ATERRANDO: INTRODUÇÃO
Quem viu caju, não viu a terra
Cica de mim, tomei do chão
Tem cajueiro, não tem guerra
Guerra é panela sem feijão
Tava no chão nem vi o bicho
Bicho é remar de sol em sol
Morri de amor, vivi de vício
Em água de peixe sou anzol
Eu vou escrever as novas regras
Pra mudar o rumo desse jogo
Sou nascido e moro nessa terra
Mas se eu morrer me deixe morto
Já que sou pedaço desse chão (Silva, 2018).
7 de abril de 2023. Feriado de sexta-feira santa.
A semana foi intensa. As discussões políticas acerca da reforma do Novo Ensino Médio (NEM) têm se tornado centrais no cenário brasileiro. Com as manifestações ocorrentes no dia 15 de março de 2023, sujeitos-viventes da sociedade civil e da comunidade escolar (professoras, professores, alunas, alunos, responsáveis, sindicatos, movimentos estudantis etc.) se reuniram em diversas regiões do país a fim de reivindicar a revogação da Lei n. 13.415/2017 que instituiu o NEM no Brasil e alterou artigos presentes na Lei de Diretrizes e Bases (LDB), promulgada em 1996 (Lei n. 9.394/96) (Pelissari, 2023).
Diante do reflexo gerado por tais manifestações, que ocuparam ruas de cidades brasileiras, o atual Ministro da Educação do governo Lula, Camilo Santana, anunciou, nesta última semana (4 de abril de 2023), a possibilidade de prorrogação do prazo de instituição do NEM em território brasileiro (Dias, 2023). Mesmo que as instituições privadas - que desde a era Temer, possuem livre acesso para colocar suas garras na educação brasileira - estejam, atualmente, pressionando o governo atual para uma reformulação do NEM (uma espécie de reforma da reforma) (Cássio, 2023), tal anúncio nos dá margem e abre caminhos para (re)pensar as políticas públicas atuais, nos dando possibilidade de sonhos e desejos para uma educação conectada ao sócio-climático-ambiental.
De acordo com Süssekind (2019), a construção autocrática e a aprovação da última versão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), acompanhadas do NEM, trazem consigo um projeto abissal de aprofundamento das desigualdades sociais e da desapropriação de espaços de troca e de conversas complicadas entre docentes e estudantes. Para a autora, o silenciamento dos sujeitos e a homogeneização de suas subjetividades, ambos produzidos por tais políticas públicas, marcam um processo de normatização dos corpos e do conhecimento produzido nos espaços dentro-fora da escola, visto que:
[...] a BNCC é arrogante, indolente e malévola, e, com suas ignorâncias, produz injustiças, invisibilidades e inexistências, coisificando os conhecimentos, ferindo a autonomia, desumanizando o trabalho docente e, ainda, descaracterizando o estudante na sua condição de diferente, de outro legítimo (Süssekind, 2019, p. 92).
O avanço de grupos neoliberais e da direita conservadora sobre a disputa de sentidos no campo educacional tem reduzido o currículo a um território de disseminação dos interesses privados e dos negócios de grandes grupos de empresários (os conglomerados da educação) (Goodson, 1997; Tarlau, Moller, 2020). Na constituição do pesadelo que é viver o presente, como nos coloca Pinar (2007), a nossa autonomia, enquanto professoras e professores, diante das políticas públicas normatizadoras, é suprimida e dá lugar à padronização da educação e sua consequente codificação, pautada na contabilização dos sujeitos, através de objetivos, habilidades, competências e avaliações. As conversas, dentro dessa lógica, dão lugar a uma repetição, retirando o caráter intelectual do trabalho docente e de nossa práxis conjunta com os estudantes com/no/sobre o meio ambiente (Pinar, 2016; Vieiras; Tristão, 2016).
Produzida diante dos efeitos da globalização, as políticas públicas, como a BNCC e o NEM, afetam diretamente nossa vida cotidiana, no que tange à inter-relação com outros terrestres1 e como lidamos com a diferença e com nossa fala, subjetividade, escrita e conversa (Süssekind, 2019). Perante o novo regime climático, no qual as mutações no clima avançam sobre nossas vidas cotidianas (Latour, 2020), é imprescindível que nos desloquemos para além das linhas abissais (im)postas por tais políticas públicas curriculares, de modo a nos apropriarmos de perspectivas pós-colonialistas em nossa construção curricular (Süssekind, 2019).
A emergência vivenciada no Antropoceno, quando há modificação no ambiente físico no qual (co)habitamos e que cresce exponencialmente (fruto de ações humanas sobre a natureza), nos coloca em uma arena de disputas frente a políticas desenvolvimentistas, disseminadas pela globalização e produtoras de discursos em prol de uma alienação em relação à forma como agimos e somos em nossos meios ambientes (Krenak, 2019, 2020). Ao enfrentarmos tais políticas, propomos um distanciamento das racionalidades científico-ocidentais, através da ótica pós-colonial (Tristão, 2014), encontrando possibilidades de aterramento2 de currículos normativos, concebidos através de interesses hegemônicos e de perpetuação da lógica capitalista (Goodson, 1997), para que, com isso, tenhamos a capacidade de redefinir “[...] não apenas os afetos da vida pública, mas também as suas bases” (Latour, 2020, p. 11). Pretendemos, portanto:
[...] compreender as relações entre cultura e meio ambiente local/global, com uma contribuição fundamental para rever os pressupostos da lógica determinista e da proposta oficial de políticas internacionais que nos conduzem, da mesma maneira, a uma educação para o desenvolvimento sustentável, por exemplo, com repercussão de um discurso consensual para a preservação e proteção da natureza (Tristão, 2014, p. 478).
O cenário emergencial no qual a BNCC e o NEM nos coloca, ao mesmo tempo em que encobre a beleza das experiências vividas e de seu efeito produtivo sobre os currículos escolares, também abre margem para que professoras e professores insistam (e invistam) nas conversas complicadas, tecendo suas experiências vividas, trajetórias de vida e suas subjetividades nos fios constituintes do currículo (Pinar, 2016; Süssekind, 2019).
O anúncio realizado pelo atual Ministro da Educação acena para diferentes grupos, uma vez que conversa com os interesses de grupos hegemônicos e com os movimentos sociais que encontraram abertura para intensificar as críticas que já denunciavam as desigualdades sociais que estão sendo acirradas com as últimas políticas educacionais brasileiras. Podemos afirmar que as manifestações realizadas em todo o país nos dão forças políticas para lutar contra o avanço neoliberal em nossas vidas-subjetivas-ambientais. Em vista de aterrar as políticas públicas curriculares, que normatizam nosso saber-fazer-artístico-docente e as subjetividades dos estudantes na escola, vemos uma possibilidade de estarmos munidos de paraquedas coloridos, conforme nos coloca Krenak (2019), ampliando os espaços de luta em prol de uma educação igualitária e complexa, não nos esquecendo de uma referência geocentrada, de forma que a natureza também se torne terrestre e agente da luta política (Latour, 2020).
Dentro desse movimento e diante do cenário político atual, este ensaio teórico tem por objetivo traçar diálogos entre a filosofia latouriana (Latour, 2020) e a teorização curricular, proposta por Pinar (1975, 2007, 2012, 2016), dando base para pensarmos formas de orientação perante a desterritorialização3 ampliada por mutações climáticas e os impactos gerados por políticas públicas em nosso saber-fazer-artístico docente. Assim, visamos incentivar a construção de caminhos para reflexões sobre os devires das políticas públicas por meio de conversas complicadas nos cotidianos escolares, e pela necessidade de tecer currículos-vida geo-orientados e dialogados com as experiências vividas pelos sujeitos curriculares.
PERDIDOS
Em face do pesadelo que é viver o presente, o Novo Regime Climático se instaura e avança em nossas vidas subjetivas, modificando não só as estruturas macrossociais que influenciam na condução dos cotidianos, como também as relações entre-terrestres (Latour, 2020). A sensação contagiante de desmoronamento do solo, no qual pisamos, possibilita o emergir de discursos hegemônicos frente a mutações climáticas que nos perpassam. Fenômenos sociais e políticos são produzidos, dessa forma, a partir da negação da realidade por parte das elites obscurantistas, acarretando a formação de outra lógica de globalização, chamada por Latour (2020) de globalização-menos.
O cenário de escassez ambiental, produto de uma lógica desenvolvimentista e imperialista, disseminada massivamente pelo sistema capitalista (Acosta, 2016), trouxe consigo reações de enclausuramento por parte de determinados grupos sociais, como as elites obscurantistas (Latour, 2020). De maneira dialética, a fim de se encobrir a realidade que avança sob nossas vidas, as elites obscurantistas tornaram as narrativas formas de ficção política, tentando solidificar o desmoronamento aos nossos pés - processo esse fundamental para a consolidação da globalização-menos, através de:
[...] comunidades muradas para não ter de partilhar mais nada com as massas - e sobretudo com as massas “de cor” que logo avançariam por todo o planeta, uma vez que seriam expulsas de suas próprias casas -, é de se imaginar que os deixados para trás tenham igualmente percebido que, se a globalização estava a deus-dará, então eles também precisariam de muros de proteção (Latour, 2020, p. 30).
A violência dessas ações, ao fechar fronteiras, abre margem para o não reconhecimento do outro enquanto sujeito, retirando do espaço social-ambiental as relações entre as diferenças que emergem pelo contato dos terrestres. Na tentativa de privatização do self, as políticas públicas curriculares, normatizando nossas vidas-subjetivas, validam o estabelecimento de muros de proteção (Pinar, 2012), incapacitando os terrestres de observar suas diferentes vivências, e com isso, voltando os olhares apenas para si, como única forma de conhecimento e pertencimento em um determinado espaço (Pinar, 2016).
Inseridas em uma dada realidade cotidiana, as elites obscurantistas isolam os terrestres da possibilidade de pensar alternativas sistêmicas para a superação da mutação climática, pois induzem a globalização-menos a murar territórios físicos e sociais. Ao projetarem para si a negação do avanço de uma mutação climática drástica, pautaram-se em uma possível racionalidade científica, de maneira a “[...] se convencerem tão bem de que não haveria vida futura para todos que decidiram se livrar o mais rápido possível de todos os fardos da solidariedade” (Latour, 2020, p. 28, grifos do autor).
Tal perspectiva coopera com a lógica de perpetuação das ficções políticas, pois na medida em que o pensamento desenvolvimentista atua na produção discursiva de distanciamento entre os terrestres, as elites obscurantistas também se distanciam dos sujeitos afetados pela ideologia carregada através da globalização-menos (Latour, 2020). Desse modo, o currículo da escola, associado a tais percepções latourianas, pode também se tornar um instrumento e espaço de disseminação dos interesses hegemônicos, a partir de sua construção sócio-histórica e da disputa de sentidos dos setores privados na elaboração de tais políticas públicas, conforme colocado por Goodson (1997), formando sujeitos-terrestres atuantes em uma economia pós-industrial, já que tal setor “[...] não quis pagar esta educação vocacional; ele ‘persuadiu’ o sector público a pagar” (Pinar, 2007, p. 37).
Ao tornar as ficções políticas em políticas públicas curriculares normatizadoras, as elites obscurantistas atuam, consequentemente, na retirada da autonomia docente e em seu processo de desintelectualização, transformando nossos saberes-fazeres-artísticos em atividades burocráticas (Pinar, 2007), conforme observamos nas diretrizes trazidas pelas atuais políticas públicas normatizadoras-abissais brasileiras, como a BNCC e o NEM (Süssekind, 2019). Segundo Pinar (2012), tais políticas do currículo promovem a sedimentação de pensares quantitativos, voltados para os resultados obtidos em avaliações de desempenho escolar (internas e externas), retirando consigo as características subjetivas da ação-docente (Süssekind, 2019), a partir de um contexto espaço-social (Vieiras, Tristão, 2016). Ao diminuir o espaço autônomo de atuação das professoras e dos professores, tais políticas públicas também abrem margem para não contestação da realidade (im)posta (Vieiras, Tristão, 2014), possibilitando uma negação não só climática, mas também das experiências dos terrestres viventes do currículo e do reconhecimento do outro enquanto parte constituinte dos tecidos curriculares (Latour, 2020; Pinar, 2016).
Nesse processo de construção curricular no qual as subjetividades docentes e discentes não fazem parte, tais políticas públicas curriculares dão suporte aos muros entre-terrestres, descaracterizando as possibilidades de uma educação holística que estabelece elos entre local e global, sem que um se sobressaia ao outro (Tristão, 2012, 2014; Süssekind, 2019). Esse isolamento provocado permite às elites, ameaçadas ambientalmente e socialmente em seus territórios, desmantelar as ideologias propagadas sobre a ideia de comunidades comuns em todo território global (globalização-mais), ou seja, dar cabo ao enraizamento da globalização-menos. (Latour, 2020).
Em tempos em que o Antropoceno avança sobre nossas vidas-subjetivas e moldam o pensar-agir dos sujeitos com outros terrestres, abre-se margem para olharmos as manifestações realizadas em todo país como uma espécie de instrumento político, potentes na construção de outras formas curriculares e no aterramento das epistemologias negacionistas que insistem em permanecer no cenário político atual (Latour, 2020). Tais manifestações, portanto, permitem complexificar a conversa multilateral dentro-fora da escola, partindo do reconhecimento da diferença de vozes dos terrestres enquanto elemento constituidor do currículo escolar. Ocupando as ruas de várias cidades brasileiras, a comunidade escolar e a sociedade civil trazem à luz os problemas que emanam do silenciamento das conversas complicadas dentro do espaço da escola (Pinar, 2016), mostrando que tais diretrizes educacionais adotadas também intoxicam sua formação, sem levar em consideração, por exemplo, a criação de “[...] emergências e resistências favoráveis ao intercâmbio, às trocas e ao compartilhamento com saberes populares de práticas locais e sustentáveis” (Tristão, 2014, p. 474).
Mesmo que a promoção do negacionismo climático seja agenciada por determinados grupos sociais (Latour, 2020), podendo assim enraizar perspectivas individualistas nos currículos pensados-criados (Pinar, 2012; Tristão, 2012), os terrestres - sejam seres humanos ou não-humanos -, enquanto agentes atuantes na geo-política (Latour, 2020), tornam-se elementos importantes no estabelecimento de conversas complicadas, nos espaços dentro-fora da escola. Portanto, frente à sensação de ter o solo se abrindo aos nossos pés, cabe a nós lutarmos por uma perspectiva ecológica dentro dos currículos escolares, levando em consideração as ontologias terrestres em seus contextos (Vieiras, Tristão, 2016), de modo que “[...] a existência e o reconhecimento de outros modos de saber, além do científico” (Vieiras, Tristão, 2014, p. 474) sejam valorizados, para que, com isso, seja possível um processo de “[...] repolitizar o pertencimento a um solo” (Latour, 2020, p. 67). Quem sabe assim conseguimos aterrissar em uma escola onde “[...] não há humanos legítimos de um lado e objetos não humanos do outro” (Latour, 2020, p. 73).
PARAQUEDAS
Como se orientar politicamente em um currículo-território ensejado por perspectivas neoliberais?
Talvez não seja possível nos livrarmos da queda e do rompimento do solo aos nossos pés (Latour, 2020; Krenak, 2019). Entretanto, parte dessa realidade que nos cerca pode ser um vórtex mobilizador de ações políticas que retome a nós, terrestres, aos territórios dos quais (co)habitamos e que agem, conjuntamente conosco, na construção de currículos vividos (Coelho et al., 2023). Tal perspectiva corrobora olhares para seres não-humanos (enquanto partes constituintes do terrestre) como agentes de produção política, que, de acordo com Latour (2020), atuam como participantesativos na história, visto que:
O espaço não é mais o da cartografia, com seus quadriculados de longitudes e latitudes. Ele se tornou uma história agitada da qual nós somos meros participantes entre outros, os quais, por sua vez, reagem a outras reações. Parece que estamos aterrissando em plena geo-história (Latour, 2020, p. 53-54).
Segundo Krenak (2019), a ação de ideologias desenvolvimentistas, promovidas pelas elites através, por exemplo, de determinadas políticas públicas - que estabelecem muros entre os sujeitos, para garantir a materialização de seus interesses, nos normatizando e homogeneizando nossas subjetividades - pode nos dar forças para lutar contra seu enraizamento, mesmo que nos empurre ao abismo climático. Tal movimento, de acordo com o autor, permite-nos, frente ao desmoronar, a capacidade de “[...] inventar e fabricar milhares de paraquedas coloridos, divertidos, inclusive prazerosos” (Krenak, 2019, p. 63).
A pluralidade trazida por Krenak (2019) dialoga com a percepção curricular de Pinar (2016) no espaço escolar, visto que, assim como as milhares de possibilidades de se construir paraquedas, complicar a conversa sobre o currículo também proporciona, aos terrestres que (co)habitam a escola, carregar consigo particularidades de suas experiências de vida em cada contexto socioambiental. Por essa razão, mesmo que tentem silenciar as conversas e os modos de existir (Pinar, 2007), elas podem ser importantes instrumentos de rompimento dos muros estabelecidos pelas elites obscurantistas. Através dessas trocas, podemos observar “[...] cada pessoa trazer para o que estiver sendo estudado seu conhecimento prévio, suas circunstâncias atuais, seu interesse e sim, seu desinteresse.” (Pinar, 2016, p. 19).
Nessa polifonia, o processo de reconstrução subjetiva e social pode assim ser possível, levando em consideração as experiências vividas em um elo temporal (passado, presente e futuro) (Pinar, 2007). Ao propor que o passado seja então categoria para a construção de currículos pensados-criados, Pinar (2016) atribui a essa regressão uma forma de autoconhecer-se, enquanto recorte daquilo que o sujeito foi - mas que reverbera em sua subjetividade. Desse modo, para o autor:
Reestabelecer o passado é, em princípio, impossível, mas no esforço para reconstruir o que foi - entendendo isso em seus próprios termos - reconstrói-se o que é agora. Descobrir o futuro, então, significa voltar ao passado, não instrumentalizar o presente (Pinar, 2016, p. 30).
A reconstrução de um passado murado pode assim possibilitar que as experiências dos terrestres sejam legitimadas, criando alternativas às ideologias capitalistas propagadas e, com isso, ouvindo-nos para além dos muros estabelecidos; deixando-nos cartografar nossas próprias vivências e relações no/do/com meio ambiente (Tristão, 2014). Nessa ação conjunta de reescrita das experiências vividas pelos terrestres do currículo, permitimos que a mutação climática seja então conversada (de maneira complicada), a fim de que futuros contranarcisos e possíveis sejam, portanto, costurados (a muitas mãos) (Coelho et al., 2023).
Para além de uma dualidade local-global, retomar as conversas (complicadas) entre terrestres pode ser assim uma forma de dar cabo aos problemas que se alastram e atingem, tanto as individualidades, quanto os seres vivos em toda extensão do globo (Latour, 2020). É criar, dessa forma, redes de saberes que colocam em cheque a herança ocidental, sustentadoras das políticas desenvolvimentistas, de modo que:
[...] a natureza e a cultura perdem o sentido de recursos para serem possibilidades que podem ser potencializadas ou potencializadoras de ser/estar/habitar este planeta, ressaltando as qualidades locais, regionais e nacionais como geradoras da biodiversidade, das diferenças culturais e da justiça socioecológica (Tristão, 2014, p. 480, grifos da autora).
Interligando a uma perspectiva pós-colonial, conforme nos apresenta Tristão (2014), os currículos podem, portanto, enraizar-se em outras narrativas, para além das ficções políticas contadas pelas elites obscurantistas. Narrativas essas marcadas pela ligação dos seres ao solo, evidenciando sua dependência, mas também sua coexistência em um dado espaço-tempo (Latour, 2020), centralizando culturas historicamente marginalizadas (Tristão, 2014). Narrativas que marcam experiências vividas pelos terrestres, ao longo da sua constituição enquanto ser, trazendo as singularidades de cada um para a composição do território do currículo (Pinar, 2016). Território esse que transcende a ideia de muros, sendo assim “[...] um conjunto dos seres animados, distantes ou próximos, cuja presença foi identificada - via investigação, experiência, hábito ou cultura - como indispensável para a sobrevivência de um terrestre” (Latour, 2020, p. 115).
O currículo, compreendido enquanto território-espécie em constante movimento de (re)construção, tem a possibilidade de potencializar narrativas autobiográficas dialogadas ao conhecimento escolar e as histórias de vida dos terrestres (Pinar, 2007). Tal processo, portanto, abre espaço para a retomada de manifestos de modos outros de vida, já que a regressão ao passado alarga as memórias e torna possível a imaginação de futuros diferentes da lógica operativa burguesa (Pinar, 1975).
Tecendo autobiografias de maneira conjunta à pluralidade de fios existentes no currículo escolar, chamamos também a atenção para que as narrativas contadas e personificadas carreguem consigo aspectos que englobem o território no qual os terrestres se encontram (Costa, 2020). Trazendo consigo perspectivas ecológicas, conforme apontado por Latour (2020) em sua geohistória, propomos, em seu ato fenomenológico, que os currículos também falem dos terrestres que habitam, mostrando a experiência permeada no tempo e no espaço de maneira autobiográfica (Pinar, 2007).
Dessa forma, pela re(construção) das políticas públicas normatizadoras através das autobiografias geo-centradas, esperamos que as experiências de vida dos seres sejam parte constituinte, não só da estrutura curricular, como também da reconstrução subjetiva e social (Latour, 2020; Pinar, 2016). Complicando, assim, as conversas sobre o currículo, evidenciamos as várias formas de ser e de se constituir enquanto partes presentes na escolaridade, quando as narrativas criadas por cada terrestre são, para nós, professoras e professores, importantes instrumentos “[...] para explorar/compreender o que está subtendido na articulação do poder com a potência e o que ensino/aprendo sobre, através e por meio do meio ambiente” (Tristão, 2014, p. 486, grifos da autora).
ATERRISANDO: CONSIDERAÇÕES FINAIS
17 de maio de 2023. Uma quarta-feira qualquer.
As disputas discursivas vivenciadas hoje, dentro do cenário político brasileiro atual, marcam o processo de produção sócio-histórico dos currículos e das negociações de sentidos de uma determinada classe social (Goodson, 1997). Palestras e eventos emergiram, nas últimas semanas, não só como forma de se discutir sobre o NEM, mas também com o objetivo de revelar o lado desesperadamente propagandista - ou talvez, uma propaganda desesperada - das elites obscurantistas frente aos devires de um terremoto: a revogação do NEM. As ficções políticas contadas criam formas de encantamento da sociedade civil frente à promoção dos benefícios da reforma (Tarlau, Moller, 2020), desconsiderando o alargamento das desigualdades e do silenciamento das conversas complicadas que podem ser geradas no ambiente da escola por parte dos terrestres.
Nesta semana (16 de maio de 2023), um grupo de deputados protocolou um Projeto de Lei (PL n. 2.601/2023), prevendo a interrupção do processo nefasto que instituiu o NEM no país, alterando o texto da LDB (Bacelar et al., 2023; Mendes, 2023). Mesmo que o caminhar político esteja em seus passos iniciais, e sempre contingenciado pelos discursos hegemônicos que massacram o dia a dia com a ficção contada sobre a defesa do NEM, tais medidas jogam luz à reconstrução de um passado no momento presente, criando oportunidades de se moldar currículos nas experiências vividas pelos terrestres (Pinar, 2007).
Partindo da forma deixada nas estruturas curriculares, as experiências atuais - constituídas por políticas públicas obscurantistas - são colocadas à prova. De encontro às conversas complicadas estabelecidas pelos terrestres, tais geo-histórias e vivências podem ser transmutadas em pensamentos outros, localizados em futuros possíveis. A reconstrução que almejamos, aliada a perspectivas pós-coloniais, torna-se uma alternativa curricular às políticas hegemônicas e desenvolvimentistas, estabelecendo redes formativas entre comunidades sustentáveis (Tristão, 2014).
Diante do cenário material da mutação climática e da solidificação de muros entre terrestres, as manifestações ocorrentes em todo Brasil sinalizam as insatisfações dos seres da escola frente a tais políticas públicas nefastas. Essas políticas, aliadas a um projeto abissal, promovem a transformação do conhecimento em utilidade, tornando o papel da escola a profissionalização e individualização narcisística dos sujeitos, por meio de lógicas pautadas no accountability (Coelho et al., 2023; Pinar, 2012; Süssekind, 2019).
No alastramento dos interesses hegemônicos e na reprodução das estruturas sociais, os currículos pensados-criados tornam-se instrumentos da disseminação de perspectivas de isolamento, por ação dos grupos que tentam silenciar as conversas complicadas no dentro-fora da escola (Pinar, 2016; Tristão, 2012). Na tentativa de criar ficções políticas sobre a mutação climática (Tristão, 2014), as elites obscurantistas promovem suas ontologias, impactando a formação de comunidades muradas, segundo Latour (2020), particularizando as vivências e experiências dos terrestres de um dado território, bem como a homogeneização de conhecimentos abissais nos imaginários viventes (Tristão, 2014; Süssekind, 2019).
Na deformação do espaço político gerada pela ação de seres não-humanos e sua participação-ativa na construção da geo-história, os currículos tecidos pelo contato entre-terrestres mostram-se importantes instrumentos de luta contra os muros sustentados pelas elites obscurantistas. Ao trocarem, dialogicamente, suas experiências vividas a partir de seus contextos espaço-temporais, os terrestres evidenciam sua ação na tessitura curricular, bem como a emancipação do solo enquanto plano de fundo das narrativas desenvolvimentistas e hegemônicas (Tristão, 2014, 2016; Latour, 2020).
Os devires da mutação climática e das ficções políticas criadas nos coloca em posição de combate, na disputa por um currículo tecido a partir das subjetividades que o cercam. Frente a essa luta, é necessário retomarmos as conversas e conduzi-las a um movimento de reconstrução do passado no presente, conforme proposto por Pinar (1975), criando espaços e tempos nos quais as idiossincrasias dos terrestres sejam, dessa forma, principal elemento constituidor dos fios que tecerão o currículo escolar, proporcionando experiências outras de futuro na Terra.
Ao darmos voz aos terrestres que permeiam o espaço da escola, criamos aberturas para complicar as conversas, dando margem para que diversos saberes sejam parte constituinte do currículo, sem sobrepô-los a outras culturas, historicamente hierarquizadas (Tristão, 2014). Pela troca e diálogo entre-terrestres, esperamos construir redes de vivências, em que as percepções de nossas dependências alicerçam o pluralismo ontológico, podendo, assim, nos reestabelecer em solos firmes e férteis, nos distanciando dos efeitos gerados pela globalização-menos (Trsitão, 2014; Latour, 2020).
As manifestações ocorrentes no mês de abril estremeceram as bases que fundamentam as políticas públicas nefastas, como o NEM e a BNCC, que ganharam força ao longo dos governos de Michel Temer e do Jair Bolsonaro. Cabe a nós, sujeitos-terrestres da escola, estremecermos agora, com nossas conversas complicadas, os currículos escolares, por meio de nossas e de outras experiências vividas e de nossas geo-histórias.
Neste solo estremecido no qual pisamos, estamos nos preparando para a aterrisagem, na esperança de colhermos as flores com o aterramento das políticas públicas, (im)postas pelas elites obscurantistas brasileiras.