1 Apresentação
A formação didático-pedagógica do docente universitário em serviço tem ocupado um espaço importante na pauta de estudos do campo da Pedagogia Universitária, numa busca por uma qualificação que faça o ensino universitário alcançar os novos públicos que acessam o ensino superior. Referência neste campo, amplamente reconhecida no Brasil e na América Latina, a pesquisadora Professora Doutora Maria Isabel da Cunha, que atualmente é professora colaboradora do programa de pós-graduação strito sensu da Universidade Federal de Pelotas, é parceira na pesquisa intitulada "Assessoramento Pedagógico Universitário: singularidades e sincronicidades num cenário internacional", financiada pela Fapesp e pelo CNPq. Tal pesquisa objetivou sistematizar concepções e práticas de assessoramento pedagógico universitário que vêm sustentando o delineamento de espaços institucionais que se responsabilizam pela formação didático-pedagógica em serviço do docente universitário. No contexto de encerramento dos trabalhos da pesquisa, a pesquisadora concedeu às pesquisadoras Professora Doutora Maria Antonia Ramos de Azevedo, da Unesp, Câmpus de Rio Claro, e Pedagoga Doutora Amanda Rezende Costa Xavier, da Unifal-MG, Câmpus de Poços de Caldas, a presente entrevista, confirmando uma vida dedicada à Educação, ao ensino e à pesquisa sobre a docência universitária e a formação em serviço.
2 Entrevista
Pesquisadoras: Como a senhora define a mulher por trás da pesquisadora Maria Isabel da Cunha?
Professora Maria Isabel da Cunha: Aprendi a ser gente com o exemplo de minha mãe. Meus pais se separaram quando eu tinha cinco anos. Tenho dois irmãos, um com dois anos mais que eu, e minha irmã, mais nova cinco anos; e são muito importantes na minha formação. Minha mãe formou-se professora no ano de 1936 e dedicou sua vida a educar os filhos e a cumprir as alegrias e os deveres de sua profissão. Vinha de uma família de classe média alta mas soube driblar os desafios da vida. Meus avós maternos tinham origem germânica, onde o trabalho e a fé foram esteios fortes. Assim que sempre soube que a independência econômica e afetiva são a base do equilíbrio emocional. Procurei ser fiel a estes princípios e assim enfrentei a vida. Casei, tive dois filhos homens já trabalhando como professora e fazendo faculdade. Descasei e casei de novo. Hoje curto três netas e um neto que ganhei como um presente. Tenho um companheiro que honra esta palavra. Amo meu trabalho. Nele me realizei como gente e como profissional. Minha maior aprendizagem nessa trajetória foi compreender que conhecimento e afeto quanto mais se reparte mais se ganha.
Pesquisadoras: Como se iniciou sua inserção no campo da Pedagogia Universitária?
Professora Maria Isabel da Cunha: Comecei minha carreira como professora primária e, terminada a Licenciatura em Serviço Social em 1968, também no grau médio, muitas dificuldades havia de campo de trabalho, pois, em plena ditadura, as humanidades foram perdendo espaço no currículo escolar. Em 1971, aproveitando a oportunidade de formação em coordenação pedagógica para as escolas do programa Premen, fui assumindo o desafio de formação de professores em serviço. Essa experiência me levou novamente à Universidade, onde completei o curso de Pedagogia, com habilitação em Supervisão. Esta formação possibilitou um convite para criar este setor na então Escola Técnica Federal de Pelotas (hoje IFSul). Aí comecei a aprender a importância de uma pedagogia de diálogo entre o campo da educação e o da formação dos docentes em áreas profissionais. Creio que nesta fase comecei a aprender sobre o que hoje chamamos de Pedagogia Universitária, ou seja, uma pedagogia dialógica com campos científicos de outras origens. Em 1975 fui convidada a trabalhar na Universidade Federal de Pelotas no Departamento que deu origem à Faculdade de Educação. Nosso objeto era a formação pedagógica dos cursos de Licenciatura. Mas, então, começaram a vir demandas, ora de programas ministeriais ora da própria Universidade, de formação continuada de professores. Para meus pares, minha experiência na Escola Técnica me habilitava a trabalhar “com os outros”, como eram vistos os colegas de diferentes áreas. Essa condição me levou à minha dissertação de mestrado concluído na PUC/RS em 1979, com o título O papel da Faculdade de Educação na UFPel. Em 1985 saí para o doutorado na Unicamp e meu campo de pesquisa já estava determinado: a formação de professores em serviço na educação superior e profissional média. Pela primeira vez me embrenhei na pesquisa qualitativa e de cunho etnográfico que, na ocasião, era ainda distante de nós.
Pesquisadoras: Em sua trajetória de vida, quais foram os momentos decisivos (e as encruzilhadas) que a fizeram se dedicar aos caminhos da pesquisa nesse campo?
Professora Maria Isabel da Cunha: Quando fui para o doutorado tinha duas certezas: que meu tema inevitavelmente seria a docência em serviço e que eu não faria uma investigação baseada nos princípios da ciência moderna, que tinha sido o que vivi no mestrado: muita estatística e procura de certezas. Tive a felicidade de ter como orientador o Prof. Dr. Newton Cesar Balzan, que chegava de Boston de um estágio pós-doutoral e trazia a perspectiva da pesquisa etnográfica. Ainda com bastante insegurança, apostou na minha intenção de ir por este caminho. Na época, as professoras Marli André e Menga Lüdke tinham lançado um livro sobre esta perspectiva que se tornou um clássico no Brasil. Mas não tínhamos pesquisas prontas que pudessem servir de referência. Assim que foi uma aventura. Felizmente deu certo e pelo seu ineditismo o resultado da tese, publicado pela Papirus, com o nome O bom professor e sua prática, mesmo passados trinta e cinco anos, continua sendo vendido como atual.
Pesquisadoras: Dada sua experiência profissional, como a senhora analisa as contribuições da produção de conhecimento no campo da Pedagogia Universitária? Onde é preciso avançar?
Professora Maria Isabel da Cunha: Dado que este campo, em especial no Brasil, é relativamente recente, ainda temos lutado pela sua legitimidade que alcança a dimensão epistemológica, mas ainda engatinha na perspectiva da prática institucional. Creio que já temos dado uma importante contribuição e merecido significativo reconhecimento. Mas há um peso da tradição que compreende o docente da educação superior só como um especialista de seu campo de saber. Reconhecendo que esta é a sua base, reafirmo que ela não basta, pois saberes próprios da docência envolvem a compreensão teórica dos fazeres docentes. Esta só acontece com uma formação específica e sistemática. Por aí é que precisamos avançar.
Pesquisadoras: Considerando sua experiência aliada à sua produção científica, como podemos afirmar que a Pedagogia Universitária contribuiu (e ainda contribui) para a aprendizagem dos professores do ensino superior?
Professora Maria Isabel da Cunha: Os profissionais que são guindados à docência só são capazes deste exercício pelo saber que possuem do senso comum. Ou seja, inspirados, na sua condição de alunos, frente ao exercício de seus próprios professores. Não raramente mencionam que é assim que decidem sobre a sua prática, reproduzindo ou se distanciando daquilo que não apreciavam em sua experiência discente. E até alcançam patamares interessantes de sucesso. Entretanto, se considerarmos que um saber profissional se constitui pelo saber fazer e saber justificar teoricamente o que faz, essa condição raramente se afasta do senso comum. E a razão é que os docentes não têm teoria, ou seja, a base de um campo profissional. Esse é o motivo que move a Pedagogia Universitária e a necessidade da formação dos professores que atuam na educação superior na direção da profissionalização.
Pesquisadoras: Em sua visão, quais as relações necessárias entre o campo da Pedagogia Universitária e o serviço de assessoramento pedagógico universitário?
Professora Maria Isabel da Cunha: O campo da Pedagogia Universitária ainda está à procura de sua legitimidade. Na realidade, ainda faz um tempo pequeno em que se inicia a falar desse termo. Os cursos de Pedagogia, nas IES, se destinam quase que exclusivamente à docência da fase inicial da Educação Básica que, sem dúvida, necessitam de um olhar diferenciado. Mas essa condição não deveria ser única. Defendo que temos pedagogias no plural e que a formação deveria envolver suas múltiplas possibilidades. Uma alternativa é criar mestrados e doutorados na especialidade da Pedagogia Universitária e que fossem considerados no recrutamento de profissionais. Mas, também, há o outro lado. A legislação deveria ser mais enfática sobre as exigências para a docência de nível superior que, dessa forma, daria mais suporte e legitimidade ao campo da Pedagogia Universitária.
Pesquisadoras: A literatura nesse campo tem reforçado que a formação didático-pedagógica dos professores é a principal vertente no serviço de assessoramento pedagógico no ensino superior. Na sua opinião, qual deve ser o maior contributo desse serviço de assessoramento pedagógico?
Professora Maria Isabel da Cunha: A formação do docente universitário se faz num processo. Ainda que defendamos a importância de uma formação acadêmica para tal exercício, como em qualquer outro ofício, a educação continuada é uma exigência. Vivemos num tempo de aceleração de compreensões de mundo, de ampliação da ciência e das tecnologias em desenvolvimento que, em qualquer profissão, exigem uma formação constante e sistemática. Com a docência não é diferente. Essa perspectiva serve tanto aos campos específicos da atuação docente como para os saberes pedagógicos. Nesse sentido, a ação de assessoramento pedagógico deve ser um suporte para as iniciativas institucionais e um elemento propulsor de avanços.
Pesquisadoras: Dentre sua vasta produção científica no campo da Pedagogia Universitária, qual obra destacaria como um marco que tornou seu nome uma referência nacional e internacional nesse campo?
Professora Maria Isabel da Cunha: Sem dúvida a obra que já mencionei, resultante da minha tese de doutorado, o livro O Bom professor e sua prática, dada a sua abrangência e significado. Creio que foi dos primeiros estudos qualitativos no campo da pesquisa sobre os saberes da docência e sua constituição.
Pesquisadoras: Há outros intelectuais no campo da Pedagogia Universitária contemporânea que devem ser tomados como referência por aqueles que têm se dedicado a estudos nesse campo. Que nomes a senhora destacaria?
Professora Maria Isabel da Cunha: Em princípio - início dos anos 1990 - fui procurar em Pedro Demo uma compreensão de ensino com pesquisa, que poderia dar sustentação ao discurso de indissociabilidade do ensino, pesquisa e extensão, que foi incorporado pela Constituição de 1988. Até então, o foco se dava, predominantemente, num ensino transmissivo e na memorização como estratégia principal na aprendizagem dos alunos. Ainda centrávamos a pedagogia muito em técnicas, numa herança da neutralidade pedagógica. Logo ampliamos nossas compreensões pelo livro Um discurso sobre as Ciências, de Boaventura de Sousa Santos, que, de forma mais aprofundada, nos explicava a principal mudança de paradigmas científicos como a base da indissociabilidade. Desde então, esse autor tem muito influenciado nossas pesquisas. Mas a relação como colegas da Argentina foi fundamental, onde destaco Elisa Lucarelli, Martha Nepomneschi, Lidia Fernandes, Claudia Finkelstein, Alicia Villagra. Com elas mantenho até hoje uma relação intensa de trocas de saberes e experiências. A Argentina, que enfrentou o desafio de uma universidade inclusiva, foi pioneira no reconhecimento da importância da Pedagogia Universitária para responder a esta intenção. Mas, também, a implantação das mudanças nas universidades europeias pelo Tratado de Bolonha nos aproximou de estudiosos portugueses e espanhóis, que contribuíram muito com o campo da Pedagogia Universitária, onde se pode citar Miguel Zabalza, Carlos Marcelo Garcia, Antonio Nóvoa, Carlinda Leite. Há, ainda, Maurice Tardif, no Canadá, para citar alguns. E não posso deixar de lado os clássicos como Basil Bernstein, Pierre Bourdieu, Giles Ferry, entre tantos outros. A literatura nacional também vem nos inspirando e o nosso Paulo Freire desponta como principal, ao lado de Demerval Saviani, Selma Pimenta, José Dias Sobrinho, Léa Anastasiou, Teresinha Rios, Denise Leite, Ilma Veiga, entre outros.
Pesquisadoras: Que palavras a senhora deixaria para aqueles jovens pesquisadores que estão agora se iniciando nos caminhos do campo da Pedagogia Universitária?
Professora Maria Isabel da Cunha: Minhas palavras, certamente são de incentivo, que os jovens tenham alcançado o gosto pela pesquisa, em especial a que se faz coletivamente, através de grupos, onde a solidariedade deve sempre ocupar ao lugar da competição; onde o coletivo anula o individualismo e a humildade prepondera sobre a prepotência. Saber valorizar cada pessoa na sua condição e nos seus saberes. Reconhecer que a pedagogia é feita de diálogos, quer epistêmicos, quer de culturas e de subjetividades. Só assim se constitui em um mote da formação.