A obra resenhada é um ensaio de Boaventura de Sousa Santos, referência no campo das Ciências Humanas, bem como na Educação. Foi escrita com intuito de apontar os potenciais conhecimentos que podemos construir a partir da vivência da pandemia do novo coronavírus. É de extrema relevância, pois nos ajuda a compreender um tema emergente que tem alterado profundamente a nossa forma de viver, trabalhar, estudar, consumir e conviver, colocando em cheque aspectos fundamentais concernentes à nossa vida no planeta Terra. Escrita e publicada em meio à pandemia que assola o mundo inteiro, esta obra nos possibilita compreender os efeitos da crise e identificar suas diversas causas e implicações ligadas ao atual cenário econômico, político e social. Além de nos conduzir a alternativas possíveis, viáveis e inegáveis, o autor nos ajuda a compreender a situação dos mais vulneráveis e atingidos pelo vírus, a influência indiscriminada do neoliberalismo na produção desse cenário, as mudanças que fomos forçados a viver e as alternativas que até então deixamos de pensar por estarmos imersos em um cenário fechado pela atual versão do capitalismo. Caso os aspectos acima descritos não sejam repensados, de modo a revermos nossas relações com o planeta, o autor anuncia que estes nos conduzirão a novos períodos de quarentena, causados por outros períodos de crise.
A obra está organizada em cinco capítulos, apresentados na sequência: no primeiro capítulo Vírus: tudo o que sólido se desfaz no ar, o autor faz reflexões e questionamentos sobre os efeitos sociais, políticos, econômicos e ambientais da pandemia na vida planetária, mostrando-nos que a forma como as nações vivem se relaciona diretamente com as consequências às quais estão submetidas na atualidade. Apresenta, em seguida, potenciais conhecimentos que decorrem da pandemia do coronavírus, a saber: a) a atual crise causada pela pandemia não pode ser considerada como oposta a uma situação de normalidade, já que, desde 1980, com o avanço do neoliberalismo, o mundo tem vivido um permanente estado de crise. Segundo o autor, quando uma crise se torna permanente, como é o caso das decorrentes das políticas neoliberais, acaba se tornando justificativa para a concentração de riqueza e para o aumento das desigualdades; b) as formas de viver e de se relacionar mudam ao longo do tempo em diversas sociedades e a pandemia impôs modos que até então pareciam impossíveis em nossos tempos. Dessa maneira, o autor mostra que sempre houve alternativas, nunca discutidas, por haver uma ideia conservadora de que não há solução, imposta pelo hipercapitalismo; c) o terceiro ponto fixa-se na fragilidade e no sentimento de insegurança causados pela pandemia nos seres humanos e em como alguns dentre eles podem ter esse sentimento amenizado por terem maior acesso a médicos, academias, apólices de seguro, entre outros recursos; d) o quarto ponto destacado mostra que a queda das atividades econômicas, em países como os EUA, tem possibilitado a diminuição da poluição atmosférica, a que o autor questiona se “[...] a única maneira de evitar a cada vez mais eminente catástrofe ecológica é por via da destruição maciça da vida humana” (SANTOS, 2020, s. p.). Na conclusão do capítulo, o autor nos convoca a perceber que uma boa parte da população mundial está extremamente mais vulnerável ao vírus, como imigrantes e refugiados, seja na Europa, nos EUA, ou em outras regiões do planeta.
No segundo capítulo, A trágica transparência do vírus, o autor nos faz refletir sobre como a pandemia apresenta os inimigos invisíveis, deixados por muito tempo fora do debate, que têm causado grandes mazelas sociais na contemporaneidade, pois discussões culturais, políticas e ideológicas de nosso tempo estavam distantes da vida dos cidadãos comuns - maioria da população. Dessa maneira, para Santos (2020, s. p.), a pandemia “[...] é o medo caótico generalizado e a morte sem fronteiras causados por um inimigo invisível”. Mas, quem seria esse inimigo invisível? Para o autor, ele é representado metaforicamente por três seres: os deuses (crenças religiosas); o vírus; e o mercado - seres que fragilizam a vida humana. Existem, além desses seres, três unicórnios: o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado. São eles em conjunto “todo-poderosos” (SANTOS, 2020, s. p., grifo do autor) pois, enquanto houver capitalismo, continuarão a existir o colonialismo e o patriarcado.
No terceiro capítulo, intitulado A Sul da quarentena, o autor utiliza a metáfora do Sul para designar um espaço-tempo político, social e cultural, em que se encontram grupos de especial vulnerabilidade, marcados pelo sofrimento humano causado pela exploração capitalista e pela discriminação racial e sexual agravadas durante a quarentena. Nesses coletivos sociais destacam-se: a) as mulheres - que têm na quarentena um momento difícil e especialmente perigoso; são maioria em profissões da linha de frente no combate à pandemia, como a enfermagem; têm cada vez mais tarefas domésticas, deixando-as sobrecarregadas e aumentando o nível de stress; bem como sofrendo maior violência doméstica; b) os trabalhadores precários, informais, os quais rapidamente perderam sua fonte de renda e são desafiados diariamente a escolher entre ficar em casa para proteger a saúde, morrer de fome, ou sair em busca de recursos, correndo o risco de contaminação, como também os trabalhadores de rua, vendedores ambulantes, ou mesmo os uberizados; c) os sem-abrigo ou populações de rua, os quais talvez tenham passado toda a vida em quarentena, impedidos da convivência social; d) os moradores das periferias pobres das cidades e das favelas, que vivendo em condições básicas para a sobrevivência, não têm a menor chance de cumprir regras de prevenção; e) os deficientes e também idosos, conhecidos mundialmente como os mais vulneráveis, mas sem dúvida para os quais há diferenças expressivas nessa vulnerabilidade, relacionada às condições econômicas e aos locais de moradia, entre outros fatores.
No quarto capítulo, A intensa pedagogia do vírus: as primeiras lições,Santos (2020) propõe seis lições a aprender com a pandemia. A primeira lição se relaciona ao tempo, quando ocorrem crises graves, agudas e de letalidade rápida, como a pandemia causada pelo coronavírus: medidas são tomadas para resolver seus efeitos, mas não para atuar sobre suas causas. Crises graves, que progridem lentamente, são passadas despercebidas, como o caso das crises climáticas. A segunda lição diz que as pandemias não matam tão indiscriminadamente quanto se julga, pois, como retratado em outras partes da obra, muitos grupos acabam sendo mais vulneráveis por não terem tantas condições de prevenção e de impedir a propagação do vírus. A terceira lição destaca que o neoliberalismo, vigente nos últimos anos, sujeitou áreas prioritárias como a saúde, a educação, a seguridade social e a segurança ao modelo de negócio do capital, deixando de lado, precarizando e privatizando os serviços públicos, causando nos Estados a incapacidade de responder a demandas da crise. A quarta lição afirma que a extrema direita e a direita hiper-neoliberal ficam definitivamente (espera-se) desacreditadas. Há evidências de que países governados nessas condições falharam muito mais do que outros, pois utilizando-se do pretexto de salvar a economia, agiram de forma irresponsável, aplicando um novo darwinismo social, defendendo que parcelas improdutivas da população poderiam morrer, além de desacreditarem a ciência e minimizarem os efeitos da pandemia. A quinta lição reitera que o colonialismo e o patriarcado estão vivos e são reforçados nos momentos de crise aguda, por existirem corpos mais vulneráveis devido à racialização, sexualização e expostos à propagação do vírus, e outros socialmente mais valorizados, por serem mais úteis à economia. A sexta lição é uma aposta na necessidade do regresso do Estado e da comunidade, dimensões fundamentais para a vida contemporânea, desfeitas pela lógica do capital que mercantilizou a vida coletiva e incapacitou o Estado para responder as demandas da crise.
Existem alternativas para vencer a cruel pedagogia do vírus? Santos responde, no quinto e último capítulo desta valiosa obra, que O futuro pode começar hoje. Segundo ele, a própria quarentena mostrou, em muitas realidades, que é possível adaptar-se a novas formas de viver, buscando o sentido do bem comum. Para o autor, as alternativas caminham na direção de uma articulação entre os processos políticos e os processos civilizatórios, os quais se relacionam com a construção de uma sociedade mais justa, igualitária e sem discriminações. Por fim, a alternativa seria estabelecer relações entre humanos e planeta que valorizem “[...] a Natureza como nossa mãe originária e nossa casa comum” (SANTOS, 2020, s. p.); ela nos permite estar vivos, e lhe devemos amor e respeito, por correspondermos a apenas 0,01% dos seres vivos da Terra. Então, ou protegemos a vida na Terra, ou essas diversas formas de vida se defenderão das nossas agressões, com outros períodos de quarentena causados por pandemias talvez mais letais.
Realizar a leitura da obra é seguramente compreender A cruel pedagogia do vírus, seus múltiplos desdobramentos e possíveis alternativas. O estudo auxilia a compreensão de lições do autor, aprendidas a partir da realidade europeia. Acreditamos que a postura assumida em nosso país, especialmente pelas lideranças e pelos grupos empresariais, demonstra que o bem comum não foi pensado, porque considerou-se o desenvolvimento da economia mais importante que a preservação das vidas. Por fim, as reflexões à luz de Santos tornam-se urgentes para repensar a realidade brasileira, em meio ao enfrentamento da crise. A leitura dessa obra pode ser considerada pré-requisito para todos os que desejam compreender os tempos atuais e buscam, de forma implicada e coletiva, caminhos para pensar o futuro da humanidade na atualidade e no pós-pandemia.