, p. 39).

Além disso,

[...] elas parecem trazer em comum o desafio de mapear e de discutir uma certa produção acadêmica em diferentes campos do conhecimento, tentando responder que aspectos e dimensões vêm sendo destacados e privilegiados em diferentes épocas e lugares, de que formas e em que condições têm sido produzidas certas dissertações de mestrado, teses de doutorado, publicações em periódicos e comunicações em anais de congressos e de seminários

(Ferreira, 2002, p. 258).

Para nossa pesquisa, centramos nossa busca no Catálogo de Teses e Dissertações da Capes, a partir do descritor “geografia e literatura”. Especialmente em atenção ao que Romanowski e Ens mencionam sobre o reconhecimento das “contribuições da pesquisa na constituição de propostas na área focalizada”, em uma amostra do que se tem produzido e que está registrado no Catálogo, observamos que os trabalhos encontrados situam-se, sobretudo, na área de concentração da geografia, que envolve as subáreas regional e humana.

Ao todo, foram recuperados cinco trabalhos, todos dissertações de mestrado defendidas entre 1992 e 2009 e produzidos em programas de pós-graduação das regiões sul e sudeste do Brasil, sendo três oriundas da Universidade de São Paulo (USP), campus de São Paulo, e uma da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), no Rio Grande do Sul. Entre os temas, destacam-se os que percorreram as discussões entre a Geografia e o diálogo com Mário de Andrade, de Regina Célia Corrêa de Araújo (1992); a Geografia e os romances nordestinos da década de 1930-1940, de Ana Regina Vasconcelos Ribeiro Bastos (1993); o discurso geográfico e a obra de Delgado de Carvalho (literatura escolar), de Claudio Benito Oliveira Ferraz (1995); e a cartografia da fome no Brasil, a partir da geografia de Josué de Castro, de Cleder Fontana (2009).

Da leitura dos resumos desses textos, observamos que essas produções acadêmicas percorrem discussões que têm na literatura um suporte para o desenvolvimento das análises geográficas e espaciais que empreendem. Isso ocorre em Fontana (2009), que recorre à literatura geográfica de Josué de Carvalho, de 1946, para mapear a situação da fome no Brasil mais de meio século depois de seu escancaramento; e em Araújo (1992), que se apoia na literatura de Mário de Andrade para embasar a discussão acerca da construção de uma espacialidade urbana paulistana desde uma “utopia civilizatória impregnada pela valorização da tropicalidade e das suas virtualidades” (Araújo, 1992, s./p.), algo que compõe o processo de metropolização da cidade de São Paulo.

Evidentemente, há outras produções que não foram listadas pelo Catálogo por estarem fora do escopo de busca do descritor “geografia e literatura”, mas que a ele se reportam tematicamente em suas discussões, como os casos da dissertação de mestrado de Solange Terezinha de Lima Ferreira (1990), da dissertação de mestrado de Alessandro Andrade Haiduke (2008), da dissertação de mestrado (2005) e tese de doutorado (2012) de Adriana Carvalho da Silva, e de nossa dissertação de mestrado (2013) e tese de doutorado (2018), que podem ser consultadas a partir da listagem de referências bibliográficas ao final de nossa pesquisa.

Já para o descritor “geografia e literatura” associado à área de concentração literatura, verificamos também um universo restrito de produções, que recorrem ao repertório geográfico para dar suporte às discussões do campo literário, como revelam as dissertações de mestrado de Ângela Caldas Sanábio Faria (2008), na discussão sobre a literatura topofílica e telúrica associada à catação de caranguejos; e de Fernanda Rocha e Castro (2014), com estudos sobre o tempo e o espaço em contos de Clarice Lispector. Essa segunda autora, em especial, que compartilha conosco o objeto de investigação, institui uma pesquisa acadêmica no campo da literatura a partir das noções de “instante”, de “instante poético” e de “verticalidade”, de Gaston Bachelard (1884-1962), por meio das quais averigua “aspectos da obra clariceana que relacionam-se com os elementos espaciais e temporais, e fazem com que suas narrativas alcancem sensações estéticas e filosóficas que marcam de forma singular as perspectivas literárias no nosso país” [sic] (Castro, 2014, s./p.). A tese de sua prospecção “evidencia a ligação intrínseca entre espaço e tempo, bem como suas metamorfoses experimentadas a partir da memória afetiva” (Castro, 2014, s./p.) e, com base na teoria do “fantástico”, entende que haja “uma interpenetração do mundo físico com o espiritual, o quem vem a ressaltar assim o sobrenatural” [sic] (Castro, 2014, s./p.), como também argumentaremos em nossa investigação sobre a referida autora.

Diferentemente dessas, a dissertação de mestrado de Elieser Bernardo dos Santos (2008), para além da Geografia como suporte ao desenvolvimento da pesquisa literária, entende a literatura também como personagem e objeto de sua pesquisa, ao resgatar um retrato da paisagem alentejana à luz da geografia cultural e do neorrealismo português, em que procura estabelecer “a importância da geografia na análise da constituição dos espaços” (Santos, 2008, s./p.) presentes nos contos de Manuel da Fonseca com os quais trabalha, ao que ratifica “a existência de dois espaços que se configuram de modo distinto: o espaço da opressão associado à paisagem de Valgato e presente no conto Campaniça; e o espaço da liberdade, representado pelo cenário que constitui a Aldeia Nova no conto homônimo” [sic] (Santos, 2008, s./p.).

À semelhança do verificado na área de concentração em Geografia, outras pesquisas poderiam também ser listadas neste “estado da arte”, mas entendemos que o extrato apresentado amostra significativamente a produção referente ao campo e nos oferece uma leitura panorâmica satisfatória sobre o que se tem pensado para o binômio Geografia e Literatura na dimensão acadêmico-científica.

Entendemos que discutir a aproximação entre Geografia e Literatura nos convida necessariamente a um olhar especial para a leitura, tomando-a tanto como ferramenta, quanto objeto de estudos. Neste sentido, posicionando ainda nosso estudo no campo da fenomenologia, nossas reflexões apoiam-se também no conceito de “alquimia da recepção” introduzido por Michèle Petit (2008) em referência ao processo de apropriação dos textos pelo leitor. Ao discutir o hábito da leitura em sentido amplo, a autora aponta para a existência de certo temor ao acesso direto ao livro e à “solidão” do leitor diante do texto. Registra-se que os poderes autoritários preferem difundir vídeos, fichas ou trechos escolhidos, acompanhados de sua interpretação e contendo a menor possibilidade de “jogo” para restringir a liberdade do leitor.

Isso porque a autora considera que há um espaço íntimo aberto pela leitura, espaço de fuga que permite o surgimento de alternativas, como poderemos observar fortemente no texto de Clarice Lispector que elegemos para nossa análise. Para Petit:

Esse espaço íntimo nos dá um lugar. A partir daí, dessa outra maneira de ocupar o tempo que nos é dado quando lemos, temos uma outra percepção do que nos cerca. E podemos dar sentido às nossas vidas, construir sentido. [...] Às vezes, a leitura nos dá o apoio de uma definição. De uma forma, uma ordenação. Sentimos que existe, em alguns textos escritos por escritores, um pouco mais de verdade que em outras formas de expressão linguística. Porque o escritor quebra os estereótipos, renova a linguagem, caça os clichês – o bom escritor, ao menos. É um dos raros que fala das contradições e das ambivalências das quais somos feitos

(Petit, 2008, p. 40-41).

Especialmente na narrativa da crônica que selecionamos, esta indicação de “maior verdade contida no texto literário” se situa como expressão veraz, dada a sua natureza de narrativa de um espaço que tende a se assentar mais em uma dimensão espiritual que concreta, propriamente.

No entendimento de que a Geografia e a Literatura, em uma relação de interdisciplinaridade e unidas a partir do ato de ler, nos convidam à liberdade do pensamento e da imaginação criativa, ficamos com o seguinte entendimento de Barthes (2010), para quem a literatura institui-se como monumento, que eleva inclusive o conhecimento geográfico a esta posição, uma vez que a Geografia se inclui neste movimento:

Se, por não sei que excesso de socialismo ou de barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto uma, é a disciplina literária que deveria ser salva, pois todas as ciências estão presentes no monumento literário [...] A literatura faz girar os saberes, não fixa, não fetichiza nenhum deles; ela lhes dá um lugar indireto, e esse indireto é precioso

(Barthes, 2010, p. 18-19).

Essa liberdade que a literatura promove está traduzida em Clarice Lispector pelo verbo sentir: que o leitor possa sentir nas linhas e entrelinhas de sua escrita a sensação de elevação para um espaço imaginado, sagrado, mas com base e surgida de uma relação com o espaço experimentada no material da vida cotidiana, por vezes duro e intragável, banal, mas cujas emoções e sensações afetas abrem o leitor para uma relação de criação de sentidos próprios, de indícios de uma experiência pessoal particular, papel maior da leitura e da literatura.

À pergunta que indaga sobre a importância do estudo que trazemos para os campos da Geografia e da Literatura e, de modo ampliado, para o campo do conhecimento científico, justificamos com a imagem de sofisticação que a literatura expressada no Medo da eternidade nos revela como possibilidade de intepretação e de relação das personagens da narrativa com o espaço geográfico. Essas condições abrem àquelas ciências a possibilidade de compreender o conceito maior de suas investigações em uma dimensão que extrapola o concreto da ciência cartesiana e permite a sua interpretação a partir da experiência de leitura e de vivência do espaço que somente a subjetividade e o contato com o sagrado em si proporcionam ao leitor.

Considerando esses apontamentos, nossa hipótese de investigação reside na ideia de que o espaço geográfico na crônica escolhida para análise, assim como o universo da produção escrita de Clarice Lispector, apresente-se não somente como pano de fundo para o desenvolvimento das ações da trama, mas que seu entendimento tenha sido estabelecido a partir de uma construção intelectual sofisticada que parte do mundo material, eleva-se para o mundo sagrado da personagem e que, em retorno àquela materialidade, como em uma dobra do espaço, reorganiza tanto uma, quanto outra dimensão e transforma o banal em original.

O fio de entendimento do Medo da eternidade nos permite observar uma complexidade de relações entre o espaço geográfico e aquele que o experiencia, e que nos conduz a uma dimensão de compreensão da escrita de Clarice Lispector como obra de arte, dada a sua irreplicabilidade.

2 Sinais, pistas, indícios: caminhos metodológicos da investigação

Carlo Ginzburg (1939 - atual), com o seu paradigma indiciário, oferta-nos uma possibilidade de olhar para o espaço geográfico sublinhado na narrativa do Medo da eternidade desde uma interpretação ampla, a qual nos oferece a possibilidade de compreender o espaço narrado a partir do ser-no-mundo, ou seja, a partir de nossa visão de mundo, extrapolando os limites canônicos da ciência e vagando pela dimensão mais aproximada possível do real: a do eu e de suas possibilidades de versões sobre o espaço.

Conforme a proposta de Ginzburg, uma leitura atenta aos sinais, aos indícios de uma narrativa leva-nos ao entendimento de uma possibilidade de leitura do texto que tende para a expressão de sua veracidade. Segundo o autor, o paradigma indiciário, originado da tarefa investigativa com base amplamente científica da personagem de romances policiais Sherlock Holmes sobre cenas de crimes, este paradigma assemelha-se à investigação atenta de obras de arte, onde o pouco convencional torna-se relevante. À semelhança de uma investigação criminal, na qual as pistas e os sinais que revelam indícios de uma cena indicam o caminho até o criminoso, assim também os sinais que a narrativa vai significando, à medida da subjetividade do leitor, aproximam-no de uma interpretação possível para o espaço geográfico e seus desdobramentos na trama.

Esse paradigma justifica-se pela noção de que os sinais nos permitem compreender os pontos pouco luminosos da realidade, competindo à intuição, aquela originada nos sentidos humanos, captar tais indícios. Conforme o autor, “se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – sinais, indícios – que permitem decifrá-la. Essa idéia, que constitui o ponto essencial do paradigma indiciário ou semiótico, penetrou nos mais variados âmbitos cognoscitivos, modelando profundamente as ciências humanas” (Ginzburg, 1999, p. 177).

Desse modo, “faro, golpe de vista, intuição” (Ginzburg, 1999, p. 179) compõem os procedimentos para se analisar uma cena ou, em nosso caso, um texto narrativo, com a defesa de que o rigor do método se garante não pela sua referência a um modelo estabelecido a priori, e que este rigor é não só inatingível, mas também indesejável, já que “as formas de saber mais ligadas à experiência cotidiana [...] são, aos olhos das pessoas envolvidas, decisivas” (Ginzburg, 1999, p. 178-179).

Buscar pelos indícios que nos conduzam a uma possibilidade de olhar para a subjetividade do leitor entre as linhas escritas e dentro dos possíveis contextos interpretativos, será nosso propósito metodológico, admitindo que nosso olhar de leitor concebe a narrativa como o contar da própria experiência, à diferença do romance, que conta a partir da experiência de outrem e que deixa passar as nuances decisivas para a distinção entre o que pertence à experiência de leitura do eu e o que pertence à experiência de leitura do outro. Tudo isso para perseguirmos a questão de suporte à nossa investigação, ainda em aberto: que espaço é este que vivemos?

3 O Medo da eternidade

Cena 1 – o material: a criança que sai de casa para a escola; o trajeto banal; o presente recebido da irmã: “elixir do longo prazer”

(Lispector, 1970, s./p.)

Cena 2 – a dúvida: o mascar o chicle, degustar o presente; o autotransporte do material para o sagrado, a conexão com a eternidade, Deus; o espanto inicial, exegese: “– e agora que é que eu faço?” [sic]

(Lispector, 1970, s./p.)

Cena 3 – o sagrado, o profano e o eterno retorno: o retorno ao concreto real, intragável, intensamente modificado pela experiência do sublime; a dobra do espaço; a constatação da deformidade do eterno: “– até que não suportei mais [...]”

(Lispector, 1970, s./p.)

O espaço, entendido a partir de uma noção clássica da Geografia como materialidade, como físico, é pouco relevante na crônica de Clarice; as ações, ainda que banais, poderiam ocorrer em qualquer situação espacial, inclusive na sua ausência, a partir do entendimento clássico do conceito. É o espaço inventado, espiritualizado e sacralizado pela experiência de vida que dá a tônica da escrita de Clarice; deste modo, não se aprofunda nas suas entrelinhas pelo aspecto do material e nos leva à sua consideração mais como palco das ações, suporte para o desenvolvimento da trama.

Protagonista da trama apresentada? Não, absolutamente. Ao menos da maneira como se tem concebido classicamente os estudos geográficos em literatura e geografia. Porém, à diferença do dissertado pela escritora n’A hora da estrela (1977), por exemplo, narrativa na qual a cidade tem presença para além do meramente figurativo, de maneira que sem ela o enredo não poderia se desenvolver, no Medo da eternidade o espaço concreto do mundo objetivo importa pouco, afinal, é no mundo idílico do drama pessoal e humano que a narrativa se vai construindo e tomando forma, em um movimento aproximado ao que Dardel chama de ser-no-mundo, em contraste com o ser-no-espaço e que caminha para uma geograficidade espacial (Holzer, 1997).

Se tivermos, entretanto, que aproximar o texto de Clarice a uma dimensão espacial conceitual, como quer a Geografia acadêmica, será no lugar que sua escrita mais bem se arranja: Recife (onde a autora passara a infância), a casa, a escola, a bala, a rua, o cor-de-rosa, o chão de areia, a cama... todos esses são indícios que nos apontam para o entendimento de que o que se sobressai na geografia de Clarice é o afeto, representado na Geografia acadêmica justamente pelo conceito de lugar, porque é por ele que podemos pertencer ao mundo, rememorar cenas, espaços, sentidos, valores; com ele nos identificamos e, mais ainda, podemos ser-no-mundo, como revelam as seguintes passagens do texto:

- Quando eu era muito pequena ainda não tinha provado chicles e mesmo em Recife falava-se pouco deles. Eu nem sabia bem de que espécie de bala ou bombom se tratava.

[...]

- Afinal minha irmã juntou dinheiro, comprou e ao sairmos de casa para a escola me explicou [...]

[...]

- Peguei a pequena pastilha cor-de-rosa que representava o elixir do longo prazer. Examinei-a, quase não podia acreditar no milagre.

[...]

- Até que não suportei mais e, atravessando o portão da escola, dei um jeito de o chicle mastigado cair no chão de areia.

[...]

- Até de noite a gente pode ir mastigando, mas para não engolir no sono a gente prega o chicle na cama. Não fique triste, um dia lhe dou outro, e esse você não perderá [sic]

(Lispector, 1970, s./p.).

Embora haja divergências de pensamentos para a definição de lugar nas diversas correntes do pensamento geográfico, nas quais é possível verificar que o lugar foi por um longo período compreendido apenas como sinônimo de localização, Tuan (1983), que pertence à corrente humanista, não descarta o seu sentido locacional; ao contrário, em sua concepção, ele traz complementos essenciais, como, por exemplo, o indivíduo e sua experiência vivida. Contudo, o lugar possui diferentes escalas, podendo ser, além de uma cidade, uma casa, uma cadeira, uma lareira ou mesmo um chicle, e tem uma representação única de caráter individual. Para Tuan (1983):

O lugar é um centro de significado construído pela experiência. [...] é conhecido não só através dos olhos e da mente, mas também através dos modos de experiência. [...] A experiência constrói o lugar em escalas diferentes. [...] Os lugares podem ser privados para o indivíduo. A cadeira de balanço dentro da casa tem uma localização específica e um significado especial. [...] a cama é um lugar pessoal [...], é um centro de significado por razões além de familiaridade, conforto e segurança: cada dia é um ponto de partida e regresso

(Tuan, 1983, p. 153).

Como na narrativa que estudamos personagem e autora se confundem, ficamos com o entendimento de que Clarice escreve a partir da sua própria experiência de espaço, tal como o narrador, que caminha “para cima e para baixo nos degraus de sua experiência, como numa escada. Uma escada que chega até o centro da terra e que se perde nas nuvens [...]” (Benjamin, 1996, p. 215). Esse itinerário pelo planeta Terra-Homem, que incorpora tanto as agruras da vida concreta, quanto a beleza do sublime, nos convida ao experienciar de Benjamin, para quem importa-nos mais aquilo que passa, que nos toca e nos transforma que aquilo que nos conforma (Benjamin, 1996).

Nesse movimento de idas e vindas pela memória, a escritora resgata o conceito de artesanalidade do conhecimento e a maneira como ele se dispõe na sociedade, movimento que nos permite a compreensão da sua escrita como narrativa, a qual, diferentemente do romance, fala da experiência vivida por aquele próprio que narra, não da experiência contada a partir da vivência de outrem, como quer o romancista, que escreve isolado e que não sabe dar, nem receber conselhos. O narrador escreve a partir da própria experiência e também da experiência de outrem, porque sua função é a de fazer sugestões “sobre a continuação de uma história que está sendo narrada” (Benjamin, 1996, p. 200), mais do que continuá-la ao seu modo.

E, à semelhança da imagem da escada de Benjamin, se pudéssemos representar graficamente o movimento iniciado no Medo da eternidade, teríamos uma ideia de espaço representada a partir de uma espiral ascendente, que tem um ponto inicial na realidade do espaço material, tornado movimento por uma ação banal do cotidiano que, à medida de sua excitação, torna-se em uma realidade espiritual, sagrada, resultado-desenvolvimento daquela ação inicial da matéria, para depois, em uma (re)ação de sobrevivência do eu, inclusive, retornar ao mundo material, não mais aquele incialmente dado, mas agora modificado pela experiência do sublime, para se dirigir a uma eternidade outra, finita, temporal e espacialmente delimitada pela vida humana, repudiada porque temida.

Não só a materialidade geográfica, mas também o corpo aparece como possibilidade de relação espacial no Medo da eternidade, um espaço da relação do eu consigo próprio, em contraste com o corpo em relação com o mundo. Podemos dizer que a narrativa se assenta em um movimento interno da personagem, que nos encaminha para um entendimento da sua autocompreensão no espaço geográfico material como de tese-antítese-síntese, que se inicia na brevíssima relação corpo-mundo estabelecida pela marcha casa-escola e pela ambientação de uma rua qualquer da Recife dos anos 1920...

Quando eu era muito pequena ainda não tinha provado chicles e mesmo em Recife falava-se pouco dêles. Eu nem sabia bem de que espécie de bala ou bombom se tratava. Mesmo o dinheiro que eu tinha não dava para comprar: com o mesmo dinheiro eu lucraria não sei quantas balas.

Afinal, minha irmã juntou dinheiro, comprou e ao sairmos de casa para a escola me explicou:

- Tome cuidado para não perder, porque esta bala nunca se acaba. Dura a vida inteira [sic]

(Lispector, 1970, s./p.).

... e logo escapa para a rica relação corpo-mente/alma, atingida pela sua elevação e sofisticação a partir de um movimento ordinário e banal do mascar infinito da goma, que estabelece uma suspensão na relação inicial, para depois tornar a estabelecer-se em uma dimensão geográfica vulgar e ordinária de um chão de areia qualquer (a repulsa pela eternidade)...

[...] Comecei a mastigar e em breve tinha na bôca aquêle puxa-puxa cinzento de borracha que não tinha gôsto de nada. Mastigava, mastigava. Mas me sentia contrafeita.

[...]

Até que não suportei mais, e, atravessando o portão da escola, dei um jeito de o chicle mastigado cair no chão de areia.

- Olha só o que me aconteceu! – Disse eu em fingidos espanto e tristeza. Agora não posso mastigar mais! A bala acabou! [sic]

(Lispector, 1970, s./p.).

... para, finalmente, perder-se na infinitude do eu – da eternidade temporal e, em um esforço de elevação e de sofisticação do conceito clássico de espaço geográfico – de abertura para a dimensão do imaginário e da subjetividade da experiência espacial:

Eu estava envergonhada diante da bondade da minha irmã, envergonhada da mentira que pregara dizendo que o chicle caíra da boca por acaso.

Mas aliviada. Sem o pêso da eternidade sôbre mim. [sic]

(Lispector, 1970, s./p.).

Essa relação entre personagem e espaço, que aparentemente se apresenta banal, constitui, na verdade, uma relação de complexidade e abertura que tende ao infinito do entendimento do conceito de espaço. O vaivém estabelecido pela personagem temporalmente e espacialmente revela-se na complexidade do eu frente a estas dimensões que, relativizadas, podem tornar-se angustiantes. Afinal, é preciso um corte com origem na psique, na mente ou na alma, o qual demanda um grande esforço interno, para que o real torne a se apresentar novamente na sua dimensão concreta.

Com essa imagem inicial de Medo da eternidade, nossa leitura da crônica clariceana compreende que, de uma cena aparentemente pouco geográfica, uma relação possível com o espaço geográfico se estabelece ao reorganizar a ideia de espaço para além da mera materialidade, tocada pelas linhas de fuga do pensamento da personagem. Tal como na espiral, a experiência de espaço do eu-sujeito-personagem-leitor nunca se repete, nem mesmo retorna para o mesmo ponto novamente; apenas ascende e tende ao infinito, à eternidade; um espaço de conceito aberto, dado o seu atravessamento pelo sagrado da experiência do subjetivo.

Clarice, ou sua personagem, se locomove, literariamente, nos degraus de sua experiência para cima e para baixo, até os profundos de seu pensamento, que reflete a angústia frente ao real, à finitude da vida e da possível insignificância deste espaço e desse tempo, apesar de a ele sempre retornar, afinal, o acinzentado da massa amorfa carrega ainda consigo o cor-de-rosa da ilusão.

Ao menos no Medo da eternidade, o entendimento de espaço tal como concebido academicamente é rompido e convida o geógrafo, principalmente, a uma revisitação do conceito clássico de espaço, circunscrito ao observável e concreto do material. Entendemos que a leitura desta crônica implica na abertura a uma sensibilidade para olhar o espaço a partir da irrupção de suas barreiras, limites, circunscrições técnico-científicas, pesadamente cartesianas e fundadas na lógica do pensamento racional. A complexidade desse espaço concebe-se na sua irreplicabilidade, pois pertence à dimensão do particular, do eu que o experiencia e, mais, que o sente a partir de suas ferramentas e recursos internos.

Apesar de densa, a leitura da escrita de Clarice nos oferece a possibilidade de se pensar o conceito de espaço, seja pelo estudante, seja pelo profissional geógrafo ou mesmo pelo leitor de lazer, de um modo ampliado que tende ao criativo, à plasticidade, em um exercício de inauguração que leva à construção de um raciocínio espacial com maior abertura à leveza, sem o peso do dever-ser, mais ligado ao ser-no-mundo que sobrepõe o ser-no-espaço, um ser mais ativo na construção do próprio entendimento de espaço, atento aos indícios de sua presença no mundo, mais ativo frente ao que lhe chega.

4 Considerações finais

O diálogo entre a Geografia e a Literatura apresenta-se como um elo que pode enriquecer as análises tanto de um, quanto de outro campo de saber; para a Literatura, podemos dizer que sua maior conquista será a possibilidade de ampliação das interpretações do conceito de espaço nas narrativas, enquanto as análises geográficas se beneficiarão dos recursos do manejo da língua e da cultura letrada na construção do espaço, como com a reflexão espacial, por exemplo.

Para Zilberman (2008), a Literatura possui papel formativo de destaque, já que possibilita o desenvolvimento do imaginário e da abertura para a sensibilidade, cujas experiências literárias e leitoras tecem relações entre o real e o imaginado, marca do texto sobre o qual refletimos. A essas experiências leitoras se faz subjacente a convicção de que elas abrem as portas para outro espaço, para outra maneira de pertencer ao mundo e, assim, os “escritores nos presenteiam com uma geografia, uma história, uma paisagem onde retomamos o fôlego” (Petit, 2008, p. 79).

No Medo da eternidade, Clarice Lispector nos oferece uma possibilidade de leitura de mundo e de espaço a partir de uma geografia outra, de uma noção abundante e, sobretudo e principalmente, subjetiva, na qual a experiência – também geográfica – daquilo que passa e nos transforma importa mais que a dureza da eternidade do conhecido.

Assim é que entendemos a crônica de Clarice como uma dobra do espaço para além do material que se transforma em criação, um lampejo inventivo e espiritual que reorganiza o banal de uma cena geograficamente cotidiana e concreta e escapa, em uma dobra, para a vida-espaço-geografia infinita, desejada, logo repudiada, porque temida.

Os sinais e indícios que a narrativa analisada vai nos apresentando revelam uma escrita e um referencial geográficos pouco usuais e aparentemente inexistentes a olho nu. No entanto, a proposta do paradigma indiciário de Ginzburg, que institui uma busca minuciosa pelos detalhes, pelas zonas opacas da “cena do crime”, oferece-nos uma lente de leitura que nos conduz ao entendimento da escrita de Clarice como obra de arte, dado o seu caráter de ineditismo e de irrepetibilidade, embora possível de ser replicada.

A grandeza de sua escrita para o campo da Geografia é de que a escritora consegue reduzir ao máximo a dependência de suas personagens – e de seus leitores – do concreto para a realização das ações, pois se cria uma espacialidade própria com base nas vivências de cada entendimento do eu, frequentemente sagradas, mas sem de todo o desconsiderar, afinal, é para ele que sempre se retorna.

Paralelo ao geográfico materializado no terreno, o corpo também aparece como elemento de geoposicionamento nesta narrativa, especialmente porque é a partir dele que a trama será possível. O chicle, corpo estranho, invade e desorganiza um outro corpo, também estranho à personagem, ambos situados em um espaço de difícil depreensão.

Por fim, nossa intenção de leitura e de escrita percorreu o sentido de estabelecer uma relação entre as dimensões do material e do espiritual, da experiência sagrada do viver o espaço, tendo o homem como mediador dessa tarefa que é de sua única responsabilidade. Como propunha Benjamin, buscamos nos demorar nos detalhes, geográficos, sobretudo, e captar os indícios que estas particularidades nos autorizam a dizer sobre a escrita de Clarice Lispector; ficamos, assim, mais próximos de oferecer uma resposta à questão que indaga: que espaço é este que vivemos?

Referências

ARAÚJO, R. C. C. de. No meio da multidão: um diálogo entre Mário de Andrade e a Geografia. 1992. 150 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 1992. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8136/tde-06122022-182835/pt-br.php. Acesso em: 16 ago. 2023. [ Links ]

BARTHES, R. Aula. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. 11. ed. São Paulo: Cultrix, 2010. [ Links ]

BASTOS, A. R. V. R. A Geografia e os romances nordestinos da década de 1930 a 1940: uma contribuição ao ensino. 1993. 218 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 1993. Disponível em: https://repositorio.usp.br/item/000738542. Acesso em: 16 ago. 2023. [ Links ]

BENJAMIN, W. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: BENJAMIN, Wr. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Col. Obras escolhidas. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, p. 197-221, 1996. Disponível em: https://psicanalisepolitica.files.wordpress.com/2014/10/obras-escolhidas-vol-1-magia-e-tc3a9cnica-arte-e-polc3adtica.pdf. Acesso em: 14 jul. 2022. [ Links ]

CASTRO, F. R. Tempo e espaço: um estudo sobre alguns contos de Clarice Lispector. 2014. 80 f. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) - Universidade Federal de Rondônia, Porto Velho, 2014. Disponível em: https://www.ri.unir.br/jspui/handle/123456789/1336. Acesso em: 16 ago. 2023. [ Links ]

DARDEL, E. O Homem e a Terra. Natureza da realidade geográfica. Tradução de Werther Holzer. São Paulo: Perspectiva, 2011, 159p. [ Links ]

FARIA, Â. C. S. Homens e Caranguejos: uma trama interdisciplinar. A literatura topofílica e telúrica. 2008. Dissertação (Mestrado em Letras) - Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2008. [ Links ]

FERRAZ, C. B. O. O discurso geográfico: a obra de Delgado de Carvalho no contexto da geografia brasileira - 1913-1942. 1995. 164 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 1995. Disponível em: https://repositorio.usp.br/item/000742585. Acesso em: 16 ago. 2023. [ Links ]

FERREIRA, N. S. de A. As pesquisas denominadas “estado do arte”. Educ. Soc., ano XXIII, n. 79. Campinas: CEDES/UNICAMP, p. 257-272, ago. 2002. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0101-73302002000300013. Acesso em: 17 ago. 2023. [ Links ]

FONTANA, C. Uma cartografia da fome no Brasil: um estudo da geografia da fome (1946), de Josué de Castro, e dos dados de insegurança alimentar da PNAD (2004). 2009. 150 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande, 2009. Disponível em: https://repositorio.furg.br/handle/1/2215. Acesso em: 16 ago. 2023. [ Links ]

GINZBURG, C. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: GINZBURG, C. Mitos, emblemas, sinais - morfologia e história. Tradução de Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 143-179. [ Links ]

HOLZER, W. Uma discussão fenomenológica sobre os conceitos de paisagem e lugar, território e meio ambiente. Território, ano II, n. 3, p. 77-85, jul./dez. 1997. Disponível em: https://sites.google.com/site/flamariongeografia/disciplinasgraducao/geografia-cultural. Acesso em: 14 jul. 2022. [ Links ]

LISPECTOR. C. Medo da eternidade. Jornal do Brasil, edição de 6 de junho de 1970. Disponível em: https://cronicabrasileira.org.br/cronicas/5889/medo-da-eternidade. Acesso em: 14 jul. 2022. [ Links ]

MONTEIRO, C. A. de F. O mapa e a trama: ensaios sobre o conteúdo geográfico em criações romanescas. Florianópolis: Editora da UFSC, 2002. [ Links ]

PETIT, M. Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva. São Paulo: Editora 34, 2008. [ Links ]

ROMANOWSKI, J. P.; ENS, R. T. As pesquisas denominadas do tipo "estado da arte" em educação. Diálogo Educ., v. 6, n. 19. Curitiba: PUC-PR, p. 37-50, set./dez. 2006. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/1891/189116275004.pdf. Acesso em: 17 ago. 2023. [ Links ]

SANTOS, E. B. dos. Campaniça e Aldeia Nova: um retrato da paisagem alentejana à luz da geografia cultural e do neo-realismo. 2008. 100 f. Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=113684. Acesso em: 16 ago. 2023. [ Links ]

TUAN, Y.-F. Espaço e lugar. A perspectiva da experiência. Tradução de Lívia de Oliveira. São Paulo: Difel, 1983, 250p. [ Links ]

WINK, G. Espaços ficcionalizados em Desterro, de Luis S. Krausz: um ensaio em geografia literária. Estudos de literatura brasileira contemporânea, n. 45. Brasília, jan./jun. 2015. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2316-4018453. Acesso em: 14 jul. 2022. [ Links ]

ZILBERMAN, R. O papel da literatura na escola. Via Atlântica, n. 14, p. 11-22, 2008. Disponível em: https://doi.org/10.11606/va.v0i14.50376. Acesso em: 14 jul. 2022. [ Links ]

FERREIRA, S. T. de L. A percepção geográfica da paisagem dos gerais no "Grande Sertão: Veredas". 1990. 201 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 1990. Disponível em: https://unesp.primo.exlibrisgroup.com. Acesso em: 17 ago. 2023. [ Links ]

GRACIOLI, F. R. A identidade nacional e a formação do espaço-nação na experiência literária da Geografia de Dona Benta, de Monteiro Lobato. 2013. 116 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 2013. Disponível em: http://hdl.handle.net/11449/90134. Acesso em: 17 ago. 2023. [ Links ]

GRACIOLI, F. R. Língua, literatura e geografia. Uma experiência de leitura da Geografia de Dona Benta de Monteiro Lobato e o Le tour de la France par deux enfants de G. Bruno. 2018. 188 f. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 2018. Disponível em: http://hdl.handle.net/11449/155981. Acesso em: 17 ago. 2023. [ Links ]

HAIDUKE, A. A. Chão partido: conceitos de espaço nos romances O quinze de Rachel Queiroz e A bagaceira de José Américo de Almeida. 2008. 119 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2008. Disponível em: https://hdl.handle.net/1884/16258. Acesso em: 17 ago. 2023. [ Links ]

SILVA, A. C. O espaço carioca no olhar de Lima Barreto: um estudo da interação Literatura-Geografia. 2005. 166 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2005. [ Links ]

SILVA, A. C. O Rio de Janeiro em Dom Casmurro: literatura como representação do espaço. 2012. 183 f. Tese (Doutorado em Geografia) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2012. [ Links ]

Recebido: 02 de Março de 2023; Revisado: 17 de Agosto de 2023; Aceito: 29 de Agosto de 2023

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.