INTRODUÇÃO
A influência de Organismos Internacionais (OIs) nas reformas educacionais no Brasil não é exclusiva dos últimos trinta anos, mas é inegável que ela se fortaleceu a partir dos anos de 1990, pós dissolução da União da República Socialista Soviética (URSS). Em nível global, as premissas que se afirmam do ponto de vista ideológico passam a observar a orientação do “Consenso de Washington, [que] balizou a doutrina do neoliberalismo ou neoconservadorismo que viria a orientar as reformas sociais nos anos de 1990” (Frigotto, Ciavatta, 2003, p. 95). No Brasil, o Governo Fernando Henrique Cardoso assumiu as premissas do Consenso de Washington, tais como: o fim das polaridades, das lutas de classes, das ideologias igualitárias e de suas políticas de Estado. Reafirmou também a ideia força de um novo tempo “[...] da globalização, da modernidade competitiva, de reestruturação produtiva, de reengenharia”, ao qual o Estado brasileiro deveria se ajustar segundo as “leis do mercado globalizado” (Frigotto, Ciavatta, 2003, p. 106). Nesse contexto, o protagonismo dos OIs se evidencia nas reformas sociais e educacionais. Destacam-se dentre eles, o Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (Bird), a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e a Unesco (Shiroma, Garcia, Campos, 2011). As atuações desses OIs atrelam-se a reformas governamentais e evoluem em prol do sistema hegemônico, provocando tensões em meio ao caráter mercadológico das políticas propagadas para diversos segmentos educacionais, incluindo a Educação de Jovens e Adultos (EJA).
Ao estudar essa modalidade, Machado (1998) problematizou a interferência dos OIs na elaboração de políticas para a EJA. As diretrizes partiam principalmente do Bird, cujas proposições desencadearam a substituição de políticas públicas garantidoras do direito à educação por solidariedade e ação do terceiro setor. Reverberava-se, na EJA, políticas fundamentadas em: “[...] avaliação, eficiência dos resultados, elevação da produtividade, promoção de mudanças cognitivas e qualificações ligadas a atitudes e motivação, além de forte ênfase sobre conteúdos gerais e específicos” (Paiva, 1994, p. 32).
De 1990 para o século XXI, a EJA teve avanços, retrocessos e diversos desafios. Esses desafios se apresentam como efeitos colaterais de políticas voltadas para outros segmentos educacionais, sendo a política de implementação de escolas em Tempo Integral (ETIs) uma grande causadora desses efeitos. O PNE (2014-2024) propõe, em sua meta 6, “[...] oferecer educação em tempo integral em, no mínimo, 50% (cinquenta por cento) das escolas públicas, de forma a atender, pelo menos, 25% (vinte e cinco por cento) dos (as) alunos (as) da educação básica” (Brasil, 2014, n.d). Essa expansão tende a excluir estudantes considerados menos capazes à obtenção de resultados nas avaliações externas (Girotto, Oliveira, 2023), atingindo a EJA.
Além da política para as ETIs, somam-se aos desafios para a modalidade as consequências da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e do Novo Ensino Médio, em 2017. Com isso, um currículo esvaziado de formação humana adentra a escola, e a EJA assume o papel de corretora de fluxo, sofrendo modificações, como mostram Fraga (2017), Baptista (2022) e Di Pierro (2008). Assim, a EJA é lançada a caminhos árduos em meio à política pautada em orientações internacionais que focam nas relações de desempenho professor-aluno, na profissionalização como eixo da formação na prática e base para a organização das competências, na construção de um perfil profissional e na cultura da avaliação (Dias, 2016).
Essas orientações, porém, não são influenciadas somente pelo Bird, Unesco e OCDE, mas por outros OIs com discursos semelhantes, tal como a Organização dos Estados Ibero-Americanos (OEI), foco principal de análise neste artigo. No Plan Iberoamericano 2015-2021 (OEI, 2014), do qual o Brasil foi signatário, há várias orientações para a EJA, o que nos faz situar o problema investigando como os princípios nele elencados têm se materializado na política de EJA no Brasil e no ES.
Para responder a essa instigação, organiza-se o artigo em 3 partes, além da introdução e das considerações finais. A primeira explora a historicidade do conceito Educação ao Longo da Vida (ELV), princípio fundamental no documento da OEI, ao passo que se traz o pensamento de Gramsci sobre educação para o diálogo. Nos segundo e terceiro momentos, ganha corpo a análise documental como opção metodológica, e o trato dos documentos tomou como referência a Análise Crítica do Discurso de Dijk (2018), levando-se em conta que o discurso é: histórico, constitui a sociedade, é uma forma de ação social e realiza um trabalho ideológico. Com abordagem qualitativa, o diálogo se faz com Lüdke e André (2018), ao considerarem a pertinência das informações dos documentos sobre o contexto de origem, o que permitiu identificar, levantar e registrar os pontos de referência relacionados à EJA no Plan Iberoamericano 2015-2021 (OEI, 2014), em diálogo com outros documentos: Metas Educativas 2021(OEI, 2011), Diretrizes Operacionais para a EJA (Brasil, 2021), PNE (Brasil, 2014), BNCC (Brasil, 2017), Projeto Integrador de Pesquisa e Articulação com o Território (Espírito Santo, 2021), reportagens emitidas pela Secretaria de Estado de Educação (SEDU) sobre a EJA e informações extraídas da Plataforma de Dados Educacionais da Universidade Federal do Paraná (Universidade Federal do Paraná, 2023); todos foram selecionados e analisados a partir dos critérios sinalizados.
EDUCAÇÃO AO LONGO DA VIDA NA ENCRUZILHADA: INTERLOCUÇÕES COM GRAMSCI
Neste item, discutimos o conceito ELV, situando sua historicidade e problematizando-o em relação ao pensamento de Gramsci sobre educação e a acepção assumida pelo Documento Brasileiro à Confintea VI (Brasil, 2009). Embora vivamos em outro contexto histórico, Gramsci nos inspira a pensar a educação como desenvolvimento integral do ser humano, tal qual nos adverte Semeraro (2021).
A experiência de Gramsci como intelectual, dirigente político e educador, ao insistir na defesa da escola unitária e da educação integral, sinaliza para a importância da “[...] atuação política organizada das massas populares para firmar a própria hegemonia e criar uma nova civilização” (Semeraro, 2021, p.178). Nas palavras de Gramsci, isso demanda a formação de “[...] intelectuais dirigentes políticos qualificados, dirigentes, organizadores de todas as funções inerentes ao orgânico desenvolvimento de uma sociedade integral, civil e política”. (Gramsci, 1982, p.14).
Para Gramsci, “[...] toda palavra é um conceito, uma imagem que assume diferentes matizes nas épocas e nas pessoas, e a difusão de novas concepções ocorre primordialmente por razões políticas” (Gramsci, 1978, p. 26). O meio pelo qual as ideias são disseminadas passa por um Estado repaginado em suas funções, o qual privilegia os interesses privados. Assim, sua concepção de Estado significa a integração da sociedade civil e sociedade política e, ante essa configuração, torna- se desafiadora a formação de intelectuais organicamente articulados às classes subalternas.
Os intelectuais orgânicos dos segmentos subalternizados são postos em tensionamento com os intelectuais tradicionais, aqueles que se assumem em defesa das classes dominantes e permanecem alheios às necessidades das massas. Visando defender tais necessidades, a escola seria o local para formação de intelectuais orgânicos, a fim de que os sujeitos se assumam em prol da transformação político-social e da intervenção no mundo (Gramsci, 1982).
O caminho para formar intelectuais orgânicos, capazes de constituírem novos intelectuais até um novo bloco se fortalecer ao ponto de enfrentar o bloco hegemônico, exige uma educação integral, na qual teoria e prática se fundam, e o trabalho seja considerado sob a perspectiva ontológica (Gramsci, 1982).
Nesse sentido, colocamos em diálogo a concepção de educação em Gramsci com o conceito de educação permanente de Mendes (1969, p. 14) que, em sua apropriação no Brasil, a define como “[...] um sistema aberto, que utiliza toda a potencialidade da escola e da sociedade contribuindo para que o homem descubra que sua inserção no mundo se faz como práxis, ação dentro e ao longo da vida na qual ele se transforma e transforma o mundo”. Essa acepção fundada na matriz do pensamento crítico problematiza a tendência de subverter o conceito de educação permanente ou educação ao longo da vida, na educação de adultos, a um projeto de adaptação ao social, de contenção dos conflitos sociais na perspectiva da ideologia neoliberal e individualista da aprendizagem ao longo da vida.
Esse termo, a partir de 1990, é valorizado em detrimento do termo educação, no contexto da Confintea V-1997 (Barros, 2011). Em vista das apropriações em diferentes contextos, a ELV se apresenta de forma ambígua em documentos, pesquisas, na tradução das políticas dos OIs e na sua disseminação por intelectuais tradicionais.
A Constituição de 1988, em seu artigo 205, concebe a educação como: “[...] direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (Brasil, 1988). Essa ampla concepção indica uma educação ao longo da vida, na perspectiva da educação permanente, imprescindível à formação humana.
Tal concepção vai ao encontro do Documento Brasileiro Preparatório à VI Confintea (Brasil, 2009). Nele, a ELV retoma a concepção ampliada de EJA, de educação pública e gratuita como direito universal de aprender, e não apenas de se escolarizar, de ampliar e partilhar conhecimentos e saberes acumulados ao longo da vida, do berço ao túmulo, reafirmando a ênfase da V Confintea (Unesco, 1997), da escolarização como direito à educação básica para todos, independentemente da idade, e “[...] da educação continuada, como exigência do aprender por toda a vida” (Paiva, 2006, p. 522).
Logo, a ELV significa apropriar-se de uma postura diante da aprendizagem de constituição dos interesses intelectuais como busca permanente. Nesse sentido, Lima (2016) afirma a ELV como mais ampla que qualquer ensino voltado para um certo segmento educacional, mas adverte que isso vai depender da forma como é disseminada.
O modo como essa disseminação ocorre põe a ELV num entroncamento. Conforme Shiroma e Evangelista (2015, p. 33) apontam, a “[...] qualidade internacionalmente referenciada, custosa, que submete a todos – alunos, professores, escolas – à avaliação ‘ao longo da vida’, é um lucrativo negócio às corporações que vendem tecnologias e serviços”, afirmação com a qual outros pesquisadores concordam (D’Ávila, 2012; Fontes, 2010; Parada, 2021). Para Ventura (2013, p. 40) a proposta de ELV não tem a intenção de romper com a lógica capitalista “[...] disseminada pelas agências internacionais da ‘educação ao longo da vida’ como paradigma a ser alcançado, nos conformando ao consenso implementado globalmente de que esta seria a melhor alternativa para as nações semiperiféricas e a mais emancipadora para o aluno da EJA”.
Não podemos, portanto, desconsiderar que as diretrizes imputadas pelos OIs se referem à escola, e o Estado, ao incorporá-las em seu conjunto de justificativas para reformas, modifica os modos de realização do ensino formal. Assim, a ELV é apropriada hegemonicamente em favor do mercado e alça sentidos discrepantes da ELV defendida pelo Documento Brasileiro Preparatório à VI Confintea (Brasil, 2009). Subvertida do seu sentido de formação humana, voltamos à Gramsci, como inspiração, para reafirmar a necessidade de uma educação ao longo da vida, unitária e contra- hegemônica.
De acordo com Gramsci (2021), essa educação deve ser pública e envolver todos os grupos ou castas. Enquanto os OIs têm orientado políticas fundamentadas na ELV, os Estados, ao se apropriarem do termo, o fazem a fim de reorganizar a educação formal, sobrepondo os interesses privados. Tende-se, assim, a privilegiar o fim, não o processo. Os resultados das avaliações externas passam a guiar políticas, desconsiderando o aspecto omnilateral e contínuo do processo pedagógico. A educação, vista como produto, conduz professores à pressão constante de elevar os índices e a serem vistos como eternamente obsoletos ante as infindáveis competências exigidas pelo mercado (Rodrigues, 2008).
Dessa forma, a ELV proposta internacionalmente se desencontra da educação em Gramsci. Para ele, a educação escolar precisa estar alinhada aos conhecimentos da vida real e organicamente ligada à produção do intelectual que, por meio de relações sociais, da cultura e da política, se refaz no coletivo (Gramsci, 1982). Diferente dessa concepção, as propostas do Estado para a EJA, fundamentadas no conceito da ELV com princípios e orientações advindas de demandas mercadológicas, trazem uma série de consequências para sua estrutura, gestão e currículo.
Observemos como as diretrizes propostas pela OEI em relação à ELV têm sido incorporadas na política educacional para a EJA no Brasil e no ES.
A ELV: NO PLANO IBERO-AMERICANO E NO BRASIL
As propostas da OEI alinham-se às proposições da Unesco debatidas nos anos 1970, quando se preconizava o postulado da ELV como paradigma da educação global, em vista do desenvolvimento tecnológico e das mudanças econômicas no mundo (Delors et. al, 1998). Nos anos subsequentes, a ELV ganha espaço nos textos e documentos para a EJA. O documento Miradas sobre la Educación em Latinamérica (Organização dos Estados Ibero-americanos, 2011, p. 66) argumenta que “[…] adoptar a ELV implicaría asegurar la coordinación de todas aquellas instituciones que de forma directa o indirecta repercuten en el desarrollo y la formación de las personas a lo largo de la vida”. Nesse documento, o conceito ELV aparece como princípio para a formação de pessoas, o desenvolvimento de competências e destrezas para enfrentar o futuro.
No documento de 2014, Plan Iberoamericano de Alfabetización y Aprendizaje a lo largo de la Vida, 2015-2021 (Organização dos Estados Ibero-americanos, 2014), as palavras educação e aprendizagens são utilizadas como sinônimas no conceito ELV, enquanto o ao longo da vida ganha ênfase e se torna a espinha dorsal das orientações para a política dos Estados Nacionais. A partir desse princípio, o referido Plano evidencia os seguintes pontos:
Pontos de referência | Área |
---|---|
1-Fortalecer a alfabetização com programas inclusivos. | Educação inclusiva |
2-Entender a alfabetização como um contínuo | ELV |
3-Ampliar a oferta para jovens e adultos | Gestão |
4-Associar a educação ao trabalho produtivo [...] educação que privilegie a formação integral dos trabalhadores que ofereça ferramentas para a implementação de modelos alternativos de produção e geração de renda, no marco do trabalho proposto pela convenção da Organização Internacional do Trabalho; | Educação e trabalho |
5-Aumentar o percentual de participação e acesso equitativo de grupos vulneráveis. | Educação inclusiva |
6-Contar com currículos e itinerários formativos pertinentes, de acordo com as diferentes demandas e situações dos participantes; | Currículo |
7-Prolongar a formação de professores para a área específica da EJA; | Formação de professores |
8-Promover abordagens educativas para jovens e adultos, no quadro de uma educação contextualizada, crítica e transformadora; | Currículo |
9-Introduzir as TICs nos programas educativos, contribuindo para a melhoria da qualidade e equidade educativa; | Inovação tecnológica |
Fonte: OEI, 2014. Organizado pelos autores, 2023.
O documento da OEI atenta para necessidades do tempo presente ainda não supridas. Como desafio, cita o fortalecimento da educação inclusiva e da formação docente no Plano Nacional de Educação, 2014-2024 (Brasil, 2014). Para Di Pierro e Haddad (2015), mesmo o PNE sendo um documento que dá continuidade às propostas estabelecidas em agendas internacionais, as políticas inclusivas e de formação avançaram e retrocederam nos últimos 10 anos. Isso mostra que, considerando a proposição do documento, a forte influência internacional sobre os países não é suficiente para resolver o problema, pois não há prioridade dos Estados quanto à execução de suas metas e, portanto, muito há para se fazer em relação à política inclusiva e de formação, conforme Ferreira e Fonseca (2011).
Se, por um lado, há negligência no cumprimento da maioria das metas do PNE, por outro, há um ávido empreendimento em realizar outras proposições, em concordância com o documento latino da OEI. O Plan Iberoamericano propõe mudanças curriculares por meio da inserção de itinerários formativos, alinhamento do ensino ao trabalho e inovação tecnológica como indicado acima. No Brasil, desde a BNCC (Brasil, 2017), as disciplinas tornaram-se componentes curriculares e os currículos incorporaram projeto de vida, empreendedorismo, e outros itinerários adentraram o Ensino Fundamental e Médio.
A fim de legitimar mudanças profundas no seio social em relação ao mercado de trabalho, no âmbito das novas formas de precarização e da previdência, a mudança curricular se conecta à reestruturação dos tempos e formas de ofertar a educação, como veremos adiante. O sentido dessas mudanças representa o querer dos intelectuais que agem como prepostos do grupo dominante e de sua concepção de educação e formação para exercer funções super precarizadas da hegemonia social e política (Gramsci, 2021).
É nesse contexto de mudança curricular que a ELV é acrescentada à LDB, em 2018, pela alteração do artigo 37 (Brasil, 2018). Na literalidade da lei, “[...] a Educação de Jovens e Adultos será destinada àqueles que não tiveram acesso ou continuidade de estudos nos ensinos fundamental e médio na idade própria e constituirá instrumento para a educação e a aprendizagem ao longo da vida” (Brasil, 2018). A lei 13.632/2018 introduz, no artigo 58, a oferta de Educação Especial, desde a educação infantil estendendo-se ao longo da vida da pessoa.
Com referências à ELV, as Diretrizes Operacionais para EJA são aprovadas pela Resolução CNE/CEB nº 01 (Brasil, 2021). Esse documento alinha a EJA à BNCC e ao Plano Nacional de Alfabetização. Subdivide a modalidade em combinada, direcionada, multietapas e vinculada, limitando a oferta de EAD para os cursos da EJA no Ensino Médio a no máximo 80%. Mesmo assim, o documento denomina essas formas distanciadas de ofertar a EJA como EJA presencial, além de caracterizar a ELV como forma de oferta para jovens e adultos com deficiência e populações vulneráveis, bem como de anunciar fortemente a abertura da oferta de EJA para a iniciativa privada.
Como visto, a Resolução nº 01 das Diretrizes Operacionais da EJA (Brasil, 2021) incorporam orientações presentes nas referências do Plano (Organização dos Estados Ibero- americanos, 2014), o que confronta a compreensão de que a função da educação na formação das novas gerações deve ser pública e não privada (Gramsci, 2021). Ainda reiteramos que quanto mais subdivisões existem em um sistema educacional, maior é a tendência de diferentes classes surgirem no tecido social (Gramsci, 1982). O fato de o documento escancarar a educação para a EAD torna mais complexo alcançar a formação cidadã. A Resolução acaba por restringir a ELV à Educação Especial e aos grupos minoritários, segregando, supostamente como inclusão social, os que estão à margem da sociedade, promovendo negação do direito à educação, razão por que os Fóruns de EJA lançaram campanha nacional pela sua revogação.
DIRETRIZES DA OEI PARA A EJA NA AMÉRICA LATINA E A POLÍTICA PARA A MODALIDADE NO ES
Neste item, analisamos os objetivos da OEI para a América Latina e os movimentos políticos da EJA no ES. Observa-se que a ELV, aos poucos, ganha espaço na política para a EJA estadual. Os documentos inscrevem-se numa prerrogativa de educação coerente com a formação humana, mas as políticas se traduzem de modo contraditório e incoerente com a formação integral.
Assim, temos os seguintes objetivos:
OBJETIVOS | |
Objetivo macro: oferecer a população jovem e adulta da região oportunidades de aprendizagem ao longo da vida | |
1-Aumentar a taxa de alfabetização nos países ibero-americanos. 2-Articular o Plano com estratégias de prevenção do abandono escolar no ensino básico e secundário em cada país; 3-Aumentar o número de jovens e adultos na região Ibero-Americana que acessam e se graduam em todos os níveis e em diferentes modalidades; 4-Desenvolver sistemas de reconhecimento, creditação, avaliação e certificação da aprendizagem. | |
5-Melhorar a qualidade da oferta educativa para jovens e adultos; 6-Aumentar a cooperação técnica e financeira com diferentes atores na educação e aprendizagem ao longo da vida; 7-Contar com estudos e sistematizações regionais sobre a Educação de Jovens e Adultos 8-Comunicar e divulgar as ações realizadas em torno da EJA com o objetivo de fortalecer seu desenvolvimento e presença nas políticas públicas da região; |
Fonte: OEI, 2014. Elaborado pelos autores, 2023.
O documento capixaba “Orientações Curriculares para a EJA Continuum Primeiro Semestre e Segundo Semestre” (Espírito Santo, 2020) menciona a ELV diversas vezes. Fixando-se em axiomas defendidos em harmonia com a formação humana, como acolhimento de jovens e adultos que retornam à escola, articulação entre os saberes dos educandos com os conhecimentos formais e valorização das experiências cotidianas, o documento levanta questões pertinentes, interligando esses enunciados à ELV.
Nesse documento, tem-se o Projeto Integrador de Pesquisa e Articulação com o Território – PIPAT (Espírito Santo, 2021) como um componente curricular que reúne observação, pesquisa e intervenção no território, visando a integração entre teoria e prática. O objetivo da proposta se aproxima da diretriz de associar educação e trabalho produtivo, descrita no documento da OEI, sem abandonar a perspectiva humana da formação. Destacam-se os esforços para os docentes trabalharem o PIPAT aproximando-se da perspectiva integral de educação, apesar de atravessamentos no percurso escolar (Batista, 2021; Martinelli, 2022).
Contudo, destacamos algumas considerações sobre a possibilidade de reflexão crítica sobre esse componente. Tomemos duas ações pedagógicas noticiadas pelo informativo da SEDU – ES:
A Escola Horácio Plínio, em Bom Jesus do Norte, trabalhou com os alunos da EJA conteúdos relacionados ao empreendedorismo. O resultado do projeto foi apresentado na mostra “Aprendendo a ser empreendedor”. [...] “Os alunos aprenderam o passo a passo para criar uma empresa, com pesquisa de mercado, custo de produtos, marketing, organização e planejamento. Para isso, promovemos debates, exposições de ideias, leitura, análises de gráficos, tabelas e cálculos” (SEDU, 2022a).
Esse trecho confere ao menos três referências ao documento da OEI (Organização dos Estados Ibero-americanos, 2014): introdução de itinerários, aprendizagem atrelada ao contexto e divulgação de ações na EJA via mídia oficial. Como itinerário que adentra a EJA, observa-se o esforço docente em mostrar o empreendedorismo como possibilidade para cruzar os saberes dos estudantes com conhecimentos científicos, tal como indica a experiência descrita. Porém, os desafios implicados na tarefa de empreender podem ser mais significativos, se o complexo contexto histórico de precarização do trabalho, as contradições e tensionamentos entre Estado e sociedade civil são trazidos para a discussão, o que não parece ser a postura levada a efeito pelos docentes. Essa ênfase do empreendedorismo não pode deixar de ser vista na relação com as diversas formas de exploração da força de trabalho em nível global, em que trabalhadores são submetidos a modalidades de trabalho “[...] com contratos uberizados, intermitentes, flexíveis [...] sem preocupação com deveres trabalhistas historicamente conquistados” (Antunes, 2020, p. 37).
O caminho pela práxis educativa supõe a não instrumentalização dos sujeitos em conformidade com o mercado. Assim, o trabalho é encarado como princípio educativo e, como fundamento ontológico, possui decorrências antropológicas, axiológicas relativas à teoria do conhecimento, diferindo-se de empregabilidade (Martins, 2016).
A mesma reflexão convém para outra ação compartilhada via informativo SEDU:
A Escola Estadual Graça Aranha, em Santa Maria de Jetibá, realizou a culminância do Projeto Integrador de Pesquisa e Articulação com o Território (PIPAT), da turma concluinte da EJA Profissional, do curso de Assistente Administrativo. O produto entregue na culminância foi um aplicativo, o EMPREGA SMJ, que tem por objetivo reunir em uma plataforma os serviços, as vagas de emprego e as atividades culturais disponíveis no município (SEDU, 2022b).
A produção do aplicativo pode ser colocada em consonância com o indicativo de introduzir as Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) no currículo da EJA (Organização dos Estados Ibero-americanos, 2014). Como a plataforma reúne profissionais e serviços variados, e defendendo com Gramsci a intelectualidade inerente a cada atividade do homo faber ao homo sapiens, o desafio é provocar a ação política dos trabalhadores em meio às complexas modificações no setor de serviços. Em razão das modificações nesse setor, o aplicativo facilita ao estudante desempregado encontrar possibilidades, mas, ao mesmo tempo, a tecnologia aponta mudanças em relação ao trabalho, reconfigurando as relações humanas.
A introdução das TICs é hermética, porquanto coteja o aumento da cooperação técnica entre diferentes sujeitos, a realização de estudos e sistematizações sobre o ensino, a mudança nos modelos de oferta educacional e na formação para professores, orientações apontadas pela OEI. Vejamos o seguinte fragmento:
A Sedu, em parceria com o Instituto Sonho Grande, realizou, nessa terça-feira (19), uma reunião para debater o resultado de dados dos estudantes da Rede Estadual ingressantes no Ensino Médio em 2022, que responderam ao "Guia para sua Jornada no Novo Ensino Médio Capixaba". Esse Guia teve o propósito de auxiliar o estudante quanto à implementação do Novo Ensino Médio no ano corrente, mostrando os Itinerários disponíveis, a oportunidade de matrícula nas escolas de Tempo Integral e outras ofertas auxiliares, como é o caso da formação profissional, da EJA, entre outros (Espírito Santo, 2022c).
Observa-se a presença do instituto como avaliador de políticas públicas em relação às mudanças curriculares, primordialmente voltadas ao Ensino Médio. O instituto defende a ELV e atua nas escolas ditas integrais e, para apoiar suas intenções, encomenda pesquisas de opinião. Uma delas apontou que apenas 32% da população elogia o ensino público e a escola em tempo integral é desejo de 80% dos estudantes brasileiros (Metrópoles, 2022).
Como intelectuais orgânicos do capital, reforça-se a má qualidade da escola pública, e apresenta-se como solução para isso a implementação das ETIs. No entanto, há de se lembrar que nem toda escola pública tem baixo rendimento e as que têm, podem ter esse resultado dado à falta de investimentos e aos graves problemas sociais em seus entornos. Problemas sociais não solucionados tendem a desestimular o estudante a frequentar ETIs, pois a vulnerabilidade é a condição principal para se começar a trabalhar mais cedo. Ao ingressar no mercado de trabalho, restam ao educando o ensino em turno parcial, a conclusão da etapa educacional pelo ensino semipresencial ou o abandono escolar.
Nessa leitura, acrescenta-se a relação do instituto Sonho Grande com a Fundação Lemman e o Instituto Natura, além de outros que se tornaram parceiros do Estado e têm influenciado o Ensino Médio no ES. Os dados fornecidos pela Sonho Grande e as reuniões avaliativas são como elos numa corrente que interligam as alterações no currículo e a mudança nos tempos das escolas para integrais, o que afeta profundamente a EJA. O resultado tem sido a expulsão de estudantes fora da idade-série estipulada pelo Estado, fato que temos denunciado por meio de pesquisas e pode ser observado a seguir:
2015 | 2016 | 2017 | 2018 | 2019 | 2020 | |||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Escola | T. | EJA | T. | EJA | T. | EJA | T. | EJA | T. | EJA | T. | EJA |
Afonso Cláudio | 412 | 187 | 337* | 220 | 7 | 0 | 13 | 0 | 19 | 0 | 11 | 0 |
Aristeu Aguiar | 190 | 181 | 176 | 130 | 143* | 110 | 12 | 0 | 19 | 0 | 256 | 166 |
Daniel Comboni | 84* | 120 | 12 | 0 | 20 | 0 | 21 | 0 | 13 | 0 | 11 | 0 |
José L. Nunes | 329 | 178 | 311 | 201 | 199* | 165 | 19 | 0 | 22 | 0 | 20 | 0 |
M. Miguel di Sanctis | 322 | 195 | 364* | 203 | 35 | 0 | 35 | 0 | 47 | 0 | 11 | 0 |
Marita M. Santos | 578 | 236 | 371* | 188 | 13 | 0 | 19 | 0 | 15 | 0 | 26 | 0 |
São Gabriel da Palha | 155 | 93 | 186 | 139 | 205* | 151 | 9 | 0 | 9 | 0 | 15 | 0 |
Maura Abaurre | 110 | 78 | 222* | 173 | 15 | 0 | 18 | 0 | 36 | 0 | 31 | 0 |
Francisco Ávila | 148* | 187 | 6 | 0 | 6 | 0 | 1 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 |
Álvaro Castelo | 77 | 84 | 79 | 76 | 50 | 34 | 32* | 13 | 24 | 0 | 44 | 0 |
Washingto n P. Meirelles | 439 | 323 | 375 | 317 | 363* | 253 | 10 | 0 | 7 | 0 | 251 | 245 |
Fonte: Plataforma de Dados Educacionais da Universidade Federal do Paraná. Elaborada pelos autores, 2023.
Legenda: T.: (total de estudantes fora da idade série; *: Último ano em que a escola ofertou mais de um turno).
É possível ver a quantidade de estudantes excluídos com a implementação do programa de ETIs no ES, implantado em 2015. Nota-se, por exemplo, que diversas unidades de ensino possuíam mais de 100 estudantes acima de 17 anos, e esse número cai drasticamente. A situação nos leva inevitavelmente a perguntar para onde foram esses estudantes.
A resposta atravessa a expansão da EJA semipresencial. Concomitante ao movimento de expulsão, a política de EJA nucleada se fortalece como metodologia semipresencial com concentração majoritariamente nos centros urbanos:
NEEJA/CIDADE | ESCOLA | MATRÍCULAS | INÍCIO |
NEEJA Afonso Claudio | José Cupertino | 296 | 07/2019 |
NEEJA Alegre | Aristeu Aguiar | 220 | 11/2017 |
NEEJA Barra de S. Francisco | Gov. Lindenberg | 397 | 04/2017 |
NEEJA Cariacica | Mª de Lourdes Santos Silva | 595 | 04/2017 |
NEEJA Ecoporanga | Daniel Comboni | 64 | 03/2022 |
NEEJA Iúna | Santíssima Trindade | 270 | 09/2021 |
NEEJA Nova Venecia | Dom Daniel Comboni | 338 | 02/2017 |
NEEJA Montanha | Dom José Dalvit | 126 | 11/2021 |
NEEJA Pedro Canário | Manoel Duarte da Cunha | 40 | 02/2022 |
NEEJA São Mateus | Dr. Emilio Roberto Zanotti | 199 | 03/2017 |
NEEJA Sta Maria de Jetibá | Graça Aranha | 333 | 01/2022 |
NEEJA Vila Velha | Agenor de Souza Lé | 994 | 03/2017 |
Fonte: relatório Ceejas a Neejas no periodo de 01/07/2020 a 13/04/2022 Sedu, ES, 2022. Elaborada pelos autores, 2023.
Os dados apresentados indicam a conformação das políticas educacionais propostas para o ES. Essa materialização não se separa do contexto de ascensão dos OIs, enquanto influenciadores de políticas e representantes do projeto do capital. A ELV, nesse mesmo contexto, encontra os documentos nacionais e locais, mas permanece ambígua, na medida em que o texto legal, ao mesmo tempo que propõe uma educação ampla, indica mudanças na forma e no conteúdo da educação formal coerentes com a visão do mercado. Lidar com essa ambiguidade acentua os desafios para o docente da EJA, que tem a difícil tarefa de formação junto aos estudantes no sentido de conceber a ELV na perspectiva do inacabamento do aprender, da profundidade do pensar e da dialética que a educação envolve na dinâmica da sociedade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao iniciarmos esta pesquisa, propusemos investigar como as orientações elencadas no Plano Ibero-Americano 2015 – 2021 da OEI se materializam na EJA do Brasil e do ES. Tal documento se fundamenta no conceito de ELV, o qual assume-se ambíguo na literatura científica, nos documentos direcionados à educação formal e na forma como a política se materializa.
Após os dados apresentados sobre as propostas da EJA no Brasil e no ES, que buscam alinhar a modalidade à BNCC, por alterações no currículo, criação e expansão dos Núcleos de EJA e suas relações com a política de ETIs, podemos afirmar a tendência da ELV em seu alinhamento ao mercado e a influência da OEI, em específico nas políticas de EJA expressas no Plano Ibero- americano e apropriadas pela política local.
A ampliação dos NEEJAs pode ser a materialização de oportunidades da oferta de aprendizagem ao longo da vida (OEI, 2015) para a população jovem e adulta da região. Se os núcleos se abrem como oportunidades para quem não pode frequentar a escola, vale lembrar, que estão em regiões centrais e, sendo assim, oportunizam, mas não garantem o direito à educação a todos, pois tendem a excluir os educandos que vivem distantes dessas regiões. Os núcleos podem ser um meio para o Estado ampliar a oferta educativa, ao mesmo tempo que supostamente reduz gastos, pois absorve um grande número de estudantes, sem aumentar o número de professores, salas de aula, merenda etc.
Além disso, percebe-se a inserção de currículos e itinerários formativos, nem sempre pertinentes ou de acordo com as demandas e situações de vida dos participantes. Ao que tudo indica, a escolha segue mais a vontade do sistema do que a do estudante. Por fim, a introdução das TICs também parece ocorrer pela via da inovação do currículo e do modelo semipresencial.
Contudo, outras proposições da OEI estão longe de se materializar no ES. Precisa-se avançar em termos de estratégias de prevenção do abandono escolar na educação básica; na promoção de abordagens educativas para a EJA, conforme previsto, bem como melhorar a qualidade da oferta educativa para jovens e adultos.
Retomando Gramsci, somos levados a perguntar: como a EJA pode efetivar uma ELV humanizadora? Como o sentido Gramsciano de educação pode se materializar mesmo em meio às políticas educacionais neoliberais? Como formar estudantes com a compreensão de que a educação e a aprendizagem são atos inacabados e demandam tempo e trabalho, quando o Estado promove o aligeiramento e a certificação rápida? Eis que o caminho se abre para novas investigações.