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Revista Teias

versão impressa ISSN 1518-5370versão On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.18 no.48 Rio de Janeiro jan./mar 2017  Epub 25-Ago-2021

https://doi.org/10.12957/teias.2017.25232 

Em Pauta

NARRATIVAS IDENTITÁRIAS E EDUCAÇÃO PATRIMONIAL NO BRASIL

NARRATIVAS DE IDENTIDAD Y LA EDUCACIÓN PATRIMONIAL EN BRASIL

IDENTITY NARRATIVES AND HERITAGE EDUCATION IN BRAZIL

Rodrigo Manoel Dias da Silva* 

1Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Doutor em Ciências Sociais. E-mail: rodrigoddsilva@hotmail.com


RESUMO

No Contemporâneo, observa-se a ressignificação nos sentidos e nos usos sociopolíticos atribuídos aos patrimônios culturais, inscritos, com frequência, em uma ambivalência entre dinâmicas de desenvolvimento econômico e processos de afirmação identitária. Tal diagnóstico torna pertinente interrogações acerca das relações entre educação e patrimônio cultural, sobretudo sobre as correlações e as correspondências entre as políticas de educação patrimonial e as narrativas identitárias agenciadas em escala local. Neste sentido, o presente artigo busca examinar o estado atual da educação patrimonial no contexto de duas cidades brasileiras que sofreram processo de patrimonialização cultural.

Palavras-chave: Educação Patrimonial; Identidade; Patrimônio Cultural

RESUMEN

En el Contemporáneo, hay una reformulación de los sentidos y usos sociopolíticos atribuidos al patrimonio cultural, posicionados en una ambivalencia entre el desarrollo económico y procesos de afirmación de identidad. Este diagnóstico expone preguntas acerca de la relación entre la educación y el patrimonio cultural, especialmente en las correlaciones y las correspondencias entre las políticas de educación patrimonial y las narrativas de identidad negociados a nivel local. En este sentido, este artículo tiene por objeto examinar el estado actual de la educación patrimonial en el contexto de dos ciudades brasileñas que sufrieron proceso de patrimonialización.

Palabras clave: Educación patrimonial; Identidad; Patrimonio cultural

ABSTRACT

In contemporary times, we can see the resignification of meanings and socio-political uses attributed to cultural patrimonies often inscribed in ambivalence between dynamics of economic development and processes of identity affirmation. This diagnosis gives pertinence to question the relations between education and cultural patrimony, especially the correlations and similarity between policies of heritage education and identity narratives negotiated in local terms. In this sense, this paper aims to examine how the heritage education is today in two towns in Brazil undergoing the process of cultural patrimonialisation.

Keywords: Heritage education; Identity; Patrimony

PRIMEIRAS PALAVRAS

Como já observado pelo sociólogo português Paulo Peixoto (2004), não há uma relação de necessidade entre identidade e patrimônio cultural. Contudo, a produção discursiva acerca das particularidades culturais de cidades que sofreram algum processo oficial de patrimonialização evidencia que a identidade, ou, com maior precisão sociológica, os processos identitários se convertem em recursos amplamente utilizados por tais municípios. A ideia de recurso acima indicada refere-se ora a recurso metonímico ou heurístico para legitimar e divulgar alguma distinção reivindicada pelo município (PEIXOTO, 2004); ora como recurso cultural a ser explorado em projetos socioculturais e de desenvolvimento vigentes na economia global (YÚDICE, 2004).

Tal argumento reforça-se pelos crescentes esforços empreendidos por municípios em se tornarem ‘cidades históricas’. Regina Abreu (2015) observou que a ordem das demandas por patrimonialização tem progressivamente se deslocado do interesse do Estado para os novos sujeitos do direito coletivo, ou seja, indivíduos e coletividades historicamente ausentes ou sub-representadas nas políticas patrimoniais, caso de mulheres, indígenas, negros, quilombolas, camponeses, dentre outros, passam a reivindicar sua presença no rol de bens distintos pelos órgãos oficiais de patrimônio. Em escala internacional, Santos e Peixoto (2013) observam que, se inicialmente a ideia de patrimônio estivera associada à formação dos Estados Nacionais, no Contemporâneo, o patrimônio e os processos de patrimonialização se tornam onipresentes. Há, neste sentido, uma acentuada tendência na transformação de cidades pequenas e médias em patrimônios mundiais, em que pese “ganhos políticos ou comerciais, consolidando ou mesmo reforçando hierarquias existentes” (SANTOS; PEIXOTO, 2013, p. 51). Tal dinâmica, por um lado, se evidencia através do aumento na porcentagem de países que passam a demandar o título de patrimônio mundial (por exemplo, em 1995, a Europa possuía 66 cidades registradas como patrimônio mundial pela Unesco, enquanto que, em 2008, esse número se elevaria para 133), mas, por outro lado, o que parece estar em jogo é a transformação na economia simbólica dos lugares tombados.

O estatuto de cidade patrimônio mundial se tornou alvo de estratégias de regiões onde estão localizados os principais destinos do turismo histórico e patrimonial. A mudança de identidade simbólica provocada pela obtenção desse estatuto funciona como uma bandeira que é agitada para atuar como imagem de marca de lugares que procuram se tornar mais competitivos, sobretudo no nível da captação dos fluxos do turismo histórico e patrimonial. O reforço progressivo da logística turística, designadamente da oferta hoteleira e de serviços de animação, e a gradual diversificação da oferta – como mostra a realidade de diversas cidades brasileiras e portuguesas – são indicadores evidentes da transformação da economia simbólica dos lugares tombados (SANTOS; PEIXOTO, 2013, p. 52).

Para além dos mecanismos estabelecidos pelas políticas de patrimonialização cultural – tombamento, inventário ou registro –, os processos identitários e suas produções discursivas (acerca de manifestações expressivas, tradições e identidade local, cultura local, etc.) potencializam a produção e a circulação de narrativas em torno da autodesignação das localidades. Elementos identitários mobilizam narrativas identitárias que se evidenciam na produção de políticas culturais, de programas de educação patrimonial e de projetos turísticos; ou na própria publicidade e suas respectivas estratégias de inscrição das cidades em distintos mercados, contextualizadas em retóricas de concorrência, competitividade e atratividade turística (SANTOS; PEIXOTO, 2013).

Então, em um contexto onde se observa uma ressignificação nos sentidos e nos usos sociopolíticos atribuídos aos patrimônios culturais, inscritos, inúmeras vezes, na ambivalência acima contextualizada entre dinâmicas de desenvolvimento econômico e processos de afirmação identitária, faz-se pertinente indagarmos sobre a condição da educação patrimonial. Como a educação patrimonial se contextualiza nessas paisagens sociais? Como pensar a educação patrimonial em cidades brasileiras que sofreram processo de patrimonialização, onde tal ambivalência tem demonstrado estar presente? Como identificar e analisar as correlações e as correspondências entre as políticas de educação patrimonial e as narrativas identitárias agenciadas em escala local?

Neste sentido, o presente artigo assume essas problematizações e almeja examinar o estado atual da educação patrimonial no contexto de duas cidades brasileiras que sofreram processo de patrimonialização cultural. Para tal, a partir de algumas aproximações empíricas a situação de Santa Tereza, no Estado do Rio Grande do Sul, e de São Luiz do Paraitinga, em São Paulo, interessa-nos pôr em questão as relações que se estabelecem entre educação patrimonial, processos identitários e patrimonialização cultural.

GLOBALIZAÇÃO, CULTURA E IDENTIDADE

Diversas têm sido as tentativas de explicar as relações entre identidade e cultura no contexto da globalização (YÚDICE, 2002; BAUMAN, 2005; CANCLINI, 2006; LIPOVETSKI, SERROY, 2011; HARVEY, 2012; MARTÍN-BARBERO, 2012, SOVIK, 2014). As intensas transformações operadas pela globalização da economia, os recorrentes deslocamentos populacionais e suas repercussões em processos migratórios, as inovações técnico-científicas e a cultura de massa realçam uma nova configuração nas relações entre cultura e identidade (YÚDICE, 2002).

Até meados do século XX, a cultura foi interpretada como capital simbólico, mediante seu uso como marca de distinção social de aristocracias e em suas funções de consolidar procedimentos de estratificação social (YÚDICE, 2002). Hoje, se reconhece que “a cultura recobre transversalmente os aspectos mais dinâmicos da vida contemporânea” (YÚDICE, 2002, p. 20 [tradução nossa]), porém “a cultura já não pode mais proporcionar uma explicação adequada do mundo que nos permita construir ou ordenar nossas vidas” (FEATHERSTONE, 1997, p. 15). Neste contexto, a cultura se torna um recurso para projetos orientados por múltiplas finalidades e definido a partir de suas interseções com a política e a economia.

Poderíamos elaborar este fator político como um campo de forças definidas pelas condições de inserção na economia mundial, o desenvolvimento tecnológico, a especificidade da indústria particular, as demandas das elites nacionais, as necessidades dos cidadãos e a particular maneira em que estas necessidades se transmutam na demanda de consumidores (YÚDICE, 2002, p. 20).

De acordo com George Yúdice, na globalização, os processos de formação das identidades culturais são arregimentados por “mandatos performativos”. Tal como a própria cultura, as identidades organizam-se a partir de imperativos sociais de desempenho (YÚDICE, 2004).

Em outras palavras, as diferenças não podem ser pensadas fora do entorno do qual deriva seu valor; disso que pode se argumentar que as diferenças [...] se constituem dentro do processo de globalização. Tomar consciência disso complica os programas locais de reivindicação, pois nos damos conta que a diferença é o recurso que permite a valorização, inclusive em iniciativas da sociedade civil que não correspondem diretamente ao mercado. Os territórios que não podem ou não respondem ao imperativo performativo projetado desde o campo de forças serão excluídos ou marginalizados no processo de produção do valor (YÚDICE, 2002, p. 22).

Liv Sovik amplia o argumento da cultura como um recurso nas formações sociais hodiernas. Segundo a autora, a fundação do Olodum, no ano de 1979, inaugura uma nova posição para os projetos culturais, de arte-educação ou socioeducativos na cena cultural urbana. Acompanhando uma tendência global, estes projetos partilham a missão de “orientar setores jovens da população pobre do Brasil para a conquista da cidade, usando a cultura como ferramenta de educação para a transformação social” (SOVIK, 2014, p. 172-173). Tais projetos evidenciam os modos pelos quais a cultura tem sido envolvida no enfrentamento das desigualdades sociais e de diversas outras problemáticas urbanas. Nos termos de Sovik, “das cinzas da violência e da negação de direitos surge, então, a fênix da cultura” (2014, p. 174).

Lipovetsky e Serroy, em outra perspectiva teórica, argumentam que o novo ciclo da modernidade constituiu um regime inédito de cultura, pois a “era hipermoderna transformou profundamente o relevo, o sentido, a superfície social e econômica da cultura” (2011, p. 10-11). Na hipermodernidade, também definida pelos autores como Era da Cultura-Mundo, há uma mercantilização integral das culturas que é, simultaneamente, uma culturalização das mercadorias.

Estas sociedades também se caracterizam:

por um consumo bulímico, pela intensificação da circulação dos bens, das pessoas e das informações, os indivíduos dispõem de mais imagens, referências, modelos, e podem assim encontrar elementos de identificação mais diversificados para construir sua existência (LIPOVETSKY; SERROY, 2011, p. 16).

Diante desta intensificação das experiências simbólicas dos indivíduos, as produções identitárias encontram novas referências ou marcações, tanto aquelas fabricadas nas escalas locais, quanto às oriundas da sociedade global de consumo. Contudo, não é possível afirmar que a globalização consolide uma influência discursiva unilateral ou manifeste-se exclusivamente sob a forma de um “imperialismo cultural”. É digno de nota que, nas décadas de 1980 e 1990, abordagens críticas dos processos globais anunciavam sua semelhança à padronização típica das redes estadunidenses de fast food. Mike Featherstone, em perspectiva semelhante, apresentava a ideia de que “em acréscimo aos processos globais de americanização e niponização ou de ocidentalização e orientalização, é possível falar em ‘abrasileiramento’1 do mundo: um processo dual de zoneamento e de sincretismo cultural” (1997, p. 25). No entanto, como observou ainda Lipovetsky, as produções identitárias e culturais na globalização situam-se em uma zona de ambivalência entre a homogeneização e as demandas por reconhecimento e por diferença.

De um lado, a cultura-mundo se apresenta como uma das figuras do irresistível avanço do mundo tecnológico, submetendo o cultural a seus valores de desempenho eficiente. Mas, por outro lado, é preciso observar que, longe de fazer declinar as questões culturais, o mundo tecnomercantil contribui para relançá-las por meio da problemática das identidades coletivas, das ‘raízes’, do patrimônio, das línguas nacionais, do religioso e dos sentidos (LIPOVETSKY; SERROY, 2011, p. 17).

O indício de análise identificado acima por Lipovetsky e Serroy é mais amplamente discutido por Jesús Martín-Barbero. De acordo com o filósofo (MARTÍN-BARBERO, 2012), tais condições sociais evidenciam que a percepção e os sentidos do ‘local’ e do ‘global’ não sejam unívocos. Entre a fragmentação produzida no local pela globalização e a revalorização do local como espaço de resistência ao global existem inúmeros processos culturais que interferem nos relatos da identidade e nos processos identitários em si, cujos limites, por certo, seriam o excesso dos particularismos ou dos fundamentalismos.

No conjunto destes processos culturais, Martín-Barbero evidencia que os novos sentidos atribuídos ao local são compatíveis com as tecnologias e com a informática, não havendo (necessariamente) cisões entre as culturas tradicionais e os artefatos e as redes tecnológicas ou midiáticas, pois

Hoje essas redes não são unicamente no qual circulam o capital, as finanças, mas também um ‘lugar de encontro’ de multidões de minorias e comunidades marginalizadas ou de coletividades de pesquisa e trabalho educativo ou artístico. Nas grandes cidades, o uso das redes eletrônicas tem permitido a criação de grupos que, virtuais em sua origem, acabam territorializando-se, passando da conexão ao encontro e do encontro à ação (MARTÍN-BARBERO, 2012, p. 59).

Em alguma medida, então, o estudioso argumenta sobre a necessidade de diferenciarmos as lógicas homogeneizadoras da economia de outras que mundializam a cultura, em um contexto onde a diversidade cultural passa a adquirir centralidade enquanto categoria para análises do Contemporâneo. Além de suas inflexões em direção à economia, a diversidade articula-se politicamente às demandas por respeito, reconhecimento e cidadania.

Este contexto favorece processos de reelaboração simbólica (MARTÍN-BARBERO, 2012). Culturas tradicionais têm passado por profundas reconfigurações, tanto nos aspectos de sua organização, controle ou dinâmicas de dominação, quanto nos mecanismos comunicacionais que favorecem suas interações com outros grupos e culturas em diversas escalas. A referida reelaboração é tangenciada por aceleradas transformações nas culturas urbanas e na própria vida coletiva nas cidades.

Vivemos em cidades desbordadas não apenas pelo crescimento dos fluxos informáticos, mas também por estes outros fluxos que a pauperização e a emigração dos camponeses seguem produzindo, criando o grande paradoxo de que, enquanto o urbano desborda a cidade, permeando cada vez mais o mundo rural, nossas cidades vivem um processo de desurbanização, de ruralização da cidade, devolvendo vigência a velhas formas de sobrevivência que inserem nas aprendizagens e apropriações da modernidade urbana saberes, sentires e relatos fortemente camponeses (MARTÍN-BARBERO, 2012, p. 65).

Esses processos engendram novos modos de se estar junto, visto as novas sensibilidades dos jovens, a empatia com a cultura tecnológica e a emergência de outras expressividades e produções identitárias. “Pois diante das culturas letradas, ligadas à língua e ao território, as eletrônicas, audiovisuais, musicais, ultrapassam essa adstrição, produzindo novas comunidades que respondem a novos modos de perceber e de narrar a identidade” (MARTÍN-BARBERO, 2012, p. 66).

Na globalização, as identidades rearticulam-se a partir de novas demarcações simbólicas produzidas em relação às identidades coletivas, sofrendo influência das indústrias culturais, das (novas) divisões sociais e dos múltiplos processos de seleção informacional. Há, portanto, novos modos de operar, perceber e narrar a identidade, entrecruzados por temporalidades não contemporâneas e manifestações culturais de diversas ancoragens geográficas. Mais do que antes, as identidades produzem-se, afirmam-se, contestam-se e são agenciadas entre narrativas.

IDENTIDADES, PATRIMÔNIOS E EDUCAÇÃO

Bauman escreveu que uma das principais características do Contemporâneo é a consciência de que o pertencimento e a identidade não possuem a solidez das rochas, mas são negociáveis e revogáveis. Em um mundo que aparenta fragmentação, a identidade se torna aparente:

[...] a identidade só nos é revelada como algo a ser inventado, e não descoberto, como alvo de um esforço, ‘um objetivo’; como uma coisa que ainda se precisa construir a partir do zero ou escolher entre alternativas e então lutar por ela e protegê-la lutando ainda mais – mesmo que, para que essa luta seja vitoriosa, a verdade sobre a condição precária e eternamente inconclusa da identidade deva ser, e tenda a ser, suprimida e laboriosamente oculta (BAUMAN, 2005, p. 21-22).

Em termos sociológicos, a crise dos pertencimentos comunitários engendrou a manifestação da ideia de identidade. No contexto do fortalecimento dos Estados Nacionais modernos, essa crise exigiu esforços materiais e simbólicos para nacionalizar os pertencimentos. Unificação territorial, padronização linguística e homogeneização simbólica representaram o empenho moderno pela construção de uma nação ou, nos termos de Benedict Anderson (2008), de uma comunidade imaginada. Muito mais do que a organização monetária e a publicação de textos constitucionais, os nascentes Estados empenharam-se na veiculação de símbolos, de cânticos, de tradições e outros elementos simbólicos adstritos ao imaginário nacional.

Semelhantes empenhos ocorreram também no contexto latino-americano após os processos de independência, onde foi necessário produzir unidade. Diversas estratégias foram utilizadas no objetivo de nacionalização, tais como: a emergência de políticas para a escolarização, o uso da imprensa, a seleção das expressões artísticas e a musealização através da memória nacional. Nos termos de Michael Pollak (1989), poderíamos pensar em um trabalho de “enquadramento da memória”, legitimando registros de memória alinhados às motivações de interesse nacional e secundarizando ou excluindo as “memórias subterrâneas”, no caso dessa argumentação, àquelas derivadas das culturas populares e das narrativas identitárias produzidas por populações empobrecidas ou culturalmente “esquecidas”.

Dominique Poulot (2009) observa que as políticas de promoção e de valorização do patrimônio no Ocidente acompanharam esta tendência. Inúmeras agências nacionais e internacionais foram criadas, ao longo do século XX, com a finalidade de produzir configurações de memória social e de patrimônio cultural ajustadas aos interesses políticos e identitários dos Estados Nacionais. No Brasil, por exemplo, a década de 1930 marca o surgimento do Serviço para o Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN, atual IPHAN). O patrimônio histórico e cultural, tal como havia ocorrido com a questão identitária (CUCHE, 2002), se torna assunto de Estado. A manutenção de uma ordem simbólica plasmada aos interesses nacionais demandou a formação de uma razão patrimonial no Ocidente (POULOT, 2009), na qual a seleção, a salvaguarda e a transmissão se tornariam operações fundamentais para a significação da nação.

Este processo representou a consolidação de políticas patrimoniais orientadas pelo culto aos heróis nacionais, aos vultos da pátria, às datas cívicas e às celebrações estatais, bem como à inauguração de instituições com a finalidade de proteger os referidos valores. No Brasil, significou, com efeito, que as primeiras políticas para o patrimônio fossem orientadas por uma seleção eurocêntrica de patrimônio, tendo em vista a influência do Barroco, e por representações elitistas e eruditas da nação e de seu patrimônio (ambos no singular). A escolarização formal, por sua vez, acompanhou esta tendência à seletividade dos registros ou marcações simbólicas que reforçavam os imaginários nacionais, através da cristalização de relações monoculturais entre a educação e o patrimônio nacional (SILVA, 2015).

Progressivamente, tal representação ‘forte’ da memória e do patrimônio foi sofrendo modificações. Destacam-se, enquanto leituras diagnósticas dessas mutações institucionais, as abordagens que têm caracterizado o declínio do potencial regulador do Estado e da própria ideia moderna de sociedade (TOURAINE, 2006), bem como abordagens sobre as mobilizações de atores e coletivos historicamente ausentes ou politicamente sub-representados reivindicando sua presença nas definições oficiais de cultura, memória ou patrimônio.

Dois principais conjuntos de fatores têm impactado as definições de patrimonialização cultural no Ocidente. Em primeiro lugar, a influência da Unesco enquanto agente internacional atuante em processos globais de patrimonialização, desde a década de 1940. Através de um conjunto de documentos públicos, essa instituição inseriu uma nova dimensão aos debates sobre patrimônio, a qual foi rapidamente absorvida em processos nacionais, a saber: o conceito antropológico de cultura (ABREU, 2015). Tal conceito, orientado a partir de experiências simbólicas diversificadas, engendrou a publicação da “Recomendação de Salvaguarda das Culturas Tradicionais e Populares”, no ano de 1989, o que desencadeou uma tendência à “patrimonialização das diferenças” (ABREU, 2015) e à pluralização nas discussões e representações acerca da memória social e dos patrimônios. Discussões sobre singularidades identitárias, especificidades locais, intangibilidade patrimonial e diversidade cultural são incorporadas na agenda da Unesco e, por consequência, há a “entrada na cena pública de segmentos sociais antes invisíveis, oriundos das camadas populares e das sociedades tradicionais” (ABREU, 2015, p. 70).

Em segundo lugar, ao longo da história ocidental moderna, o Estado fez-se o principal (ou único) demandante da seleção de um bem a patrimonializar, mediante gestos de poder. Porém, na atualidade, os próprios movimentos sociais e organizações civis passam a incorporar a questão patrimonial em seus repertórios de reivindicação, em decorrência, de alguma forma, das lutas sociais mais amplas que passam a associar o enfrentamento das injustiças materiais e das injustiças simbólicas (FRASER, 2001). As novas dinâmicas de patrimonialização combinam-se às demandas por reconhecimento, em uma paisagem social em que as coletividades assumem a posição de demandantes, configurando uma inversão na lógica histórica que organizava o setor.

Neste contexto onde são redefinidos os sentidos e os usos dos patrimônios culturais, a ideia de identidade regressa à discussão. Como observou Bauman,

Quando a identidade perde as âncoras que a faziam parecer natural, predeterminada e inegociável, a ‘identificação’ se torna cada vez mais importante para os indivíduos que buscam desesperadamente um ‘nós’ a que possam pedir acesso (BAUMAN, 2005, p. 30).

Diante da fragilização das representações de memória e de patrimônio, consequência de novos arranjos para a ação estatal, do declínio heurístico do termo ‘classe’ que operava como metaidentidade e da emergência de demandas por reconhecimento cultural, as políticas e os processos de patrimonialização cultural têm sofrido modificações. As concepções e as práticas de educação patrimonial desenvolvidas no Brasil desde a década de 1930 (ainda que a nomenclatura “educação patrimonial” remeta-se a década de 1980) paulatinamente foram expressando tais deslocamentos. Para além de uma pedagogia da “conscientização patrimonial”, esta eivada por uma representação estável e fixa de patrimônio, as políticas e os projetos de educação patrimonial passaram a agenciar pautas politicamente mais amplas e de conteúdo identitário cada vez mais plural e multifacetado. A agenda contemporânea da educação patrimonial tem incorporado múltiplas temporalidades e ancoragens geográficas, diante da dissolução das monoidentidades (SILVA, 2015), como veremos a seguir.

SANTA TEREZA E A ITALIANIDADE

O tombamento do centro histórico do município de Antônio Prado, no Rio Grande do Sul, em meados da década de 1980, representou o reconhecimento estatal das manifestações da cultura popular remanescente da imigração italiana para o Sul do Brasil. O principal significado desse ato público se refere ao fato de ser o primeiro processo de patrimonialização alusivo à colonização brasileira não oriundo do Barroco ou do universo simbólico lusitano, processo comparável ao tombamento do terreiro de candomblé Casa Branca, em Salvador (VELHO, 2006), uma vez que ambos, cada um à sua maneira, produziram fissuras à patrimonialização monocultural vigente no Brasil até então.

Em 2012, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) realizou o tombamento do núcleo urbano de Santa Tereza, município de aproximadamente 1.800 habitantes, localizado na Serra Gaúcha. O ato oficial corresponde a 25 casas edificadas entre os séculos XIX e XX consideradas representativas da presença da imigração italiana no país.

Segundo o órgão federal de patrimônio,

A área tombada possui arquitetura que lembra as pequenas comunas do Vêneto (região do nordeste da Itália, cuja capital é Veneza). A arquitetura urbana das casas e sobrados mais antigos, implementada a partir do início do século XX, apresenta influência neoclássica e eclética. O tombamento considerou o traçado urbano preservado, seu acervo arquitetônico, a paisagem rural do município e a riqueza de todo o patrimônio cultural2.

Os relatos desse processo ainda evidenciam que:

As edificações do núcleo urbano de Santa Tereza formam um conjunto expressivo da arquitetura ítalo-brasileira sendo que a grande maioria permanece conservada, com destaque para os sobrados de madeira (como a Casa da Família Miele e a antiga Fábrica de Gaitas), as construções de alvenaria rebocada com arranjos formais neoclássicos, as casas de alvenaria com embasamento em pedra, a existência de porões para o armazenamento do vinho e outros produtos coloniais.

As informações oficiais do IPHAN acerca desse processo de patrimonialização cultural ainda evidenciam que o tombamento excedeu o traçado urbano e suas edificações de conteúdo histórico e alcançou todo o entorno, incluindo uma significativa porção do leito do Rio Taquari, que circunda a cidade. A paisagem local foi o objeto da referida ação, caso das relações da nucleação urbana com as montanhas da Serra Gaúcha, da urbanidade com natureza e do sítio histórico com o meio natural. Portanto, o processo de Santa Teresa evidenciou a relevância da paisagem na patrimonialização e não apenas as edificações, de modo isolado.

Segundo noticiado pela imprensa regional, os moradores almejavam tal reconhecimento há 25 anos, fato que foi interpretado como oportunidade política para a priorização do pequeno município em relação a investimentos públicos e privados em turismo, cultura e infraestrutura, sobretudo com a finalidade de recuperação das edificações. Naquele contexto, Diogo Segabinazzi Siqueira, então prefeito municipal, pronunciou-se afirmando que a cidade havia conquistado “um diferencial que pouquíssimas cidades do Brasil possuem. Vamos fazer valer esse título e desenvolver o nosso potencial3”.

É interessante destacar a ideia de ‘potencial’ presente na afirmação do prefeito municipal. A ideia de potencial ou de potência então pronunciada refere-se à possibilidade de agenciar política e economicamente o patrimônio cultural. Importa observar que o município já possuía um processo de tombamento, este por órgão estadual de patrimônio, uma vez que, em 1985, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado do Rio Grande do Sul (IPHAE-RS) realizou o tombamento da antiga Escola Estadual Santa Teresa, um dos primeiros educandários da região. No entanto, o uso da expressão ‘potencial’ aplicado ao tombamento nacional associa-se ao contexto mais amplo de desenvolvimento turístico da região, nas últimas décadas, assim como enuncia que o tombamento alteraria a economia simbólica do lugar tombado (SANTOS; PEIXOTO, 2013). No contexto socioeconômico regional, as narrativas identitárias dão centralidade à imigração italiana, onde a “italianidade” faz-se o centro das ações de desenvolvimento econômico e turístico, caso, por exemplo, da Festa da Uva, em Caxias do Sul, ou a ExpoBento, em Bento Gonçalves.

Por outro lado, o processo de patrimonialização no município desencadeou outras ações de diferentes atores engajados nas questões patrimoniais. Uma delas foi a constituição da Associação de Proteção ao Patrimônio Histórico, Arquitetônico e Turístico de Santa Tereza (ASPHAT-ST), estabelecida por Estatuto oficializado em 2007, a qual visa

a associação, a valorização, recuperação, restauração e preservação do legado, patrimônio cultural, histórico, natural e arquitetônico da comunidade de Santa Tereza. Desenvolver relações de intercâmbio e ações de caráter formativo com a Itália, apoiar o Tratado de cidades irmãs, o gemellaggio com o município de San Biagio di Callalta e especialmente com as regiões do Vêneto, Trentino e Friuli, o Triveneto. A viabilização e o fortalecimento das pessoas físicas e jurídicas que compõe seu quadro de associados, bem como proporcionar a obtenção e o desenvolvimento de atividades educativas, artísticas, culturais bem como a criação de alternativas de Turismo Sustentável (Estatuto da ASPHAT-ST, art. 5º).

No que tange às ações educativas, a ASPHAT-ST foi proponente de um Ponto de Cultura, que obteve recursos junto ao Programa Cultura Viva, pelo Ministério da Cultura. Essa ação, intitulada “Ponto de Cultura – Orquestra de Acordeões”, foi desenvolvida através de um trabalho educativo que articulou música e educação patrimonial. O grupo desenvolveu diversas atividades formativas, mas atribuiu destaque à formação de uma orquestra e de iniciativas em relação à defesa do patrimônio tombado e à educação patrimonial. As narrativas identitárias que produziam sentido ao conjunto das práticas propostas pelo Ponto de Cultura acompanharam a tendência regional e a ‘italianidade’ passou a ser agenciada por esses atores. Segundo informações disponibilizadas pela associação,

Santa Tereza possui um dos mais importantes núcleos de imigração italiana e é o berço da fabricação do Acordeão no Brasil. Popularmente chamado de gaita – ainda existem no município exemplares do instrumento elaborados pelos imigrantes italianos Cesare Appiani e Maria Savoia. Com os ensinamentos disseminados por este casal no início do século XX o acordeão foi fabricado e difundido em toda a América pelas fábricas Todeschini e Scala que tiveram reconhecimento e mercado mundial por sua qualidade. A antiga casa onde inicialmente eram fabricadas mantém-se integrando no imponente acervo arquitetônico da comunidade de Santa Tereza.4

O público que participou da ação foi constituído por crianças e jovens provenientes de todo o município, principalmente do meio rural. A partir de uma narrativa que enfatizou que essa prática pode ser interpretada como autêntica, por sua origem local associar-se à presença dos primeiros imigrantes italianos no Sul do país e pelo fato da antiga fábrica de gaitas ser um dos principais bens tombados no município, esse ponto de cultura (Imagem 1) desenvolveu aulas de música e ações de educação patrimonial através da constituição de um departamento de pesquisa e fotografia, do estabelecimento de uma sala memorial destinada a um acervo sobre a história do município e da realização de palestras e cursos formativos para o desenvolvimento da cultura e do turismo sustentável.

Imagem 1. Fonte: <http://www.aphat.com.br>. Acesso, jun. 2016. 

A ênfase atribuída ao turismo no Estatuto da ASPHAT-ST e em algumas ações desenvolvidas pelo Ponto de Cultura permite-nos recuperar a ideia de potência explicitada pelo então prefeito no contexto da oficialização do tombamento. A italianidade tornou-se discurso privilegiado para a conservação da paisagem patrimonializada, mas igualmente favoreceu ações associaram patrimônio a turismo e, consequentemente, educação patrimonial e agenciamentos econômicos. A ‘italianidade’ agenciada pelos atores através das ações de educação patrimonial não apenas visavam a preservação desse patrimônio, mas a produção e a circulação de narrativas identitárias que produziam sentido para o mesmo.

Essa situação favorece a compreensão das potencialidades da educação patrimonial enquanto ferramenta sociopolítica de intervenção na vida coletiva, significando-a não apenas como ferramenta de conscientização ou alfabetização patrimonial. Tal circunstância analítica aproxima-se das elaborações do antropólogo Arjun Appadurai, o qual observa no livro La modernidad desbordada: dimensiones culturales de la globalización (APPADURAI, 2001) que, nas leituras sociológicas sobre as sociedades modernas, o local surge como um contexto inerentemente frágil que necessita ser protegido. A própria Antropologia, através de seus clássicos estudos etnográficos, foi escrita a partir dessa prerrogativa, quando as próprias sociedades de pequena escala jamais pensaram o local como algo dado, mas antes, pelo contrário, “eles parecem assumir que o local é efêmero” (APPADURAI, 2001, p. 189).

Ao interpretar o local como uma propriedade fenomenológica da vida social, o antropólogo entende que o local é fabricado por relações de produção, reprodução e autorreprodução. Parafraseando Appadurai, podemos pensar que a educação patrimonial não opera apenas no âmbito da conservação dos ditos patrimônios de uma determinada formação social, mas produz, reproduz e autorreproduz processos sociais e pedagógicos que formam a própria sociedade e, por esta, seus patrimônios. Nesse sentido, muito mais que salvaguardar, a educação patrimonial produz o local.

PATRIMÔNIO E EDUCAÇÃO PATRIMONIAL EM SÃO LUIZ DO PARAITINGA

São Luiz do Paraitinga localiza-se no interior do Estado de São Paulo, no Vale do Paraíba Paulista, distante 170 quilômetros da capital do Estado. Situado no alto da Serra do Mar, o município fundado em meados de 1769 preservou um conjunto representativo de edificações de valor histórico e cultural para a região e para o país. Em 1982, cerca de quatrocentas edificações foram tombadas pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat). Além da patrimonialização da arquitetura, há na cidade destacadas práticas culturais, festivas e religiosas, o que contribuiu para que, em 2002, se tornasse estância turística do Estado de São Paulo. Essas indicações se intensificam no contexto local quando, em 2009, o IPHAN realiza o tombamento provisório de parte significativa da paisagem luizense.

As políticas patrimoniais da cidade, passam a agenciar elementos da patrimonialização e das manifestações da cultura popular. As discursividades dos atores políticos da cidade apresentam essas potencialidades, como expõe, em entrevista, o então diretor de turismo:

Nós temos a cultura tradicional caipira aqui em São Luiz do Paraitinga, um dos últimos redutos de caipiras do Estado de São Paulo. Temos o maior conjunto arquitetônico do Estado também, de casas tombadas pelo Condephaat e, recentemente, pelo Iphan, totalizando 433 casas tombadas. Aqui nós temos a questão da musicalidade, que é muito forte, terra de Elpídio dos Santos – grande músico aqui, influenciou muitas gerações, fazia as trilhas sonoras dos filmes do Mazzaropi na década de 40, e até hoje tem música dele sendo tocada aqui. Inclusive as marchinhas de carnaval, que é de forma inédita que acontece aqui em São Luiz (Eduardo, agente político).

No entanto, no dia primeiro de janeiro de 2010, parte da cidade foi destruída por uma forte enchente. O transbordamento do Rio Paraitinga, além das perdas materiais, sentimentais e simbólicas, destruiu inúmeros prédios de valor histórico (18 foram destruídos e 65 tiveram algum tipo de avaria). A Igreja Matriz São Luiz de Tolosa, ícone do catolicismo popular na região, foi plenamente destruída pela enchente (Imagem 2).

Imagem 2. Fonte: Rogério Marques (http://www.ovale.com.br

A condição de instabilidade trazida por esse evento crítico, fez com que o IPHAN acelerasse o tombamento definitivo do centro histórico e se tornasse colaborador ativo na reconstrução da cidade. Nos dias seguintes, pronunciou-se em sua página na internet afirmando a realização do ato definitivo e do apoio ao patrimônio imaterial de São Luiz do Paraitinga e à economia da cultura presente na cidade e, a seguir, mesmo diante de diversos conflitos políticos no local, mobilizou-se para o restauro de edificações.

A reconstrução da cidade catalisou um intenso processo de educação patrimonial que envolveu grande parte da população e fez da cultura um importante protagonista nas propostas de reconstrução urbana (SANTOS, 2015). Em conversações com moradores, identificava-se a esperança na reconstrução e, ao mesmo tempo, questões de como imaginavam que deveria ser e como a cidade ficaria depois das obras. A colocação do tapume no entorno da Igreja Matriz, às vésperas do início das ações de restauro, foi emblemática dessa situação. Estudantes das escolas locais iam acompanhar as ações, enquanto outros inscreviam nos tapumes dizeres de esperança e delineavam uma narrativa iden-titária de contornos novos (Imagem 3).

Imagem 3. Fonte: Acervo da pesquisa. 

A reconstrução da cidade e de seu patrimônio com reconhecimento nacional, mesmo que em uma situação atípica, oportunizou que a reflexividade dos atores locais acerca da patrimonialização se convertesse na produção de uma pedagogia da memória. O que lembrar? O que esquecer? Reconstruir tal como era? Produzir algumas edificações novas? Qual o risco de produzir caricaturas de nossa memória? Como se faz um restauro? Esse tipo de indagação fez, segundo professores que atuam em São Luiz do Paraitinga, que a cidade se tornasse uma “universidade à céu aberto”.

Então, eu costumo dizer que a enchente deu a São Luiz a “oportunidade”, entre aspas, porque é uma oportunidade que não foi desejada evidentemente pela enchente, mas uma oportunidade de se tornar uma universidade a céu aberto, porque universidades públicas e particulares trouxeram alunos da graduação de história, geografia, arquitetura, matemática, enfim várias áreas estavam aqui. Porque aqui era o trabalho de campo, aqui era uma universidade aberta. O que se discutia aqui, o que o patrimônio histórico, os órgãos públicos ligados ao Patrimônio histórico faziam aqui, a discussão que se estabelecia entre a população e os órgãos públicos era uma discussão que ia muito além do resgate e da reconstrução, era discutir o patrimônio cultural, cultura popular, patrimônio material, patrimônio imaterial, como se reconstrói, o que se reconstrói, como é este processo, como fazer, pode tudo, não pode nada, o que é que pode, como é que se faz, qual é o critério técnico. Tudo isto estava presente na discussão (Daniel, professor).

O argumento do professor Daniel permite-nos identificar que a população local se interessou pela reconstrução do patrimônio da cidade e procurou participar desse processo. Tal ênfase traz novamente à discussão uma tendência à inversão na lógica dos demandantes da patrimonialização, como escreveu Regina Abreu (2015). Mesmo sendo um patrimônio interpretado como nacional, o acompanhamento das ações e o conteúdo dessa patrimonialização ocorriam em escala local, através da percepção das narrativas identitárias presentes no lugar, mas também com a presença e a participação das pessoas envolvidas. Mais do que patrimônio do país, São Luiz é onde as pessoas vivem, onde construíram suas referências identitárias, seus pertencimentos e produziram sentido para suas vidas.

A escola tem esta consciência (e sempre teve!) de que os alunos precisavam participar deste processo. Evidentemente, tinham questões de segurança, tinham as próprias questões técnicas, não dá para trabalhar em um trabalho tão meticuloso assim com um lugar aberto cheio de gente toda hora sendo visitado. Isto não é possível, a gente sabia disso. Mas, ao mesmo tempo, a gente fazia questão de insistir em que sempre que houvesse uma chance, sempre que houvesse um espaço nós, queríamos estar lá! Nós queríamos participar desse processo, tendo consciência de que os alunos de ensino médio, os alunos da rede municipal, os alunos de ensino fundamental estavam assistindo, participando, acompanhando e percebendo quais as discussões que estavam sendo feitas. Isto dá uma consciência do valor do patrimônio que poucos lugares, até mesmo com patrimônio mais antigo que São Luiz do Paraitinga, talvez não consigam se apropriar como a gente fez. Então, a enchente serviu de educação patrimonial para a população de São Luiz do Paraitinga. (Daniel, professor).

No caso da instituição de ensino onde Daniel atua, a Escola Estadual Monsenhor Ignácio Gióia, esse processo de educação patrimonial através da recuperação das memórias da cidade e de suas narrativas de identidade foi trazido para dentro da escola. O prédio escolar também foi danificado pela enchente de 2010 e, em maio de 2012, a nova edificação foi inaugurada. No entanto, a comunidade escolar não se identificou muito com as estruturas de concreto da nova escola, que definiram como “fria e maciça”, e decidiram trazer as cores e as formas dos patrimônios luizenses para seu interior. Sob a justificativa de que “o prático não combina muito com o ser luizense”, propuseram ao artista local José Carlos Monteiro, que é funcionário da escola, para que pintasse quadros que ilustrasse as múltiplas manifestações da cultura popular nas estruturas de concreto do novo prédio.

José Carlos é um reconhecido artista popular (naif), já apresentou em eventos nacionais e internacionais, produz, em seu cotidiano, imagens do folclore regional, do carnaval, dos blocos de marchinha, da arquitetura religiosa das igrejas da cidade, das paisagens, além da própria enchente. Essas imagens, também comercializadas com turistas e visitantes aos finais de semana, retratam as narrativas identitárias luizenses no novo prédio da escola estadual (Imagem 4).

Imagem 4. Fonte: Acervo da pesquisa. 

Como ele decidiu tematizar as colunas da escola, as estruturas da escola, uma com temática religiosa, outra de folclore, outra do carnaval, outra da enchente, a cidade reconstruída, a gente tem certeza de que a escola vira, em pouco tempo, uma galeria para ser visitada, porque a população fora dos muros precisa se apropriar disso porque isso não é um luxo interno da escola, isso é para todo mundo. Então, o trabalho do Zé Carlos Monteiro dá uma dimensão do que é você ser funcionário da escola e não ser professor, mas ser educador também, todos somos educadores aqui. (Daniel, professor).

O depoimento do professor permite-nos ponderar que, mesmo que as ilustrações sejam inscritas nas colunas de concreto, o desejo da comunidade escolar é receber visitantes, desencadeando outros modos de apropriação e de socialização patrimonial. Ao mesmo tempo, tais imagens fazem circular narrativas acerca de elementos identitários e de memória social, particularmente intensas se considerarmos que, em tempo recente, viveram a experiência de sua destruição parcial.

A educação patrimonial produzida pela Escola Monsenhor Ignácio Gióia agencia uma pedagogia da memória dirigida pela intencionalidade de reinterpretar o passado, que se corporifica no processo de tombamento e nas manifestações do patrimônio imaterial, e de produzir novas significações que, em suas experiências vividas, permite-lhes ensaiar novos acontecimentos e projetos de vida. Para uma análise, ainda que breve, dessa pedagogia é necessário compreendermos a memória como um processo aberto de reinterpretação, “jamais segura de si”, como escrito por Nelly Richard:

A memória é um processo aberto de reinterpretação do passado que desfaz e refaz seus nódulos para que ensaiem de novo acontecimentos e compreensões. A memória remexe o dado estático do passado com novas significações, sem parar, que põem sua recordação para trabalhar, levando começos e finais a reescrever novas hipóteses e conjecturas para desmontar com elas o fecho explicativo das totalidades demasiado seguras de si mesmas. E é a laboriosidade dessa memória insatisfeita, que nunca se dá por vencida, que perturba a vontade de sepultamento oficial da recordação vista simplesmente como depósito fixo de significações inativas. (RICHARD, 1999, p. 322).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Há, na atualidade, uma tendência global à conservação patrimonial, através da revitalização de centros históricos, de processos de musealização das culturas e dos artefatos históricos e do crescente interesse em inserir tal tendência no contexto de instituições educacionais. Educar para o patrimônio e educar para a salvaguarda das memórias enunciam a tônica da inclusão da educação patrimonial na agenda das políticas para a escolarização no Brasil, a qual, na perspectiva das institucionalidades, é lenta, tendo em vista que o debate acerca de uma política nacional para o setor pouco avançou no país.

Ao examinarmos a condição hodierna das políticas de educação patrimonial no Brasil, a partir da situação de duas cidades que sofreram processo de tombamento, identificamos suas aproximações a diferentes modos de operar, perceber e narrar a identidade. Nesse sentido, tais políticas começam a agenciar pautas diversificadas e de conteúdo identitário mais plural, diante da dissolução das monoidentidades (SILVA, 2015). Nos casos específicos de Santa Tereza e São Luiz do Paraitinga, as narrativas de identidade assumem duas dimensões específicas. Na primeira, ancorados na leitura de Arjun Appadurai, concluímos que, além das dimensões preservacionistas, a educação patrimonial é capaz de produzir o local. Quando reconstrói o imaginário da imigração italiana, a educação patrimonial produz Santa Tereza.

Na segunda, em interlocução com o pensamento de Nelly Richard, analisamos que a referida educação se torna um mecanismo de reinterpretação do passado, sobretudo se considerarmos a memória social como um processo aberto de reinterpretação. O contexto da enchente em São Luiz do Paraitinga evidenciou o caráter aberto das memórias sociais e ativou múltiplos agenciamentos sociopolíticos que favoreceram sua reconstrução.

Nas duas narrativas, por fim, ao identificarmos certas correspondências entre a patrimonia-lização e os processos identitários, fez-se possível percebermos que a educação patrimonial está voltada para o futuro. Como nos ensinou Milton Santos, “vivemos todos esses séculos acorrentados à ideia de que o passado seria o cimento das sociedades e o seu fio condutor para o porvir” (2008, p. 162). Custa-nos admitir que essa função é representada pelo futuro. Assim, no caso específico da educação patrimonial, parecia-nos que o passado nos oferecia os recursos necessários para compreendermos o presente, no entanto, na Contemporaneidade, o que o passado nos oferece é uma ideia de projeto, de projeção.

No âmbito das relações educativas, em que pese suas contingências pedagógicas, históricas, culturais ou identitárias, a educação patrimonial permite reflexões densas sobre os patrimônios e as memórias sociais, mas com o olhar atento para as “várias formas possíveis – e viáveis – de construir futuros” (SANTOS, 2008, p. 163).

1Segundo Featherstone (1997), este abrasileiramento do mundo evidencia imagens globais de cidades divididas, fortificadas ou perigosas, mas também rediscute a própria imagem do Brasil (de Carmen Miranda ao binômio samba/futebol) na globalização.

4Fonte: <http://www.aphat.com.br/?p=p_ponto-de-cultura> Consulta em: 13 jun. 2016.

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Recebido: Agosto de 2016; Aceito: Dezembro de 2016

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