INTRODUÇÃO
Este trabalho é um recorte de uma pesquisa de pós-doutoramento intitulada Fronteiras do currículo, realizada na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, apresentada no ano de 2022. A metodologia de pesquisa então utilizada foi a revisão sistemática de literatura do tipo integrativa, a qual, segundo Botelho, Cunha e Macedo (2011), tem como objetivo fazer uma análise acerca do conhecimento já construído em pesquisas anteriores referente a determinado tema. Buscamos na base de dados da Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD) identificar as pesquisas de doutorado efetuadas em programas de pós-graduação em educação, no período de 2012 a 2021, correlatas à temática fronteiras do currículo. Nosso foco eram as pesquisas desenvolvidas em e sobre instituições educacionais nas fronteiras físicas como espaços geopolíticos de demarcação de limites entre Estados-Nações, seguindo a compreensão definida pelo geógrafo Milton Santos1, que as ressaltou como as fronteiras mais propriamente materializadas.
Utilizamos como filtro inicial a categoria fronteiras do currículo, pelo qual foram identificadas 164 teses na BDTD. A elas foram aplicados os primeiros critérios de inclusão: a) teses de programas de educação; b) pesquisas realizadas nos últimos dez anos - 2012 a 2021. Restaram 42 teses para análise, das quais, porém, nenhuma apresentou o conceito fronteiras do currículo como categoria central e literal e, sim, apenas presente por relações implícitas. Desse modo, refinamos conceitualmente a categoria principal de busca, desdobrando-a em três, para fins de análise dos conteúdos: a) currículo nas fronteiras; b) diferenças e diversidades político-culturais no currículo; c) currículo como fronteira.
Ponderando os limites requeridos ao presente artigo, optamos por nele apresentar apenas a análise das pesquisas incluídas na categoria a) currículo nas fronteiras, entendendo ser essa a categoria mais concreta. Nesse último critério de seleção enquadraram-se oito teses, que apresentaremos na Tabela 1, mais à frente.
Tabela 1 Pesquisas incluídas na categoria a) currículo nas fronteiras
Ord. | Título | Autor/a | Universidade | Programa | Ano |
---|---|---|---|---|---|
1 | O currículo como produtor de identidade e de diferença: efeitos na fronteira Brasil-Uruguay | Regina Célia do Couto | Universidade Federal de Pelotas |
educação | 2012 |
2 | Desafios político-institucionais de implantação de uma Universidade pública popular: o caso da Universidade Federal da Fronteira Sul | Rui Anderson Costa Monteiro | Universidade Nove de Julho |
educação | 2017 |
3 | Órfãos das letras no contexto amazônico: memórias de uma prática docente em EJA na Tríplice Fronteira Brasil-Peru-Colômbia | Maria de Nazaré Corrêa da Silva | PUC-SP | educação: currículo | 2018 |
4 | Ser professora em área de fronteira bilíngue no Brasil: desafios e possibilidades | Janaína Moreira Pacheco de Souza |
Universidade do Estado do Rio de Janeiro | educação | 2019 |
5 | Docências em escolas de fronteira: diferenças, silenciamentos e possibilidades de pedagogias interculturais |
Joelma Fernandes de Oliveira |
Universidade do Vale do Rio dos Sinos | educação | 2019 |
6 | Política Supranacional de Formação de Professores: o Programa Escolas Interculturais de Fronteira (PEIF) na faixa de fronteira Brasil/Paraguai |
Mara Lucinéia Marques Correa Bueno |
Universidade Federal da Grande Dourados |
educação | 2019 |
7 | As perspectivas das epistemologias contra-hegemônicas do ensino superior na tríplice fronteira: um estudo da UNILA (Universidade Federal da Integração Latino-Americana) | Suélen de Pontes Alexandre |
Universidade Nove de Julho |
educação | 2019 |
8 | Currículo Intercultural na Fronteira: um estudo sobre a Política e as Práticas de Currículo na fronteira Brasil/Bolívia do estado de Rondônia | Márcia Maria Rodrigues Uchôa |
PUC-SP | educação: currículo | 2019 |
Fonte: Construção dos autores.
A relevância desse tema é autoevidente; a questão dos imigrantes e refugiados faz-se presente na mídia e nas redes sociais e já é parte expressiva de nosso cotidiano e de nosso imaginário. Segundo o Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), agência da Organização das Nações Unidas (ONU) direcionada à proteção dos direitos das pessoas em situação de refúgio no mundo, o deslocamento forçado na última década aumentou significativamente. O site da Acnur (2021) registra: “[...] o deslocamento forçado afeta mais de 1% da humanidade [...]. Até o fim de 2019, 79,5 milhões de pessoas em todo o mundo foram forçadas a deixar suas casas”.
No Brasil, particularmente, o número de refugiados aumentou consideravelmente nos últimos anos, de modo que “[...] ao final de 2020 havia 57.099 pessoas refugiadas reconhecidas pelo Brasil [...] Apenas em 2020 foram feitas 28.899 solicitações da condição de refugiado neste país” (Acnur, 2021). A Agência detalha ainda:
A nacionalidade com maior número de pessoas refugiadas reconhecidas, entre 2011 e 2020, é a venezuelana (46.412), seguida dos sírios (3.594) e congoleses (1.050). Dentre os solicitantes da condição de refugiado, as nacionalidades mais representativas foram de venezuelanos (60%), haitianos (23%) e cubanos (5%) (Acnur, 2021).
Consideramos que um dos mais graves desafios humanitários na contemporaneidade é esse, que acomete milhões de migrantes e refugiados. As escolas, nas regiões de fronteiras, assim como nos grandes centros de atração de migrantes e refugiados, encontram-se diante de um radical desafio pedagógico e ético, de acolher na plenitude dos direitos todos aqueles e aquelas que, movidos não raro por calamidades (naturais, econômicas, políticas, culturais), buscam novas condições dignas de vida. É evidente que a dramaticidade do fenômeno dos imigrantes e refugiados tende a ressignificar, de modo igualmente crítico, as relações nas fronteiras que não sejam zonas de fluxo de migrantes.
Nessa perspectiva, o tema fronteiras se apresenta com um alcance muito além de seu sentido literal e geográfico: trata-se também, metaforicamente, de fronteiras da dignidade e do direito. Nas regiões de fronteiras geográficas, ele adquire uma dramaticidade hiperbólica e, a partir desse extremo, podem-se trazer novas luzes para quaisquer outras práticas curriculares que se pretendem críticas.
O artigo está estruturado, além desta introdução, em três seções. Na primeira, apresentamos e analisamos as pesquisas encontradas na categoria a) currículo nas fronteiras. Na segunda seção, discutimos os resultados dessa apresentação e análise à luz dos conceitos de decolonialidade e interculturalidade curricular, as quais, mais além do processo de descolonização das epistemologias hegemônicas, cobram o reconhecimento e a validação de outros modos de poder e saber, a partir da manifestação da alteridade e das diferenças. Na terceira e última seção, apresentamos nossas considerações finais acerca da temática.
CURRÍCULO NAS FRONTEIRAS: PESQUISAS IDENTIFICADAS E ANALISADAS
A fronteira, segundo o cientista social José de Souza Martins (2018), é o espaço por excelência da alteridade e do limite do humano, onde se dá um confronto de manifestações sociais, culturais e étnicas. Por apresentar essas peculiaridades, ela se mostra como um lugar essencialmente de conflito, quando as diferenças reveladas tendem a propiciar mais desencontros do que encontros com a outridade/alteridade.
O sociólogo ressalta, ainda, que a figura central na realidade social da fronteira não é o pioneiro (o desbravador, invasor), mas, antes, a vítima, isto é, a pessoa que não é vista, tampouco reconhecida, aquela que tem sua identidade negada, assimilada pela cultura hegemônica (Martins, 2018). Esse giro decolonial do olhar, presente nos estudos de Martins, é uma premissa cultural e ética de nossa pesquisa. Com efeito, consideramos que nos espaços de fronteira desenvolve-se, de modo peculiar, a colonialidade do poder (Quijano, 2005), estrutura de dominação tipicamente capitalista, que impõe assimetria e subordinação, estendendo-se à colonialidade do saber, uma vez que toda relação de hierarquização reverbera superestruturalmente nas instituições culturais e nas instituições educacionais e, de modo específico, nas práticas curriculares.
Além dessas referências conceituais geográficas, políticas e sociológicas (Santos, 19952; Martins, 2018), consideramos o referencial jurídico-político da Lei n. 6.634/1979, que definiu o conceito de faixa de fronteira no Brasil nos seguintes termos: “Art. 1.º É considerada área indispensável à segurança nacional a faixa interna de 150 km (cento e cinquenta quilômetros) de largura, paralela à linha divisória terrestre do território nacional, que será designada como Faixa de Fronteira” (Brasil, 1979), a qual compreende 588 municípios, distribuídos ao longo de 11 estados brasileiros (Uchôa, 2019). As teses buscadas na BDTD corresponderam a instituições relacionadas a essas faixas de fronteira e/ou nelas localizadas.
Identificamos, na Tabela 1, cada uma das oito pesquisas incluídas na categoria a) currículo nas fronteiras e, na sequência, apresentamos um sumário analítico de cada uma dessas pesquisas, sequenciadas conforme o ano de sua publicação, iniciando da mais antiga para a mais recente.
A primeira pesquisa identificada na categoria a) currículo nas fronteiras, a partir do critério da antiguidade, é realizada por Couto (2012) acerca do currículo como produtor de identidade e diferença. O estudo foi desenvolvido em duas escolas de fronteira, uma em Jaguarão (Brasil) e outra na cidade de Río Branco (Uruguay), ambas participantes do projeto de escolas bilíngues de fronteira. A pesquisadora ressalta que, embora as culturas (brasileira e uruguaia) não sejam estáveis o tempo todo, “[...] o currículo sustenta essa posição criando identidades fixas que se chocam com a ambivalência de pertencimentos culturais, próprios dessa fronteira. O currículo investe em posições de exclusão e negação” (Couto, 2012, p. 186). A ambivalência é destacada pela autora como uma peculiaridade da fronteira, a qual caminha ladeada com o hibridismo e rechaça os discursos que pretendem uma identidade pura e fixa. Nesse contexto, identidades e diferenças são produzidas por meio de lutas, conflitos e negociações.
Monteiro (2017) realiza uma análise dos documentos institucionais de uma universidade de fronteira criada por uma perspectiva contra-hegemônica. Trata-se da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), sediada em Chapecó/SC3, cuja proposta de ensino se apresenta a partir de um viés de diferenciação do modelo canônico que impera nas instituições de ensino superior do País. O pesquisador estabeleceu como objetivo verificar em que medida a UFFS se constitui uma instituição popular e quais os desafios para sua consolidação em tal condição. A partir dos escores obtidos, foi possível concluir que essa universidade está fundamentada na realidade sociocultural em que se insere, ouvindo as vozes e as necessidades dos povos excluídos a partir de matrizes curriculares inovadoras. De acordo com Monteiro (2017), a UFFS partilha suas decisões institucionais com os movimentos sociais, promovendo a gestão compartilhada e democrática. E afirma: “A UFFS ainda não está estabelecida plenamente como uma universidade popular, mas os dados aqui apresentados e analisados nos conduzem a considerá-la um novo modelo universitário de valorização epistemológica, social, curricular e de participação social [...]” (Monteiro, 2017, p. 154-155). Outro critério que corrobora o processo de inclusão nessa universidade é o que concerne ao acesso: mais de 90% das vagas são destinadas para alunos egressos de escolas públicas, via Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), todavia, no que se refere à permanência dos alunos, há que se ampliar a oferta de bolsas, um dos grandes desafios, pois o Programa de Bolsa Permanência não é capaz de atender a maioria dos estudantes.
A tese de Silva (2018), acerca das memórias de uma prática docente na tríplice fronteira: Brasil/Peru/Colômbia, tem como motivação de pesquisa o descaso com a Educação de Jovens e Adultos (EJA), mormente com os sujeitos não alfabetizados, moradores do Alto Solimões, estado do Amazonas. É complexa a realidade social dessa tríplice fronteira: Tabatinga (Brasil), Santa Rosa (Peru) e Letícia (Colômbia), dada a ausência de controle e proteção das populações residentes pelos respectivos Estados-Nações. Seus moradores, relegados ao abandono, são vulneráveis à pirataria e ao narcotráfico, o que aumenta a instabilidade da região. A pesquisadora ressalta que a EJA, entendida como direito, pressupõe uma práxis pautada pelo acesso, pela elaboração e reconstrução de saberes convergentes para a humanização e emancipação do ser humano. A partir da avaliação da proposta de formação do programa de letramento Reescrevendo o futuro, desenvolvido pela Universidade do Estado do Amazonas, Silva (2018, p. 169) destaca o acolhimento da Universidade a demandas sociais e suas diversidades, “[...] aproximando indígenas, agricultores, caboclos, população carcerária e, aproximadamente, treze mil comunitários e professores em formação”. Por fim, é enfatizada a necessidade de políticas públicas efetivas para esse contexto fronteiriço, com reflexos nas práticas de EJA, pois a ação analisada, exitosa, aliás, fez parte de um programa pontual, sem a garantia de continuidade e sustentabilidade, o que evoca a responsabilidade do Estado no desenvolvimento de políticas de formação docente, que reverberam nas práticas curriculares da EJA.
Voltada para os desafios e possibilidades da docência em área de fronteira, a pesquisa de Souza (2019) evidencia que são poucas as ações que legitimam o direito linguístico dos imigrantes no contexto escolar brasileiro. Pautada pela investigação bibliográfica e por narrativa auto(biográfica) de uma professora alfabetizadora, a pesquisadora explora experiências e saberes em uma escola situada na fronteira Brasil/Guiana Inglesa, no município de Bonfim, estado de Roraima. Ao considerar o caráter multilíngue e multicultural da sociedade brasileira, principalmente nas regiões de fronteira, conclui que urge refletir acerca da política monolíngue vigente no País, que desconsidera a diversidade evidenciada nas escolas fronteiriças. “Refletir sobre o conceito de pluralidade e diversidade na escola, a partir do reconhecimento das identidades presentes neste espaço, ou seja, identificando quem são os alunos, professores e funcionários da escola” (Souza, 2019, p. 145), constitui uma entre outras recomendações que a pesquisadora apresenta na conclusão de seu trabalho de doutoramento.
-
A pesquisa de Oliveira (2019), por sua vez, desenvolvida em uma escola de fronteira, Brasil/Venezuela, estado de Roraima, orienta-se a partir de três objetivos: pesquisar como se apresentam nelas as docências; conhecer suas práticas pedagógicas; e analisar seu currículo. A pesquisadora assinala que as práticas pedagógicas naquela escola de fronteira são marcadas pela ambivalência: de um lado, há docências que percebem as diferenças culturais como marcas da localidade; por outro lado, há docências que invisibilizam alguns sujeitos desse espaço, sobretudo os estrangeiros. Ela salienta, a partir das falas dos entrevistados, que os docentes percebem diferenças presentes no contexto da escola de fronteira, porém não sabem como incorporá-las a suas práticas pedagógicas, transformando-as em conteúdos de ensino. Destaca-se o relato de uma entrevistada:
[...] As escolas aqui têm padrão de escola particular, têm suporte, material, mas falta a formação, a questão de mobilizar, de motivar os ‘profes’, etc. [...] Não sei dizer o número exato, mas aqui tem muitos alunos venezuelanos, tem alunos indígenas daqui, alguns indígenas venezuelanos; [...]. Essa mistura muito grande dificulta tanto para o aluno quanto para o professor [...] (Oliveira, 2019, p. 229).
Quanto ao currículo, percebem-se práticas homogeneizantes, que suscitam a necessidade de implementação de políticas públicas direcionadas para a modificação das práticas pedagógicas (Oliveira, 2019).
A tese de Bueno (2019), embora não trate especificamente sobre currículo nas fronteiras, categoria analítica aqui em discussão, traz um estudo acerca do Programa Escolas Interculturais de Fronteira (Peif) para a formação de professores, na fronteira Brasil/Paraguai, o qual produziu ações diretas no currículo das escolas contempladas com o Peif. O Programa, resultante da parceria entre o Ministério da Educação, Universidades, Secretarias Estaduais e Municipais de Educação e Escolas nas fronteiras, apresentou uma proposta - inovadora, segundo a pesquisadora - na busca de interação entre os dois países por meio de suas escolas: de Ponta Porã (Mato Grosso do Sul - Brasil) e de Pedro Juan Caballero (Amambay - Paraguai). Contudo, ressalta a pesquisadora, não ocorreu o esperado Cruce. O Cruce seria uma atuação conjunta dos professores - brasileiros e paraguaios - por meio de práticas de intercâmbio, em que o professor brasileiro deveria cruzar a fronteira e ministrar aula na escola do Paraguai e o professor paraguaio ministrar aula na escola do Brasil, cada qual em sua língua materna, pelo menos uma vez por semana, como previsto no programa. Deu-se, pois, uma falha na efetivação dessa política supranacional entre ambos os países, que “[...] se apresentou ineficaz como uma política de formação continuada desses profissionais na fronteira pesquisada” (Bueno, 2019, p. 5).
-
Analogamente, a pesquisa de Alexandre (2019) também se propôs a analisar uma política pública em região de fronteira, a saber: os documentos fundantes, o Projeto Pedagógico Institucional, o Plano de Desenvolvimento Institucional e as Matrizes Curriculares da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), localizada em Foz do Iguaçu/Paraná, na tríplice fronteira (Argentina, Brasil e Paraguai). Segundo a pesquisadora, as análises foram realizadas a partir das perspectivas das epistemologias contra-hegemônicas presentes nos documentos da Unila. Essa instituição de ensino foi constituída com o intuito de apresentar uma proposta de ensino diferenciada, visando a integração dos povos latino-americanos e caribenhos na formação universitária. Para Alexandre (2019, p. 125):
O diálogo dos documentos fundantes e estruturantes da Unila com as epistemologias contra-hegemônicas indicam a necessidade de renovação nas formas didáticas e metodológicas dos processos de ensinar superior. Contudo, a análise profunda dos elementos específicos que desvelam a situação concreta dos mecanismos estruturais na Unila depende da articulação entre os diversos níveis de interpretações da realidade. [...].
Portanto, segundo a autora, o desenvolvimento de políticas bilaterais articuladas na fronteira requer a ampliação dos quadros de referência para uma maior independência das correntes hegemônicas que operam em seu interior, de modo a fortalecer as bases pedagógicas dos povos excluídos dos direitos e benefícios dessas fronteiras.
8. Encerrando a apresentação das pesquisas incluídas na categoria a) currículo nas fronteiras, temos a tese de doutoramento realizada por Uchôa (2019), a partir de um estudo acerca da política e das práticas de Currículo na Fronteira Brasil/Bolívia do estado de Rondônia, especificamente em seis escolas da rede estadual de ensino nas cidades de Guajará-Mirim e Nova Mamoré. A partir dos documentos analisados (Referencial Curricular de Rondônia4 e Propostas Curriculares das Escolas) e das entrevistas realizadas com alunos(as) imigrantes e descendentes bolivianos(as), identificou-se que, dada a inexistência de uma política curricular que reconheça a realidade de fronteira do estado de Rondônia, os preconceitos e as discriminações dirigidos ao/à imigrante boliviano/a, ainda que naturalizados brasileiros, reverberam também nas escolas brasileiras. Com isso, os alunos e as alunas imigrantes e descendentes têm suas identidades e culturas negadas e invisibilidades no currículo escolar, sujeitos/as a relações hierarquizadas de inferiorização. Desse modo, a pesquisadora é enfática em afirmar a necessidade da construção de políticas e práticas curriculares pautadas pela interculturalidade, que incorporem as diferenças e a diversidade, como construtos plurais de povos que são essencialmente marcados pela heterogeneidade. “Sem o reconhecimento do valor positivo da diversidade, a fronteira será sempre o lugar dos conflitos, e os seus moradores, condenados a relações hierarquizadas de inferiorização” (Uchôa, 2019, p. 139).
DECOLONIALIDADE E INTERCULTURALIDADE NO CURRÍCULO: DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
Segundo Souza (2014, p. 476): “Pensar em fronteira é tratar de limites, demarcações, o que pressupõe o dentro e o fora, o mesmo e o diferente. Tratar de fronteira é discutir a diferença e refletir sobre as formas de lidar com ela [...]” (grifos nossos). O conjunto das oito teses analisadas sob a categoria a) currículo nas fronteiras permite explicitar essa tensão entre o mesmo e o outro-diferente.
Nessas oito teses apresentadas, encontramos como principal ponto convergente a urgência de políticas públicas educacionais que atendam a demandas específicas do contexto de fronteira, espaço sui generis de conflitos e negociações, em que a pluralidade e a multiplicidade sociocultural são evidenciadas e reverberadas nos contextos escolares - tal como explicitado nas pesquisas de Couto (2012), Silva (2018), Souza (2019), Oliveira (2019) e Uchôa (2019). Igualmente, foi possível identificar políticas educacionais implementadas em uma perspectiva contra-hegemônica - tal como demonstrado nos seguintes trabalhos: de Monteiro (2017), que analisou a Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), instituição fundada para o atendimento ao amplo contexto social e cultural em que está inserida, a qual reconhece as demandas dos povos excluídos em sua proposta inovadora de currículo; de Bueno (2019), ao abordar o Programa Escolas Interculturais de Fronteira (Peif), que, apesar de ter apontado problemas na efetivação em duas escolas observadas, constitui-se uma importante política curricular de fronteira, “[...] comprometida com as necessidades dos contextos de fronteira entre o Brasil e os países vizinhos, pois, pelo ensino intercultural, não somente a língua do outro passa a ser valorizada, mas, a cultura, a história e a identidade” (Uchôa, 2019, p. 73); e de Alexandre (2019), que explicita a experiência da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), instituição direcionada para a integração dos povos latino-americanos e caribenhos na formação universitária.
O conceito de fronteira demarcado por Souza (2014) e os achados a partir da revisão de literatura nas oito teses pesquisadas desafiam as instituições educativas de fronteira à construção de currículos decoloniais e interculturais de modo a darem visibilidade aos conhecimentos constitutivos das identidades e culturas historicamente colonizadas e subalternizadas, o que implica o reconhecimento e a validação de novas epistemologias, que considerem a pluriversalidade de saberes e a libertação dos sujeitos culturalmente oprimidos.
O reconhecimento das diferenças individuais e coletivas e da diversidade no contexto educacional é condição para se promover a visibilização dos povos negados e oprimidos nos processos sociais e a libertação dos sujeitos outros do colonialismo histórico e do neocolonialismo.
A alteridade, assim, emerge como um tema inseparável do tema da fronteira. Como forma de preservação ou separação, entre nós e os outros, toda fronteira é um limite da alteridade (Casali; Camargo, 2020). No contexto da acepção mais literal de fronteira como Estado-Nação, tal como posta, anteriormente, por Santos (1995), cabe considerar preliminarmente que todo face a face da alteridade é originariamente político, e se situa nalgum ponto do continuum entre um máximo de fraternidade (um coletivo de concidadãos no pleno usufruto de seus direitos, sem distinção de nacionalidade, gênero, etnia-raça, classe social ou qualquer outra) e um máximo de opressão (um estado conflituoso de grupos e individualidades segregadas entre si, em relação maximamente assimétrica, agressiva e excludente). Nas faixas de fronteira de Estados-Nações, esse extremo de opressão assimétrica encontra-se, no limite, sob o registro do estranhamento recíproco: o outro visto como estrangeiro. É oportuno registrar: nenhuma outra posição político-cultural do outro/alter - mormente no mundo globalizado atual - é mais radical, mais vulnerável e sensível do que essa.
Herdamos, via léxico latino, parâmetros culturais ambivalentes para nossa relação com a alteridade - no caso, dos outros cidadãos com os quais convivemos em ambientes de fronteira. Referimo-nos a hostis e hospes, termos que, em Roma, originariamente, eram sinônimos, mas, curiosamente, com dupla significação: a de estrangeiro e a de hóspede (Torrinha, 1942). Essa aparente contradição é herança cultural da instituição grega denominada ksenía - traduzível em português aproximadamente como hospitalidade. A prática grega de ksenía era uma solução eticamente admirável para a relação com o estrangeiro, pois ξένος (ksénos) era o outro, o estrangeiro, mas podia significar também o extravagante, até mesmo o inimigo (de onde vem xenofobia); mas, ao mesmo tempo, ksénos era o hóspede (Pereira, 1998). É intrigante aquela experiência cultural grega, que permitia converter um estrangeiro, comumente visto como potencial inimigo, em hóspede, a ponto de acolhê-lo na própria casa e oferecer-lhe abrigo e alimento justamente por sua condição de desamparo. Em algum momento, posteriormente, passado o período de assimilação da cultura grega pelos romanos, os dois termos (hostis e hospes) se distinguiram e se separaram em significados opostos, agora inconciliáveis (hostis como inimigo: o hostil; e hospes como hóspede, que será também um comensal, o que compartilha a mesa). Na língua inglesa, curiosamente, conservou-se intacta uma parte do sentido originário desse conceito latino: pois host, hostel, não significa hostil, e sim hospedeiro, hospedagem.
Essas considerações buscam jogar luz sobre a radical ambivalência da nossa relação - como latinos - com o estrangeiro, esse outro mais radical, mais exterior, em sua alteridade. Essa ambivalência flagra, ademais, o inocultável reconhecimento de que o estrangeiro necessita e, portanto, moralmente, merece hospitalidade; ao mesmo tempo, ajuda a compreender - jamais a justificar - as resistências políticas e culturais hegemônicas de proteção às fronteiras do sistema estabelecido diante de uma suposta ameaça dos estranhos. Do ponto de vista ético, que parametriza estas nossas reflexões, a alteridade cobra direitos de reconhecimento, na igualdade que não a descaracterize e na diferença que não a inferiorize, segundo o clássico aforisma de Santos (2014).
A decolonialidade é outro tema inerente a uma posição crítica contemporânea, especialmente nesse caso de relações pedagógicas em ambiente de fronteira. Walsh (2009) é uma referência crítica a respeito: trata-se de ultrapassar o processo de descolonização e construir outros modos de vida, de poder e saber. O projeto decolonial é centrado na realidade concreta dos sujeitos colonizados e tem como propósito desafiar e transgredir as estruturas sociais, políticas e epistêmicas calcadas em padrões de poder que resultam na inferiorização de seres humanos. A decolonialidade implica uma prática de interculturalidade, que a autora designa de interculturalidade crítica (Walsh, 2012).
A interculturalidade crítica é uma práxis inerentemente decolonial, que não somente exige a superação do colonialismo histórico, mas também impõe a construção de uma posição insurgente, de luta perene: uma prática conceitualmente fundada no reconhecimento da existência de outras epistemologias e em sua promoção e desenvolvimento. A decolonialidade e a interculturalidade crítica coexistem (Walsh, 2019) e se complicam: a construção da interculturalidade crítica exige a visibilização, a subversão e a superação da matriz colonial de poder.
Para Walsh (2012), o diálogo intercultural crítico deve ser articulado com a sociedade, e não com o Estado - que o reduziria à tolerância, em um viés multiculturalista. Walsh (2012) distingue três modos de interculturalidade: relacional, funcional e crítica. A terceira perspectiva, da interculturalidade crítica, é assim descrita: “[...] com esta perspectiva, não partimos do problema da diversidade ou diferença em si, tampouco da tolerância ou inclusão culturalista (neo)liberal. Mais que isso, o ponto central é o problema estrutural-colonial-racial e sua ligação com o capitalismo do mercado” (Walsh, 2012, p. 65). A interculturalidade crítica é a que pode cumprir a máxima potência da alteridade e das diferenças, possibilitando questionamentos radicais e propiciando a construção de uma nova sociedade.
A interculturalidade crítica no currículo representa a possibilidade de rompimento com a hierarquia social que se reproduz nas práticas curriculares. Ela não subordina os conteúdos culturais aos conteúdos de tradição científica, ao contrário, cria narrativas contra-hegemônicas, que partem do reconhecimento e da valorização dos conhecimentos constitutivos das identidades e culturas até então negadas pelo processo de colonialismo. O resgate e a visibilização de tais conhecimentos são basilares para se desconstruir e desvelar a história narrada pelos colonizadores, afirmar a identidade dos sujeitos colonizados, reconhecer seus direitos e combater todas as formas de discriminação e intolerância, como a xenofobia, o racismo, o etnocentrismo, a aporofobia etc.
Na mesma linha encontra-se a pesquisadora moçambicana Emília Nhalevilo, considerada “[...] uma das cem personalidades africanas mais influentes da África lusófona (segundo dossiê organizado pela African Shapers” (Regis, Nhalevilo, 2022, p. 9). Nhalevilo (2013) sustenta o projeto de currículos locais - uma estratégia insurgente de libertação do modelo colonizador eurocêntrico que ainda predomina na tradição escolar, pautado por uma lógica globalizante de assimilação dos conhecimentos e saberes locais com a meta de sua diluição na totalidade dos saberes hegemônicos. O projeto do currículo local é uma estratégia de política pública para a educação que visa afirmar a positividade das culturas moçambicanas como reação e superação, ainda que tardia, do colonialismo.
Tal perspectiva não se constitui no desprezo e/ou na negação dos conhecimentos acumulados pela humanidade ao longo da história, mas configura uma mudança no ponto de partida das políticas e práticas curriculares, que devem ser permeadas pela afirmação do valor da realidade concreta e das subjetividades dos sujeitos no processo educativo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Brasil é um território com uma vasta área de fronteiras nacionais: são 16.885 km compartilhados com 10 dos 12 países da América Latina. São espaços de alteridade, tanto de encontros quanto de potenciais conflitos culturais. As relações nesses espaços de fronteira são inevitavelmente atravessadas pelos processos de hierarquização e embates predominantes na sociedade, nos âmbitos econômico, político e cultural. Dada a supremacia territorial e econômica do País na região - a qual não é estranha ao expansionismo que marcou a política externa do País, na primeira República, as relações culturais nas fronteiras tendem a dar-se predominantemente mediante processos de homogeneização e assimilação (quando não anulação) de línguas e identidades dos outros - vizinhos estrangeiros.
Essa realidade exige contundência na construção de práticas curriculares em que a identidade e a diferença coexistam sem oposição e subordinação, e sim por meio de processos de intercâmbio e negociação cultural. O currículo pautado pela interculturalidade crítica, assim, apresenta-se como uma estratégia contra-hegemônica, capaz de desvelar histórias negadas pelo colonialismo.
As oito pesquisas apresentadas na categoria a) currículo nas fronteiras são uma amostra promissora de um campo amplo e fecundo para pesquisas educacionais próximas e futuras nas regiões de fronteira deste país. Para tanto, urgem a construção e o desenvolvimento de pedagogias e currículos pautados pela decolonialidade e interculturalidade crítica, pois, como observa Uchôa (2019, p. 101), tal perspectiva:
[...] objetiva o diálogo entre as diferentes culturas presentes no contexto escolar, [...] que não subordina e nem hierarquiza os saberes, pautado no amor, humildade e respeito ao/a Outro/a.
Esse diálogo intercultural implica o reconhecimento da incompletude cultural, isto é, ao reconhecer que nenhuma cultura é completa e suficiente, o diálogo surge como uma estratégia de interação, conhecimento e aprendizagem mútua.
A relação intercultural exige a desconstrução de estigmas, marcas depreciativas que são erroneamente atribuídas aos grupos socioculturais [...].
[...] considera e respeita a alteridade, entende que a identidade não se opõe à diferença, mas se constrói a partir dela. [...].
Por fim, o currículo intercultural possibilita a libertação dos/as sujeitos/as, através de um pensar crítico que questiona, problematiza e resiste às práticas monoculturais que historicamente predominaram no contexto educacional, ao tempo em que resgata e desoculta os saberes das culturas negadas.
Esta pesquisa tem legitimidade na medida em que o Currículo interculturalmente orientado, eticamente referido, contempla a multidimensionalidade humana a partir das diferentes manifestações e saberes culturalmente produzidos por variados grupos sociais, de modo a constituir-se uma prática curricular alicerçada na história e na cultura de sujeitos de fronteira.