INTRODUÇÃO
É difícil perder-se. É tão difícil que, provavelmente, arrumarei depressa um modo de me achar, mesmo que achar-me seja de novo a mentira de que vivo. (...) Como é que se explica que o meu maior medo seja exatamente em relação: a ser? E, no entanto, não há outro caminho. (...)
Já que tenho de salvar o dia de amanhã, já que tenho que ter uma forma porque não sinto força de ficar desorganizada, já que fatalmente precisarei enquadrar a monstruosa carne infinita e cortá-la em pedaços assimiláveis pelo tamanho de minha boca e pelo tamanho da visão de meus olhos, já que fatalmente sucumbiria à necessidade de forma que vem de meu pavor de ficar indelimitada - então, que pelo menos eu tenha a coragem de deixar que essa forma se forme sozinha, como uma crosta que, por si mesma, endurece, a nebulosa de fogo que esfria em terra. E que eu tenha a grande coragem de resistir à tentação de inventar uma forma. Clarice Lispector (2019, p. 10-13).
A demanda de, para habitar o mundo, o trabalho e a educação, existir-se enquadrado em uma forma - como bem disserta Clarice Lispector (2019) no início de seu romance A Paixão Segundo G.H. -, movimenta muitos processos de constituição subjetiva. Dentro da educação formal e do trabalho docente, alguns momentos podem marcar intensamente essas situações, como as (primeiras) experiências dentro de sala de aula e uma pós-graduação. É a partir desse cenário que este trabalho insurge: o que emerge entre a formação acadêmica stricto sensu e o (re)começo nas salas de aula - espaços de produção, atualização e potencial desconstrução de tantas formas e fôrmas - por meio do trabalho professoral.
Quantos afetos atravessam a formação inicial docente, intenso território de produção de si? Quais deles seguem reverberando na contínua preparação para o exercício no magistério? O que, de fato, abre-se de portas a partir da pós-graduação stricto sensu aos exercícios no tão falado chão da escola? Como a experimentação em sala de aula mostra quão (des)preparado se está para o ser-estar-fazer-se professor? Existiria, por fim, um estar pronto para atuar nos espaços educativos? De que maneiras é possível se animar, encantar e alegrar com as travessias que se mostram inevitáveis para potencializar o exercício professoral, em devir, nos movimentos e nas poéticas que se fazem a partir dos estranhamentos e experimentações possíveis?
Como possibilidade de mapear alguns desses afetos engendrados entre o formar-se e o ser professor - processos contínuos que se entrelaçam -, busca-se, neste trabalho, percorrer os atravessamentos que permeiam a vida de um jovem pesquisador no campo da educação e professor de ciências da natureza. Para tal, utiliza-se a cartografia1 como bússola teórico-metodológica para a feitura destas escrituras. Imbrica-se, em terceira pessoa, a partir de um narrador que acompanha tudo bem de perto e, ao mesmo tempo, com certa distância, observa o cartógrafo2 em suas experimentações e estranhamentos, estando atento aos acontecimentos3 que ocorreram em um período relativamente curto, de cerca de um mês e meio, porém intenso de sua vida: o fim da pósgraduação stricto sensu na modalidade de doutorado em Educação, bem como o início - ou recomeço - da vida docente no espaço escolar. Alguns dias de escrita percorrem toda uma existência em (re)invenção.
Os múltiplos encontros entre corpo, leituras, pesquisas, aulas, currículos, e… e… e…4 foram imbricando-se nas escritas. Buscando não perder, nas cartografias, a fluidez necessária à sua vazão, muitas das ferramentas conceituais5 aqui mobilizadas foram citadas a título de notas de rodapé, não pela sua menor importância, mas pela emergência de letras-palavras-frases que fluíram e fruíram entre cartógrafo e narrador.
Em decorrência das linhas aqui engendradas serem produzidas em meio6 aos acontecimentos, em processos, não estão prontas, são feitas em movimentos através das cartografias de paisagens psicossociais, em territórios de existência e educação, pelo devir7. Poéticas de vida e registros cartográficos - ambos aqui materializados em palavras - vão surgindo, emergindo, ganhando velocidades necessárias, visto que escrever deve produzir velocidade (DELEUZE, PARNET, 1998, p. 27). Acompanhar tais movimentos é pegar carona com os fluxos de formação-vida, em travessias8 que se fazem em poéticas entre estranhamentos e experimentações de uma antiga nova existência.
TRAVESSIAS. ESTRANHAMENTOS. EXPERIMENTAÇÕES
Mudanças, deslocamentos, intensidades. Travessias entre-espaços, i-migrações. “A travessia é o lugar da incerteza, da não evidência, do estranho. E isso não é uma fraqueza, é uma potência” (PRECIADO, 2020, p. 32). Inspirado no filósofo Paul B. Preciado, o cartógrafo vislumbra - em suas andanças no tempo e no espaço que percorre - diferentes territórios. Em seus trajetos, também forja, para si, os seus territórios, nos múltiplos encontros que faz e que também o fazem.
O que pode um corpo aprender pelo que acontece? Que espaços se abrem às experiências9 que lhe passam (LARROSA, 2011)? Foram décadas - ou, quiçá, uma vida toda - voltadas à formação, começando antes da fecundação, percorrendo os desenvolvimentos embriológicos, o nascimento biológico-subjetivo e as aprendizagens imbricadas pelos encontros com outros humanos e não humanos, atravessando uma longa escolarização que tanto marca10 os seus passageiros, seguindo nos cinco anos de graduação em Ciências Biológicas divididos em licenciatura e bacharelado e, sem pausa, migrando - ou melhor, saltando de paraquedas - na pósgraduação em Educação. Após tanto tempo, sobretudo o dedicado à academia, sendo dois anos no mestrado e outros quase três no doutorado, percebe-se que já é hora de preparar as ferramentas necessárias para uma nova imersão em outros campos - ou, talvez, atualizando os territórios habitados -, percorrendo velhas estradas já intensivamente atravessadas na escolarização, na graduação e brevemente após a conclusão da licenciatura, mas agora de novas maneiras.
No meio do doutorado, reconheceu que aquele processo não teria fim: seria contínuo, já que o cartógrafo fora iniciado no universo das leituras, pesquisas e escritas no campo da Educação: caminho sem volta, ponto de não retorno. As leituras das filosofias da diferença11 o animavam, mobilizando questões de vida na percepção do que acontecia e se aprendia nos encontros12. O desejo pelos estudos o movimentou aceleradamente e percebeu, desse modo, que era hora de fechar os pontos da pós-graduação, visto que, mesmo que tais movimentos continuassem imbricados nele por dentro, em seu corpo, um diploma poderia ser interessante, como também a possibilidade de se dedicar mais a outras questões.
Com o título de doutor, apesar de escassas vagas disponíveis em instituições públicas de ensino superior e a cômica perda de prestígio ocorrida nos últimos anos, seria possível prestar alguns processos seletivos em específico, receber, talvez, um pouco mais pelas horas ministradas de aulas em algumas escolas e - quem diria! - até submeter textos de autoria individual em revistas acadêmicas bem qualificadas que exigiam o doutorado para compor em suas publicações, deixando, quem sabe, de lado certa tutela cobrada em alguns espaços pela obrigação de coautoria com os já iniciados pela defesa de uma tese de doutorado. Pensando assim, não seria tão ruim terminar esta etapa com celeridade e, dessa forma, o cartógrafo o fez.
Desse modo, aceleram-se os preparativos finais e o cartógrafo defende em menos de três anos tal etapa formativa. Nos últimos meses, chegaram-lhe algumas surpresas: a convocação para lecionar em duas escolas públicas, no período de manhã, tarde e noite. Recebeu tais notícias com, sobretudo, muita alegria: era bolsista e a iminência de perder a fonte de renda o assustava desde o início do mestrado. Também sentia que era hora de buscar outros caminhos, de alçar voos. Já que a academia o havia dado régua e compasso, então aquele abraço13. Agora, poderia aventurar-se em outros territórios com segurança: estaria empregado e exercendo o que se formou para fazer: dar aulas de ciências da natureza, formar pessoas, educar.
No entanto, lançar-se ao mundo não era romper com os laços de pensamento e vida tecidos ao longo de tanto tempo dedicado à academia. Lá, encontrara fontes para imersões intensivas e extensivas. Desejava, então, permanecer conectado a tudo que lá habitasse que fosse possível de ser permeado no seu tempo fora do trabalho. Nessas possibilidades, o cartógrafo sente, além da alegria, o medo: as mudanças iminentes o atravessariam de formas que não saberia ainda como, mas poderia prever que seria rico e cansativo. Cerca de trinta e três horas dentro de sala de aula, fora reuniões, planejamentos e deslocamentos, lecionando para diferentes etapas da Educação Básica, dedicando-se à disciplina escolar de ciências da natureza, não é para qualquer um. E, ainda assim, desejava seguir estudando e escrevendo?! Que desafio!!! Mas é para isso que viera ao mundo, sentia. Pegou, então, a sua caixa de ferramentas (FOUCAULT, DELEUZE, 2019) e tudo que lá habitava de potência de porvires, e lançou-se à travessia.
Conhecendo espaços, constituindo territórios
O cartógrafo, assustado e, ainda, meio de surpresa, escolhe os espaços a atravessar. Mais do que percorrer as escolas, irá habitá-las, portanto não foram decisões quaisquer. As opções eram muitas, mas conciliá-las não foi tarefa fácil. Deu certo, sente ele, após dias de ansiedade. As angústias das decisões iniciais dão espaço para outras que também seguem tirando-lhe o sono: finalizar a pós-graduação, seguir estudando, o desejo de continuar escrevendo, o medo do que lhe espera nos empregos, a insegurança de ser um jovem pesquisador e professor. A insônia - sua já velha conhecida - o acompanha durante esses intensos percursos. Em meio a isso tudo, está também uma esperança ativa, feito o verbo esperançar, aos modos freireanos, de que tais deslocamentos possam instigá-lo a ser outro e que a sua existência por vir possa-lhe servir mais do que os modos de ser com os quais estava habituado.
A verdade é que ele está cansado de ficar enfurnado dentro de casa, lendo e escrevendo cerca de 12 horas por dia, sem férias, muito menos pausas nos finais de semana, fins de ano e feriados. Se um dia conseguir se aposentar, o tempo intensamente dedicado à pós-graduação não contará. Mais exaustivo do que isso é o não reconhecimento de seu exercício laboral, tão trabalhoso, como, de fato, um trabalho. Encontra essas problemáticas tanto na instituição acadêmica, na provedora do auxílio que intitulam de bolsa - mesmo que, na prática, seja o seu salário que, aos muitos custos, também com ajudas de parentes, paga as suas contas -, quanto dos demais cidadãos não acadêmicos. Percebe também que seus colegas pós-graduandos, em muitos momentos, caem nas ladainhas de que pesquisar não é um trabalho e repetem coisas como só estudar é fácil demais, sobretudo os que não podem se dedicar exclusivamente para tal ofício. Tudo isso lhe cansa e aumenta o desejo de expandir os territórios de existência, feito um artrópode que, na ecdise, sai das cascas que já não lhe cabem mais.
Talvez, adequar-se aos regimes de trabalho em um emprego formal, mais definidos em legislações e horários fechados, possa lhe dar espaços para respirar. Também sabe que, na prática, trabalhará além das horas lá registradas - demandando certa expertise na gestão do período laboral. Deslocamentos, planejamentos, preenchimento de diários, pensamentos, execuções: horas, horas e mais horas extraclasse, jamais computadas no espaço-tempo conferido para tal. As distâncias entre casa e escolas lhe angustiam. Sabe que gastará bastante tempo e dinheiro nas suas idas e vindas. Acostumara-se à paradoxal tranquilidade de realizar a grande maioria de suas demandas em casa, sobretudo com a emergência da pandemia de covid-19 e com a transposição das atividades acadêmicas às modalidades remotas. Assim, os deslocamentos serão também modos de lidar com a vida e com o tempo. Recorda-se, dessa maneira, das metamorfoses14 que Emanuele Coccia (2020) defende como formas de estar no mundo, permeadas de deslocamentos, derivas e migrações.
Em decorrência de estar há dois anos e meio distante das salas de aula, sente, naquele momento, que a sua caixa de ferramentas da docência está vazia. Na verdade, tem algumas do passado, mas não se sabe o quanto elas cabem e serão úteis nesses territórios a serem percorridos. Talvez, tal espaço que se mostra vazio seja justamente o ninho que abriga a potência dos começos: múltiplas possibilidades, caminhos a se construir. Ele sente medo, sim. Sobretudo, no início. Perde noites de sono, acredita que não dará conta. Em alguns momentos, é também permeado por certa empolgação contagiante: um desafio, um mundo por vir. Se anima pelos encontros que acontecerão: sente-se muito sozinho no trabalho de casa e anseia, desse modo, pelos contatos nas aulas, pelas relações amistosas nas salas de professores, pelas tantas aprendizagens e ensinagens em vias de serem mobilizadas. Também se instiga pela possibilidade de trabalhar em tempos de altos índices de desemprego e crise econômica em seu país. Mal sabe o que lhe aguarda: está tudo em aberto.
Em decorrência das opções disponíveis de escolhas e da dificuldade de conciliar horários, consegue apenas escolas bem distantes de sua casa. Logo de cara, sente-se angustiado pelos quilômetros que o separam delas e uma da outra. A ansiedade aumenta por não conhecer tais espaços nos quais estas se localizam. Como possibilidade de lidar com essas questões, cata-se algumas ferramentas de contato social e sai em direção ao descobrimento de tais territórios. De ônibus, até a primeira, gasta em torno de uma hora e quinze minutos. Calcula que terá que sair de casa antes das seis da manhã para lá lecionar às sete. Da primeira à segunda, vai em uma hora e dez minutos. Tranquiliza-se por perceber que dará tempo de correr de uma à outra na uma hora e trinta minutos que terá entre o primeiro e o segundo turnos, mas será corrido. Terá que aproveitar bem o tempo: ler, comer, se deslocar, preparar aulas, viver. Sabe que inesperados habitam também nas relações: talvez consiga caronas estratégicas. Vislumbra, naquele momento, a possibilidade de ter um carro, algo que facilitará muito. Novamente, repito: tudo está em aberto.
Ao conhecer os bairros das escolas, sente as diferenças com o seu. Tenta evitar as comparações, tarefas pouco potentes, focando em apenas deixar o seu corpo vibrátil (ROLNIK, 2016) permeável ao que lhe atravessa. Recorda-se das suas derivas por São Paulo, sobretudo nas primeiras vezes em que se defrontava com a imensidão da selva de concreto materializada pelo centro urbano. Caetano Veloso, na música Sampa, traduziu muito da sua experiência de atravessamentos territoriais: “E quem vem de um outro sonho feliz de cidade, aprende depressa a chamar-te de realidade. Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso”. Nos diferentes espaços, vislumbra modos outros de viver, que se conectam na densa trama da cidade de porte médio que habita. Nesses bairros outros, sabe ele que fará também morada: serão as suas rotas diárias, criará lá relações de vida e afetos - fora os mais de trinta quilômetros diários de deslocamento.
O TEMPO
Dinâmica da vida adulta
O tempo
Será que vai dar?
Saio daqui
Corro para ali
Como, se der tempo
Como se desse tempo
Aproveito o deslocamento
O movimento
A passagem
Para o que não teve espaço
Respiro
Suspiro
Sinto
E sigo
MOVIMENTO
Os carros
Os ônibus
As vias
As distâncias
As necessidades
Trajetos
Demanda-se estar
E, para estar, é preciso ir
Então, eu vou
Quem tem boca, vai à Roma Quem tem pé, vai longe até
E quem tem fé, vai onde quiser?
Que fé será a minha agora?
O que cultivarei nestes novos caminhos?
Esperança? Desejo? Vida?
Educação?
Crescimento, formação
Minha, nossa
Resistência, com jogo de cintura Para ir, tem que ir E bora lá!
Sonho e solidão
Aperto no peito
Tensão
Percepção da vida
Em movimento
Reconhecimento da solidão
Que habita em mim
No outro
Nos fluxos
Nos sonhos
Seguir
Criar um porvir
Caminhar na direção
Remar na contramão
Sonhar
Esperançar
Educar
Encontrar
Ver a solidão
Que povoa o coletivo
Reconhecer a multiplicidade
Que habita no estar sozinho
Escutar a canção
Que toca o coração
Achar razão
Onde parece vão
O PRIMEIRO, OU SÓ MAIS UM DIA
Após uma noite agitada de muita insônia, em uma manhã cheia de atividades - porém, permeada pela sensação de pouco se ter feito -, arruma-se a caixa de ferramentas da docência e parte-se à escola para, pela primeira vez, nessa nova experiência, atuar lá como professor. Na noite anterior, certo arrependimento de não adiar um pouco mais esse período permeou o cartógrafo. Mas já firmou o seu compromisso com a instituição e os seres lá presentes, então, é hora de honrar a sua palavra e usar a sua voz, coisa que, mesmo com medo, reconhece que sabe tão bem fazer.
Decide que, neste momento, irá de carro por meio de viagens compartilhadas em aplicativos - e amanhã, ninguém sabe. Percebe que não sairá tão caro e permitirá que viabilize o seu tempo para dedicar-se aos estudos - inclusive nos trajetos. No trânsito caótico, tenta acalmarse e senti-lo com leveza, mas as buzinas e a imensa quantidade de caminhões que permeiam os quase dez quilômetros de distância o atordoam e assustam. É hora de ter coragem. Ele já tem, resta seguir mobilizando-a.
POSFÁCIO, OU APRENDENDO A CHAMAR DE REALIDADE
A música Sampa, de Caetano Veloso, esteve presente na mente do cartógrafo antes, durante e depois dos cinco horários de trabalho seguidos. Sair do seu sonho feliz de cidade, como pósgraduando que se dedicava integralmente aos estudos e pesquisas - que insiste em afirmá-los como trabalhos -, residindo em um bairro universitário de classe média e, ao deslocar para uma escola pública periférica, encontra-se de frente com múltiplas realidades outras à sua. Também depara-se com um dia escolar qualquer.
Sobre a (in)disciplina nas salas de aula, nos pátios e nos corpos estudantis, chega a apostar que, disciplinar os corpos, como bem dissertou Foucault (1999) acerca das vigílias e punições, é um dos maiores investimentos daquele espaço. Trabalhar como professor, reflete ele, é também servir a isso. Entende que certa dose de controle talvez seja necessária para conviver em sociedade, na medida em que questiona se outros modos de vida coletiva seriam possíveis. Pensa, assim, em que brechas pode incidir aqui, lá, agora e amanhã. Sente que muito do desconforto - seu e de colegas - com os ingovernáveis corpos juvenis que habitam as escolas seja também uma relutância em perceber a realidade na qual tais vidas se situam: social, cultural, subjetiva, etária, afectiva e… e… e… conflitos geracionais e de configurações de vida, atritos entre poder e resistência, pois, como bem ensinou Foucault (2013, p. 105), “[...]onde há poder há resistência”.
Nada como um dia após o outro, pensa. Mas sente que aquilo tudo é muito intenso para, ao se tornar futuramente como cotidiano, ser também banal. Os olhares dos estudantes perante ele, os questionamentos, as provocações, também os tensionamentos, os atritos, a vontade de olhar com cuidado para as tantas carências que lá habitam. Nesse ponto, o cartógrafo chega a se aproximar um pouco mais das leituras psicanalíticas lacanianas que vinha fazendo naquele momento de Ana Suy (2022). Sobretudo, com as questões do desejo como falta. Talvez, muito nos falte - ora questiona e ora aceita essa afirmação. Lembra de uma amiga psicanalista que conta de uma aula em que uma professora explicou que a falta, nessa perspectiva, é como o espaço que permite o deslocamento e a produção de vida. Bem, assim ele entendera. Como bom leitor de Deleuze, Guattari, Foucault, Rolnik e… tenta trair tais perspectivas e rizomá-las a todo momento com as outras que tem em sua caixa de ferramentas promíscua e contagiosa.
Porém, no ônibus, retornando para casa, chora um pouco. Foi muita emoção. Vontade de sair correndo, de fazer outra coisa. Muitos olhares, muita exposição. Em devir-criança, sente-se acuado. Havia se esquecido da intensidade desses encontros que acontecem nas salas de aula. Ser professor é estar aberto ao outro, frágil e, ainda sim, ser autoridade - e não autoritário, como ensinou Paulo Freire. No entanto, onde reside aí o espaço para “[...]ter a força de estar à altura de sua fraqueza, ao invés de permanecer na fraqueza de cultivar apenas a força?” (PELBART, 2016, p. 32). Como um professor, pode também ser sensível, mostrar-se permeável ao outro, afetável? Ou melhor, reformulando tal questionamento… que diachos estão fazendo nessa profissão os que se fecham aos atravessamentos com o outro? Eita, que empreitada é essa de seguir afirmando o corpo vibrátil (ROLNIK, 2016) em espaços escolares?!
Algumas cenas o marcaram. O cheiro dos corpos na sala; o primeiro estudante com deficiência que soube que estava em uma aula sua e o pensamento inicial - depois reformulado - de que pouco poderia ofertar em sua formação; a aluna em crise deitada na sala da supervisão; o professor que soubera, durante o intervalo, que uma pessoa da família estava internada, à beira da morte e, após um rápido choro silencioso e poucas palavras de colegas, foi novamente cumprir o seu trabalho docente. Também o acolhimento da direção e de outra professora com a sua necessidade de trocar um horário de uma semana para cumprir atividades acadêmicas; o abraço de um aluno nele que, sem saber reagir, evitou; o sabor da merenda que o preenche com a força e o desejo necessário para seguir; a solicitação de outre alune15 de ainda doze anos que, com nome de registro feminino, pede que o chame por um - para os colegas - apelido, que é, na verdade, o nome social; e, mesmo com as vontades (efêmeras e passageiras) de nunca mais voltar para uma sala de aula e as percepções de que suas atividades iniciais não deram tão certo, segue com a sensação de que conseguiu fazer algo, bem como que aquilo não é em vão.
Chorou no ônibus rapidamente por tantos atravessamentos. Foi demais. Lembrou dos planos que deram certo, dos que jamais sonhara tanto, mas que, ao se apresentarem, desapareceram. Dos inesperados que reviraram a sua vida de cabeça para baixo. A defesa da tese de doutorado já será semana que vem, precisa finalizar - ou melhor, começar - a sua apresentação a ser mostrada no grupo de pesquisa antes do dia oficial, tem que estudar tantas coisas para vislumbrar caminhos por vir. Enfim, os começos. Quão intensos são. E, paradoxalmente, apenas mais um dia. Intenso, mas jamais banal.
PRONTO
Antigos caminhos
Novas ferramentas
Nada prontas
Em vias de feitura
Compondo
Com pontos
Nós
Tricotando vidas Coexistências
Atritos, comunhões
Curiosidades, descobertas
Desbravamentos, uniões
Força coletiva
Potência dos encontros
Entre as incertezas
A desconfiança
A insegurança
Medo do futuro
Na vida
Lidar com a fragilidade
Com a incompletude
Com o movimento
Ver, sobretudo, a vida
Que habita em nós
E se faz, agora
ESTRANHO FAMILIAR
Letras feias nos cadernos
Letras feias no quadro
Letras minhas
Letras deles Letras nossas Letras… palavras.
Escrevendo vidas
Cortando espaços
Traçando mapas
Cadernos horríveis O meu também?
Reconhecimento
No abismo dos caprichos
Indisciplinas (i)letradas
Nas necessidades benfeitoras
Rotas desviantes
Nas futilidades sem fim
Quadros e cadernos insubmissos
Riscos, rabiscos
No esquisito, conforto
Fantasia do qualquer jeito
Estéticas anômalas
Esquizas
Indomesticáveis
Ou em vias de…
Brecha para escapes
Linhas de fuga
Desviando da beleza
Há tanto a ser feito
E muitos caminhos de ser
MAIS UM DIA
Passou-se o segundo dia de (re)começo na docência e um cansaço toma o cartógrafo, porém, menor que os tantos afetamentos advindos do primeiro. São muitos atravessamentos que seguem pulsando em seu corpo vibrátil. O caos da escola, as tantas turmas que, cada uma ao seu modo, se apresentam diferentes, o reencontro com os conteúdos das ciências da natureza, a sala dos professores, as conversas, as burocracias, os diários, as falas, as escutas e… e… e… em alguns momentos, sente-se prestes a explodir, já em outros, que está preenchido com tamanha energia que tanto sentia falta. Algo entre cansaço e paixão, desejo, explosão.
“Ser professor é estar exposto e (tentar) manter uma postura de autoridade mesmo assim”, constata o cartógrafo para si e em relatos para amigas. Tamanha percepção de exposição16 - algo próximo de uma nudez ao estar frente a um grupo e ter que assumir o papel de maestro, instaurando formas e fôrmas, ou, quiçá, abrindo brechas para a sua dissolução - talvez se dê também em decorrência de ter passado um grande período dentro de sua casa, confortável, protegido e, naquele momento, ter que se abrir ao mundo, à cidade, aos quilômetros de deslocamento, aos olhares dos colegas e dos estudantes. “Como é cansativo estar tão exposto aos outros e aos acontecimentos inesperados que se fazem em uma aula”, sente intensamente em seu corpo professoral. São muitos encontros inusitados que se multiplicam. Sabia que seria dessa maneira, mas no ao vivo, na vivência carnalizada, é outra coisa. Experiências que o atravessam, que transpassam a sua vida-docência.
Na noite anterior, dormira bem. Estava exausto. Na seguinte ao segundo dia, também conseguiu descansar, mas sonhara com a escola, com os seus medos, com a sensação de ser um impostor e de que não daria conta do que tanto esperavam dele - quiçá, mais ainda do que ele mesmo desejava dar conta. Percebe que o tudo foge do possível e é necessário recalcular as rotas. Mas também se recorda das aulas que deu, sobretudo a última, para estudantes da modalidade de Educação de Jovens e Adultos (EJA), a qual sentiu ser a melhor. Nela, dialogou com a turma sobre as ciências da natureza e suas conexões com outros campos do conhecimento - exatas, humanidades e… -, em uma atenção e entrega horizontal sua e dos que lá com ele estavam consistindo em um genuíno acontecimento.
Ao terminar o dia de trabalho, seguiu refletindo no que havia lhe passado. Fora embora pensando em como transpor aquela experiência na EJA para as turmas em que a faixa etária estudantil circundava os onze e doze anos. Seria possível fazer aulas sentados em círculos com eles? Como proporcionar uma educação mais horizontal, de igual para igual, quando todos os sábios e experientes conselhos que lhe dão convergem para a direção de que é necessário manter-se firme, sério e rígido com os estudantes, sobretudo no início?
Agora, pode aguardar até a semana que vem para voltar às salas de aula, seguindo pensando nessas tantas questões. No entanto, ainda está imerso na finalização do doutorado e envolvido com múltiplos estudos, dos quais tenta sugar tudo o que conseguir para criar docências possíveis, mas que, paradoxalmente, não lhe permitem imergir completamente nas aulas. Nesse momento, entende as tantas queixas de sobrecarga e dificuldade de conciliar os afazeres de diversos colegas de pós-graduação que, diferente dele, não tiveram o privilégio/oportunidade/possibilidade de se dedicarem exclusivamente aos estudos e à pesquisa, e continuaram lecionando durante o mestrado e o doutorado. Assim, decide que buscará o que é possível (DELEUZE, 2013), a potência e as linhas de fuga (DELEUZE, GUATTARI, 2019) que habitam nos respiros pelos caminhos, pois é isso que lhe resta. O possível, para não sufocar…17
SAÍDAS
Mãos levantadas
Pedidos condicionados
Um por vez
Beber água após os recreios?
Ir ao banheiro
Corpos suplicando
Necessidades fisiológicas
Desejos de movimentos
A sala com suas grades
E o lá fora convidativo O que nos resta agora?
Bela indisciplina
Amarga aqui
Mas reluz no amanhã
Desde que bem direcionada
INGOVERNÁVEL
Na juventude que habita em mim
Encontro(me)
A juventude que habita o outro
Encontramo-nos
Na sala
A aula
Jovens
Diferentes
Um, autoridade
Outros, muitos
Todos têm o seu espaço de fala (?)
E querem exercê-lo
Uns mais que os outros
Encontrar o caminho do meio O que é possível
Eis o desafio
PENSAMENTO. TEMPO. PLANEJAMENTO
É domingo e o cartógrafo coloca-se a pensar na semana que passou e na que está na iminência de começar. Este dia do entre - nem final e nem começo - costuma deixá-lo introspectivo e reflexivo. Lembra da música dos Titãs que diz que “[...]domingo eu quero ver o domingo passar”18. Ele gostaria de ver o tempo passando devagar, mas precisa planejar as aulas da semana seguinte, estudar e executar algumas atividades. No começo da noite, também tira um tempo para escrever um pouco de alguns textos que quer submeter em revistas futuramente. Cazuza já dizia que o tempo não para19 e ele precisa seguir manejando bem as horas que têm, pois, antes que percebam, elas se esvaem.
A semana seguinte será intensa e extensa. Nela, até agora, já sabe que seguirá nas dezessete aulas nos períodos da tarde e noite, que dará seguimento nos trâmites para, em breve, iniciar o novo trabalho na escola da manhã, que participará de uma banca de Trabalho de Conclusão de Curso de graduação e que, na sexta-feira, defenderá o seu doutorado. Também quer continuar estudando: tem planos futuros. A iminência do fim da pós-graduação e a proximidade do título de doutor o assustam. O que aquilo mudará em sua vida? Será que, ao sair da academia, mesmo que momentaneamente, conseguirá continuar treinando o seu olhar para o questionamento e problematização do mundo? Como manter o seu corpo vibrátil para as cartografias de docênciapesquisa-vida que seguirão em curso nos trajetos por vir?
Na manhã do dia anterior, ao participar de um curso de extensão sobre o ensino de ciências e suas intercessões com questões contemporâneas, pergunta à professora20 que realizava a fala sobre como manter-se poroso aos estranhamentos do mundo e da educação ao sair da pósgraduação e migrar - ou melhor, retornar - à docência escolar. Ela, enfaticamente, o responde que o doutorado é um caminho sem volta na abertura para os questionamentos e problematizações, sobretudo para ele, que se aventurou nas leituras foucaultianas, deleuzianas e nas questões de corpo, gênero e sexualidade. Reflete que, realmente, o que vivera fora marcado em sua pele feito tatuagem21 - inclusive, materialmente, nas frases e desenhos que decidiu, ao longo do doutorado, grafar em sua epiderme.
Pela manhã deste dia, logo cedo, acordou preguiçosamente, mas levantou-se antes das oito horas e foi estudar. Das dez às doze horas planejou as primeiras aulas da semana e, depois, voltou às leituras, também sobre questões em torno do ensino e da aprendizagem. Percebe que está imerso da cabeça aos pés na educação. Parece que nunca foi tão nítido que a sua vida já é, há anos, dedicada à educação. “Que loucura”, pensa. De fato, nada está começando: ele já está no meio faz tempo. Perceber isso lhe dá segurança para seguir, porém, deseja não cair na naturalização das tantas questões que se apresentam como gritantes, das quais tira potentes reflexões e movimentações de pensamento. Talvez, futuramente, escreva mais sobre como manter o corpo vibrátil na docênciavida. Ele está aprendendo e mobilizar as palavras é também criar modos de existir. Quem sabe…
Por agora, vai finalizando o dia de estudos para cozinhar e assistir a live de aniversário22 de Caetano Veloso, artista que tanto admira. Já que “[...]cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”23 e “Amanhã está toda a esperança, por menor que pareça, existe e é pra vicejar. Amanhã, apesar de hoje, será a estrada que surge para se trilhar. Amanhã, mesmo que uns não queiram, será de outros que esperam ver o dia raiar…”24, lhe resta desfrutar dos últimos momentos de domingo, respirar e seguir. Sempre em frente, encarando os dilemas diários e desfrutando das aprendizagens possíveis nos encontros cotidianos, pois não se tem tempo a perder25.
O silêncio. O amanhã. A ressaca
No dia seguinte, será que alguém ressuscitou? Conviver com as mortes, os lutos e os fins já têm sido hábito na vida do cartógrafo. Também tem se familiarizado com os novos começos e as mudanças. São muitas as possibilidades.
Após mais uma semana de trabalho, na sexta-feira, finaliza-se uma intensa e extensa jornada: defende-se a tese de doutorado26 e caminha-se para a conclusão da pós-graduação stricto sensu. Depois de quase quatro horas de apresentações, pareceres, questionamentos e uma imensidade de afecções possíveis, o cartógrafo direciona-se a um bar próximo de sua casa, junto de colegas e amigos de pesquisa-vida, e de alguns familiares. “É dia de comemorar”, pensa.
Um certo vazio também o preenche. Vontade de chorar, sensação de não saber o que virá. Medo. Cansaço. Associa isso a algo próximo a uma depressão pós-parto, termo tão referido ao sofrimento vivido por gestantes após parirem. Pensa (e sente): “Ela nasceu!”. Também se aproxima do tal burnout, em referência aos sintomas patológicos de uma sobrecarga (de estresses e desgastes) de trabalho. Como foi difícil dar à luz a uma tese, como tem sido pesado conviver com tantas mudanças. Beber algumas cervejas mostra-se como caminho para se animar e recuperar as forças eivadas pelo dia exaustivo. Os abraços e as conversas sinceras preenchem ele de alegria. São reencontros com pessoas queridas na celebração de seu doutoramento e de sua vida. Finalizar o doutorado após duros tempos de pandemia, de isolamento e de sofrimento é uma grande vitória, sobretudo em um Brasil politicamente caótico. Pode parecer que o amanhã é pouco propício à vida, mas sempre há algo a ser feito. Por agora, resta seguir. E amanhã, será outro dia…27
Considerações finais, caminhos por vir
O cartógrafo tem muito aprendido sobre o trabalho docente nos dias aqui narrados, assim como nos que se seguiram. Pensa e repensa sobre o professor que quer ser, que sonha em ser, que desejam que ele seja, o que ele precisa ser e o que pode ser. Em alguns momentos, em devir-criança, sente vontade de sair correndo e ir fazer qualquer outra coisa. Em outros, tem a certeza de que é aquilo que quer para o seu futuro. Alguns ciclos vão se fechando, outros se abrindo. Se tivesse tempo e espaço, diria muito mais. Mas, em decorrência do número máximo de caracteres demandados a este arquivo de cartografias entre narrativas e poéticas da docência-pesquisa-vida, prefere deixar as linhas de emergência futuras para escritas por vir.
Por hora, apenas sabe que é preciso seguir, atento28 às formas que vão se consolidando em seu corpo-vida. Mesmo que o presente pareça inóspito, se recorda de uma frase que lera alguns meses atrás: “[...]são tempos difíceis, mas não impossíveis” (GALLO, 2019, p. 1). Com essa certeza, encontra força para as madrugadas em claro e as longas jornadas de trabalho, inspirando-se nas aves que saem diariamente de seus ninhos, junto do retorno do Sol - astro rei que ilumina a Terra e permite que exista vida aqui -, encarando todos os riscos e possibilidades que habitam nessa coragem necessária de enfrentar o mundo29. Respira e segue em frente, aberto ao que vier.
Acompanhar o cartógrafo nestas travessias, em suas poéticas que versam sobre estranhamentos e experimentações, é também aprender com ele. Revisitar os seus registros mostra o sinuoso trajeto de formação docente que acontece aquém, entre e além da licenciatura e da pósgraduação stricto sensu. Também permite cartografar as intensidades que se fazem na educação escolar, nos encontros entre professores-estudantes-escolas-e… e… e… Dessa maneira, tais linhas deixam em aberto um futuro a ser criado e vivido, com as dores e delícias do magistério, com a potência de um presente prenhe de porvires possíveis.