INTRODUÇÃO
O estudo parte de pesquisas realizadas acerca do tema da escola como uma instituição educadora, promovendo reflexões relativas à necessidade atual de uma escola ciberespacial. Para tanto, utilizamos algumas discussões provenientes de um seminário Teoria crítica na perspectiva de grandes pensadoras, realizado no primeiro semestre de 2021, em uma universidade comunitária do Rio Grande do Sul, Brasil. O debate hermenêutico problematiza a transição de um modelo tradicional de ensino para a complexidade da integração do saber pedagógico à emergência da virtualidade durante a pandemia, em busca do sentido da ação educativa e da compreensão das (re)existências tecnológicas digitais (CONTE, MARTINI, 2019).
Para Hannah Arendt (2013), cabe a nós questionarmos os efeitos da ação política manipuladora, única e hierárquica, cindida entre pensamento e ação, a fim de pensarmos as contradições vigentes de seus contornos de legitimidade social entre o passado e o futuro na pluralidade da ação humana. De acordo com a pensadora, “[...] no mundo contemporâneo as distinções da verdade tendem a desaparecer porque novas técnicas de comunicação, somadas à incorporação das massas nos sistemas políticos, levaram a novas modalidades de manipulação de opinião” (ARENDT, 2013, p. 19).
A discussão engloba investigações das realidades social e tecnológica, bem como das difíceis condições de trabalho escolar, na defesa de uma escola educadora em ambiências digitais, que pressupõe um entendimento aprofundado acerca de teorias e concepções pedagógicas, de inclusão e exclusão digital, tendo como referência o panorama atual da formação cultural. De acordo com a escritora Lya Luft (2004, p. 173), as dificuldades humanas para aprender a lidar com os problemas complexos da vida nos induzem a soluções técnicas milagrosas, especialmente na escola: “[...] analisamos complexas teorias, engolimos informações indigestas. Inseguros, optamos pela complicação. Aflitos, queremos que a teoria na prática sempre funcione. Como não funciona, abrem-se manuais e consultórios fáceis, ouvem-se especialistas exaustos, fazem-se cursos [...]”. No contexto de pandemia ocorreu um desgaste emocional demasiado para os professores que foram pegos de surpresa, em uma espiral incontrolável e imprevisível, predominando esforços para sobreviver e esvaziando o sentido da inovação (CHARLOT, 2014; SANTOS, 2020). Para Boaventura de Sousa Santos (2020), a atual pandemia é parte de uma crise permanente imposta pelo sistema capitalista neoliberal, que vem legitimando a escandalosa concentração de riqueza e boicotando medidas eficazes para impedir a iminente catástrofe ecológica. Nesse cenário, lançamos a seguinte questão: em tempos complexos de pandemia, de que forma se constituem dentro da cultura escolar as redes da cibercultura?
No âmbito dessas problematizações será levado em consideração pensadores que vinculam abordagens da linguagem e dos poderes da comunicação digital, a fim de permitir uma compreensão mais abrangente das implicações tecnológicas na comunidade escolar. Trouxemos, para fins de provocação, mais reflexões do que propriamente conclusões derradeiras ou superficiais. A escola em tempos de pandemia foi se deixando levar pelas tecnologias externas para a produção do conhecimento e para garantir a interação humana adaptada pela cultura global, aqueles que não aderiram a essa onda digital foram excluídos ou isolados da coexistência pedagógica. Os estudos realizados nos levam a entender que são muitos os impasses e as incertezas da escola no mundo contemporâneo, especialmente no que diz respeito à formação e ao trabalho educativo no contexto neoliberal, mas de nada adianta vivenciarmos os problemas se não pudermos questioná-los e superá-los. “As inovações tecnológicas podem permitir maior controle, mas com que consequências e para quem? De que maneiras as novas tecnologias estão direcionando e formatando nossa vida?” (BAUMAN, MAY, 2010, p. 181). Precisamos aprender com as experiências e evitar o retorno do mesmo, a repetição de barbáries coletivas por meio de um mundo artificial de coisas. Tais análises sobre as contradições vigentes sustentam as seguintes perguntas:
A quem interessa que a educação seja apenas mais um item da cultura de massa e da indústria cultural? Quem lucra, do ponto de vista econômico, com a fabricação desses recursos? Quem lucra, social e politicamente, com seu uso? A quem interessa que a democratização da cultura seja sinônimo de massificação, de tal modo que o direito igual de todos à educação se converta automaticamente na suposição de que para ser um direito igual a educação deva reduzir-se à vulgarização dos conhecimentos através dos media? [...] O recurso audiovisual tende a transformar a igualdade educacional em nivelamento cultural pelo baixo nível dos conhecimentos transmitidos. (CHAUÍ, 1980, p. 32-33).
Tal situação é reflexo também da relação digitalizada e desumanizada que intensificou a individualização e a concorrência em tempos de crise, valorizando o mundo virtual em detrimento do mundo real das experiências (HARVEY, 2007). Aliás, na urgência do ensino remoto emergencial os professores de todas as modalidades “[...] acabaram arcando com os custos e prejuízos de saúde física e mental decorrentes da intensificação e precarização do trabalho” (SAVIANI, GALVÃO, 2021, p. 39). Para tecer relações com as experiências culturais, lançar olhares e prognósticos diante dessas aporias, necessitamos recorrer às grandes referências da história que, de forma corajosa, nos lembram que o trabalho do professor é um exercício inacabado e exigente de novas pedagogias enquanto saberes necessários à prática educativa e à construção da autonomia profissional (FREIRE, 2015). No que segue, o trabalho está estruturado a partir de três eixos que se complementam: debates acerca da formação e do ciberespaço; a relação entre ciberespaço e educação escolar e as aproximações entre o tema com o pensamento contemporâneo.
CIBERESPAÇO E INFOEXCLUSÃO
Com o surgimento da virtualidade comunicativa e de uma realidade pedagógica aberta ao diálogo com o mundo, em contextos diferenciados de cibercultura - que serão tratados posteriormente, surgem novas exigências aos processos didático-pedagógicos no contexto da ciberdemocracia.
Com a comunicação pela internet, porém, a worl wide web parece compensar as fraquezas do caráter anônimo e assimétrico da comunicação de massas, na medida em que permite uma readmissão de elementos interativos e deliberativos num diálogo não regulamentado entre parceiros que comunicam entre si de forma virtual, mas em pé de igualdade. Afinal, a internet não produziu apenas navegadores curiosos, mas reavivou igualmente a figura historicamente submersa de um público igualitário de participantes de conversão e parceiros de correspondência que escrevem e leem. Por outro, é apenas relativamente a um contexto específico que a comunicação eletrônica pode reivindicar méritos democráticos: ela mina a censura de regimes autoritários que tentam controlar e reprimir as opiniões públicas espontâneas. (HABERMAS, 2015, p. 97).
Quando analisamos a escola no contexto das urgências da pandemia surge a figura do professor como ator social que necessita atender as demandas da práxis e da crescente infoexclusão, especialmente com os impactos e cobranças para a reinvenção profissional. “A infoexclusão nunca foi tão amarescente quanto durante a pandemia da COVID-19, que forçou isolamento social e interrupção temporária das aulas presencias (a falta de acesso à internet sentencia os estudantes a uma inexistência socioeducacional)” (CASTRO, 2020, p. 1). Assim, vislumbramos que a escola seja uma instituição educadora no sentido de que se afaste, cada vez mais, de teorias hegemônicas e práticas alienantes, autoritárias, enfim, excludentes da cultura digital, visto que “[...] a escola representa em certo sentido o mundo, embora não seja ainda o mundo de fato” (ARENDT, 2014, p. 239).
Em produções recentes, Saviani (2020) e Galvão (2021) afirmam que as tecnologias não devem ser inseridas nos ambientes educativos como mais uma funcionalidade instrumental ao processo de produção enquanto alienação cultural, mas como experiência educativa mobilizadora à leitura crítica da realidade, das relações sociais nos mundos do trabalho e da vida cotidiana. Mas, como atuar face às desigualdades, às violências, às deseducações e às desatenções humanas no cenário da educação vigente? A internet é altamente difundida no Brasil e no mundo. Nesse sentido, a educação vem, cada dia mais, utilizando dos artifícios tecnológicos, a fim de justificar mecanismos de aprendizagem pela democratização de livros, jogos digitais e trabalhos de pesquisa que são portas para o conhecimento no mundo atual. Nessa perspectiva, Lévy (1999, p. 92) conceitua o ciberespaço como “[...] espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial dos computadores e das memórias de computadores”. Sendo assim, o ciberespaço pode ser entendido como uma grande rede de conexões existente em todo o globo, que cria e reproduz relações pessoais, profissionais, educacionais, enfim, que empresta ao mundo, diariamente, o sentimento de que a qualquer momento estaremos diante de uma novidade, como uma informação ou uma inovação tecnológica. Nesse sentido, “[...] é preciso imaginar que, no que se refere às novas tecnologias da inteligência, nos encontramos perante uma época comparável à da Renascença” (LÉVY, 1990, p. 138). Ainda, para traçar as (des)vantagens do ciberespaço na vida escolar é impossível fixar seu contorno, uma vez que é “[...] um computador hipertextual, disperso, vivo, pululante, inacabado, virtual, um computador de Babel: o próprio ciberespaço” (LÉVY, 2011, p. 47). Uma outra contribuição nos dá, também, Vani Moreira Kenski (2007, p. 134), que apresenta a seguinte análise do ciberespaço:
[É] o universo das redes digitais como lugar de encontros e de aventuras, terreno de conflitos mundiais, nova fronteira econômica e cultural. O ciberespaço significa os novos suportes de informação digital e os modos originais de criação, de navegação no conhecimento e de relação social por eles propiciados. O ciberespaço constitui um campo vasto, aberto, ainda parcialmente indeterminado, que não se deve reduzir a um só de seus componentes. Espaço que existe (não no mundo físico) no interior de instalações de computadores em rede e entre elas, por onde passam todas as formas de informação.
Assim, estamos no ciberespaço e utilizando de seus artifícios quando, por exemplo, lemos uma notícia em uma rede social virtual, quando compartilhamos textos em artefatos de compartilhamento instantâneo ou quando acessamos o aplicativo de nossa agência bancária. Ciberespaço, portanto, é essa rede mundial, um espaço digitalizado em novas fronteiras e novos ambientes, que possibilita a configuração de novas formas e ambiências de agir dos próprios sujeitos que o utilizam. Compreender a sua definição, assimilar criticamente as práticas nessas ambiências, torna-se mais difícil quando não temos a percepção de que essa “[...] rede não se situa no espaço, é o espaço” (LÉVY, 1990, p. 33).
É, portanto, com base nisso que se defende uma escola voltada para o ciberespaço, ou seja, uma escola ciberespacial que vincula um ser-estar-fazer-ver no mundo enquanto espectadores e críticos, investigando os mecanismos includentes, democráticos e reflexivos. Ao concordamos com o pensamento de que “[...] a tecnologia é um ingrediente da cultura contemporânea sem o qual ciência, arte, trabalho, educação, enfim, toda a gama da interação social tornar-se-ia impensável” (SANTAELLA, 2009, p. 499). Dito de outra forma:
Os meios do nosso tempo, neste início do terceiro milênio, estão nas tecnologias digitais, nas memórias eletrônicas, nas hibridizações dos ecossistemas com os tecnossistemas e nas absorções inextricáveis das pesquisas científicas pela criação artística, tudo isso abrindo ao artista horizontes inéditos para a exploração de novos territórios da sensorialidade e sensibilidade. (SANTAELLA, ARANTES, 2008, p. 39).
Vivemos cada vez mais em bolhas digitais e em uma condição humana planetária que esquece os sete buracos negros da educação que são ignorados, subestimados ou fragmentados em programas educativos, planejamentos fechados, concepções racionalizadoras do ensino. Com Saviani e Galvão (2021, p. 38) identificamos que “[...] há mais de 4,5 milhões de brasileiros sem acesso à internet banda larga e mais de 50% dos domicílios da área rural não possuem acesso à internet” (ANDES-SN, 2020, p. 14). De forma geral, as tecnologias digitais são incorporadas como um fetiche ou modismo pedagógico, sem a necessária reflexão dos seus limites e possibilidades nos espaços e tempos escolares. As exigências em realidades cada vez mais ciberculturais vão além das simplificações dos processos didáticos aos novos contextos de educação remota, pois promovem outras formas de comunicação sem fronteiras em contextos diferenciados da ciberdemocracia.
Habermas (2015) vê como saída a essas confusões eletrônicas provocadas por uma assimilação fácil, sem barreiras, a transformação democrática de um conteúdo moral num sistema de leis que se originem em procedimentos justos e críticos, como oportunidade de ampliação das funções cognitivas, estéticas e culturais humanas. Nessa perspectiva, somente haverá possibilidade de uma mudança global nas escolas se for possível imaginar um currículo voltado à totalidade das diferenças e das aproximações nas atividades escolares sob o ponto de vista da comunicação de pontos de vista, no sentido de ver com outros olhos. O compromisso da educação é com a desbarbarização da sociedade e em favor de um devir humanizador, dialógico, solidário, e isto só poderá ser despertado com a educação questionadora, crítica, do trabalho e da amorosidade. Na sociedade excitada pela pandemia, o trabalho do professor se tornou uma luta constante frente aos estímulos sensoriais e técnicos das mídias e das redes virtuais, o que tem provocado superestimulação (ritmos alucinantes de trabalho) e colocado em risco inclusive as promessas formativas de (re)construir o pensamento no trabalho coletivo com o outro, impondo uma espécie de anestetização do real, dos contextos e da sensibilidade, por estarmos vivendo como meros espectadores. A seguir, a apresentamos as relações entre ciberespaço e educação, passando por questões elementares, como o próprio conceito de tecnologia revisitado por novas interpretações do mundo.
CIBERESPAÇO E EDUCAÇÃO ESCOLAR
Historicamente, a linguagem tecnológica é um meio em que se reproduz o domínio e o poder social, agora também traduzida em apropriações dos meios digitais de forma massiva, que serve à legitimação de relações de poder ideologicamente organizados. Portanto, inúmeras pesquisas demonstram os impactos negativos e positivos do uso de tecnologias na seara educacional. Por que, então, defender uma escola do ciberespaço no atual estágio de desenvolvimento civilizacional?
Para o trabalho pedagógico é necessário incluir e (re)conhecer todos, a fim de respaldar as relações humanas, éticas, estéticas, sociais e performativas ao desenvolvimento do pensamento criativo e curioso em ambiências da cultura escolar, que garantam o acesso, a permanência e o direito de aprender. Obviamente, assim como a roda, as novas tecnologias da comunicação mostram uma consolidação em escala exponencial na sociedade, não demonstrando margem para recuos. “A presença da informática no cotidiano atual desafia o homem a voltar-se à exploração dos instrumentos computacionais, assim como, outrora, os elementos naturais que compunham nosso entorno despertavam o interesse do homem das cavernas” (COX, 2008, p. 12).
[...] diante do atual cenário que assola a população mundial decorrente pela pandemia do novo coronavírus (COVID-19), nos vimos em uma brusca mudança de paradigma - especialmente no contexto educacional - que nos obriga a transportar a realidade analógica da experiência da sala de aula para a digital. Fomos direcionados a contemplar em nossa práxis pedagógica as tecnologias digitais como tradução da linguagem verbal para outras linguagens, que até pouco tempo eram projetadas como uma possibilidade, hoje sendo uma necessidade e realidade para a efetividade das ações escolares e acadêmicas no horizonte da formação permanente. Tal contexto nos evidenciou que a metamorfose docente se apresenta, cada vez mais, em nosso fazer profissional, uma vez que a adaptação foi relâmpago, mas que precisamos, antes, trazer embutida a ideia de que para se formar é preciso também se humanizar. (SANTOS, MÉRIDA, 2020, p. 15).
No entanto, sabe-se também que estamos em plena ascensão da pobreza1, da desigualdade social e do desemprego no país, figuramos entre os 12 países mais desiguais do mundo, conforme o relatório da transparência internacional2 e o Atlas do desenvolvimento humano do Brasil3. Além disso, enfrentamos sérios retrocessos no combate à corrupção evidenciando que o modelo social capitalista não tem futuro (SANTOS, 2020). Estamos cada vez mais conectados e aparelhados em formas de vida que nos guiam a um mundo digital. Em muitos casos, somos levados à reflexão sobre o que é real, o que é virtual e se o virtual é também o real. Embora essas ponderações sejam dignas de aprofundamentos, nos interessa, aqui, uma abordagem que contemple os artefatos que surgem como meio para o acesso ao ciberespaço. Nesse sentido, torna-se conveniente, inicialmente, uma melhor definição para o próprio conceito de tecnologia:
O conceito de tecnologias engloba a totalidade de coisas que a engenhosidade do cérebro humano conseguiu criar em todas as épocas, suas formas de uso, suas aplicações. [...] As tecnologias estão tão próximas e presentes que nem percebemos mais que não são coisas naturais. [...] Ao conjunto de conhecimentos e princípios científicos que se aplicam ao planejamento, à construção e à utilização de um equipamento em um determinado tipo de atividade, chamamos de tecnologia. (KENSKI, 2007, p. 23-24).
Falar, portanto, em tecnologia, não é oferecer exclusividade uma abordagem de mundo contemporâneo, mas engloba diferentes épocas em que os seres humanos exteriorizaram, a partir de sua engenhosidade cerebral, produções com o status de novidade criativa e com algum tipo de serventia para determinada sociedade. A produção tecnológica é inerente, portanto, às interpretações e perspectivas do período pré-histórico até a contemporaneidade em suas múltiplas formas moventes, complexas, de linguagens do viver, pensar, criar, conhecer, querer, sentir... Daí que “[...] todas as coisas se relacionam, não há nada realmente isolado, todo gesto produz desdobramentos incalculáveis; um saber, uma escola, uma pessoa não existem sem um contexto: talvez esse seja o aprendizado social, a maturidade política de que precisamos” (MOSÉ, 2013, p. 14). Vale destacar que os limites de uma pedagogia proposta em termos de novas tecnologias, bem como as consequências de suas funcionalidades, já afetam o cotidiano da docência, que se encontra cada vez mais conectado, em uma virtualização institucional e do trabalho pedagógico nos desafios das atividades diárias. Manuel Castells (2003) nos alerta sobre esses nexos no próprio processo de formação via internet, tornando possível múltiplos espaços de trabalho, ou seja, muitos “[...] trabalham a partir de casa, trabalham de seus carros, trens e aviões, de seus aeroportos e hotéis, durante suas férias e à noite - estão sempre disponíveis, enquanto seus bipes e telefones móveis nunca param de tocar”.
Desde um ponto de vista antecipado, caberá à formação uma atitude reflexiva sobre as experiências teóricas e práticas que privilegiem o exercício da competência comunicativa por meio da linguagem tecnológica, a fim de uma aproximação maior a um ciberespaço cada vez mais democrático e includente, tendo em vista a velocidade e a quantidade de informações do âmbito dessas experiências digitais. Assim, a confusão informacional e a banalização de acontecimentos causam a fragmentação do conhecimento, ou, talvez, o próprio desconhecimento, a partir da superficialidade das mensagens e de suas leituras sem interpretação ou sentido. Para Santos (2013, p. 72), “[...] a quantidade de informações é tão grande, e sua difusão tão intensa, que os destinatários não conseguem absorver tudo o que recebem e tampouco distinguem o que é importante do que pode ser descartável”.
As novas configurações dos cursos de formação de professores precisam contribuir, também, com reflexões sobre as angústias práticas das linguagens moventes no cotidiano escolar do professor: o que é tecnologia em sala aula? O que é informação? Como pesquisar através da internet? Como tornar o ciberespaço mais democrático? É esse olhar da prática educativa em que a formação é desafiada constantemente pelo ciberespaço (não apenas tomando a linguagem a seu serviço), integrando a linguagem no horizonte das experiências pedagógicas e não uma comunicação distorcida, instrumentalizada ou divorciada das comunidades de interpretação. Um olhar que reconheça, também, as angústias e as reivindicações cotidianas dos professores exigem respostas que não excluam o potencial (re)construtivo do ciberespaço. A formação na perspectiva do ciberespaço tem de estar atrelada, também, às reivindicações de uma maior inclusão digital social, caso contrário, os descompassos sociais se seguirão imbricados às mais variadas (des)ordens.
Em um país com milhões de não alfabetizados como o Brasil e de concentração de renda absurda, os acessos e posicionamentos críticos em relação às diversidades que compõem nosso atual período histórico-cultural precisam adentrar a escola, principal agência de letramento de nossa sociedade. É preciso que a instituição escolar prepare a população para um funcionamento da sociedade cada vez mais digital e também para buscar no ciberespaço um lugar para se encontrar, de maneira crítica, com diferenças e identidades múltiplas. (ROJO, 2013, p. 58).
Por isso, a formação não deve ser apenas um preparo que privilegie unicamente o uso de mecanismos de determinada ferramenta em sala de aula, mas um entrelaçamento de linguagem e práxis, que contemple a apropriação crítica dos novos artefatos. Sendo assim, percebemos que as mudanças são profundas e englobam hábitos, posicionamentos, tratamentos diferenciados da informação pela via ilimitada da interpretação e dos novos papéis para professores e estudantes (KENSKI, 2013). O foco terá de ser uma educação que leve em conta a interação, a comunicação e a colaboração reflexiva, sabendo-se que o aprender “[...] é um processo que pode deflagrar no aprendiz uma curiosidade crescente, que pode torná-lo mais e mais criador” (FREIRE, 2015, p. 24). A relação de diálogo vivo com o outro e a formação intersubjetiva é retomada por Hermann (2014, p. 488) quando afirma que “[...] cabe a confrontação com o que está em jogo na formação ética - a relação com o outro - de modo que abra uma perspectiva de lançar pontes e transpor distâncias, que retoma o movimento de abertura à alteridade”.
Em tempos sombrios, insalubres e caóticos de uma realidade pandêmica, com crises permanentes de todas as naturezas, precisamos valorizar o ser humano e especialmente o trabalho do professor, visto que:
[...] a pandemia, com tudo que ela trouxe de temores, dores, dúvidas, ansiedades, angústias e incertezas, não levou os professores a cederem ou se afastarem um dedo de seus papeis. Enfrentaram o touro a unha. Em tempo recorde, mesmo aqueles que não dispunham de familiaridade com os meios digitais, buscaram um caminho para continuar, para encontrar uma fenda na realidade adversa por onde passar a voz da transmissão, ponto de encontro entre quem ensina e quem aprende, muitas vezes em trocas reversas. [...] No prazo de horas ou poucos dias, possíveis ferramentas e meios começaram a ser vasculhados e suas aplicações, viabilidade e adaptações à diversidade de contextos, avaliadas. Em muito pouco tempo, soluções emergenciais do universo digital vieram à tona, cada uma escolhida de acordo com as circunstâncias e disponibilidade: Moodle, Teams, Zoom, Meet e até mesmo o Whatsapp. A aprendizagem não pode parar, esse é o mote. (SANTAELLA, 2020, p. 18-19).
Tais mudanças nas formas de organização da educação são assim sintetizadas por Santaella (2020, p. 21):
De fato, entre a presença remota, que é uma presença paradoxal, metonímica, da parte pelo todo, e a presença plena do estar com o outro nas vicissitudes do aqui e agora, interpõem-se distinções semióticas cruciais. Na comunicação presencial, face a face, mesmo que a uma distância de dois ou três metros, vários canais perceptivos entram em ação, pois estão também agindo vários sistemas de signos: olhar, paisagens do rosto, tensão ou distensão da postura corporal, gestualidade, timbre, entonação e volume da voz, ritmo e cadência da fala em sincronia com a corporalidade, prontidão ou lentidão reativa etc. Enfim, o que se tem aí, no calor da presença, é um concentrado turbilhão de signos e sinais que, inclusive, acionam reações afetivas e emocionais. Na situação online, tudo isso fica reduzido à imagem enquadrada em um caixote visual e à voz maquinal, às vezes uma ou outra. Isso aumenta a tensão comunicacional porque a naturalidade do enxame semiótico, que funciona de modo intuitivo e sincrônico, fica, até certo ponto, perdida.
Contudo, é preciso redimensionar os limites que nos são impostos na relação da educação com as violências socioculturais, que mobilizam uma espécie de hibridismo combinado a ações verticalizadas e hierárquicas voltadas à proletarização do exercício profissional. A seguir, traremos reflexões acerca do ciberespaço à luz das perspectivas socioculturais.
DIALOGANDO COM OLGÁRIA MATOS NA COMPLEXIDADE DE UM MUNDO ARROGANTE
Olgária Matos (2004) nos traz a noção da arrogância pós-moderna no campo de debate com o ciberespaço, quando percebe a inerência perigosa do ciberespaço às formas litigiosas de convivência social, à luz de contextos políticos, sociais e econômicos. A confusão gerada em torno das (im)possibilidades, no que diz respeito aos novos métodos demandados, podem fazer emergir problemas outros, que não os atuais e conhecidos, mas, somando-se a estes e sendo deflagrado um estágio regressivo. Vale ressaltar os desafios e impossibilidades dessa linguagem do mundo social da vida que dependemos, “[...] nos moldes das políticas educacionais contemporâneas vigentes, segundo as quais é melhor dar pouco para muitos do que muito para poucos” (MATOS, 2007, p. 71, grifos da autora). A autora nos mostra que linguagem e ação se interpenetram reciprocamente, quando diz que “[...] as transformações tecnológicas se sucedem velozmente e as mudanças sociais que as acompanham não permitem um período de formação de novos hábitos em função de novas invenções, cada uma sendo sempre suplantada por outra. A arrogância faz esquecer a humana condição, sua finitude e vulnerabilidade” (MATOS, 2014, p. 25).
Poderíamos, por exemplo, embasar a necessidade de se pensar uma escola alinhada às regras sociais da cultura digital, uma vez que é a partir dessas perspectivas que novas pesquisas surgem e se concretizam. Evidentemente, a discussão acerca da relevância do ciberespaço, aqui, é pauta desnecessária, visto que tal questão já fora discutida acima. Mas, dando continuidade à amarração das ideias aqui esquematizadas, temos que pensar a escola ciberespacial a partir de uma visão crítica (ou mais crítica) da sociedade. E essa questão torna-se fundamental. Isso porque é essa teia de regras intersubjetivamente vigentes que possibilita as conexões mundiais como nunca antes vistas. Se o mundo mudou e as relações sociais também, na educação a influência da tendência técnica vem definindo de antemão as questões da prática educativa, permitindo assim que fiquem subtraídas de uma discussão coletiva.
Longe de traçarmos, aqui, uma linha do tempo histórica, sublinha-se como importante frisar que Olgária Matos (2014, p. 26) evidencia, em suas obras, um processo de comunicação e de evolução do pensamento que se constitui numa perspectiva histórica e social, inspirando-nos a pensar sobre o mercado capitalista e as regras a que estamos submetidos.
A ilimitação contemporânea revela que o excesso de objetos preenche, justamente, a falta de satisfação, permanecendo sempre aquém dela, pois não se trata de realização de um prazer, mas de manter o estado de excitação. Tudo o que é excessivo não o é nunca suficientemente e, assim, é sempre ultrapassado por um outro excesso, como nos esportes radicais, filmes e games cada vez mais violentos.
Se é do ciberespaço que falamos, e se é nele que estabeleceremos as atuais e futuras relações (pessoais, profissionais etc.), é também a partir dele que devemos exercitar perspectivas outras acerca de teorias e práticas pedagógicas. Mais do que isso, sendo o ciberespaço uma dimensão espacial, nele também se inserem os fenômenos relativos aos jogos de linguagem e às disputas de poder. Seria ingênua uma problematização que não levasse em conta tal perspectiva. Nesse sentido, tratamos como superficial a defesa de mudanças educacionais baseadas apenas ou tendo como fio condutor o argumento do preparo para as demandas atuais ou da capacitação de professores e estudantes para o mundo digital. Ou seja, a compreensão dos porquês da existência de tais discursos também deve nortear as atuais discussões sobre formação e práticas pedagógicas, por exemplo. Matos (2008, p. 456, grifos da autora), ao tratar do mal-estar na contemporaneidade, nos apoia na formulação do embasamento exposto:
A temporalidade aderida à aceleração do presente - o presenteísmo - apodera-se de todos os espaços democráticos, a começar pela educação, que deixa de ser educação para a liberdade, para direitos e deveres correspondentes, tornando-se educação para a adaptação, na proliferação de direitos sem a lei pan-inclusiva que deveria presidi-los. Seus efeitos na educação se constituem no desaparecimento da noção de cultura geral pela de cultura comum, cuja finalidade essencial é preparar os jovens para entrar no mundo tal como ele é.
Com isso, evidenciamos que simplesmente aliarmos tecnologia e educação não encontra respaldo em uma perspectiva de finalidade meramente funcional, atrelada às utilidades e necessidades humanas diárias da contemporaneidade. Falarmos de ciberespaço e educação implica em uma reconstrução racional de estruturas profundas de formação que realmente dê conta da oxigenação das dinâmicas inerentes à cidadania, à democracia, em seu aspecto teórico e prático, pois, as experiências comunicativas não se limitam a educar certas capacidades, mas transformar com os outros sujeitos as próprias experiências, na urgência de falarmos com esses sujeitos e não apenas sobre num status monológico do mundo. Na verdade, “[...] todas as teorias contrárias à democracia se utilizam do mesmo expediente: substituem as incertezas da ação pela segurança da fabricação” (ARENDT, 2014, p. 275). Por isso, a necessidade da disposição pedagógica para a escuta e para a compreensão do outro e do lugar no qual ele fala para aprender e conviver com os outros, em um mundo plural, de forma sensível aos contextos socioculturais, econômicos e às histórias da complexidade humana.
De modo semelhante, Olgária Matos (2015) argumenta que a modernidade tecnológica produz constantemente comportamentos arcaicos, preservados no interior da civilização que se pretende lógica e científica. Ao criticar a pseudoformação escolar vinculada aos particularismos políticos, as legislações submetidas a lobbies em detrimento do espaço público, desvela reflexões importantes sobre a democracia que passa a sofrer no plano das segundas intenções, para sobreviver aos elementos totalitários (MATOS, 2014). Discute, também, o modo de produção do mal-estar e da violência no mundo contemporâneo, que só podem ser superados rompendo-se com os particularismos ressentidos e com a política que opõe amigo e inimigo. Consideramos, portanto, que uma formação para as tecnologias tem de estar ligada às reivindicações de uma maior inclusão digital, fazendo-se necessário, para esse fim, o entendimento maior da própria sociedade em que estamos inseridos. Por isso, a formação cultural voltada para a linguagem tecnológica da escola ciberespacial não pode ser apenas para a utilização de determinado artefato, mas para levar o sujeito a decodificar e contextualizar a realidade plantando assim a semente da experiência estética, para não convivermos com abordagens desatualizadas, exigindo uma atitude de apropriação crítica da multiculturalidade digital. O papel de uma escola mais conectada às novas tecnologias será fornecer as bases comunicativas necessários para que os sujeitos tenham acesso à ampla herança cultural da sociedade e que possam desenvolver a capacidade de interpretar as informações, para a construção de um conhecimento decolonizado. Por essas e outras razões, Hermann (2005, p. 70) acrescenta ainda que:
[Apenas] uma sensibilidade estética aguçada pode interpretar valores morais (a igualdade, o respeito humano, a tolerância), de modo mais efetivo, pela possibilidade de fazer uso da imaginação. Só dando chances à sensibilidade, é possível a alguém perceber que as diferenças de culturas e de contextos de vida cotidiana modulam o princípio da igualdade e permitem reconhecer e respeitar as diferenças.
Como vimos até aqui, não há como fugir do fato de que a escola é um dos lugares mais afetados pela cruel pedagogia do vírus, a ponto de autoimpulsionar novas demandas tecnológicas, novas situações precárias de trabalho e de violência nas escolas (SANTOS, 2020; TREVISAN, 2021). A propósito, “[...] sem educação e cultura, somos animais que se comportam como rebanhos e as redes sociais aí estão para comprovar este fenômeno” (TREVISAN, 2021, p. 16). Argumentase nesse texto que essas dificuldades provenientes da lógica operativa das tecnologias se instalam justamente porque tanto a educação quanto os artefatos culturais se apresentam como devir, um campo aberto e lugar onde se desenrolam lutas e resistências ao racionalismo normatizador.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Concluímos que caberá ao profissional da educação promover as orientações necessárias à promoção da conversação em ambiências digitais, bem como orientar a escola para a presença democrática no ciberespaço. Olgária Matos (2007, p. 66) nos traz pistas de como instigar o pensamento mobilizado para a formação nas escolas (da cultura verbal, textual, visual e cibercultural), em suas palavras: “Para a arte de viver é primordial o conhecimento da língua e da literatura pois ambas têm força emancipadora e concorrem para a descoberta de tudo o que obscurece e prejudica as relações entre os homens no espaço da cidade”. Ao assumirmos que é no ciberespaço que estabeleceremos as atuais relações com o outro e com mundo, devemos ter em mente que é também a partir dele que deveremos exercitar perspectivas outras acerca de teorias e práticas pedagógicas. Nesse sentido, consideramos superficial a defesa de mudanças educacionais baseadas apenas na capacitação emergencial, tratada superficialmente, o que corresponderia a uma pseudomorfose. Será importante dar condições para que os sujeitos expandam sua pertença cultural e reflitam sobre a realidade do ciberespaço, de forma que as abordagens em relação à infoexclusão, aos jogos de poder, às hierarquias e às ideologias existentes sejam interpretadas criticamente, dada a complexidade do mundo virtual no emaranhado das experimentações sociais.