INTRODUÇÃO
A criatividade é uma das qualidades humanas mais relevantes, nos diversos contextos sociais, essencial às transformações culturais e econômicas, intrínseca ao desenvolvimento das altas habilidades/superdotação (Alencar et al., 2015; Renzulli, Reis, 2016). A articulação entre criatividade e altas habilidades/superdotação (AH/SD) possibilita um entendimento do desenvolvimento do potencial humano, inclusive no âmbito das artes visuais.
Nesta investigação, situa-se a teoria de Renzulli (2014, 2021), que realiza, desde 1980, estudos sobre o desenvolvimento da superdotação, assim como incentiva o reconhecimento de tais pessoas, não raramente, invisibilizadas quanto às suas potencialidades ao longo da vida. Renzulli (2014) e Renzulli, Reis (2016) explicam as AH/SD a partir da interação de três grupos de traços comportamentais: a habilidade acima da média, o comprometimento com a tarefa e a criatividade, descritos no seu modelo dos três anéis, ainda que não estejam igualmente desenvolvidos. Portanto, acredita-se em uma visão relativa da superdotação, na influência do ambiente e das características de personalidade. Essa teoria é interligada à esfera educacional e tem contribuído para o planejamento de políticas públicas brasileiras para a observação e identificação de comportamentos indicados como acima da média, em termos de frequência e intensidade, em crianças e adolescentes.
Outrossim, adotou-se o modelo sistêmico da criatividade, de Csikszentmihalyi (2009, 2014), que amplia a compreensão sobre o fenômeno, demonstrando a relevância de ambientes apropriados para o desenvolvimento criativo. Nesse modelo, a criatividade acontece a partir da interação complexa e mútua entre três fatores: o domínio (cultura), a pessoa (habilidades, personalidade e genética) e o campo (sistema social), uma vez que crenças, valores, práticas, convenções e conhecimentos são difundidos do domínio para o indivíduo, e vice-versa. Ou seja, o objeto e/ou ideia criativa, no âmbito da cultura, é parte do domínio, mas, para serem considerados como tal, devem ser aprovados pelo campo, que é composto por pessoas com expertise na área do domínio.
No que tange às artes visuais, Ostrower (2013) preconiza que o pensamento artístico visual é expresso na complexidade do processo de apreensão da realidade, que ocorre em constante transformação criativa, individual e coletiva, na representação e compreensão simbólica. Para a autora, criar é uma necessidade humana, e advém de percepções e necessidades da pessoa ao atuar sobre a realidade.
A pesquisa em tela objetivou investigar, na perspectiva de especialistas, a criatividade expressa em produtos de pintura e colagem, elaborados por educandos (identificados e em processo de identificação sobre as AH/SD do Núcleo de Atividades de Altas Habilidades/Superdotação (NAAH/S), em um curso de artes visuais, ministrado pela pesquisadora, professora licenciada na área.
Estudos preliminares, a exemplo da revisão sistemática de Ulger (2020), são esteios analíticos desta pesquisa. No referido estudo, sobre a criatividade em artes visuais, foram encontradas, em síntese, categorias recorrentes, tais como originalidade, fluência, flexibilidade, consideradas mais relevantes; seguidas por independência para romper limites, não convencionalidade, geração de ideias e perspectiva; e critérios específicos da criatividade no campo das artes visuais, a estética, a habilidade técnica, a imaginação, a elaboração, o fechamento e a produção de ideias.
CURSO ARTEXPANSÕES: ESTÍMULO À CRIATIVIDADE
Esta investigação é caracterizada como qualitativa do tipo pesquisa-ação (Sandín-Esteban, 2010; Thiollent, 2009), cujo objeto se configurou na prática educativa em artes visuais no contexto das AH/SD. Nessa perspectiva, realizou-se o curso Artexpansões no espaço da sala de arte do NAAH/S, a única instituição pública, extraescolar, voltada a esse segmento da educação especial no Estado do Piauí, justificando a escolha do lócus.
A coleta de dados1 ocorreu ao longo do curso Artexpansões, principalmente com a produção de pinturas e colagens. O estudo previu a avaliação por especialistas para a possível certificação da criatividade dos produtos desenvolvidos pelos nove partícipes, educandos do NAAS/PI. Desses, neste relato, apresentam-se cinco, os quais são autores de produtos considerados criativos, por unanimidade, pelos especialistas. No intuito de anonimato, foram-lhes atribuídos codinomes (Tabela 1). Neste recorte, dentre os sujeitos, dois estavam identificados com altas habilidades/superdotação (um acadêmico e um criativo-produtivo) e os demais encontravamse em processo de identificação nas AH/SD.
Codinome | Idade | Sexo | Nível educ. | Identificado/em processo |
---|---|---|---|---|
1 Frida Kahlo | 13 | F | 7º ano | Processo de identificação |
2 Tarsila do Amaral | 10 | F | 5º ano | Identificada/ acadêmica |
3 Anita Malfatti | 14 | F | 8º ano | Identificada/criativo-produtiva |
4 Camille Claudel | 13 | F | 8º ano | Processo de identificação |
5 Claude Monet | 15 | M | 9º ano | Processo de identificação |
Fonte: Autoras, 2019
Para fins de identificação, as AH/SD se apresentam em duas categorias: acadêmica e criativo-produtiva. A primeira pode ser identificada por meio de testes de inteligência e de verificação de aprendizagem escolar dedutiva. A segunda implica, além da aprendizagem dedutiva, a facilidade para criar materiais originais e inovadores, em processos indutivos, em aguçada sensibilidade aos problemas reais (Renzulli, 2014).
No percurso metodológico, o curso Artexpansões contemplou o período histórico relativo à Arte Moderna, que rompeu com padrões tradicionais e, nesse sentido, enfatizou os estilos abstrato e surrealista. No intuito de estimular o fazer artístico, a pesquisadora selecionou materiais expressivos e técnicas, convencionais e alternativas, pouco adotadas na sala de arte. A leitura da imagem foi a abordagem didática utilizada (Barbosa, 2010). Assim, os sujeitos, em seus entendimentos próprios, realizaram objetos autorais.
ANÁLISES E DISCUSSÃO: A PERSPECTIVA DOS ESPECIALISTAS
A identificação da criatividade realizou-se por meio da leitura visual dos produtos elaborados pelos sujeitos por avaliadores com expertise nas artes visuais. Estes atuaram como juízes qualificados, configurando o campo (Csikszentmihalyi, 2009; 2014). Assim, foram convidados sete avaliadores (A1, A2, A3, A4, A5, A6, A7) que, em suas leituras, descreveram elementos de visualidade e aspectos gestálticos, ao tempo em que identificaram a criatividade, segundo critérios por eles definidos. Desse modo, esboçaram-se duas categorias amplas, uma que aborda os produtos indicados como criativos, na perspectiva dos especialistas, e outra, que discorre sobre os elementos e conceitos teóricos que se relacionaram com a criatividade, ambas delineadas nos itens seguintes.
Análise dos produtos na perspectiva dos especialistas em artes visuais
As leituras dos especialistas sobre as imagens dos produtos de pintura e colagem, são apresentadas a partir dos produtos identificados como criativos, de forma unânime, o que constituiu o cerne das análises. Apresentam-se oito produtos (A, B, C, D, E, F, G, H), originados de atividades individuais de cinco sujeitos. As análises foram delineadas de forma sintética, os elementos pelos quais os produtos foram certificados como criativos.
Inicia-se com a descrição de A1 do Produto A (Figura 3) para quem essa imagem produz a sensação de profundidade e dinâmica em que o “[...] olhar é conduzido a adentrar no espaço em contraste às áreas brancas que, ao mesmo tempo, servem de contraste às cores complementares [...]”. O elemento visual cor “[...] surge no espaço como verdadeiro actante subordinando os sentidos”. Essa subordinação aos sentidos acontece pela relatividade desse elemento visual que ativa sensações fisiológicas de gustação, olfação, dentre outras, pois cada cor suscita um sentir, peculiar e subjetivo (Gage, 2012).
O processo criativo de Monet (Figura 3) foi evidenciado por A1: “A impressão é que se trata de uma gestualidade impulsiva e intuitiva [...]”, um impulso relacionado à espontaneidade, considerado aspecto da criatividade, bem como a intuição (Brajcic, Kuscevic, Lazeta, 2020; Feist, 1998; Ostrower, 2013). De acordo com Raidl e Lubart (2001), a intuição é relacionada à criatividade e auxilia na tomada de decisões, constituindo-se um modo de percepção internamente orientado.
A2 sugere que “[...] a subjetividade da aquarela emana das linhas diagonais centrípetas, que cessam ao se aproximarem do centro [...], uma espécie de portal [...]”, que conduz a uma metáfora (Losada, 2011). O portal, que seria a comunicação imaginária com outros mundos ou com outras dimensões, interfere na visualidade, pois está “[...] situado no ponto denominado de observação, à direita, daí, atrair nossa atenção, e foi construído a partir da imaginação [...]” (Arnheim, 1980; Ostrower, 1996, 2013).
Para A4, a aquarela de Monet “[...] mescla cores de forma a criar graduações tonais bem definidas e um movimento imposto pelas formas espirais à direita [...]”. O jogo de cores quentes e frias, seja intencional ou não, confere dinâmica à figura, enaltecendo a visualidade (Barros, 2011; Gage, 2012). No que diz respeito à criatividade, A4 considera que o Produto A (Figura 3) apresentou um “grau de maturidade maior” em relação aos demais produtos elencados, e “demonstra existir uma premeditação na elaboração, ou seja, houve a preocupação com o produto final, um dos estágios do processo criativo elencados por Tinio (2013), no que diz respeito ao planejamento (preparação/inicialização), como critério específico da arte.
A elaboração é revelada na materialidade que “[...] se faz sentir pelo uso da técnica de aquarela sobre papel alcançando um resultado surpreendente de domínio artístico, o que nos conduz a refletir que foi criativo [...]” (A1), e pelas “[...] transparências, característica essencial desta técnica artística. O resultado é gracioso, instigante e atraente e criativo [...]” (A2). O Produto A foi considerado criativo, de forma explícita por A1, A2 e A4. Os demais especialistas concordaram a esse respeito, embora não tenham tecido comentários específicos.
No caso da colagem - Produto B (Figura 4) -, A1 observou, no espaço superior, uma árvore com letras formando as palavras “Amizade, Amor e Paz”, detalhes que designam a intertextualidade e a valorização desses sentimentos (Losada, 2011) e, ainda revela A1, “[...] a intenção do autor foi levar uma mensagem de paz e harmonia. Sem esquecer que a árvore foi um signo poderoso em várias culturas seculares”. A descrição retrata a impressão quanto à forma figurativa. No âmbito dos estudos da criatividade, a colagem foi adotada no método desenvolvido por Amabile (1982) para julgar a criatividade a partir de uma definição operacional simples, em que produtos ou respostas são considerados criativos na medida em que os especialistas ou juízes o confirmarem (Hennessey, 1994; Reese, 2010).
Para A2, o Produto B (Figura 4) consiste em “[...] uma paisagem de cunho fantástico na qual destacamos a exageração [...]”. Exageração é uma técnica visual aplicada da teoria da Gestalt, segundo Gomes Filho (2000), utilizada para chamar a atenção do leitor, por meio de profusos e/ou deformados elementos visuais, assim descritos: “[...] de parte da cabeça de uma onça no primeiro plano, que produz estranhamento e evoca espécie de sonho, mas não se trata propriamente de um surrealismo, em face da coerência contextual [...]”, ou seja, não há deformação das figuras. Remete à fantasia ou à imaginação, elemento da criatividade (Raidl, Lubart, 2001).
Ainda sobre o Produto B, segundo A2, muitos detalhes formais sobrepostos com contraste colorístico “provocam uma espécie de aversão ao vazio” (Barros, 2011; Gomes Filho, 2000). Essas relações de contraste “[...] tornam a proposta atraente ao olhar e por considerar o todo, um caráter decorativo, que demonstra a sensibilidade do autor na busca de uma forma agradável ao leitor em sua completude gestáltica”. Essa avaliação aponta aspectos relativos à criatividade: sensibilidade e apelo estético (Haroutounian, 2017; Hennessey, Amabile, Mueller, 2011; Ulger, 2020). Para A3, o trabalho apresenta uma “[...] colagem criativa, pois soube utilizar vários elementos sem poluir a composição [...]”, o que confere com Ulger (2020).
A4 afirmou que “[...] o propositor definiu bem os planos em uma ordem, deixando à vista os planos claros e elementos”. Desse modo, a produção foi considerada bem elaborada e culminou em uma imagem que evidenciou a coerência como característica gestáltica (Arnheim, 1980). Além disso, a composição se apresenta em uma dimensão do apelo estético, um incremento à imaginação advindo da própria experiência sensorial e que possibilita atribuir sentidos e significados inéditos, critério específico da criatividade nas artes visuais (Brajcic, Kuscevic, Lazeta, 2020; Rostan, Pariser, Gruber, 2002; Ulger, 2020). Ainda no Produto B (Figura 4), os especialistas vislumbraram uma elaboração intencional, na qual o contraste é elemento que desperta a curiosidade e produz um resultado agradável ao olhar, afirmando que
[...] o efeito plástico, resultante do “tecido” estampado em preto e branco, bem como o azul, branco e vermelho, oferece aos sentidos um contraste cromático interessante (A1).
Vários elementos produzem traços de cores e espiral com vários tons. O resultado ficou muito bom (A3).
A partir das descrições dos avaliadores, o Produto B (Figura 4) apresenta características relacionadas à criatividade, como o apelo estético (Amabile, 1982; Brajcic, Kuscevic, Lazeta, 2020; Rostan, Pariser, Gruber, 2002; Ulger, 2020).
No Produto C (Figura 5), A1 identificou que “[...] as formas em cores primárias (vermelho e azul) se oferecem aos sentidos [...]. O alfabeto visual proposto por Tarsila nos permitiu o uso do espaço construído de forma equilibrada, procurando preenchê-lo com imaginação.” Além dos atributos já destacados, associa-se o equilíbrio que produz a estética. A1 destaca a imaginação, fator preponderante na produção artística (Brajcic, Kuscevic, Lazeta, 2020; Ho, Wang, Cheng, 2013; Ostrower, 2013; Rostan, Pariser, Gruber, 2002). “A imaginação é uma habilidade inata do ser humano, base de todas as atividades criativas e resultado de processos cognitivos e emocionais” (Ho, Wang, Cheng, 2013, p. 68).
Segundo os mesmos autores, a inovação e a criatividade têm origem na imaginação. A1 considera que Tarsila “[...] já sinaliza sobre o estado de criatividade, advertindo sobre uma total entrega à energia criadora que brota, espontaneamente, [...] o que desperta a nossa atenção é sua sensibilidade e intuição [...]”, que são processos indicadores da criatividade, surgem de seu mundo interno e se exteriorizam. Esses aspectos são ressaltados por Csikszentmihalyi (2009) no envolvimento, na entrega ao fazer artístico e na intuição (Raidl, Lubart, 2001).
Os especialistas A2 e A3 se aproximaram do conceito do apelo estético como característico do Produto C (Figura 5), conforme excertos:
[...] o resultado compositivo advém das formas circulares e formas losangulares, e da associação ou da combinação de círculos maiores e círculos menores, que parecem flutuar sobre a fluidez do fundo (A2).
Apesar de ser uma composição visual simples, a educanda soube dominar as cores, criando uma pintura harmoniosa, evidenciou a clareza e harmonia colorística (A3).
Na composição, a harmonia relaciona-se diretamente com a estética, a sensação subjetiva de que algo é belo, possível de se observar na suavidade e leveza da imagem (Figura 5). Trata-se de um trabalho que evoca a poesia, a criação (Amabile, 1982; Brajcic, Kuscevic, Lazeta, 2020; Getzels, Csikszentmihalyi, 1976 apudPelowski; Leder, Tinio, 2017; Rostan, Pariser, Gruber, 2002; Tinio, 2013; Ulger, 2020).
A colagem de Tarsila - Produto D (Figura 6) - evoca uma leitura visual complexa, pois diversos elementos chamam a atenção do leitor. Nesse sentido, os especialistas a avaliaram como criativa, justificando, a partir de critérios, a originalidade e a novidade, ou seja, a singularidade expressa de forma inusitada (A2, A5, A6) que legitima a própria definição de criatividade. A concordância entre os avaliadores é fator relevante para a validação de um produto criativo, como afirma Csikszentmihalyi (2009, 2014). De acordo com os especialistas, é:
[...] uma festa de superfícies coloridas pela justaposição de cores análogas e pelo contraponto colorístico. Nela podemos encontrar variadas texturas (A2);
O processo é elaborado, uma abstração interessante (A4);
[...] bastante criativa, onde o novo é construído alegoricamente, ora por recortes de áreas de cor, ora com elementos fotográficos e ornamentos (A5);
[...] criativa, uma imagem inusitada! (A6);
[...] há riqueza de texturas visuais e táteis e o uso de assimetria como recurso de equilíbrio na composição e denota uma criatividade evidente (A7).
Os especialistas foram unânimes ao avaliar o Produto D (Figura 6) como criativo, comparando-o a uma festa intrínseca que remete à alegria do fazer, de produzir o novo (Kaufman, Plucker, Russell, 2012; Pelowski, Leder, Tinio, 2017; Renzulli, 2014, 2021; Ulger, 2020). Além disso, o trabalho foi avaliado como feito de forma elaborada, o que é indício de fase de preparação, conforme aponta Tinio (2013), ao se referir às etapas do processo no domínio da arte.
O Produto E (Figura 7) na visão de A3 é “uma bela pintura, realizada com criatividade”, enaltecendo a visão estética e a criatividade. A1 anuncia, em seu relato, que a pintura de Anita apresenta vários elementos que a fizeram descrevê-la em maiores detalhes:
Sensibilidade e intuição se expressam por signos distribuídos no espaço da folha de papel. O espaço da estrutura composicional foi pintado com um aquarelado em diferentes degradês [...], nos permite perceber que a artista apreendeu o alfabeto plástico, transformando-o em uma linguagem singular e criativa (A1).
Os signos reconhecidos por A1 servem de estímulos perceptíveis, em que a gradação tonal suave causa conforto ao olhar, pelos quais evidenciam-se a intuição, sensibilidade, apelo estético (Amabile, 1982; Haroutounian, 2017; Hennessey, Amabile, Mueller, 2011; Raidl, Lubart, 2001; Rostan, Pariser, Gruber, 2002; Ulger, 2020). Tinio (2013) afirma que, embora criatividade e estética sejam estudadas separadamente, na verdade, tornam a experiência um continuum, pois há uma sinergia entre elas, relacionadas à apreciação e à harmonia.
A4 ressalta que o Produto E (Figura 7) segue “[...] um ritmo frenético, que se justifica pela profusão de elementos psicodélicos, formas místicas e simbólicas, demonstrando criatividade [...]”, o que concorre para uma leitura lenta e detalhada. Trata-se de um produto complexo, que denota movimento, apresentando fluência, flexibilidade, e ainda novos elementos, evidenciados pelos estudos de Ulger (2020).
Anita reuniu, em sua colagem - Produto F (Figura 8) -, cenas urbanas e humanas retiradas de recortes de revistas em um trabalho complexo, repleto de detalhes que confrontam imagens sobrepostas em temas contraditórios da atualidade, que provocam reflexões, porém, para A1,
[...] o que desperta mais atenção é, no canto inferior direito, a presença de um grande olho desenhado em preto [...].
Anita soube tirar proveito da técnica ao agregar duas fitas, localizadas nas laterais, e, por isso, podemos julgar a sua criatividade, ao procurar criar usando sua imaginação.
A nitidez do olho desenhado por Anita atrai o leitor e a composição provoca significados pelo contraste que denuncia a disparidade das distintas realidades, um conflito entre alegria e tristeza, riqueza e pobreza, destruição e paz. Nesse sentido, Butler-Kisber e Poldma (2010) apontam que a colagem pode ser uma crítica ao que está posto, além de ser interessante para auxiliar iniciantes a desenvolver habilidades mais sofisticadas. O trabalho apresenta critérios específicos vinculados à criatividade na arte e apontados por Ulger (2020). Além disso, segundo A1, o produto advém da imaginação, característica da criatividade (Brajcic, Kuscevic, Lazeta, 2020; Ho, Wang, Cheng, 2013; Ostrower, 2013).
A1 considera que Anita “[...] soube tirar proveito da técnica de colagem ao agregar duas fitas, localizadas nas laterais”. Já A2 associa “[...] justaposição, sobreposição à complexidade profusa na proposta visual de uma paisagem urbana, demonstrando qualidade técnica” (Amabile, 1982; Rostan, Pariser, Gruber, 2002). Quanto à habilidade técnica, esta é situada no modelo dos três anéis como área de desempenho específica (Renzulli, 2014, 2021; Renzulli, Reis, 2016). Da mesma forma, é o que defendem Amabile (1982) e Hennessey, Amabile e Mueller (2011), no que diz respeito à avaliação de produtos criativos.
Ainda no Produto F (Figura 8), “formas prediais que sorriem” foram destacadas por A2, que afirmou que “[...] esta proposta se apresenta surreal [...]”, devido ao sorriso impossível dos prédios, visão absurda que enseja a criatividade (Ostrower, 1996). A imagem demonstra ser não convencional (Ulger, 2020), além de comunicar ideias de forma expressiva, como afirma Haroutounian (2017), pois a participante faz uso de materiais inusitados, o que remete ao apelo estético, segundo Rostan, Pariser e Gruber (2002).
A3 caracteriza o Produto F (Figura 8) como uma “[...] colagem criativa, pois os elementos, apesar de serem muitos, são semelhantes [...]”, o que implica em análise que leva em conta, além da criatividade, a conexão entre as imagens sobrepostas (Ulger, 2020). A4 expressa que “[...] apesar da profusão de elementos, ficou dinâmico, provoca uma leitura minuciosa e força a querer relacionar os elementos [...] é muito provocativa”. Essa apreciação vai ao encontro do que afirmam A1 e A3, quando apontam a conexão entre as figuras e a criatividade.
As avaliações dos especialistas exprimem uma visão ampla do Produto G (Figura 9), na miscelânea de elementos da linguagem visual associada à abstração e à técnica:
Há mistura de cores, uma sequência das frias à esquerda às mais quentes, à direita. [...] as formas lineadas foram tratadas (in)visivelmente em meio à sedução da cor. Este jogo perceptual provoca maior tempo de contemplação por parte do observador (A2).
[...] um degradê colorístico, harmonioso, prazeroso ao observador. Demonstra planejamento ao escolher as cores e o capricho ao usá-las. [...] Existe harmonia e equilíbrio na composição (A7).
Percebo a interação das cores como harmoniosa. A sobreposição dos desenhos feitos com tinta branca conferiu delicadeza e transparência [...] lembrou-me um dia chuvoso, seguido de um pouco de sol após a tempestade (A6).
Os elementos visuais descritos a partir da Figura 9 reforçam o apelo estético (Amabile, 1982; Hennessey, Amabile, Mueller, 2011; Rostan, Pariser, Gruber, 2002; Ulger, 2020), aspecto relativo à criatividade em que se sobressai o elemento visual cor. A2 e A6 qualificaram o produto como criativo. A7 destaca o planejamento (Pelowski, Leder, Tinio, 2017; Tinio, 2013).
Reconhecendo a qualidade técnica do Produto G (Figura 9), A4 afirmou que “[...] ao distribuir as cores de uma cor fria para as demais quentes e espirrar pigmentos coloridos, demonstra criatividade”. De igual modo, A5 avaliou a produção ao relatar que [...] as cores se destacam como primárias e secundárias e se miscigenam, gerando outras cores e pontos de cor, em vermelho e azul “sem preocupação com ordem ou simetria”. Esses aspectos se coadunam com Amabile (1982), Ulger (2020), Chan e Zhao (2010) e Hennessey, Amabile e Mueller (2011), que encontraram, nos produtos criativos, a tendência a associar apelo estético e boa técnica.
Na descrição do Produto H (Figura 10), os especialistas A2, A4, A5, A6 e A7, representantes do campo (Csikszentmihalyi 2009, 2014), reconheceram a criatividade de forma explícita, conforme é possível verificar nos excertos a seguir:
[...] a criatividade fica mais evidente, pois [...] desenvolve o senso de espacialidade centrando o elemento principal e desenvolvendo volutas (galhos das árvores) sobrepondo no fundo azul (A1).
[...] acentuada estaticidade, posicionando a figura da árvore no meio, e as demais formas espelhando-as bilateralmente, mas esta é compensada pelo movimento dos galhos. Ao que poderíamos denominar de mimesis criativa (A2).
[...]parece ter utilizado a tinta de consistência mais espessa, aparentando ser guache [...], com um fundo azul mais diluído. Utiliza, além da forma figurativa, linhas curvas/volutas, acompanhando o ritmo dos galhos da árvore. Mostrou-se criativa a partir dos seus conhecimentos prévios (A5).
O uso das cores e a organização dos elementos no espaço conferem à imagem algo de inusitado, fantasioso, um lugar que tem cheiro de tutti-frutti (A6).
Não encontramos esta representação de árvore em qualquer lugar. Sinto a alegria transmitida por meio das voltas. A criadora demonstra leveza, desenvoltura, desinibição e poder de liberdade. Tem o poder de atração visual intensa (A7).
No Produto H (Figura 10), A2 considerou a transformação plástica de um constituinte da natureza, surgida da imaginação (Brajcic, Kuscevic, Lazeta, 2020; Ho, Wang, Cheng, 2013; Ostrower, 2013). A5 remete a Csikszentmihalyi (2014), quando menciona a relevância dos conhecimentos prévios. A participante Frida demonstrou autonomia ao transgredir a orientação da pesquisadora, adotando o figurativo ao invés do abstrato e ao alterar a consistência da tinta, pois não usou transparências, requeridas na aquarela. A6 enfatiza o caráter fantasioso, presente na criatividade.
Elementos indiciadores de criatividade evidenciados pelos avaliadores especialistas
Esse item trata dos elementos conceituais citados pelos especialistas em suas avaliações sobre a imagética dos produtos de pintura e colagem. Inicialmente, foi possível perceber que um especialista (A1) caracterizou três trabalhos como intuitivos, ainda que associado a outros componentes, como espontaneidade e sensibilidade. No âmbito das artes visuais, a intuição é uma forma de perceber e interpretar os distintos elementos de uma imagem, uma forma de conhecer o mundo e pressupõe perceber a realidade independentemente de raciocínio, sendo direta e imediata. Para Raidl e Lubart (2001, p. 2017), a “[...] tendência a confiar em um modo intuitivo de pensar está relacionada positivamente à criatividade”.
Outro conceito associado à intuição é o de espontaneidade (A1 e A7), que diz respeito à naturalidade com que algo é realizado. Na arte e na criatividade, relaciona-se com a improvisação, ao não planejamento ou ensaio prévio. Por outro lado, esta não implica ausência de estrutura, conforme discute Sawyer (2000), que reconhece que o conceito é controverso, pois considera que a estrutura, em algum nível, está presente na improvisação. Associa-se a esse termo os seguintes: leveza, desenvoltura, desinibição e poder de liberdade (A7).
Outro elemento empregado por A1 e A2 foi a imaginação. Esse conceito diz respeito a todas as áreas do conhecimento. A imaginação faz parte da experiência humana, sem limites temporais, uma vez que a pessoa pode criar novas e originais possibilidades, fluindo do passado ou para o futuro, caracterizada como uma das dimensões da criatividade (Brajcic, Kuscevic, Lazeta, 2020; Ho, Wang, Cheng, 2013; Kaufman, Plucker, Russell, 2012; Rostan, Pariser, Gruber, 2002; Ulger, 2020), expressa em imagens surrealistas, fantasiosas e abstratas não convencionais.
Ressalta-se que, nas artes visuais, a imaginação está relacionada ao pensamento criativo e pode se apresentar em visualidade. “A imaginação é uma habilidade inata do ser humano, base de todas as atividades criativas e resultado de processos cognitivos e emocionais” (Ho, Wang, Cheng, 2013, p. 68). A inovação e a criatividade têm origem na imaginação. Ulger (2020) apoia-se em Hennessey, Amabile e Mueller (2011) para afirmar que um produto criativo pode ser avaliado, considerando-se o apelo estético e uma boa técnica.
A preparação, o planejamento ou a elaboração foram elencados pelos especialistas A4, A3 e A7. Essa constatação é indicativa de que os especialistas identificaram um dos estágios da criatividade, conforme apontados nos estudos de Getzels e Csikszentmihalyi (1976 apudPelowski, Leder, Tinio, 2017) e Tinio (2013). Esse ponto fornece subsídios para uma definição de criativo ou não, implicando intencionalidade, ao criar algo desde o início, demonstrando ser uma decisão consciente.
Um elemento destacado pelos avaliadores especialistas foi o apelo estético, o qual, segundo Rostan, Pariser e Gruber (2002), envolve composição, manuseio habilidoso de material e expressividade. Por composição, as autoras entendem o modo de organização que possibilita o culminar de elementos visuais em um todo unificado. Desse modo, vários produtos foram classificados criativos em função da composição, ou, de modo amplo, do apelo estético, pelo fato da agradabilidade ao olhar e aos sentidos, e evidenciam a harmonia, a elegância, o equilíbrio, as cores, a proporção das formas, em suma, a composição é a organização final do produto, a completude da forma (Gomes Filho, 2000).
A qualidade técnica foi mencionada por alguns especialistas (A2, A4 e A7). Esse aspecto diz respeito ao resultado que se espera de um produto em termos de formas e componentes e que pode ser verificado a partir da sua materialidade, embora apresente, também, características subjetivas relativas à percepção. No caso da criatividade, a qualidade técnica costuma ser avaliada em conjunto com o produto (Amabile, 1982; Hennessey, Amabile, Mueller, 2011; Ulger, 2020). Para Renzulli (2014), consiste em habilidade acima da média.
A originalidade, apontada em expressões como “novo”, “inusitado”, “alegria de fazer, produzir o novo”, foi encontrada somente em um produto, entre os identificados como criativos pelos especialistas, entretanto, esta constitui uma das características primordiais da criatividade. A participante (Tarsila do Amaral), autora do trabalho, já foi identificada com AH/SD acadêmica, e tem 10 (dez) anos de idade. Essa característica está associada à descoberta e à capacidade geradora do ser humano de inovar. Renzulli (2014), Renzulli e Reis (2016) se referem à abertura ao novo, ao diferente, à expressão de um dos três anéis, à criatividade. Para Runco (2020, p. 339), “[...] novidade é um requisito para a criatividade, embora o conceito seja frequentemente rotulado de originalidade, que são, então, próximos de sinônimos”. Ao darem preferência ao termo “novo”, os especialistas, portanto, acertaram.
Após análise dos elementos destacados pelos especialistas, foi possível perceber que, mesmo sem intencionalidade, estes adotaram as categorias elencadas por Ulger (2020) em sua revisão sistemática acerca da identificação da criatividade, como a originalidade ou novidade, a estética, a habilidade técnica, a imaginação e a elaboração. Esses elementos certificaram a expressão da criatividade nos produtos desenvolvidos pelos partícipes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pesquisa-ação possibilitou investigar, na perspectiva de especialistas em artes visuais, a criatividade. O NAAH/S viabilizou o curso Artexpansões para o desenvolver da prática, regras e procedimentos do domínio das artes visuais. Esse contexto educativo gerou, nos partícipes, sentimentos cognitivos, como empatia, colaboração e sensibilidade, de acordo com Renzulli (2021), encorajando a expressão da criatividade. Considera-se, ainda, que a intervenção educativa contribuiu, para todos os educandos, como enriquecimento extracurricular de acordo com Renzulli e Reis (2016) facilitada pela observação, o acompanhamento e o registro em portfólios das atividades dos participantes.
Nos resultados, os produtos elaborados pelos sujeitos foram validados pelo campo como criativos, possibilitando a análise dos elementos constitutivos nas imagens. Segundo Csikszentmihalyi (2009), faz-se necessário acesso ao domínio para que a criatividade floresça em produtos resultantes da interação entre os aspectos individuais e o contexto sociocultural.
Salienta-se a importância de se desenvolver pesquisas que tenham como foco a criatividade. Nesse sentido, a expectativa das pesquisadoras se revela na esperança que o curso vivenciado venha a estimular os partícipes a oferecerem mais contribuições para o domínio e que as artes visuais sejam reconhecidas como uma necessidade, uma vez que propiciam inúmeras possibilidades de realização criativa para educandos de distintos níveis, identificados ou não, nas AH/SD.