1 Introdução
No ano de 2022, completou-se um século do evento que é considerado um marco no desenvolvimento cultural no país: a SAM (Semana de Arte Moderna), aqueles cinco dias entre 13 e 17 de fevereiro de 1922 que repercutiram na sociedade paulistana em um primeiro momento e, posteriormente, na brasileira, bem como se desdobraram posteriormente em manifestos, atitudes, ações e reações de intelectuais, artistas, publicações de revistas, artigos de críticos de arte, emergência de poetas e artistas plásticos, músicos e arquitetos, entre tantos outros interlocutores responsáveis por influenciar os rumos da cultura no século XX no Brasil por meio do que se convencionou designar como Modernismo.1 Uma rememoração concisa de alguns nomes envolvidos não poderia prescindir da menção a Graça Aranha, Mário de Andrade, Heitor e Lucília Villa-Lobos, Guiomar Novaes, Oswald de Andrade, Plínio Salgado, Menotti del Picchia e Manuel Bandeira, entretanto, ao longo das décadas seguintes, o espraiamento das ideias modernistas alcançou tal amplitude no contexto cultural brasileiro, que seria temerário propor algum rol exaustivo dos que são considerados tributários e continuadores daquele momento de efervescência em 1922.
Por outro lado, não é demais recordar que muitos desses participantes ativos das diversas iniciativas que se seguiram à SAM estavam engajados em vertentes políticas dedicadas a pensar projetos para a nação brasileira sob inspiração de ideologias tanto à direita quanto à esquerda, situando-se em posições antagônicas no campo da discussão pública. Dessa forma, ocuparam não só lugares discursivos divergentes, como também atuaram no sentido de propor ideias e implementar propostas para a gestão governamental dentro de seu círculo de influência.
Para além das discussões dos impactos em nível político-ideológico desses intelectuais na conjuntura nacional que culminou com o Estado Novo, importa aqui tratar especificamente do pensamento de um deles: Mário de Andrade. Trata-se, talvez, do visionário de maior amplitude no alcance de suas ideias, considerando que diversas proposições que legou em seus escritos só muito posteriormente vieram a ser incorporadas a discussões tanto estético-filosóficas quanto educacionais, apenas para delimitar duas áreas de conhecimento contempladas entre tantas outras que foram abordadas no conjunto da obra andradiana.
A atuação de Mário de Andrade se deu no âmbito do patrimônio e da cultura, mediante o exercício da diretoria do Departamento de Cultura da capital paulista (1935-1938), quando foi responsável pela experiência educativa dos Parques Infantis, e a redação do anteprojeto (Decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937), a pedido do Ministro Gustavo Capanema, que serviu como base para o que viriam a ser as atribuições legais do principal órgão de proteção do legado patrimonial brasileiro em nível federal, o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), atualmente Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).
Como se sabe, em sua criação, o Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional foi concebido na categoria de Instituições de Educação Extraescolar dos Serviços relativos à Educação, inserido na estrutura de órgãos pertencentes ao então Ministério da Educação e Saúde. Sua criação legal ocorreu em 13 de janeiro de 1937, pela Lei nº 378, embora já estivesse em uso desde o ano anterior por força de uma determinação presidencial enviada ao Ministro Capanema. Ressalte-se aqui a conexão inequívoca entre educação e cultura que se mostrava transparente na própria organicidade ministerial naquela quadra histórica. Por meio de um ofício enviado por Mário de Andrade a Gustavo Capanema em 24 de março de 1935 pôde-se constatar que havia um diálogo entre os dois intelectuais nos poderes públicos federal e municipal que precedeu a criação legal da estrutura e dos instrumentos jurídicos que viriam a ser espinha dorsal de ações de proteção do patrimônio histórico-cultural brasileiro nas décadas seguintes:
“São Paulo, 24 de março de 1935
Exmo. Sr. Dr. Gustavo Capanema,
D.D. Ministro da Educação.
O Departamento Municipal de Cultura, de São Paulo, tem a grata satisfação de apresentar as sugestões solicitadas verbalmente a êste Departamento por V. Excia., sobre a organização dum serviço de fixação e defesa do patrimônio artístico nacional. Em anexo a este ofício seguem um memorial de 18 páginas e um gráfico.
(...)
Mário de Andrade, Diretor”
(IPHAN, 2002, p. 271, sublinhado meu)
As referidas sugestões em formato de memorial, conforme mencionado no ofício, é o que se convencionou denominar anteprojeto para a criação do SPHAN. Esse documento, cuja estrutura é inestimável para se compreender a visão que Mário de Andrade tinha sobre o problema que lhe fora apresentado, era dividido em três capítulos mais um plano quinquenal para a implantação das seções e atribuições do novo órgão a ser criado, incluindo quatro museus em nível federal. Os capítulos I e III, que são compostos basicamente de finalidades e competências do Serviço de Patrimônio e como sua organização interna de direção, chefias e conselhos, são breves em comparação com o capítulo II, constituído por “determinações preliminares”, como as denominou o autor, e que, na verdade, são diretrizes e princípios para a orientação dos agentes públicos sobre o que seria incluído na proteção do Estado ao patrimônio artístico nacional.
Mário de Andrade, no capítulo II, inicialmente enumera, delimita, descreve e propõe oito categorias de arte, com as respectivas definições e o instrumento legal do tombamento, por meio de quatro livros de tombo e quatro museus nos quais essas categorias seriam distribuídas: 1) Livro do Tombo Arqueológico e Etnográfico; 2) Livro do Tombo Histórico; 3) Livro do Tombo das Belas Artes; 4) Livro do Tombo das Artes Aplicadas. Em seguida, insere no mesmo capítulo um subitem que denominou “Discussões”, composto de “objeções” (que seriam dúvidas ou dificuldades que adviriam do funcionamento do SPHAN no cotidiano dos atores públicos envolvidos com a defesa do patrimônio no desempenho das novas funções), cada objeção acompanhada pela resposta visando a sanar a questão proposta. Essa parte do anteprojeto é encerrada com diretrizes para a publicização dos atos e conhecimento especializado gerado pelo órgão em criação.
Importa discutir neste texto o que foi apontado pelo autor na resposta à quarta objeção, sobre qual seria a natureza do proposto Museu de Artes Aplicadas e Técnica Industrial – “Então a técnica industrial é uma arte?” (IPHAN, 2002, p.278), retomando um debate que parece mais hodierno do que nunca.
2 Mário de Andrade: educação visual no bojo do anteprojeto
Na resposta da quarta objeção do referido anteprojeto, está exposta uma crítica do autor à forma como se fazia a educação nacional:
“Arte é uma palavra geral, que neste seu sentido geral significa a habilidade com que o engenho humano se utiliza da ciência, das coisas e dos fatos. Isso foi aproveitado para preencher uma feia lacuna do sistema educativo nacional, a meu ver, que é a pouca preocupação com a educação pela imagem, o sistema talvez mais percuciente de educação. Os livros didáticos são horrorosamente ilustrados; os gráficos, mapas, pinturas das paredes das aulas são pobres, pavorosos e melancolicamente pouco incisivos; o teatro não existe no sistema escolar; o cinema está em três artigos duma lei, sem nenhuma ou quase nenhuma aplicação”
(IPHAN, 2002, p. 279, sublinhado meu).
Entre as páginas desse documento destinado ao ministro Capanema, Mário insere essa contundente opinião sobre o que não é feito pela educação escolar no país. A visão sobre a efetividade da imagem no educando (percuciência é o adjetivo empregado, ou seja, aquilo que penetra fundo, que se choca e modifica pelo impacto que causa) dá a dimensão do valor que o autor vislumbrava no uso de imagens com finalidade educacional-formativa.
No olhar andradiano ficam patentes aspectos filosóficos e pedagógicos que se somam a outros textos por ele legados (Andrade, 1975) e pela experiência com desenhos infantis que eram objeto de coleção pelo autor mesmo antes do concurso promovido nos Parques Infantis da capital paulista durante sua gestão. No escrito que publicou sobre o desenhar, diz:
“Mas o desenho, da mesma forma que as artes da palavra, é essencialmente uma arte intelectual, que a gente deve compreender com os dados experimentais, ou melhor, confrontadores, da inteligência. (...) Porque o desenho é, por natureza, um fato aberto. Se é certo que objetivamente ele é também um fenômeno material, ele o é apenas como uma palavra escrita
(Andrade, 1975, p. 69).
Aqui se pode propor um vínculo interpretativo de aspectos implícitos na crítica apresentada no contexto do anteprojeto: se o desenho, enquanto imagem e expressão intelectual (portanto linguagem) que é, apresenta-se na escola com um uso empobrecido desse recurso na educação formativa, tal situação implica um depauperamento da capacidade comunicativa do indivíduo, impactando a existência do sujeito, pois a ação e a construção do mundo vivido são fundamentalmente ações linguísticas que medeiam as relações intersubjetivas. Conforme apontou Wittgenstein na proposição 5.62 do Tratactus, “os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo” (tradução minha). Convém lembrar que falar em linguagem é tocar em um tema polimorfo e multivariado, pois a expressão dos pensamentos e sentimentos individuais e coletivos encontra caminhos materiais e intelectuais dos mais diversos desde o nascimento até o final das existências pessoais.
Não teria escapado ao olhar andradiano esse dotar de significado que a linguagem confere ao mundo, limitando-o; daí também seu fascínio pelo desenho, que ofereceria significados “ilimitados”, razão pela qual explica que, ao contrário das pinturas, os desenhos não mereceriam ser emoldurados, mas sim guardados em pastas para serem folheados:
“Um quadro sem moldura, está sempre de alguma forma emoldurado pelos seus próprios e fatais limites de composição fechada. Ao passo que colocar moldura num verdadeiro desenho, que só participe da sua exata natureza de desenho, é uma estupidez que toca às raias do vandalismo. Os amadores do desenho guardam os seus em pastas. Desenhos são para a gente folhear, são para serem lidos que nem poesias, são haicais, são rubaes, são quadrinhas e sonetos”
(Andrade, 1975, p. 76).
Por esse motivo se compreende o fascínio do Mário de Andrade colecionador de desenhos infantis, em cujo legado está um acervo de desenhos que foi sendo construído desde 1926 até 1941, com 2.185 itens produzidos por crianças a partir dos 3 anos até adolescentes de 16 anos de idade.3 Embora o autor não tenha deixado, ao que se sabe, algum estudo sistemático redigido sobre a questão da expressão em imagens das crianças pelos desenhos, existem dois artigos de jornal (“Do desenho”, s.d., e “Pintura infantil”, 1930), bem como observações pontuais anotadas entre os desenhos coligidos que o incluem entre os diversos intelectuais brasileiros e de outras nações, entre eles os modernistas Flávio de Carvalho e Osório César, que se debruçaram sobre o problema da psicogênese humana pelo estudo comparativo das imagens produzidas por povos à época ditos “primitivos”, os internos de instituições manicomiais e os desenhos infantis e seus significados.
No caso andradiano, esse interesse pelas imagens nos desenhos infantis somava-se às questões de investigação do processo criativo, da liberdade de expressão, principalmente na fase infantil dos 3 aos 6 anos, com as preocupações sociais de caráter classista, como se pode ver nitidamente nas ações que o autor realizou durante sua gestão dos Parques Infantis.
3 Imagens, desenhos e expressão pessoal
A experiência de Mário de Andrade como um gestor de políticas públicas é bem conhecida e estudada, pois, nos três anos em que esteve como diretor do Departamento de Cultura, trabalhou para oferecer aos filhos das famílias operárias paulistanas opções de lazer e desenvolvimento de atividades lúdicas variadas, envolvendo práticas de brincadeiras, esportes, teatro, dança e expressões plásticas como o desenho. Com a paixão que caracterizava seu engajamento nos projetos a que se filiava, escreve em carta ao amigo e folclorista Câmara Cascudo, em 1936: “me esqueci completamente de mim, sou um departamento de cultura”; mas, afinal, isso era esperado de quem se percebia não como um, mas como “300, 350”, outra das frases memoráveis com que o autor se definia,
Os três Parques Infantis que existiam na capital paulista de então (um na região central da cidade, localizado no Parque D. Pedro II, outro na Lapa e o último no Ipiranga) passaram a oferecer aos filhos de imigrantes e dos trabalhadores não apenas as atividades de caráter lúdico e cultural, mas também alimentação e atendimento médico, bastando que a criança tivesse entre 3 e 12 anos para poder frequentar os locais e participar da programação neles desenvolvida, bem como acessar os serviços em período extraescolar.
É bastante significativo que Mário de Andrade tenha promovido um concurso de desenhos entre as crianças que frequentaram os Parques Infantis durante sua gestão por meio de um edital que tinha uma cláusula determinando que, após a conclusão do certame, os desenhos seriam propriedade da instituição organizadora. Desse evento são provenientes mais de mil desenhos que integram a coleção andradiana, e os mesmos foram realizados sob regras específicas: não poderia haver interferência de adultos ou realização de cópias no momento da produção, portanto deveriam ser executados in loco, na presença dos funcionários responsáveis em cada Parque Infantil.
Observa-se que o autor valorizava especialmente a expressão das imagens realizadas fora do contexto escolar, pois considerava haver um constrangimento na liberdade de expressão da visão infantil após o ingresso na instituição educacional.
Uma das características das propostas andradianas seria a manutenção do ócio e o direito a viver uma infância sem cobranças, em que o “não fazer nada” execrado pela sociedade do trabalho pudesse ser experienciado nos anos iniciais da existência; dessa forma, a visão do autor sobre as dinâmicas vivenciadas nos Parques Infantis se aproximaria do modo de ser de seu personagem literário mais emblemático, Macunaíma, que, por outro lado, encarnaria elementos do caráter dos povos originários americanos (Faria, 1999, passim). Também é relevante destacar a convergência das ideias pedagógicas andradianas com as análises de outro pensador que abordou questões sobre a expressão e a linguagem com imagens entre as crianças, Walter Benjamin, o qual, em um estudo sobre o teatro operário, também apontou a mesma questão que Mário de Andrade sobre a formação educacional das crianças de famílias proletárias e defendia a não interferência dos adultos nas atividades coletivas das crianças, particularmente em jogos e brincadeiras nas idades mais tenras, momento em que caberia ao adulto observar e se educar sobre os significados que as crianças atribuem às suas representações teatrais infantis.
No que diz respeito à expressão “por imagens em desenhos das crianças”, Benjamin escreveu:
“A criança redige dentro da imagem. Por isso, ela não se limita a descrever as imagens: ela as escreve, no sentido mais literal. Ela as rabisca. Graças a elas, aprende, ao mesmo tempo, a linguagem oral e a linguagem escrita: os hieróglifos. (...) Pois essas imagens são mais eficazes que quaisquer outras na tarefa de iniciar a criança na linguagem e na escrita: convencidas dessa verdade, as velhas cartilhas desenhavam, ao lado das primeiras palavras, a imagem do que elas significavam”
(Benjamin, 1985, p. 242).
Aqui novamente desponta o caráter da expressividade que a imagem potencializa para a criança; essa seria uma seara de interesse para Mário de Andrade, o que prova sua dedicação ao estudo dos significados dos desenhos infantis muito antes e mesmo depois da experiência com o Departamento de Cultura, assim como diversas inserções em textos posteriores de ideias formuladas sobre suas leituras e análises do material colecionado por ele. Em mais uma de suas aproximações com Benjamin, pode-se ler:
“(...) a criança realiza por sua conta e risco, pela sua própria experiência, um, não o, mas um nascimento do poder humano a representação figurativística. Mas desde que passa desta fase, que é de caráter lingüístico, hieroglífico, e não pesquisa de sensações, ela abandona totalmente a evolução gradativa do grafismo idealista, da criação de uma escrita, que vinha fazendo. Não há mais evolução: se dá mudança completa do rumo. E esta mudança coincide com um desenvolvimento mental em que a criança já se tornou sensível aos fatores da hereditariedade, dos contágios e da alfabetização
Como se percebe dessas análises, há concordância entre os autores sobre o quanto a capacidade comunicativa é tributária da liberdade expressiva que repousa na potência da criação imagética, presente na infância e ameaçada pela sociedade capitalista e seus fenômenos de subalternização e hegemonização cultural. Nascidos no ocaso do século XIX, contemporâneos que testemunharam as grandes catástrofes que assolaram a humanidade, homens em tempos sombrios, como Hannah Arendt chamou aqueles que viveram na primeira metade do século passado, resta saber se das iluminações trazidas pelas obras de Andrade podem-se entrever caminhos ainda por trilhar para a consciência crítica do indivíduo e da sociedade, considerando a situação atual que se vivencia no país e no mundo.
4 Sobre o aspecto impactante das imagens
A sociedade ocidental da terceira década do século XXI é uma configuração sócio-histórica caracterizada pelo domínio das imagens, estáticas e/ou em movimento, onipresentes no planeta graças aos avanços tecnológicos que trouxeram fenômenos cibernéticos e informacionais diversos: satélites, smartphones e celulares, Internet e redes sociais, plataformas telemáticas e realidade virtual 3D, entre tantas outras sendas que se oferecem aos indivíduos na contemporaneidade.
A educação escolar no Brasil, contudo, mormente segundo os dados de um levantamento realizado pela Fundação Getulio Vargas (FGV) em junho de 2022, que acusou haver mais de dois dispositivos digitais por pessoa4 no país, não parece ter sido permeável à observação andradiana quanto à lacuna da formação educacional pela imagem. O contexto recente do isolamento social ocasionado pela pandemia da Covid-19 e a fadiga das telas que assolou boa parte da população, particularmente os que estavam em situação de realizar atividade econômica que prescindia da ação presencial, parecem ainda não ter encontrado seu limite e permanecem impondo desafios ao funcionamento de práticas escolares que já se provaram inócuas para gerações de estudantes do ensino formal. O analfabetismo funcional também é, em grande medida, um analfabetismo imagético-informacional.
Urge, nesse cenário, compreender fenômenos comunicativos que impactam a capacidade de construção de consciência social crítica pelos indivíduos, que seria uma das tarefas, senão a principal, implicadas na formação escolar. Entre essas, a mais perceptível talvez seja a fragmentação da palavra e das próprias imagens, manipuladas por tecnologias cada vez mais sofisticadas e que tendem a abalar a confiabilidade das informações de interesse sociopolítico, gerando desagregação e confrontos entre os atores sociais.
A alienação provocada pela palavra e imagem fragmentárias está em curso, com os efeitos deletérios se propagando em níveis inclusive epistêmicos, éticos e de ordenamento jurídico-político, assim como em aspectos individuais e mesmo familiares. Haveria alternativa para pensar e contrabalançar essa realidade distópica em consonância com a visão andradiana sobre o desenvolvimento da liberdade de expressão e criação? O sistema educacional formal poderá se adaptar nesse sentido apesar das pressões do mundo do trabalho sobre a escola e, principalmente, a primeira infância?
Na resposta à quarta objeção apresentada no anteprojeto, Mário de Andrade ofereceu, além da crítica ao sistema de educação nacional de seu tempo, uma visão do que esperava que fosse possível se obter por intermédio do Museu de Artes Aplicadas e Técnica Industrial, comparando-o com outros concebidos à época, o Museu Técnico de Munich e o Museu de Ciência e Indústria de Chicago – não há dúvidas, o autor os caracteriza como “museus de caráter essencialmente pedagógico”, nos quais são dados a conhecer ao visitante “os progressos de construção e execução das grandes indústrias, e as partes de que são feitas as máquinas inventadas pelo homem” (IPHAN, 2002, p. 279). Em outras palavras, idealizava-se que fosse uma instituição cultural que permitisse impactar visualmente os indivíduos e grupos visitantes pelo experienciar de realidades constituintes do dia a dia na sociedade, por sua multiplicidade de atividades e pelo acúmulo de conhecimentos trazidos pelo engenho humano ao longo do tempo.
Não será essa pretensão anunciada por Mário de Andrade consistente com teorias pedagógicas e filosóficas que lhe são posteriores, mas que também buscaram atender às problemáticas de construção de uma educação acessível a todos os membros da sociedade, referida a princípios éticos que contemplassem a diversidade e a peculiaridade dos indivíduos?
5 Horizontes comunicativos, imagens e significados
Entre as teorias que abordaram a problemática da comunicação como o cerne da reflexão filosófica no século XX, denominada linguistic turn, encontra-se a visão elaborada por Karl-Otto Apel, cuja fundamentação é de caráter pragmático-transcendental. Buscando alcançar uma formulação de ética comunicativa para uma sociedade mundial cada vez mais disfuncional, esse autor voltou-se para aspectos da semiótica peirciana e da representação linguística, propondo uma gnoseoantropologia que não olvidasse aspectos corporais/sensoriais na elaboração do arcabouço teórico. Por sua vez, outros teóricos filiados à escola de Frankfurt, como Adorno, abordaram questões relacionadas com a capacidade humana de manter-se autônoma nas decisões e ações a partir de aspectos estéticos que implicavam uma variância dessa autonomia. De vereda aberta pelos primeiros interessados na antropologia cultural dos ditos povos primitivos do início do século XX, em chave comparativa com o desenvolvimento infantil da linguagem e expressão, entre eles o próprio Mário de Andrade, como foi visto, passou-se para um amplo campo de debates que permeiam a busca por alcançar propostas de acesso ao conhecimento com justiça social, tolerância e diversidade.
O a priori do corpo (leibapriori) proposto por Apel e a comunidade de comunicação como pressupostos para a constituição de significados intersubjetivos se conectam com a psicologia evolutiva de Piaget e Kohlberg (Lana, 1999, p. 103). As implicações do desenvolvimento de estágios morais no indivíduo se vinculam às atribuições de significados e à construção de regras sociais compartilhadas que conduzem progressivamente a uma consciência social desenvolvida ao longo do tempo, mas se inicia a partir das interações de jogos e atividades lúdicas na primeira infância – daí a afirmação andradiana sobre a liberdade criativa e expressiva na criança:
“A criança é essencialmente um ser sensível à procura de expressão. Não possui ainda a inteligência abstraideira(sic) completamente formada. A inteligência dela não prevalece e muito menos não alumbra a totalidade da vida sensível. Por isso ela é muito mais expressivamente total que o adulto”
(Andrade, 1929, p. 82).
Seria, pois, complementar a visão de Mário de Andrade sobre a possibilidade criativa da criança ser ampla, pois o sensível ainda não se encontra moldado pelo intelecto em desenvolvimento em relação ao proposto pela teoria apeliana; pode-se, inclusive, perceber que caberia, nessa perspectiva da criatividade em aberto, uma possível solução de críticas apontadas por Gilligan sobre um pretenso universalismo de desenvolvimento moral-cognitivo existir para indivíduos de gêneros diversos, de resto não comprovado na prática.
Finalizando, a contribuição que advém dos questionamentos e inquietações andradianos situa-se no horizonte comunicativo filosófico-pedagógico como ideia reguladora, que serve ainda hoje de norte para a busca de uma educação por imagens que adquira significados e consciência social, visando a minorar as desigualdades e a propiciar o pleno desenvolvimento do indivíduo em uma perspectiva humanista e cidadã.