INTRODUÇÃO
A adaptação transcultural e a validação de instrumentos no campo da educação e da psicologia configuram-se como atividades complexas que precisam ser sistematizadas, para que o rigor científico e metodológico seja garantido, propiciando assim maior confiabilidade e fidedignidade ao instrumento em foco (BORSA, DAMÁSIO, BANDEIRA, 2012; OLLAIK, ZILLER, 2012; WARTHA, SANTANA, 2020).
A fragilidade metodológica no que se refere a aplicação de instrumentos é apontada por autores de diferentes áreas de conhecimento (ANDRÉ, 2007; MARQUES et al, 2008; MINAYO, 2017). No campo da educação especial o cenário se repete, de modo que fragilidades metodológicas e a descontinuidade nos temas de pesquisa também são apontadas pela literatura (GLAT, ANTUNES, 2012; GLAT, OMOTE, PLETSCH, 2014; OMOTE, 2014).
No que se refere ao processo de adaptação transcultural e validação de instrumentos, é imprescindível que além da tradução sejam realizados procedimentos que garantam a equivalência semântica dos itens e demonstrem as evidências psicométricas (BEATON et al, 2000; BORSA, DAMÁSIO, BANDEIRA, 2012). Assim, há autores que recomendam que sejam seguidas as seguintes etapas: “(1) tradução do instrumento do idioma de origem para o idioma-alvo; (2) síntese das versões traduzidas; (3) avaliação da síntese por juízes experts; (4) avaliação do instrumento pelo público-alvo; (5) retrotradução1; e (6) estudo-piloto” (BORSA, DAMÁSIO, BANDEIRA, 2012, p. 424).
Em relação a tradução dos instrumentos, não basta a mera versão dos itens para o idiomaalvo, é preciso considerar os aspectos culturais, científicos e linguísticos. Para tanto, é importante o envolvimento de dois tradutores no processo de tradução e retrotradução, como também a realização da síntese das versões traduzidas (BEATON et al, 2000; BORSA, DAMÁSIO, BANDEIRA, 2012).
Para a etapa de avaliação dos juízes, deve-se contar com a colaboração de experts que tenham profundo conhecimento sobre o constructo avaliado. O objetivo desta etapa, consiste em verificar se os termos adotados no instrumento são claros e refletem o contexto cultural de determinado público. Destaca-se que as etapas de tradução, retrotradução, síntese e avaliação resultam na primeira versão do instrumento, que posteriormente será avaliado pelo público-alvo (BORSA, DAMÁSIO, BANDEIRA, 2012; RONDINI, PEDRO, NAKANO, 2022).
A avaliação do instrumento pelo público-alvo visa averiguar se as instruções, e os itens são acessíveis. Nesta etapa, geralmente, não são aplicados testes estatísticos, a avaliação refere-se diretamente a clareza dos itens e a estrutura do instrumento, de modo geral, avaliando se está adequado ou não (BORSA, DAMÁSIO, BANDEIRA, 2012).
Os referidos autores recomendam que antes do estudo piloto, seja feita uma tradução reversa (back-translation), como uma medida de controle adicional, que pode ser encaminhada ao autor do instrumento original. A última etapa proposta, de acordo com Borsa, Damásio e Bandeira (2012), consiste em um estudo prévio do instrumento em uma pequena amostra do público-alvo pretendido. Novamente, esta etapa possibilitará a verificação da adequação dos itens, de modo que podem ser feitas novas sugestões que resultem em um segundo estudo piloto.
Ressalta-se que há autores que recomendam que a validade de instrumentos seja verificada com os resultados de um instrumento que tenha qualidade reconhecida, denominados como padrão-ouro, para garantir a confiabilidade daquele que foi adaptado de modo transcultural (OSÓRIO, CRIPPA, LOUREIRO, 2005).
Diante do exposto e da necessidade de explorar a produção contemporânea do conhecimento nas diferentes áreas, o objetivo do presente estudo consistiu em analisar produções científicas sobre adaptação transcultural e validação de instrumentos no contexto da educação especial.
MÉTODO
A pesquisa caracterizou-se como revisão de literatura, e teve como foco de análise os métodos apresentados pelas pesquisas científicas que versavam sobre adaptação transcultural e validação de instrumentos no contexto da educação especial. Para tanto, foram utilizadas as bases de dados Scientific Electronic Library Online (SciELO), Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) e o Portal de Periódicos da CAPES. Tais bases foram selecionadas pela ampla visibilidade das publicações em periódicos de diversas áreas, dentre as quais se incluem a área de educação, educação especial, bem como a área da saúde. Destacamos que a BVS integra diferentes bases de dados como o Sistema Online de Busca e Análise de Literatura Médica (MEDLINE) e a Literatura Latino-americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS).
Para a coleta de dados, elegemos os operadores booleanos OR e AND, desta forma utilizouse a seguinte estratégia de busca: (validade OR fiabilidade OR instrumentos de avaliação OR estudo transcultural OR consistência interna OR procedimentos psicométricos OR validação de instrumentos OR instrumento de mensuração OR técnicas de mensuração OR tradução de instrumentos) AND (educação especial). Como critério de inclusão considerou-se as produções em língua portuguesa, publicadas no recorte temporal de dez anos (2013-2022).
Os dados foram organizados com o auxílio dos procedimentos estabelecidos pelo Preferred Reporting Items for Systematics Review and Meta-Analysis (PRISMA) e tratados de modo qualitativo, por meio do estabelecimento de categorias temáticas.
O material de apoio Prisma, é constituído por um checklist constituído por 27 itens e um fluxograma de quatro etapas, a saber: identificação, seleção, elegibilidade e inclusão. Este checklist tem como objetivo auxiliar pesquisadores a otimizarem seus relatos de revisões sistemáticas e meta-análises, também pode ser adotado para a avaliação crítica de revisões sistemáticas anteriormente publicadas (GALVÃO et al, 2015), de modo que cada item oferece recomendações para a apresentação de revisões sistemáticas.
O checklist contempla a análise de determinadas seções, como título, resumo, introdução, método, resultados, discussão e financiamento. O fluxograma, em suas quatro etapas, indica como descrever o processo de pesquisa e recuperação de produções científicas, no que diz respeito a quantidade total encontrada e as elegíveis para análise.
RESULTADOS
Na fase de identificação do Prisma, encontramos 56 produções na SciELO, 179 na BVS e 594 no portal de periódicos da Capes, no entanto, observamos que muitas produções obtidas nesta última busca não atendiam ao escopo da pesquisa, de modo que adotamos os filtros artigos e revisados por pares como estratégias de busca, totalizando 177 produções. Assim, ao considerar as três bases de dados, o quantitativo inicial do levantamento foi de 412, resultado obtido após a remoção das produções duplicadas, que se somaram seis.
Na fase de seleção, com base nos títulos e resumos das pesquisas, elegemos as produções relacionadas ao tema adaptação transcultural e validação de instrumentos, o que excluiu 379 produções, totalizando um quantitativo de 33 produções para análise nesta fase, sendo quatro artigos na SciELO, 15 na BVS e 14 no Portal de Periódicos da CAPES.
No que se refere à fase de elegibilidade, consideramos as produções que tinham como foco o público-alvo da educação especial, de modo que foram excluídas 19 produções, o que totalizou 14 artigos, selecionados para análise na fase de Inclusão, sendo quatro na SciELO, oito na BVS e dois no Portal de Periódicos da CAPES.
Em relação a distribuição das produções por ano de publicação, verificamos que: no ano de 2014 e 2018 não foi identificada nenhuma produção; em 2013, 2016, 2017, 2019 e 2021 foram levantadas uma produção em cada ano; em 2022 foram encontradas duas produções; em 2020 três; em 2015 quatro, sendo esse o ano com maior número de publicações.
A Revista Brasileira de Educação Especial foi responsável por veicular nove artigos. Os periódicos Psicologia, Diversidade e Saúde; Revista Eletrônica de Enfermagem; Psicologia em Pesquisa; Estudos Interdisciplinares em Psicologia; e a Revista da Escola de Enfermagem da USP publicaram um artigo cada, no intervalo temporal determinado nesse recorte. Destaca-se que a modalidade da educação especial é interdisciplinar, o que justifica as publicações em periódicos de diferentes áreas. A Tabela 1 apresenta os 14 artigos selecionados para análise.
Autor e ano de publicação | Título |
---|---|
Reis, Pereira e Almeida (2013) | Construção e validação de um instrumento de avaliação do perfil desenvolvimental de crianças com Perturbação do Espectro do Autismo. |
Cantorani, Pilatti e Gutierrez (2015) | Análise das versões do instrumento WHOQOL-DIS frente aos aspectos que motivaram sua criação: participação e autonomia. |
Guimarães, Carvalho e Pagliuca (2015) | Elaboração e validação de instrumento de avaliação de tecnologia assistiva. |
Cavalcante et al (2015) | Tecnologia assistiva para mulheres com deficiência visual acerca do preservativo feminino: estudo de validação. |
Zafani, Omote e Baleotti (2015) | Protocolo de Observação do Desempenho de Crianças com deficiência física: construção, aplicação e análise de dados. |
Zaia, Nakano e Peixoto (2016) | Escala de identificação de características de altas habilidades/superdotação. análise da estrutura interna. |
Macedo, Mota e Mettrau (2017) | WISC-IV: Evidências de validade para grupos especiais de superdotados. |
Braccialli et al (2019) | Tradução e adaptação cultural de instrumentos para avaliar a predisposição do uso de tecnologia assistiva que constitui o modelo Matching, Person & Technology. |
Martins e Chacon (2020) | Escala de eficácia docente para práticas inclusivas: validação da Teacher Efficacy for Inclusive Practices (TEIP) Scale. |
Reis, Neves e Dixe (2020) | Versão Portuguesa da Medida do Processamento Sensorial Pré-escola: análise da consistência interna e homogeneidade dos itens do formulário escola. |
Tomo e Sitoe (2020) | Adaptação do modelo resposta-à-intervenção para identificação de alunos com necessidades educativas especiais em escolas regulares. |
Brígido, Rodrigues e Santos (2021) | Construção e Validação do Questionário de Comportamentos Típicos na Perturbação do Espetro do Autismo. |
Mazak et al (2022) | Adaptação Transcultural do Instrumento the Short Child Occupational Profile (SCOPE) para o Português Brasileiro. |
Torres et al (2022) | Arc’s Self-Determination Scale: Adaptação e Validação à População Adolescente e Adulta Portuguesa com DID. |
Fonte: elaboração própria.
Reis, Pereira e Almeida (2013) descreveram em seu artigo os procedimentos para construção e validação de uma escala que avalia o perfil de desenvolvimento de crianças com Perturbações do Espectro do Autismo (PEA)2. Para tanto, foram sujeitos da pesquisa 30 famílias. O estudo objetivou uma avaliação mais completa e real das crianças com PEA, uma vez que os itens da referida escala integram um intenso conjunto de características a serem avaliadas em diversos contextos e por diferentes pessoas.
O artigo de Cantorani, Pilatti e Gutierrez (2015) teve como objetivo analisar a adequação do WHOQOL-DIS, que é um instrumento para avaliação da qualidade de vida de pessoas com deficiência, construído pela Organização Mundial da Saúde. Os autores realizaram uma comparação entre a versão internacional e nacional do instrumento, os resultados do estudo constataram que a versão internacional apresentava menos itens, não contemplando duas questões sobre autonomia e acessibilidade, que constam na versão em língua portuguesa. Essas questões estão diretamente relacionadas ao conceito teórico de inclusão, partindo de um modelo médico para uma vertente biopsicossocial de educação especial, o que indica menor adequação do instrumento ao modelo contemporâneo de concepção da deficiência. As versões dos instrumentos foram analisadas com base em Bardin (2011) e a aplicação na população-alvo não foi realizada.
Guimarães, Carvalho e Pagliuca (2015) alertaram sobre a escassez de instrumentos que avaliam tecnologia assistiva. Assim, propõem em seu estudo elaborar e validar um instrumento com esta finalidade. Com o auxílio de especialistas e pessoas com deficiência visual, foi possível avaliar a confiabilidade e validade do instrumento, com base nos seguintes atributos: objetivo, acesso, clareza, estrutura, apresentação, relevância, eficácia e interatividade. As análises quantitativas dos dados garantiram a validade e confiabilidade dos itens dos instrumentos, indicando o seu uso.
Cavalcante et al (2015) desenvolveram uma pesquisa para validar a tecnologia assistiva: Construir para aprender a usar o preservativo feminino, destinado a mulheres com deficiência visual. Enquanto procedimento metodológico para as etapas de validação, contou-se com a participação de 14 juízes especialistas em saúde sexual/reprodutiva (7) e educação especial para pessoas com deficiência (7). Os resultados indicaram que a tecnologia assistiva foi considerada adequada por todos os juízes, de modo que foram feitas sugestões para adequações no modelo físico utilizado e também nas orientações, que foram elaboradas em formato de áudio, sendo que os juízes indicaram a necessidade de ouvir duas vezes o áudio instrucional. Como etapa posterior, os autores vislumbram a aplicação da tecnologia criada com número estatisticamente significativo de mulheres com deficiência visual.
Zafani, Omote e Baleotti (2015) descreveram os procedimentos de construção, aplicação e análise de dados do protocolo de observação do desempenho de crianças com deficiência física na realização de atividades de pintura e colagem. O instrumento identifica a percepção de pais e professores em relação à capacidade/incapacidade e dependência/independência com que é executada alguma atividade, no contexto escolar. Participaram como juízes, 11 professoras, que analisaram dois questionários, um voltado para a adequação das atividades e outro para a verificação da opinião quanto à adequação do instrumento. Os resultados revelaram que o instrumento atende ao seu objetivo principal e está adequado para a população quanto ao formato e linguagem.
Zaia, Nakano e Peixoto (2016) investigaram as evidências de validade de uma escala de autorrelato para identificação de características associadas ao tema das altas habilidades/superdotação (AH/SD). A amostra foi constituída por 276 estudantes de ensino fundamental, com idades entre 9 e 12 anos. Enquanto procedimento de análise dos dados, utilizouse da Análise Fatorial Exploratória, o primeiro fator do instrumento é denominado características socioemocionais e o segundo características cognitivas. Os resultados indicaram que o instrumento é considerado fidedigno para aplicação em grandes populações e os autores apontaram como limitação ser caracterizado como autorrelato, recomendando que o referido instrumento seja utilizado conjuntamente com outros métodos de avaliação.
Macedo, Mota e Mettrau (2017) objetivaram em seu estudo verificar a evidência de validade da Escala Wechsler Inteligência (WISC-IV). Participaram da pesquisa 68 crianças e adolescentes, de seis a 16 anos e 11 meses, divididos em dois grupos: superdotados e não superdotados. Juntamente com a escala WISC/IV foram aplicados os itens relacionados à Aprendizagem, Criatividade, Motivação e Comunicação-Precisão da Escala Características Comportamentais Alunos Habilidades Superiores - Revisada - versão professores (SRCBBSS-R), a fim de auxiliar na investigação da confiabilidade da primeira escala. A partir das análises efetuadas, as autoras constataram diferenças estatisticamente significantes nos dois grupos. Assim, concluíram que a escala WISC-IV é um instrumento confiável e capaz de discriminar grupos de estudantes superdotados e não-superdotados.
A pesquisa de Braccialli et al (2019) visou traduzir e adaptar culturalmente os instrumentos Initial Worksheet for the Matching Person & Technology Process; History of Support e Healthcare Technology Device Predisposition Assessment - HCT PA. Os referidos instrumentos visam selecionar, acomodar, utilizar e avaliar o uso da tecnologia assistiva, considerando os objetivos, preferências do indivíduo, as características tecnológicas e o apoio ambiental. As etapas adotadas enquanto procedimentos metodológicos foram: 1) tradução do instrumento; 2) tradução conciliada; 3) retrotradução; 4) análise de equivalência dos itens e adequação do instrumento; e 5) pré-teste. Os resultados revelaram elevados índices de concordância entre os juízes, o que indicou uma boa equivalência cultural dos instrumentos.
Martins e Chacon (2020) analisaram as propriedades psicométricas da versão brasileira da Teacher Efficacy for Inclusive Practices (TEIP) Scale, que tem sua versão traduzida e adaptada denominada Escala de Eficácia Docente para Práticas Inclusivas (EEDPI). A escala foi aplicada em uma amostra de 308 professores da educação básica. A análise fatorial exploratória evidenciou como adequadas as propriedades psicométricas divididas em dois fatores: regência em sala de aula e planejamento e colaboração. Ao comparar os dados com outra escala sobre a autoeficácia de professores, revelou-se a existência de uma correlação positiva, de moderada a forte entre as escalas, bem como boa consistência interna.
A investigação de Reis, Neves e Dixe (2020) examinou a consistência interna e homogeneidade dos itens da versão portuguesa do Sensory Processing Measure-Preschool (SPM-P). Compuseram a amostra 100 crianças de dois a cinco anos de idade, a partir do estudo foi verificada a necessidade de exclusão de quatro itens do instrumento. A análise dos resultados demonstrou que o instrumento estudado é válido para rastrear dificuldades de desenvolvimento sensorial na faixa etária investigada, em crianças portuguesas.
Tomo e Sitoe (2020) desenharam, avaliaram e validaram um instrumento para a identificação e atendimento de alunos com necessidades educativas especiais, em escolas regulares, do Ensino Primário em Moçambique. O estudo caracterizou-se como qualitativo, ao adotar a pesquisa-ação e o ensino colaborativo nos procedimentos para coleta de dados. Foram participantes onze professores, um diretor de escola e um diretor adjunto. A partir dos resultados obtidos, constatou-se que o instrumento criado pode vir a ser um modo organizado, eficiente e efetivo das escolas lidarem com as necessidades educativas dos alunos.
A pesquisa de Brígido, Rodrigues e Santos (2021) objetivou elaborar e avaliar as propriedades psicométricas do Questionário dos Comportamentos Típicos da PEA (QCT-PEA). Para tanto, contaram com dez especialistas que avaliaram os Índices de Validade de Conteúdo (IVC) e a aplicação foi realizada em 75 crianças com PEA. A fiabilidade nos domínios Comunicação e Interação Social e Padrões restritos e repetitivos de comportamentos, interesses e atividades atestam a consistência interna, o que explica 69,5% da variância total. Os resultados demonstraram que este poderá ser um instrumento utilizado na prática clínica, com a finalidade de avaliar e planejar intervenções mais adequadas.
Mazak et al (2022) descreveram o percurso metodológico para adaptação transcultural do Short Child Occupational Profile (SCOPE) para a língua portuguesa, que tem por objetivo possibilitar uma avaliação sistemática de fatores que facilitam ou restringem a participação de crianças e adolescentes em diferentes atividades. Os procedimentos metodológicos envolveram a tradução e retrotradução; análise de equivalência semântica; adequação com a população-alvo no pré-teste e aprovação pela autora do instrumento original. As etapas de tradução e de retrotradução apresentaram poucas discrepâncias entre os itens, sendo que as sugestões no que se refere a adequação semântica foram analisadas e incorporadas. O público-alvo apresentou bom ou ótimo entendimento dos itens, tendo obtido êxito no processo de adaptação transcultural.
A pesquisa de Torres et al (2022) adaptou e validou a escala Arc’s Self-Determination Scale, destinada à população adolescente e adulta portuguesa com Dificuldades Intelectuais e Desenvolvimentais (DID). A escala avalia quatro características de autodeterminação: autonomia, autorregulação, capacitação psicológica e autorrealização. Os autores contaram com juízes que participaram da validação do conteúdo, o instrumento foi aplicado em uma amostra de 500 adolescentes e adultos, entre 16 e 70 anos. A escala apresentou uma excelente consistência interna, concluindo que o referido instrumento apresenta as características necessárias para ser utilizado em âmbito nacional.
DISCUSSÕES
Ao analisarmos os instrumentos em processo de adaptação transcultural e validação, destacando o público-alvo a que se destina, constatamos que sete instrumentos se aplicavam as deficiências em geral: Cantorani, Pilatti e Gutierrez (2015); Guimarães, Carvalho e Pagliuca (2015); Braccialli et al (2019); Reis, Neves e Dixe (2020); Tomo e Sitoe (2020); Mazak et al (2022); Torres et al (2022). Dois eram destinados ao Transtorno do Espectro Autista: Reis, Pereira e Almeida (2013); e Rodrigues e Santos (2021). Dois para avaliação das AH/SD: Zaia, Nakano e Peixoto (2016); e Macedo, Mota e Mettrau (2017). Um para deficiência visual: Cavalcante et al (2015); outro para deficiência física: Zafani, Omote e Baleotti (2015); e, por fim, um destinava-se aos professores: Martins e Chacon (2020).
Destacamos que nem todos os instrumentos são de autonomeação, ou seja, nem sempre o público-alvo a que se destina será diretamente o respondente, podendo este ser as famílias, professores ou outros sujeitos envolvidos com o público-alvo.
Segundo Gonçalves et al (2011), a maioria dos instrumentos utilizados no Brasil foi apenas traduzida e adaptada, sendo que nem sempre são avaliadas as qualidades psicométricas que atestem a validade de conteúdo, critério e constructo, bem como a normatização e padronização desses instrumentos.
Em relação ao tipo de análise de dados desenvolvida, observamos que apenas um estudo (TOMOE, SITOE, 2020) foi conduzido com medidas qualitativas. Tal dado já era esperado, visto que a literatura indica a realização de testes estatísticos para verificar a validade e fidedignidade dos instrumentos a serem avaliados (ALEXANDRE, COLUCI, 2011; BORSA, DAMÁSIO, BANDEIRA, 2012; PASQUALI, 2016).
Sobre as etapas de adaptação transcultural e validação compreendida nos estudos, verificouse que seis foram encerrados na etapa de pré-testes, ou seja, foram contempladas as fases de tradução, adaptação transcultural e validação semântica, no entanto, não objetivaram a aplicação em amostras significativas, o que visaria garantir a validade do instrumento: Cantorani, Pilatti e Gutierrez (2015); Cavalcante et al (2015); Guimarães, Carvalho e Pagliuca (2015); Zafani, Omote e Baleotti (2015); Braccialli et al (2019); e Mazak et al (2022).
Em relação aos estudos que aplicaram os instrumentos na população-alvo, verificamos que em três pesquisas foram adotadas amostras inferiores a 100 sujeitos: Reis, Pereira e Almeida (2013) aplicaram em 30 sujeitos; Tomo e Sitoe (2020) 13 sujeitos; e Brígido, Rodrigues e Santos (2021) tiveram como amostra 75 sujeitos. Quatro pesquisas contaram com 100 ou mais participantes: Zaia, Nakano e Peixoto (2016) contaram com 276; Martins e Chacon (2020) 308 participantes; Reis, Neves e Dixe (2020) tiveram uma amostra de 100; e Torres et al (2022) contemplou a maior amostra, 500 sujeitos.
Sobre a adaptação de instrumentos para uso em diferentes contextos culturais, há autores que revelam que não há consenso quanto aos procedimentos metodológicos, de modo que dependerão das características, dos contextos de aplicação, bem como da população a quem se destina. No entanto, recomenda-se fortemente que este processo vá além da mera tradução, a qual não garante a validade do constructo e a confiabilidade da medida (BORSA, DAMÁSIO, BANDEIRA, 2012).
Ao considerar as nomenclaturas adotadas pelos autores para identificar os instrumentos a serem analisados, constatamos que cinco adotaram o termo instrumento de modo genérico: Cantorani, Pilatti e Gutierrez (2015); Guimarães, Carvalho e Pagliuca (2015); Braccialli et al (2019); Tomo e Sitoe (2020); e Mazak et al (2022). Cinco utilizaram o termo escala: Reis, Pereira e Almeida (2013); Cavalcante et al (2015); Zaia, Nakano e Peixoto (2016); Martins e Chacon (2020); e Torres et al (2022). Enquanto protocolo de observação, questionário, teste e formulário apareceram de modo isolado nas pesquisas: Zafani, Omote e Baleotti (2015); Brígido, Rodrigues e Santos (2021); Macedo, Mota e Mettrau (2017); e Reis, Neves e Dixe (2020).
Ao considerar o que a literatura apresenta sobre cada tipo de instrumento, Bermudes et al (2016, p. 2016), afirmam que as escalas são concebidas enquanto um “[...] conjunto de valores ou conteúdos de uma variável, arranjados de acordo com algum critério de importância (matemático ou subjetivo) para fins de mensuração, podendo esses valores serem métricos ou não”.
Para Danna e Matos (2006), o protocolo de observação consiste em um documento em que são registradas informações relevantes para a observação de determinado comportamento, de acordo com o objetivo para o qual foi construído.
Marconi e Lakatos (2003, p. 201) compreendem o questionário como “[...] um instrumento de coleta de dados, constituído por uma série ordenada de perguntas, que devem ser respondidas por escrito”, não sendo necessária a presença de um profissional para fazer a mediação. Segundo Tyler (1973), os testes têm por objetivo medir e avaliar determinadas características em uma determinada população.
Por fim, Nogueira (1968, p. 129) descreve que o formulário é “[...] uma lista formal, catálogo ou inventário destinado à coleta de dados resultantes quer da observação, quer de interrogatório”, em contato face a face entre pesquisador e informante.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao recuperar o objetivo do presente estudo, que consistiu em analisar produções científicas sobre adaptação transcultural e validação de instrumentos de coleta de dados, no contexto da educação especial, verificou-se que não há produção acadêmica expressiva na área, o que pode indicar uma carência de instrumentos validados e fidedignos no âmbito da educação especial.
Constatou-se uma maior prevalência de publicações na Revista Brasileira de Educação Especial, referente a 64% do total, bem como estudos cujos instrumentos enfocaram as deficiências em geral e que contemplaram uma abordagem quantitativa para fins de tratamento e análise dos dados. Ressalta-se que os artigos selecionados que relataram a aplicação dos instrumentos na população-alvo, em sua maioria, contemplaram amostras significativas estatisticamente, o que pode proporcionar maior fidedignidade ao processo de adaptação transcultural e validação.
Como limitações deste estudo, destacamos que foram selecionadas para análise somente publicações em língua portuguesa, de modo que não foi considerado o mérito metodológico das investigações, o que não contemplava o objetivo de pesquisa delineado. Vale destacar, que foram consideradas publicações que coletaram dados com amostras portuguesas e moçambicanas, por terem sido veiculadas em língua portuguesa e em revistas nacionais.
Assim, foi evidenciada a importância de novas pesquisas na área que explorem o mérito metodológico desse tipo de pesquisa, a fim de conhecer de modo mais profundo a qualidade dos instrumentos aplicados nos estudos nacionais no âmbito da educação especial.