INTRODUÇÃO
Como professoras e defensoras da escola pública, compreendemos a função da palavra pública no sentido da ratificação de uma escola pertencente ao povo, a serviço de todos e todas. Isso posto, partimos do pressuposto de que a luta por uma educação equitativa é um dever inerente às pessoas que com ela se relacionam. No contexto escolar em que uma das autoras deste artigo está inserida como docente, através das inúmeras discussões coletivas sobre multiculturalismo, inclusão, diversidade, entre outras questões que permeiam reflexões sobre o fazer pedagógico no trabalho com crianças, foi possível vislumbrar que, por meio da formação de educadores e educadoras, bem como do fomento de diálogos acerca de determinados assuntos, ocorreriam, gradativamente, importantes mudanças. Além disso, haveria uma diminuição do medo diante de questões até então desconhecidas e veladas. Contudo, na busca aparentemente inerme pela singularização da infância, neutralizam-se as desigualdades sociais, as questões de gênero e étnicoraciais, as formações familiares e rotinas vivenciadas, o que influencia diretamente a qualidade de permanência escolar das crianças das classes populares. Tal inquietação torna-se ainda mais latente ao olhar as crianças em situação de institucionalização, que estão sob tutela do Estado.
Por institucionalização, entendemos a medida de proteção provisória e excepcional estabelecida no ECA (BRASIL, 1990), que prevê afastamento familiar e acolhimento em entidades institucionais nos casos em que são ameaçados ou violados os direitos das crianças e adolescentes previstos no mesmo Estatuto, que reconhece o seu direito à proteção integral. Essa medida é aplicada transitoriamente e visa à reintegração familiar ou à colocação em família substituta (BRASIL, 2009a). Cabe ressaltar que, sobre os serviços de acolhimento que acompanham a criança que se encontra sob tutela do Estado, o termo abrigo atualmente foi substituído pelo termo acolhimento institucional (BRASIL, 2009b).
Observando com maior clareza a situação desumanizante que, em algum momento, cercou e ainda cerca esses meninos e meninas acolhidos(as), um sentimento de rebeldia diante das injustiças nos faz ter a convicção de que a mudança, apesar de difícil, é possível (FREIRE, 2019b). Era justamente sobre a parcela social que fica à margem, até mesmo nas discussões sobre educação inclusiva, que almejávamos encontrar respostas e possiblidades.
Compreendemos, portanto, que é preciso um movimento intenso de representação dos diferentes, dos outros sujeitos, no chão da escola, a fim de estabelecer uma possibilidade de luta contra as formas de controle vigentes. Nesse sentido, Arroyo (2014, p. 123) faz uma crítica à forma como são vistos socialmente esses outros sujeitos que “[...] carregam as desigualdades porque como diferentes em etnia, raça, classe são inferiores. Nasceram desiguais, inferiores, sub-humanos. Uma condição de origem”.
Aquilo que o autor considera condição de origem nos remete justamente às relações de dominação, muitas vezes perpetuadas nas estruturas do sistema educacional brasileiro, em consequência das diferenças historicamente postas como justificativas para subordinação dos atores sociais que dela fazem parte, uma vez que “[...] ao longo da história há uma estreita relação entre as formas negativas de pensar o povo e a legitimação das estruturas e dos padrões de poder [...] e da negação da escola” (ARROYO, 2014, p. 123).
A negação aqui pode se dar não pela literal impossibilidade de estar no ambiente escolar, mas sim de sentir-se parte dele, dadas as (in)visibilidades. Estar na escola, por si só, não assegura aprendizagens e vivências humanizadoras.
Diante disso, é preciso reconhecer que somos cômputo das vivências que nos são propiciadas, ao lado das intersecções entre as formas de diferença, dominação e opressão que nos acompanham na perspectiva dos sistemas excludentes e que “[...] as violações de direitos podem contribuir para que crianças e adolescentes se tornem invisíveis para os governos e para a sociedade de um modo geral” (COUTO, RIZZINI, 2021, p. 2).
Reconhecidas as desigualdades, a fim de prevenir estigmatizações, ao compreender a criança como parte integrante e atuante da sociedade, passamos a observar o quanto os marcadores de opressão que lhes são impostos sancionam e favorecem as dificuldades apresentadas na escola. Entretanto, o que pode ser observado dentro e fora do ambiente escolar é a busca constante pela apartação e segregação dos(as) considerados(as) diferentes, tal qual uma restringência e certa desimportância com relação as categorias identitárias.
Nesse sentido, lançar mão de um olhar no viés interseccional para compreender quem são as crianças em situação de acolhimento institucional permite uma análise mais completa, pois abrange as sobreposições de opressões a que estão expostas por fatores étnico-raciais, de gênero, classe social, idade, entre diversos outros marcadores observáveis. Sobre a subordinação de cunho interseccional, Crenshaw (1993, p. 1249, tradução nossa) assevera que ela “[...] não precisa ser produzida intencionalmente; na verdade, é frequentemente a consequência da imposição de um fardo que interage com vulnerabilidades preexistentes para criar mais uma dimensão de destituição de poder”.
Pensando a escola também como ambiente de disputas envolvendo o poder, no qual há possibilidade constante de combate ou intensificação das opressões impostas às nossas crianças, tratamos da interseccionalidade sem a pretensão de discutir, de forma ampla, os motivos pelos quais os marcadores de opressão estão postos, mas sim a existência desses marcadores, bem como os efeitos e vulnerabilidades ratificados pela ausência de reconhecimento dessas crianças nos modelos apresentados, tal como a falta de algo que as individualize e as faça sentir pertencidas ao currículo escolar. Isso porque “Os marcadores, como classe, raça e idade, também influenciam diretamente as vivências e os modos pelos quais os sujeitos estabelecem sua relação na sociedade, tornando fundamental pensarmos o contexto social de um modo interseccional” (FARIA, SANTIAGO, 2021, p. 6).
Nesse sentido, atentando-se ao modo como as práticas docentes interferem diretamente na educação oferecida a esses(as) meninos e meninas, a pesquisa1 (MOURA, 2021) aqui relatada parte da seguinte pergunta orientadora: como professoras e professores de escolas municipais na região do Grande ABC Paulista vêm desenvolvendo seu trabalho com as crianças em situação de acolhimento institucional? O objetivo geral do trabalho foi o de compreender como vem sendo construído o fazer pedagógico no cotidiano da escola com crianças sob tutela do Estado, segundo a percepção dos(as) docentes. Quanto aos objetivos específicos, procuramos caracterizar, a partir dos documentos legais, quem são os(as) meninos e meninas em situação de acolhimento institucional, pelo viés interseccional. De acordo com Demartini (2009, p. 8), “[...] é preciso verificar quais são as marcas de cada criança, as marcas de cada infância e os processos de socialização”. Pensando nessas especificidades e na sua direta relação com o processo escolar, buscamos verificar e analisar as percepções dos(as) docentes sobre quem são esses(as) meninos(as) e a educação que lhes é oferecida. Ademais, tencionamos identificar, nos relatos dos(as) educadores(as), o trabalho pedagógico realizado com essas crianças e analisá-lo.
Partimos da hipótese de que professores e professoras que atuam ou já atuaram com meninas e meninos em situação de acolhimento institucional, diante do desconhecimento da escola sobre as especificidades dessa relação, encontram desafios, em sua prática pedagógica, para reconhecer e considerar o protagonismo dessas crianças, com vistas a diminuir os danos causados pelos marcadores sociais de opressão que as acompanham.
Na construção da pesquisa aqui apresentada, optou-se por uma abordagem qualitativa de caráter exploratório. Uma vez que lançamos luz a temas abrangentes, que envolvem desde a caracterização de quem são as crianças institucionalizadas, passando pela análise das práticas pedagógicas, até a percepção do corpo docente sobre a temática, optamos pela análise documental e entrevista como procedimentos de coleta de dados.
Por serem as crianças em situação de acolhimento institucional sujeitos de direitos, na maior parte das vezes, os seus históricos estão atrelados a casos que seguem em segredo de justiça. Por essa razão, a possibilidade de localizá-las é legitimamente dificultada. Sendo assim, optamos pelas formas de coletas possíveis e úteis para o estudo nos moldes em que foi feito, sem que, de nenhuma forma, fossem feridos os direitos de todos(as) os(as) que fazem parte.
As entrevistas foram realizadas em formato on-line e, portanto, seguimos os procedimentos e orientações para pesquisas em ambientes virtuais que constam do Ofício Circular n. 2/2021/CONEP/SECNS/MS. Para tal, a escolha das(os) participantes respaldou-se na técnica bola de neve ou snowball sampling e obedeceu ao seguinte critério: professoras e professores que atuam ou atuaram com crianças sob tutela do Estado nas escolas municipais do ABC paulista. Assim, participaram da pesquisa quatro professoras e dois professores, sendo duas docentes da educação infantil e quatro do ensino fundamental I.
Dado o caráter interacionista da entrevista como ferramenta metodológica, dialogamos com os(as) respondentes sobre a temática abordada com o objetivo de que pudessem pensar sobre a forma como enxergam os(as) estudantes sob tutela do Estado e como lidam, no ambiente escolar, com as especificidades atreladas a essas crianças, expondo, inclusive, quais são, em suas visões, as
idiossincrasias existentes e suas implicações nas rotinas escolares. Compondo intencionalmente o grupo que participou desta pesquisa, são estes os olhares que quisemos aqui anteferir: a visão atenta destes(as) profissionais que merecem ter suas vozes amplificadas e compartilhadas.
Que possamos com este artigo, acreditando na dialogicidade da educação e em seu caráter emancipador, fomentar debates que contribuam para a desconstrução dos preconceitos arraigados e assegurar às crianças, institucionalizadas ou não, em especial no chão da escola pública, um ambiente no qual se respeitem suas singularidades e se valorizem suas vivências e culturas.
A CRIANÇA EM SITUAÇÃO DE ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL E A ESCOLA: UM OLHAR INTERSECCIONAL
De início, lembramos o quanto a história deixa marcas, por vezes negativas, que podem ser vistas e sentidas ao longo de décadas e até mesmo séculos, apesar dos avanços alcançados em nossa sociedade. Freire (2019a, p. 20) reconhece que “[...] a História é tempo de possibilidade e não de determinismo, que o futuro [...] é problemático e não inexorável”. Nesse sentido, a compreensão do tempo presente exige o estudo do passado, reconhecendo que a história é dinâmica e que, a cada contexto, são possíveis novas interpretações, que nos distanciam da ideologia fatalista imobilizante.
Mudanças significativas ocorreram no que concerne à institucionalização ao longo dos anos. Reconhecemos sua importância, principalmente no âmbito das políticas públicas. Apesar desse reconhecimento, em concordância com o que aponta Freire acerca da articulação entre a história, a cultura e a educação, discorremos também sobre o quanto a história desigual e parcial reverbera até hoje.
No Brasil, a história da institucionalização vem de longa data e é marcada pela expressa preocupação com o controle social. O final da década de 1970 e início da década de 1980 foi um momento de transição política brasileira. O país, que por quase duas décadas permanecia rendido ao regime militar, passou a ter cada vez mais as posturas de dominação e subserviência questionadas pelo povo que, impulsionado pela organização dos movimentos sociais populares, revelava suas inquietações. Arroyo (2014, p. 17) considera que os movimentos sociais “[...] representam uma reação ao pensamento e às práticas, abissais com que foram inferiorizados. São vítimas resistindo a processos de decretá-los na inexistência, na subalternização”.
Nesse cenário, a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em 1990 trouxe importantes contribuições, uma vez que, modificou a forma como devem ser tratadas as crianças e adolescentes, ratificando seus direitos. O documento demarca limites, responsabilidades do Estado, redesenha as regras para o acolhimento de crianças e adolescentes de modo que ocorra a garantia de direitos desta parcela social, sendo excepcional, provisória, tornando-se política pública, com parâmetros a ser seguidos, de modo que não sejam reforçadas visões inadequadas dos rótulos atribuídos a essas crianças. Todavia, após três décadas da sua promulgação, o Brasil encontra ainda inúmeras dificuldades para assegurar que a Lei seja cumprida em sua completude, garantindo o desenvolvimento integral de nossas crianças e o apoio previsto às famílias.
Destarte, nos cabe combater o dilema instaurado no Brasil entre fatalismo e resistência, rompendo com os estereótipos inferiorizantes, segregatícios, marginalizantes atribuídos às camadas sociais mais pobres. Os(as) filhos e filhas paupérrimos(as) da nossa Pátria Mãe Gentil não podem ter em suas crianças um meio de intervenção e manipulação Estatal, que vela em suas afáveis ações todo encalço e coima historicamente perpetuados.
Pensando nas crianças em situação de acolhimento e as realidades por elas vivenciadas, os dados sobre a motivação da institucionalização são alarmantes e estão diretamente ligados às situações de vulnerabilidade, exploração e violência extrema a que estão submetidas muitas destas crianças. As maiores incidências de motivações dos acolhimentos na região do Grande ABC, em consonância aos dados em nível nacional, são: negligência 14%; abandono 13%; responsáveis com dependência química 13%; violência doméstica 13%; abuso sexual de responsáveis 13%. Estes números, fornecidos pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP, 2019) apontam as dificuldades atreladas aos contextos em que vivem, o que desmistifica a ideia de culpabilização dos(as) responsáveis por suas condições, muitas vezes, também de origem: nascem desiguais; crescem desiguais. Arroyo (2019, p. 109) salienta que essa condição de discriminação relacionada aos grupos sociais, raciais se revela atualmente em “[...] desprezos, medos, fobias, criminalizações reforçados como políticas de Estado”.
No recorte de gênero, os números confirmam alguns dos marcadores de opressão atrelados ao gênero feminino em um contexto ideológico patriarcal e machista que considera a mulher um objeto de desejo e propriedade. Entre as meninas, nota-se predominância de violência doméstica sexual e submissão à exploração sexual, violência ou abuso extrafamiliar, além dos casos relacionados a gestações anteriores à maioridade (ASSIS, FARIAS, 2013).
O Levantamento Nacional de Crianças e Adolescentes em Acolhimento Institucional e Familiar, segundo Assis e Farias (2013) apontam a questão racial como um importante fator de vulnerabilidade no que concerne à institucionalização, visto que 58% dos(as) acolhidos(as) são caracterizados(as) como pretos(as) e pardos(as). Na região Sudeste, os números apresentam ainda maior disparidade, uma vez que 86% são caracterizados(as) como pretos(as) e pardos(as). É o reflexo de um país que, em todo o continente americano, por meio do tráfico negreiro, foi o que mais recebeu africanos(as) para serem escravizados(as).
Salientamos que a história da escravidão brasileira não corresponde a um período de passividade por parte dos(as) oprimidos(as). Ela foi marcada pela resistência do povo escravizado na luta por sua libertação. No entanto, a abolição não fomentou medidas de suporte aos(às) libertos(as) que, imersos(as) em uma situação de preconceito e exploração, continuaram vitimizados(as) pela falta de acesso a recursos, oportunidades e estudo. Em suma, a política classista não havia sido abolida.
Pensando nesse marcador social de opressão, não podemos deixar de salientar que, conforme defende a interseccionalidade, sua sobreposição junto aos demais possíveis marcadores acarreta diferentes desdobramentos e encaminha os sujeitos a lugares distintos em nossa sociedade desigual, na qual os processos de segregação são acentuados. Nesta perspectiva, Akotirene (2019) propõe que toda e qualquer discussão envolvendo o debate acerca das diferenças, os marcadores de opressão e direitos humanos seja contextualizada historicamente, pois não há possibilidade de descolamento entre passado e presente nas considerações sobre a temática. Além disso, ela ressalta que, nesses diálogos, é importante a visão dos que de fato são vitimizados(as) pelas práticas segregatícias e pela desumanização atrelada ao racismo estrutural.
Seguimos infelizmente com um Brasil marcado pela segregação racial, em que a pobreza, de maneira ferrenha, atinge os negros e negras até os dias atuais, negando-lhes igualdade de acesso e oportunidades. Isso incide diretamente sobre as crianças em situação de alto risco. São elas que, diante do abandono do Estado e da negação por parte da sociedade, acabam sob acolhimento institucional, sem algo que as individualize em um mundo que as oprime.
Acreditamos que as políticas públicas, quando articuladas em conjunto e de maneira eficiente, tendem a minimizar os índices de violências, além das vulnerabilidades e dos riscos sociais que carregam em si. Assim, cabe à escola não corroborar a manutenção das opressões em seu chão, oferecendo a essas crianças um ambiente acolhedor, equitativo, por meio de uma educação integral e emancipadora.
Diante do reconhecimento dos marcadores sociais de opressão que as acompanham - e sabendo que ser bebê, criança, pobre, institucionalizada, negra, parda, branca, indígena, menina e menino coloca esses sujeitos em determinados locais sociais que ditam muitas de suas vivências e subordinações -, comecemos a olhar o chão da escola pública como local que revela, por vezes, a representação de uma sociedade mantenedora das situações opressoras normatizadas e relativizadas. Negros(as), pobres, indígenas e tantos outros sujeitos, por estarem em desacordo com o currículo monocultural e reducionista vigente, são marginalizados(as) e excluídos(as) das discussões pedagógicas, o que concerne, de inúmeras formas, às crianças em situação de acolhimento institucional.
Saberes e fazeres pedagógicos no cotidiano da escola com crianças sob a tutela do Estado: percepções docentes
O viés interseccional que acompanha esta pesquisa contribui para a discussão acerca do modo como vem sendo construído o fazer pedagógico no cotidiano da escola com crianças sob tutela do Estado, na medida em que permite considerar suas vivências nas rotinas escolares, tal como os marcadores de opressão que as acompanham, sejam fatores etários, étnico-raciais, de classe social, gênero, entre outros, bem como suas sobreposições e seus desdobramentos. Partindo dessa premissa, buscou-se, inicialmente, verificar as percepções docentes sobre quem são os(as) meninos(as) institucionalizados(as).
Quando lhes foi perguntado como definem, a partir de suas experiências docentes, as crianças em situação de acolhimento e se, em suas opiniões, haveria diferenças entre essas e as demais crianças, todos(as) os(as) participantes, exceto uma aludem à carência como característica comum aos(as) estudantes sob tutela do Estado. Ademais, ressaltam a necessidade do caminho afetivo para atingi-las, conforme verificamos no relato de Carolina (15/07/2021): “[...] são crianças extremamente frágeis, com nível de ansiedade extremo e muitas vezes depressivas” e de Hugo (01/07/2021): “Elas chegam carentes de atenção”.
A preocupação levantada pelos(as) docentes, com relação à necessidade de um caminho afetivo e carinhoso para que as crianças em situação de acolhimento sejam alcançadas na escola, reitera a defesa de Paulo Freire no sentido de não temer essa proximidade. Pelo contrário, os(as) docentes precisam se conscientizar de que a prática pedagógica deve enveredar pelo caminho da amorosidade. Na pesquisa, defendemos uma pedagogia amorosa inspirada no autor, na qual as crianças, incluindo as sob tutela pública, são consideradas em suas especificidades e acolhidas em suas necessidades, justamente no caminho da afetividade, gentileza e empatia (FREIRE, 2020).
A problemática das crianças tachadas e, desse modo, desassistidas no ambiente escolar é levantada pelos(as) docentes como uma grande questão a ser repensada pela instituição escolar. Assim, eles(as) denunciam as exclusões sociais que são, por vezes, reproduzidas no chão da escola. Ao serem questionados(as) sobre a existência ou não de diferenças entre as demais crianças e as institucionalizadas, os rótulos por eles(as) mesmos(as) denunciados aparecem, em alguns momentos, nas suas próprias falas, como podemos observar: “[...] você sabe que está lidando com um ‘problemaço’. Tem a questão da escola que faz diferença, tem a questão das outras famílias que fazem diferença, o próprio grupo docente, muitas vezes, faz diferença” (Léa, 04/07/2021).
Os relatos não trazem questões positivas que pudessem ser atribuídas à criança institucionalizada. Ao contrário, há uma visão geral dessas crianças como sujeitos de faltas, de carências. Não são citadas como inteligentes, curiosas, guerreiras, sobreviventes, produtoras de cultura, por exemplo. Isso denota uma visão reducionista, que inclusive afasta esses(as) meninos(as) das características infantis mais defendidas nos estudos sobre a infância e na própria legislação brasileira, como se perdessem o próprio direito de serem crianças. Até mesmo quando há um efêmero elogio, como a esperteza observada por um dos entrevistados, ele vem acompanhado de uma certa crítica: “[...] não são bobos; eles são mais espertos nas questões do dia a dia. Não nas questões de aprendizagens, mas não são bobos” (Hugo, 01/07/2021).
O diálogo e a construção de um pensamento afirmativo sobre as crianças institucionalizadas são um caminho para repensar as pedagogias a elas oferecidas, bem como para enfrentar o pensamento abissal que as inferioriza e justifica a negação de direitos a que estão submetidas ao longo da história. A escola precisa estar atenta e preparada para lidar com a reação dos corpos institucionalizados, com o que trazem para o interior das instituições, em razão de suas vivências devastadas. Sobre isso um dos participantes pontuou:
Enquanto eu tenho um aluno fofo, que estuda, maravilha, mas o aluno que me desafia é muito complicado porque a gente não sabe lidar com aquilo que a gente não consegue impor. Quando sua imposição de nada serve, você não sabe o que fazer. Talvez por isso eu acredite nessa questão de conhecer e acolher o aluno, aí você vai por outro caminho. Para chegar nisso é preciso muita aprendizagem, muita formação, até mesmo em nossa formação inicial. A gente acaba ‘entrando na onda’ do que a escola já estava fazendo, a gente vai reproduzindo aquilo que a escola já estava fazendo porque primeiro você entra e te dão uma sala (risos) e te falam: é sua! Não te orientam em nada, como você faz uma sondagem, como você guia a aprendizagem desses alunos, não te orientam em como você pode conhecer esses alunos (Valter, 30/06/2021).
O professor defende que os processos educacionais não se restringem ao espaço escolar. Por isso, é necessário um olhar diferenciado a fim de compreender que os(as) estudantes são seres individuais, coletivos e sociais. Para ele, a formação inicial e a permanente deveriam possibilitar esse olhar. O professor denuncia que a sala de aula é dada aos(às) docentes sem orientações e sem um efetivo acompanhamento. Nesse sentido, as complicações trazidas pelo(a) estudante que desafia os processos educacionais - para as quais as imposições de nada servem - podem ser superadas por meio do acolhimento. Este, por sua vez, só é possível em uma relação realmente dialógica, na qual o(a) docente, quando não contaminado pelo pessimismo rotineiro que acompanha muitos(as) profissionais da educação, está disposto a conhecer o(a) educando(a). Para Freire (2021, p. 248), uma questão central da docência é pensar “[...] como diminuir a distância entre o contexto acadêmico e a realidade de que vêm os alunos, realidade que devo conhecer cada vez melhor, na medida em que estou de certa forma, comprometido com o processo para mudála?”.
Já o entrevistado Hugo acredita que as crianças se sintam muito pertencidas ao ambiente escolar, dadas as uniformizações, uma vez que utilizam as mesmas vestimentas, comem as mesmas comidas e têm acesso aos mesmos instrumentos: “[...] ele é igual a todo mundo, tem uniforme, tem os mesmos direitos, tem os mesmos deveres e isso faz com que ele se sinta no grupo. Ele não tem a questão de pensar que é diferente. Não! É igualzinho, tudo a mesma coisa” (Hugo, 01/07/2021).
Na fala do docente, aparece constantemente a defesa em uniformizar as vivências infantis como meio de efetivação de uma prática inclusiva, como se negasse as diferenças, embasado em uma falsa ideia homogeneizadora de que são todos iguais, e as singularidades dessas crianças e suas histórias de vida não interferem no modo como experenciam as rotinas escolares.
No que tange à formação docente inicial e permanente, todos (as) os(as) docentes têm ensino superior, e quatro cursaram anteriormente o Magistério. Cinco participantes são pósgraduados(as), e um deles finalizou o Mestrado em Educação. Quando questionados(as) sobre as formações e orientações específicas com relação à criança em situação de acolhimento institucional, cinco responderam negativamente e somente Hugo contradisse tal posição.
A afirmação das professoras e do professor sobre a total ausência de formações que contemplem as crianças institucionalizadas, inclusive nas escolas que são geograficamente propensas a receber esses(as) estudantes, dada sua proximidade com os serviços de acolhimento, é alarmante. Mesmo nas instituições em que, ano após ano, são recebidos(as) esses(as) meninos(as), suas presenças são invisibilizadas nos momentos de encontros entre educadores(as).
Na tensão entre os(as) profissionais que transgridem as normativas homogeneizadoras e segregatícias e os(as) que consentem os processos excludentes e reagem às transgressões, a categoria docente tem sido polarizada e desfigurada, uma vez que, sem a formação permanente e a abertura ao diálogo constante, fica difícil superar os modelos escolares ultrapassados. Em razão disso, os momentos de compartilhamento entre professores e professoras, de construção coletiva de uma escola verdadeiramente acolhedora, são minados e desencorajados, pois ameaçam os órgãos centrais normalizadores da instituição escolar em moldes classistas.
Desse modo, os relatos são unânimes em apontar a necessidade de formações permanentes que envolvam a diversidade escolar, inclusive as crianças sob tutela pública, como podemos observar: “[...] eu me virei do jeito que encontrei, mas não sei se era o certo, se era o correto aquilo. Então eu acho que tem sim que ter formação” (Simone, 09/07/2021).
Vivemos em uma sociedade brutalmente marcada por mecanismos estruturais de subalternização e marginalização. Isso nos leva a questionar a fala da professora Ana (12/07/2021) quando, mesmo reconhecendo que a maioria das crianças acolhidas é negra e que as formações docentes precisam abarcar questões relacionadas à negritude e desconstrução de preconceitos, diz acreditar que esses(as) meninos(as) não devem ser vinculados a qualquer questão racial, afirmando: “[...] você pode colocar mais um rótulo: ‘além de ser negro é abrigado ou além de ser abrigado é negro’. Não! Não necessariamente. Isso vai fortalecendo os rótulos que a criança carrega e não agrega”.
Todos(as) os(as) participantes dessa pesquisa se reconhecem como brancos(as), o que os(as) distancia no lugar de fala das maiorias minorizadas, daqueles e daquelas que vêm lutando infindavelmente pelo reconhecimento e representação de seus corpos, inclusive no chão da escola. O relato de Ana sugere que, na visão da docente, raça e institucionalização são rótulos negativos, melhor velados do que enfrentados, que devem ser refletidos, mas sem embates diretos.
A invisibilidade dos(as) acolhidos(as) está interseccional e cumulativamente atrelada aos diversos marcadores sociais que os(as) acompanham, sendo necessário ponderarmos sobre os locais de onde os sujeitos arrazoam os desdobramentos relacionados às suas identidades, em uma sociedade desigual, segregadora, machista, patriarcal, racista, classista, elitista, adultocêntrica. Por essa razão, é preciso considerar as sobreposições de subalternização em que se encontram. Para Candau (2011, p. 246), as diferenças “[...] devem ser reconhecidas e valorizadas positivamente no que têm de marcas sempre dinâmicas de identidade, ao mesmo tempo em que combatidas as tendências a transformá-las em desigualdades, assim como a tornar os sujeitos a elas referidos, objeto de preconceito e discriminação”.
A diferença, não como problema a ser superado, mas como emolumento pedagógico, conduz a escola no caminho da pluralidade, de modo a não partir da igualdade, demonstrando um olhar amoroso para os(as) que diferem do que é comumente apontado como padrão de normalidade e superioridade. O empoderamento passa pelo reconhecimento positivo do que se é, e da construção emancipada do que se pode ser.
Assim como a autora, acreditamos ser a articulação entre diferença e igualdade, a valorização da diversidade para além de seu reconhecimento, o ensejo para a construção de uma escola humanizada e emancipadora. A perspectiva de uma instituição democraticamente combatente a toda forma de silenciamento e invisibilização, na qual os conhecimentos não são transferidos, mas produzidos entre todos(as) os(as) que da educação participam, professores(as), estudantes, gestores(as), funcionários(as), permite em sua justeza, que ao fim de cada dia, saiam todas e todos da escola com a convicção de que são protagonistas das aprendizagens ali construídas e compartilhadas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O contexto histórico da institucionalização no Brasil teve importantes avanços no seio das políticas públicas. Entretanto, as disparidades sociais perpetuadas acabam por marcar situações de parcialidade e dessemelhança na assistência às crianças pobres, balizada pela expressa preocupação com o controle social.
A instituição escolar, por sua vez, sempre esteve a serviço dos projetos políticos de segregação, elitização, homogeneização e controle. A compreensão da proposta de diálogos acerca dos outros sujeitos, no chão da escola pública, como luta inerente ao ato educacional nos trouxe à presente investigação, uma vez que as buscas iniciais acerca do tema já desvelaram as situações de (in)visibilidades a que são sujeitadas as crianças sob tutela pública, ora visibilizadas no viés dos preconceitos estruturais que as rodeiam, ora invisibilizadas em suas especificidades e necessidades. De todo modo, radicalmente não reconhecidas e representadas.
Um dos caminhos de diálogo utilizados nesta investigação foi a interseccionalidade, termo cunhado pelo feminismo negro para não somente apontar a sobreposição ou intersecção de identidades sociais, sistemas relacionados de opressão, dominação ou discriminação, mas também para refletir sobre os desdobramentos desses marcadores de opressão na vida daqueles e daquelas que são por eles subjugados(as).
Os documentos legais mostram que as crianças institucionalizadas são pobres, em sua grande maioria pardas ou negras, frutos de vivências, muitas vezes, de negligência, abandono, violências físicas e sexuais. São, portanto, as maiores oprimidas entre os(as) oprimidos(as), invisibilizadas, silenciadas, marginalizadas, vítimas do sistema excludente em que está pautada nossa sociedade. Apesar disso, não houve consenso entre os(as) participantes quanto ao papel segregatício das questões raciais que as assolam, como claramente ratificam os dados nacionais. Alguns sequer consideraram esse marcador social de opressão em suas falas; outros(as), em consonância com o racismo estrutural, acreditam que rotular a criança de acordo com sua raça é mais uma forma de subjugá-la e expô-la.
As crianças consideradas vulneráveis, violentas e silenciosas são, na verdade, vulnerabilizadas, reativas porque violentadas e silenciadas. São tantos os aprisionamentos, que deles dimana o desejo de voo, descrito no relato sobre a fala de um estudante institucionalizado que ficava sentado na janela da casa de acolhimento, pensando que queria ter asas. Ao perguntar à criança o motivo, a educadora recebeu como resposta: “[...] porque eu vejo passarinho voando e vai para onde quiser. Se eu tivesse asas também ia”. Como disse Marielle Franco 2(presente!) “[...]
as rosas da resistência nascem do asfalto”. A rigidez com que a vida se impõe a esses meninos e meninas, com seus corpos atravessados pela violência brutal das políticas de exclusão os leva à escola com marcas e resistências que precisam ser consideradas, valorizadas, contextualizadas. Seria esse desejo fruto da angústia diante das negações impostas pelas injustiças vivenciadas? Faísca da liberdade? Intuição de que é possível sobrepujar o fatalismo? Desespero, tristeza, solidão? Sonho de criança?
Sem que consigamos responder ao que querem nos dizer esses corpos, diante de tantas questões ainda não decifradas, com a pesquisa, almejamos contribuir com a construção de uma educação dialógica, crítica, que reconheça essas e outras indagações, e em que a infância popular possa na escola pública encontrar mais possibilidades do que limites, sem a pretensão, em nenhuma medida, de criar um manual docente ou uma receita pedagógica, reconhecendo a necessidade de mais estudos envolvendo a temática, em virtude da escassez de pesquisas relacionadas às crianças acolhidas. Intentamos fomentar diálogos, reflexões, ações formativas e a construção coletiva de uma identidade profissional combatente em face dos projetos de desigualdades e dominações, contra qualquer tentativa de homogeneização, elitismo, subjugação, controle, a favor da democracia, pluralidade e diversidade, ativa na luta política que envolve o seu fazer, militante na defesa pela libertação dos(as) estudantes e, sobretudo, ética, corajosa, emancipadora e amorosa.