INTRODUÇÃO
As secretarias estaduais de Saúde confirmam no país 676.494 casos do novo coronavírus (Sars-CoV-2), com 36.044 mortes.
Brasil, 06 de junho de 2020. Fonte: G11
Em junho de 2020, o Brasil iniciava o 3º mês da quarentena com 36.044 pessoas que não mais contariam suas histórias e muito menos viveriam novas risadas, tristezas ou qualquer tipo de sentimento com os seus entes queridos ou com um desconhecido na rua, para quem se esboça um sorriso pelo simples cruzar de olhos e reconhecimento de vida. Aliás, nesse junho de 2020, o sorriso limitou-se a telas de aparelhos eletrônicos. O acesso a aplicativos digitais para conferências, reuniões de trabalho e aulas remotas aumentou consideravelmente e as atividades já estressantes no presencial configuraram-se em torno de novos tipos de estresse: a incerteza da vida vindoura, a espera da vacina, o fim do isolamento social etc.
No meio de um turbilhão de incertezas, o uso dos aplicativos digitais para diminuir a distância social também aumentou. Tornou-se natural especificar e viver tudo com o adjetivo “virtual”: aniversários, rodadas de cervejas e vinhos, festas juninas, carnavais, danças, pinturas. Neste artigo, por exemplo, refletimos sobre um sarau virtual que aconteceu no dia em que o Brasil somava 36.044 óbitos. Com a sombra da morte, no contexto de isolamento e distanciamento social, reinventamos diversos modos de continuar a viver o que antes vivíamos presencialmente. Bárbara Manja, uma jovem de 16 anos, poetizou sobre esse momento:
Quarentena da moléstia
Me deixou entediado
Só assisto h&h
Terminei meu seriado
Depois de tanto inventar
Resolvi voltar pra trás
Redescobrir é a nova moda
Olha só como é que faz
Eu voltei a cozinhar
Ler, escrever etc.
Até meu gato deu a louca
Resolveu ser poeta
Nas fotos eu viajo
Volto aos bons momentos
Relembro velhos abraços
E novos sentimentos
E a quarentena
Já me é tão familiar
De repente parece mais amena
Mais fácil de lidar (MANJA, 2020)2.
A jovem Bárbara versa sobre a “redescoberta”, substantivo presente no “redescobrir-se” uma das ações que mais faziam sentido na época fatídica de 06 de junho de 2020! Pode parecer impossível criar em meio à crise que, se não provoca a morte física, desencadeia vários tipos de mortes. Contudo, se olharmos para a história, encontramos momentos em que vidas franzinas (re)existiram e criaram alternativas para superação de problemas. Na concepção freireana, essas pessoas podem ser compreendidas como “presença que se pensa a si mesma, que se sabe presença, que intervém, que transforma, que fala do que faz, mas também do que sonha; que constata, que compara, avalia, valora, que decide, que rompe” (FREIRE, 2000, p. 51).
Nessa direção, Freire (2000) filosofa que, ao romper com a alienação de si e do outro, o sujeito consegue mover-se no mundo em direção ao que não se viveu, mas ainda pode ser criado. Em análise da episteme das ações humanas, Freire (2014) defende que, em momentos de crise, as pessoas enfrentam “situações limites” que podem desencadear a busca por novas alternativas para viver nessas situações. Para o novo, criado nesses momentos, o autor denomina de “inédito viável” (FREIRE, 2014). Com essa visão, o professor diz que em tempos difíceis “deve-se reinventar a forma de lutar, mas jamais parar de lutar” (FREIRE, 2000, p. 55). Em tempos atuais, usando “lutar” como metáfora de “viver”, parafraseamos o filósofo com a consciência de que podemos reinventar formas de viver sem parar de viver!
Assim compreendemos este momento histórico como tempo de criação do novo, para a transformação de si e do outro que juntos podem agir pela “esperança”, ação provocadora de novas possibilidades. Liberali (2020, p. 15), em consonância com as ideias de Freire, defende que é na imersão e na compreensão do viver “que nossas limitações e potencialidades permitem a análise mais crítica do que sabemos e podemos realizar de concreto”. Para a redescoberta e para o inédito viável, Liberali reflete:
Nossa resposta ao mundo, neste momento, prescinde de criar bases para ir além de nós mesmos e de nossas limitações, sem jamais desprezar as forças que atuam na contramão de nosso fazer: sem ingenuidade de pensar que temos o poder ilimitado de dar conta de todo o caos que vivemos, mas com a energia criativa para pensar em formas e arranjos que nos levem além do que já foi experimentado (LIBERALI, 2020, p. 14).
Neste artigo, objetivamos mostrar nossa resposta ao mundo para ir além de nós mesmos neste tempo de pandemia. Como educadores, criamos o inédito viável na vivência de um sarau virtual, na plataforma digital Zoom, em 06 de junho de 2020. A fim de refletir sobre como esse encontro ocorreu e como, entre brincadeiras, versos e risos, o inédito viável, isto é, a criação de um novo modo de viver um sarau, oportunizou a redescoberta da vida e da esperança. Antes de abordar o desenrolar do sarau virtual, contextualizamos como nasceu a ideia de organizar esse encontro poético.
1. Por trás do Sarau Virtual
Relatar o que esteve por trás do sarau virtual, descrito neste artigo, é relembrar momentos de criação do inédito viável vivido pelo Grupo de Pesquisa Linguagem em Atividades no Contexto Escolar (GP LACE)3 em um findado Programa Digitmed (2013-2019) e na fundação da Global Play Brigade (GPB), que têm em comum, respectivamente, a coordenação e co-fundação de Fernanda Liberali.
O LACE é um grupo de pesquisa e extensão que reúne profissionais nacionais e internacionais de diferentes áreas de conhecimento e segmentos da Educação. Com abordagem sócio-histórico-cultural, esse grupo sempre desenvolveu pesquisas voltadas para as demandas sociais para repensar modos de estar, ser e agir no mundo a partir de pesquisas crítico-colaborativas em que todos são cocriadores das soluções dos problemas para transformação social. Nessa direção, de acordo com Vendramini-Zanella et al. (2021, p. 9), a atuação do LACE não se limita a estudos de conceitos, porém “avança por lugares sociais, históricos, culturais, econômicos e políticos, a fim de romper com as injustiças sociais” que circundam os contextos escolares.
Nesse sentido, o grupo de pesquisa segue a premissa freiriana de aderência, adaptação, intervenção e inserção no mundo, que compreende a esperança como um aspecto da experiência humana, uma forma radical de ser uma presença atuante na sociedade (FREIRE, 2000). Com essa perspectiva política, o LACE tem atuado junto a diferentes escolas da educação básica em muitos projetos.
Mencionamos aqui o Programa Digitmed que, devido à pandemia, teve suas atividades suspensas próximo ao primeiro encontro em março de 2020, quando foi decretado o isolamento e distanciamento social por causa do início do surto da Covid-19 no Brasil. O Digitmed reunia pesquisadores, gestores, docentes e estudantes de escolas públicas e privadas em encontros mensais presenciais na PUC-SP e aspirava à formação de formadores. Por meio de ações desencapsuladoras e vivências significativas, buscava junto com os participantes o desenvolvimento de mobilidade e de repertórios para viver, sentir, pensar e agir em contextos sociais de crise (LIBERALI, 2020, 2021, no prelo; PEREIRA, 2019; AMARAL, 2018; CARVALHO, 2018; MANZATI, 2018; MANJA, 2018; TELES, 2018; SOUSA SILVA, 2017; DAMIANOVIC et al., 2016; OLIVEIRA, 2016).
Diante da pandemia, a coordenadora Fernanda Liberali buscou por novos modos de criar espaços que possibilitassem ações desencapsuladoras como as vividas presencialmente no Programa Digitmed (LIBERALI, 2020). Nessa direção, Liberali, junto com outros ativistas sociais ao redor do mundo, fundou a Global Play Brigade, em março de 2020, como resposta às desigualdades sociais reforçadas pela pandemia mundial. O objetivo do grupo era desenvolver formas coletivas e virtuais de interação entre os participantes que promovessem novas possibilidades de agir no mundo.
A partir dessa iniciativa, Fernanda Liberali mobilizou os integrantes do GP LACE para juntos criarem o Projeto Brincadas que, no ano de 2020, se subdividia em: Brincada de Apoio, Brincada de Educação, Brincada do Brincar, Brincada de Gestores, Brincada do Ouvir4 a fim de atender algumas demandas econômicas, sociais, cognitivas e emocionais (MODESTO-SARRA, DIEGUES, TISO, 2021, no prelo; DIEGUES, MODESTO-SARRA, TISO, 2021; LIBERALI, 2020; BARTHOLO; MODESTO-SARRA, 2020). Neste artigo, apresentamos um sarau organizado pela Brincada do Brincar.
Os encontros mensais da Brincada do Brincar reuniram pessoas de todas as idades com o objetivo de desenvolver um espaço virtual de acolhimento, brincadeiras e improvisações. Os encontros, via Zoom, visavam mostrar como o brincar e o inédito viável podem ser atrelados para repensar as práticas virtuais com situações pensadas para serem vividas somente fisicamente, como, por exemplo, o sarau, descrito e discutido na sequência.
2. O sarau virtual
O sarau virtual foi organizado com o intuito de criar um espaço colaborativo onde as pessoas pudessem vivenciar essa atividade concretamente, isto é, produzir expressões artísticas, entrelaçando suas experiências com a dos outros, a fim de ressignificá-las no contexto pandêmico. Sendo assim, o sarau buscou desenvolver situações nas quais os sujeitos pudessem atuar e interagir como se estivessem vivenciando acontecimentos reais. Essa prática está pautada na concepção de sujeito como um ser social com necessidades, interesses individuais e coletivos em função do momento sócio-histórico-cultural no qual vive (VYGOTSKY, 1933/1991).
Essa é uma prática de imersão na realidade histórica, a qual, segundo Paulo Freire (2014), os sujeitos não conseguiriam pensar somente por estudo de conceitos. Entretanto, quando imersos em uma cultura e na interação com as pessoas ao redor, desenvolvem-se e superam situações-limites. Aprendizagem essa com função social e política para que o conhecimento apropriado sirva como repertório no mundo social atual. Nessa direção, no sarau virtual, os participantes foram convidados a se envolverem nas brincadeiras propostas de forma que todos se sentissem à vontade para brincar e criar juntos novas possibilidades. Esse tipo de movimento constrói a “confiança”, que, segundo Freire (1970/1987, p. 57), “vai fazendo os sujeitos dialógicos cada vez mais companheiros na pronúncia do mundo”.
Na abertura do encontro, os inscritos foram recebidos na plataforma Zoom ao som da Ode à Alegria de Beethoven5 para que, ao entrarem na chamada, encontrassem um ambiente de sarau. A escolha por essa música se deu pelo fato de ser uma canção clássica, alegre, conhecida e, principalmente, por ser uma “ode”, gênero poético que seria produzido coletivamente ao final do encontro.
Em seguida, foram dadas as boas-vindas e algumas instruções sobre as configurações da plataforma Zoom como: uso de câmeras e microfones; uso do “Pin” para que os surdos pudessem ver os intérpretes de Libras; localização e uso das legendas com acesso à tradução para os estrangeiros. Após isso, os inscritos foram informados das regras do brincar: aceitar e realizar as brincadeiras de forma que todos se sentissem bem em brincar.
Depois disso, foram propostas três brincadeiras com a intenção de promover a produção de poemas e de uma ode colaborativa com todos os participantes. A primeira, intitulada "Minha máscara", consistia em fazer uma máscara com as mãos sobre o rosto; a segunda, denominada "Rir é mais forte que o vírus", intencionava que os participantes rissem das máscaras dos companheiros de tela; na terceira, "Pela minha janela", os participantes foram orientados para que dramatizassem uma situação que, ao olhar pela janela, sorrissem para o que se poderia ver através dela.
O foco no “riso” pode parecer contraditório nesta época de pandemia, porém, conforme já mencionado anteriormente, é preciso ressignificar situações-limites a fim de superá-las na criação do inédito viável. Um instrumento para isso é o riso que, interligado à dimensão dos afetos, torna o sujeito em um ser alegre mais potente. Essa potência abre caminhos para a libertação da opressão deste tempo de crise. No sarau virtual, essa liberdade foi buscada coletivamente, afinal, nenhuma brincadeira era sobre “brincar sozinho”. Assim, o riso colaborativo pode ser compreendido como “um ato de amor”, “um ato de coragem” (FREIRE, 1970/1987, p. 51), de compromisso não apenas com a alegria própria, mas com a alegria do outro.
Nesse movimento dialógico, a Brincada do Brincar recriou o costumeiro sarau presencial em uma nova realidade por meio de brincadeiras (VYGOTSKY, 1933/1991) e performances (HOLZMAN, 2009), nas quais os sujeitos puderam atuar de diferentes maneiras, permitindo novas possibilidades. Com base em Vygotsky (1933/1991), podemos compreender o brincar como um dos fatores primordiais para o desenvolvimento humano, pois, por meio da vivência de uma situação imaginária, os sujeitos podem se tornar aquilo que ainda não são, mas que podem vir a ser. Por meio de brincadeiras, o sujeito se liberta das coerções situacionais à medida que compartilha novos sentidos e significados. De acordo com Freire (2000), é na ação-reflexão que o homem assume um posicionamento epistemológico, ou seja, pensa e age criticamente.
Dessa forma, consideramos que o brincar possibilita que os sujeitos criem novas situações, reorganizem o cenário, experimentem algo novo, se expressem de formas variadas, se coloquem no lugar do outro e enxerguem o mundo de diferentes perspectivas.
Mediante essa noção de brincar, compreendemos que os sujeitos têm a possibilidade de “expressar-se e expressar o mundo, de criar e recriar, de decidir e de optar [...]” (FREIRE, 1970/1987, p. 49). A fim de garantir isso, após as brincadeiras iniciais, os participantes foram divididos em pequenos grupos em salas virtuais para produzirem um poema ou uma música ou um slam com os temas relacionados às brincadeiras anteriores: “Rir é mais forte que o vírus”, “Minha máscara” e “Pela minha janela”. Foram criados, assim, quatro grupos, cada um acompanhado por dois facilitadores que orientaram a produção.
Ao retornarem à sala principal do Zoom, cada grupo performou sua produção. A fim de garantir a experiência de apreciação e escuta da arte poética no sarau, combinamos que somente as câmeras dos integrantes de cada grupo ficariam ligadas durante as performances de cada produção artística (FIGURA 1).
Na atitude estética de criação e declamação coletiva dos poemas, cada grupo recriou novos modos de viver um sarau. Desse modo, os participantes vivenciaram, conforme Redin (2010, p. 270), a criação “como um espaço de liberdade de escolha, de intervenção crítica e consciente de homens e mulheres no mundo” compartilhado da pandemia. Em um mundo de incerteza e morte, foi na coletividade que os participantes conseguiram romper com o distanciamento social e tristezas impostas pelo vírus da Covid-19. Somente nessa ruptura é que se enxergaram mais humanos ao contemplar a humanização do outro lado da tela do Zoom. Foi, assim, o ato de poetizar coletivamente a vida em um sarau virtual, um meio de garantir modos sensíveis de estar no mundo pandêmico pelo “envolvimento consciente com a realidade, na presença humanizante em todos os espaços que favorecem a vida” (REDIN, 2010, p. 276), ressignificando, assim, os modos de ser, estar e agir no mundo.
Após as performances dos poemas, foi perguntado aos participantes: “para que brincamos?”. Esse questionamento foi o disparador para a produção coletiva de uma ode, com a intenção de produzi-la a partir das respostas, que se transformariam em versos. Para tanto, cada participante recebeu um número com o qual renomeou seu perfil na plataforma Zoom e, com uma música de fundo, foram convidados a declamar seu verso na ordem estabelecida para compor a Ode ao Brincar6 (FIGURA 2).
Podemos afirmar que a Ode ao Brincar foi produzida de forma colaborativa, porque todos os partícipes se empenharam a executar as propostas de forma a alcançar um objetivo comum a todos, pois, conforme aponta Freire (1970/1987), o eu dialógico se constrói em colaboração e atuação para um pensar sobre a realidade e poder transformá-la.
O evento foi encerrado ao som da canção “Resistiré 2020”7. Essa versão foi produzida pela rádio espanhola Cadena 1008, que reuniu 50 artistas, entre músicos e cantores, que gravaram trechos da canção desde suas casas com o objetivo de arrecadar fundos para combater a crise sanitária. Essa canção foi escolhida para encerrar o sarau, porque remete a ideia de que se agirmos e lutarmos em conjunto podemos superar situações-limite, como a crise causada pelo coronavírus.
Considerações Finais
Viver um sarau virtual em meio a pandemia nos mostra que o inédito viável de Freire é possível, pois nos proporcionou uma vivência na “fronteira entre o ser e o nada, mas [dentro] da fronteira entre o ser e o ser mais” (FREIRE, 1970/1987, p. 106). Assim, planejar esse encontro em meio a pandemia da Covid-19, nos fez refletir sobre o que sabíamos sobre sarau presencial, que, naquele momento de isolamento e distanciamento social, seria o nosso nada, pois não seria possível realizar um sarau sem interações presenciais. Entretanto, em vez de desistirmos da proposta, olhamos para o que era conhecido e vivenciado a fim de imaginar como ir além disso.
Vivemos na ação do esperançar freireano, de criar modos de agir no mundo. Na esperança que precisa se sustentar na prática, como uma necessidade ontológica e, assim, se concretizar nas nossas vivências, nas nossas histórias, conforme postula Freire (2014, p. 5), “não há esperança na pura espera, nem tampouco se alcança o que se espera na espera pura, que vira, assim, espera vã”.
Esperançamos que este artigo possa inspirar seus leitores para criarem possibilidades de viver situações nas quais todos os envolvidos experimentem novos modos de agir na busca da transformação de uma sociedade justa e equânime.