INTRODUÇÃO
Em 1905, entrava em circulação no Rio de Janeiro a revista infantil O Tico-Tico, a primeira a se dedicar exclusivamente a este público. Ela manteve suas publicações até 19621, o que demonstra a sua longevidade. Ao marcar por tantos anos presença no cenário brasileiro, é possível afirmar que a revista fez parte da infância de algumas gerações, contribuindo, portanto, para a formação dos seus pequenos leitores. Destacamos o sentido amplo da palavra formação, pois a revista perpassou questões que dizem respeito à constituição do sujeito enquanto indivíduo, mas também às esferas educacionais. Dessa maneira, O Tico-Tico era destinada ao público infantil com o intuito de educar de forma não escolar.
Dentre as temáticas de pesquisa que podem se desdobrar a partir da análise dessa revista, o presente artigo abordará uma das personagens que a compõe. Trata-se de Lamparina - cuja estreia nas histórias em quadrinhos aconteceu em 1928 e a última aparição fora em 1944 -, uma menina negra que, pelas mãos de José Carlos de Brito e Cunha (mais conhecido como J. Carlos), nos mostra mais um traço do racismo no Brasil. No total, quatrocentos e sete2 quadrinhos foram analisados nesta pesquisa.
Lamparina geralmente tem papel de destaque nas histórias em quadrinhos nas quais aparece, sendo que também estão em cena outros personagens, como Carrapicho, Jujuba e Goiabada - os dois primeiros são, respectivamente, pai e filho; o terceiro é um vizinho e amigo de Carrapicho. Vale destacar que todos eles são brancos e já estavam vinculados à revista antes da chegada de Lamparina. Jujuba é também uma criança, e, por serem da mesma faixa etária, Lamparina acaba por se tornar uma companhia para ele. Porém, não há muitos pontos de semelhança entre ambos, a começar pelo fato de que é ela quem realiza as tarefas domésticas e sempre é alvo de punições por parte de Carrapicho, o que raras vezes acontece com a outra criança. Contudo, esse pretenso protagonismo para uma personagem negra não pode ser visto como algo positivo, já que ela está imersa em uma série de estereótipos racistas.
Busca-se, neste artigo, refletir sobre a representação que se procurava construir e/ou reforçar na mente das crianças por meio das histórias da Lamparina, uma vez que é significativo pensar que, desde a infância, as crianças já eram apresentadas aos ideais racistas, o que influenciava a forma como elas construiriam a visão de si mesmas e do outro. Assim, pretende-se entender o que essa personagem representava para o imaginário social daquele período. Para isso, recorre-se ao conceito de representação formulado por Hall (2016, p. 31): “[...] uma parte essencial do processo pelo qual os significados são produzidos e compartilhados entre os membros de uma cultura”. Ainda segundo Hall (2016, p. 20), “[...] os significados culturais não estão somente na nossa cabeça - eles organizam e regulam práticas sociais, influenciam nossa conduta e consequentemente geram efeitos reais e práticos”. Além disso, Baczko (1985) apresenta a noção de imaginário social como uma produção coletiva que contém uma gama de símbolos, os quais, por sua vez, são alvo de disputas por envolver relações de poder.
As décadas de 1920 e 1930 podem ser caracterizadas como um período marcado pela multiplicidade quando “[...] rígidas crenças ideológicas deram ao mundo novas concepções sobre o que deveria ser o ‘homem novo’, o papel do Estado e a boa sociedade” (Araujo, 2000, p. 7). Tais crenças e concepções seriam uma reação frente ao liberalismo e ao comunismo, além do crescimento de totalitarismos de direita na época. A revista O Tico-Tico apresentava posicionamentos de cunho moral, cívico e nacionalistas antes mesmo do golpe de 1937, o qual instaurou o Estado Novo (1937-1945) pelas mãos de Getúlio Vargas. Na análise das fontes, fica evidente o apoio da revista à ditadura varguista, especialmente por meio do compartilhamento de alguns de seus ideais e nas páginas do periódico não faltaram elogios às ações do governo estadonovista em prol da educação.
Compreender o que J. Carlos pretendia passar para as crianças por meio da pequena Lamparina leva a pensar o que ela representava para a sociedade da época. No que se refere às discussões em torno dos termos raça e racismo, Munanga (2003) propõe que o conceito de raça (como explicação e, consequentemente, hierarquização das diferenças humanas) não possui mais fundamento dentro do campo dos saberes produzidos pela biologia desde o século XX. Mas, mesmo que no meio científico o conceito tenha caído em desuso, ainda é usado com peso de questões ideológicas e expressa, portanto, relações de poder e dominação, entendido então como uma construção sociológica.
[...] o racismo é uma crença na existência das raças naturalmente hierarquizadas pela relação intrínseca entre o físico e o moral, o físico e o intelecto, o físico e o cultural. O racista cria a raça no sentido sociológico, ou seja, a raça no imaginário do racista não é exclusivamente um grupo definido pelos traços físicos. A raça na cabeça dele é um grupo social com traços culturais, lingüísticos, religiosos, etc. que ele considera naturalmente inferiores ao grupo a qual ele pertence. (sic) De outro modo, o racismo é essa tendência que consiste em considerar que as características intelectuais e morais de um dado grupo, são conseqüências diretas de suas características físicas ou biológicas (Munanga, 2003, p. 8).
Em síntese, é possível perceber que, conforme apontado por Munanga (2003, p. 10), “Embora a raça não exista biologicamente, isto é insuficiente para fazer desaparecer as categorias mentais que a sustentam. O difícil é aniquilar as raças fictícias que rondam em nossas representações e imaginários coletivos”. A partir dessas premissas, busca-se discutir o racismo presente na representação da personagem Lamparina e nas suas histórias.
A revista O Tico-Tico sempre apresentou o seu papel educador. Em relação a isso, Vergueiro e Santos (2008, p. 24) afirmam que “A tudo a revista brasileira respondeu com uma postura firme em relação a seus objetivos didático-pedagógicos, mantendo-se arraigada à missão de entreter, informar e formar, de maneira sadia, a criança brasileira”. Ainda é pertinente pensar mais a fundo a qual segmento social a revista se destinava, o que possibilita uma noção mais precisa de qual público teve contato com os ensinamentos advindos dos entretenimentos oferecidos nas páginas de O Tico-Tico.
A revista O Tico-Tico elegeu como seu público preferencial a criança de classe média, oriunda de uma família solidamente constituída, temente a Deus, respeitadora dos valores pátrios, matriculada em instituições educacionais formais, com uma inteligência superior à média e submissa aos preceitos morais predominantes na sociedade brasileira; ela assentou suas energias nos filhos da classe média urbana, pautando-se pelos interesses, desejos e gostos desse segmento social, dessa forma reforçando em suas páginas os modelos aceitáveis de comportamento que podiam colaborar para a permanência do padrão social vigente (Vergueiro, Santos, 2008, p. 31).
Saber que a revista circulava entre a classe média branca de valores católicos instiga a pensar a personagem Lamparina, uma menina negra que provavelmente não era cristã, permitirá refletir sobre os ensinamentos racistas transmitidos aos pequenos leitores por meio das histórias em quadrinhos nas quais ela aparece. Afinal, a representação da personagem negra, ainda na infância, poderia ter em algum nível influência sobre o olhar das crianças brancas na forma como veriam a si mesmas e na maneira como veriam as pessoas negras.
O TICO-TICO: UM ENTRETENIMENTO EDUCADOR
À luz da observação das fontes, constata-se que O Tico-Tico foi uma revista infantil que começou a circular no Rio de Janeiro em 1905, custando o número avulso 200 réis (O Tico-Tico, 22/11/1905, p. 1). Porém, no ano de 1937, um exemplar custava $500 réis no Rio de Janeiro e $600 réis nos demais estados (O Tico-Tico, 06/01/1937, p. 1). No início, a periodicidade das publicações era semanal, mas a partir de agosto de 1941 a revista passou a ser mensal (O Tico-Tico, 08/1941, p. 1). Essa alteração acarretou a ampliação do número de páginas, passando a ter uma média de cinquenta páginas, sendo que, nos anos anteriores, as publicações apresentavam cerca de vinte ou trinta páginas. A partir das publicações mensais, o preço aumentou para 1$500 réis (O Tico-Tico, 08/1941, p. 1).
Em relação à criação de O Tico-Tico, Vergueiro e Santos (2008) atribuem a idealização da revista a Renato de Castro, Cardoso Júnior e Manoel Bonfim, os quais apresentaram o projeto do periódico ao dono da Sociedade Anônima O Malho, Luís Bartolomeu de Souza e Silva. Os idealizadores objetivavam “[...] suprir uma lacuna na imprensa nacional, insistente em não produzir publicações que privilegiassem os anseios e as necessidades da infância” (Patroclo, 2019, p. 733). Os envolvidos na criação de O Tico-Tico reforçavam a importância atribuída às crianças para a construção da nação brasileira, pois elas “[...] carregavam muitas expectativas por parte da sociedade, sendo vistas em muitos casos como ‘construtores da nação’, ou ‘pequenos salvadores da pátria’” (Gonçalves, 2013, p. 115).
Dessa forma, não é possível analisar a revista como um simples passatempo. Portanto, é relevante discutir alguns pontos acerca da educação não escolar, aqui entendida “[...] como toda prática educativa intencional, ou não, em que ocorrem situações de trocas ou circulação de saberes” (Albuquerque, Buecke, 2019, p. 22). Assim, pensar a educação e os variados meios de construí-la requer a ampliação da sua concepção e a revista infantil se torna um mecanismo educativo para além dos muros escolares.
Em 1942, a revista apresenta um texto escrito pelo coronel Jonas Correia - então secretáriogeral de Educação e Cultura do Distrito Federal -, no qual ele relata ser leitor da revista desde 1912, considerando-a como o seu “catecismo de histórias infantis”. Ele informa que a revista ampliou seu vocabulário na infância e muito lhe ensinou. Assim, o coronel afirma que O Tico-Tico possuía “inapreciáveis benefícios de ordem moral e cultural”. Correia apontava ainda que seu filho também foi leitor da revista, a qual apresentava “[...] asseio da linguagem, escolha e apuro dos assuntos, delicadeza dos sentimentos, fundo cívico nacional” (O Tico-Tico, 07/1942, p. 11). Outro exemplo nesse sentido aparece na edição de outubro de 1942, em um texto no qual é destacado que, em uma reunião de Diretores de Serviços de Instrução e Por Grupos Escolares do Maranhão, foram discutidas as leituras que deveriam ser vedadas por serem consideradas como inconvenientes, mas a revista O Tico-Tico foi indicada como uma leitura útil às escolas (O Tico-Tico, 10/1942, p. 31). O fato de a revista ser aprovada e sugerida em âmbito escolar demonstra que o conteúdo nela vinculado ia de encontro ao que era esperado como material didático naquele contexto estadonovista.
O entretenimento oferecido por O Tico-Tico não perdia de vista “[...] objetivos formativos, buscando não apenas divertir as crianças, mas também cuidar da educação moral, cívica e científica de seus leitores” (Gonçalves, 2020, p. 160). A autora elucida que a revista tinha em seu horizonte que “Educar e instruir as crianças seria um caminho possível pata a formação de futuros cidadãos, comprometidos com o progresso da nação” (Gonçalves, 2020, p. 124). Assim, era oferecido aos leitores um entretenimento educador, engajado não apenas com a formação das crianças no sentido de informá-las, mas também empenhada em fazer com que os pequenos fossem agregados positivamente no progresso do Brasil. Para isso, as páginas de O Tico-Tico contaram com variadas seções para concursos, contos, espaços para poesias, escritos e fotos de seus leitores, histórias em quadrinhos, histórias sobre o Brasil, lendas, propagandas e até discussões sobre profissões. Em cada uma dessas seções, o Tico-Tico trazia consigo um propósito educador.
Convém também explicitar alguns pontos sobre o criador da personagem Lamparina José Carlos de Brito e Cunha (J. Carlos), pois, de acordo com Costa e Almeida (2017, p. 120), “A escrita faz do escritor um inventor de mensagens ou até mesmo um criador de signos”. Então, é imprescindível pensar quem é o artista responsável pela criação das histórias em quadrinhos da personagem Lamparina. Nascido no Rio de Janeiro em 1884, José Carlos de Brito e Cunha, tornouse órfão de pai ainda na infância, sendo alfabetizado em sua casa pela sua mãe e depois enviado para o ginásio. “Passados os anos de formação escolar, não tardou para que o caminho do estudo acadêmico fosse renunciado em detrimento da carreira artística” (Soares, 2021, p. 15). Ainda de acordo com Soares (2021, p. 20), J. Carlos “[...] se despediu da vida enquanto fazia aquilo que sabia de melhor: criar. Sofreu um acidente vascular cerebral enquanto trabalhava na mesa da redação em 29 de setembro de 1950”. Contudo, a durabilidade da carreira de um artista não o eleva a um posto em que não possa receber críticas e a produção de J. Carlos não está isenta de erros, como atestam seus traços racistas.
Em certa medida, parece haver um lugar-comum de localizar as produções racistas (nas mais variadas áreas) como sendo fruto do pensamento de um determinado período. Essa justificativa carrega consigo o perigo de relativizar o racismo. Afinal, não é porque em determinado contexto, a sociedade tolerou e legitimou atitudes, falas e produções racistas que há uma explicação plausível para tal. Uma contextualização, com tons de relativização, não apaga os problemas que o racismo gerou - e ainda gera - à população alvo das violências que ele acarreta.
ESTEREÓTIPOS E PRECONCEITOS NOS TRAÇOS DE LAMPARINA
Em 25 de abril de 1928, O Tico-Tico trazia em sua capa a estreia das histórias em quadrinhos com a personagem Lamparina. Na primeira aparição da personagem é narrado que Lamparina foi trazida de uma ilha misteriosa por Carrapicho, sendo que este a teria recebido como um presente. Ao efetuar a leitura dessa história, torna-se necessário indagar sobre a identidade de ilha e porque a menina havia sido dada a Carrapicho. Para responder essas inquietações, é necessário voltar nas quatro edições anteriores à sua estreia, pois elas dizem muito a respeito de como J. Carlos formulou a imagem de Lamparina e qual visão queria transmitir sobre os negros.
As quatro histórias possuem o mesmo título, “O grande vôo do ‘bahú’”, e todas figuram na capa da revista, sendo que uma dá continuidade à outra. Na primeira delas, é afirmado que, quando Carrapicho não estava trabalhando na cidade, ficava envolvido com a aviação. Junto com seu filho Jujuba, transformou um baú velho e seu automóvel Ford em um aeroplano. Na sequência, eles convidaram o vizinho Goiabada para um passeio na engenhoca (O Tico-Tico, 14/03/1928, p. 1). A segunda dessas histórias traz Carrapicho, Jujuba e Goiabada em cena, quando eles nomearam o aeroplano como “Bahú”. Então, finalmente, decolaram (O Tico-Tico, 21/03/1928, p. 1). Em continuação, na terceira narrativa, é contado que uma rajada de vento os desviou para
[...] uma tribu de selvagens; gritando e agitando as suas armas e cercaram os recémvindos desconhecidos que tremiam como varas açoitadas pelo vento nas lâgoas. Eram pretos antropophagos. Falavam uma língua desconhecida e amarraram com cipós as mãos de Carrapicho, Jujuba e Goiabada. Depois levaram os tres desventurados á presença de um preto grande que, a julgar pelo aspecto autoritário, devia ser o rei daquella gente toda (O Tico-Tico, 28/03/1928, p. 1).
A quarta história mostra que o rei da tribo falava algumas palavras em português e deu ordens a um servo de preparar os três para serem servidos como refeição. Mas Jujuba começou a mostrar uma mágica e o truque causou admiração e, com isso, os três foram salvos da enrascada. Então, após a enganação bem-sucedida de Jujuba, é afirmado que “O rei concedeu liberdade a todos e lhes deu uma piroga e uma negrinha. O embarque dos aviadores desventurados fez-se com grandes demonstrações de sympathia e a piroga partiu sobre as aguas mansas trazendo Carrapicho, Jujuba, Goiabada e a negrinha” (O Tico-Tico, 04/04/1928, p. 1).
A negrinha em questão era Lamparina, e na piroga - que é uma espécie de embarcação - ainda entraram dois homens da tribo que, ao que tudo indica, remaram para levá-los para casa. Assim como Lamparina, todos os indivíduos de sua tribo de origem possuem traços bemmarcados: são pretos com bocas demasiadamente avermelhadas e grandes, o que denota os traços racistas com relação aos negros. As vestimentas são apenas uma espécie de tanga, possuem colares, brincos e portam lanças. Além disso, são todos carecas, e apenas um deles tem três fios de cabelo.
Na imagem acima, observa-se que os negros estão ali reduzidos à selvageria, a uma postura incivilizada em comparação aos três personagens brancos. Isso também é mostrado quando os nativos são descritos como antropófagos, por não dominarem o português e pela falta de vestimentas. Há de se mencionar também que são colocados como estúpidos na medida em que Jujuba, a criança branca, consegue enganá-los. Além disso, mesmo sendo uma tribo com muitas pessoas, todos são praticamente iguais, como se não existissem particularidades identitárias. Este é o contexto do surgimento de Lamparina. Portanto, J. Carlos a constrói como uma selvagem vinda de uma tribo de “pretos antropófagos”.
Essa concepção estereotipada dos negros era passada então aos leitores de O Tico-Tico. Para melhor compreender essa problemática, é preciso pensar naquilo que Hall (2016) explica sobre a estereotipagem. Ele afirma que a estereotipagem é marcada pela redução de pessoas a “[...] algumas poucas características simples e essenciais, que são representadas como fixas por natureza” (Hall, 2016, p. 190). É importante fazer um adendo, uma vez que este autor não estava tratando de histórias em quadrinhos, nem mesmo do contexto brasileiro; porém, suas formulações são valiosas para elucidar ou, ao menos, instigar a pensar criticamente a ótica pela qual foram formulados estereótipos para representar a população negra. Em suma, ele defende que a estereotipagem “[...] é parte da manutenção da ordem social e simbólica” (Hall, 2016, p. 192).
Voltando, então, à capa da edição de estreia, é mostrada a chegada das personagens em casa. A partir deste número, Lamparina viria a se juntar aos demais personagens da revista. Já nesse primeiro momento, ela é colocada como manhosa, chorona, de linguagem incompreensível, que só cessou o choro quando escutou um samba.
Fez-se então pela tarde um samba em homenagem á manhosa. Compareceram: Cartola, Chiquinho, Benjamin, Jagunço e a negrinha, espantada, calou a boca. Deram-lhe uma saia amarela com bolas pretas, baptisaram-na com o nome de “Lamparina” e incorporaram-na á numerosa família do “O TICO-TICO”. “Lamparina” não chora há tres dias (O Tico-Tico, 25/04/1928, p. 1).
A chegada de Lamparina é significativa, pois traz consigo alguns elementos que merecem destaque, tais como: 1) o fato de ela ter sido dada de presente a Carrapicho, que remete à ideia de pertencer a alguém para que esse alguém pudesse passá-la para frente, como uma espécie de posse - o que tem relação com a lógica escravagista em que os negros eram vistos como uma propriedade de seus senhores; 2) após chegar em um novo ambiente por ela desconhecido e ter como reação o choro, a menina foi taxada de manhosa e chorona; 3) o fato de ser dito que ela possuía uma linguagem incompreensível; 4) por renomearem a menina, como se do lugar de onde ela viesse já não tivesse nome próprio, o que lembra a prática escravocrata de renomeação dos africanos escravizados com a finalidade de torna-los alheios às suas identidades; 5) pelo autor se referir a ela como neguinha de forma pejorativa; 6) e por darem a ela somente uma saia, enquanto os outros personagens têm vestimentas completas.
É importante delimitar que as histórias com a presença de Lamparina estiveram vinculadas à capa da revista até a edição 1382, do ano de 1932 (O Tico-Tico, 30/03/1932, p. 1); logo, tinham papel de destaque em O Tico-Tico. Mas é necessário pontuar que Lamparina não permanece na capa ao longo das futuras publicações, uma vez que, a partir da edição 1386 do ano de 1932, ela aparece na página 8 (O Tico-Tico, 27/04/1932, p. 8). Essa troca do local da publicação entre a capa para o meio da revista, por vezes para o final, indica que ela talvez tenha perdido sua força, cedendo espaço para outros personagens/atividades mais importantes aos olhos dos editores da revista
Na capa que traz a estreia da personagem, é destacado que ela teria uma linguagem incompreensível. Ao longo das histórias seguintes, é comum evidenciar que ela escreve e fala errado. No período investigado, aparecem poucas histórias que se ambientam em uma escola e apenas uma delas, que convém aqui mencionar, possui o título “Na escola”. Mas a narrativa não é necessariamente da personagem em um processo de aprendizagem, mas, sim, envolvida em uma das suas artimanhas. Na sala de aula em questão, a professora e as crianças retratadas são todas brancas. É contado que Carrapicho matriculou Jujuba e Lamparina na escola mais próxima de sua casa e, ao levá-los até lá, advertiu à professora que Lamparina tinha mania de fugir. Mas Lamparina prometeu para a professora que não fugiria e disse que quem iria fugir seria ela. Dito e feito: ela causou uma confusão soltando um rato na sala e todos saíram apavorados, menos Lamparina, que permaneceu e ainda reafirmou à professora que avisou sobre quem fugiria (O Tico-Tico, 04/04/1934, p. 8).
Nas figuras aqui apresentadas é perceptível a boca marcadamente grande e avermelhada de Lamparina, além de sua pele especialmente escura. Apesar de ser uma menina, ela não remete às características ditas femininas: não tem cabelos; suas vestes se resumem a uma saia, ficando com seu tronco completamente descoberto; e os comportamentos da personagem não são aqueles que se esperavam das crianças (sobretudo das meninas), ou seja, uma postura comportada e respeitosa. Além disso, ela não possui nenhum calçado. Seus membros corporais são desproporcionais entre si.
Lamparina também não tem cabelos, as pernas são curtas e os pés, sempre descalços, são enormes, desproporcionais ao corpo, reforçando seu aspecto simiesco e um tanto andrógino, já que, no conjunto, apresenta características físicas que podem ser interpretadas como masculinas (Oliveira Neto, 2015, p. 73, grifo nosso).
Segundo o autor, o fato de a personagem remeter a um macaco e não ser muito feminina tem a ver com a forma como frequentemente as aptidões físicas de Lamparina são mostradas nas histórias e nas tarefas que ela desempenha. Relativo a isso, Oliveira Neto (2015, p. 73) afirma ser “[...] não apenas um reforço às suas características zooides, mas também um processo de masculinização que a habilitaria para o exercício do trabalho pesado a que é submetida”.
Assim, Lamparina está atrelada a uma perspectiva animalesca e de desajeitamento que conduz à sua desumanização. A visão da personagem como estando em par de igualdade com um animal podia ser notada nessas características físicas, mas também na forma como ela agia ou era tratada. Isso pode ser exemplificado se tomarmos duas histórias, uma continuidade da outra. Na primeira, é contado que Goiabada pediu Lamparina emprestada a Carrapicho, depois a colocou para realizar a imitação de um macaco, embalada pelo som de realejo, pois queria com isso receber dinheiro. Porém, durante essa ação, um guarda exigiu que Goiabada apresentasse a licença obrigatória dos músicos ambulantes; por não ter essa licença, ele e Lamparina fugiram. Lamparina subiu em um poste, depois passou para um telhado e o dono de uma venda a capturou. Então, ela foi enclausurada em uma jaula e levada para um Jardim Zoológico. As pessoas que haviam se juntado para ver a imitação correram com medo do macaco (O Tico-Tico, 13/01/1932, p. 1).
Na história seguinte, é narrado que Lamparina ficou em exposição no Jardim Zoológico, onde chorava e negava ser um macaco, mas isso só fazia com que os visitantes ficassem surpresos por acharem que ela era um macaco falante. Em um “esforço sobrehumano”, ela conseguiu sair da jaula e, de quebra, soltou os animais, fazendo a multidão correr (O Tico-Tico, 20/01/1932, p. 1).
É notório que Carrapicho e Goiabada acreditassem que Lamparina facilmente se passaria por um macaco, sendo que as pessoas que teriam parado para olhar a apresentação comprovam que, de fato, ela era vista sob uma ótica que a enxergava de forma animalizada. Quando Lamparina foi direcionada para o zoológico e exposta como um macaco, isso também reafirmou a noção racista refletida nos seus traços. O choro dela, ao negar ser um macaco, não comovia as pessoas que visitavam a sua jaula. Isso revela que suas lágrimas não sensibilizavam os outros personagens, sua angústia não obtinha como resposta a sua liberdade, pois, na verdade, as pessoas achavam que se tratava de uma espécie rara de macaco dotado da capacidade de falar. É evidente, nas histórias analisadas, que existia a concepção de selvageria e de animalização como algo inerente à Lamparina. Na análise da revista, é possível encontrar outras narrativas nas quais Lamparina é associada a um macaco.
Os comportamentos de Lamparina eram o oposto do ideal. Consequentemente, por se comportar mau, a menina era constantemente submetida a punições. Era um exemplo a não ser seguido, já que quem se comportasse como ela poderia também ser alvo de castigos. Na história denominada “A chicara quebrada”, na qual Lamparina foi posta de castigo após quebrar uma xícara que fora de D. João VI e, por conta disto, teria que ficar sem comer por uma semana. Mas Jujuba dava-lhe comida e água escondido e, juntos, armaram de fingir que a menina virou um cadáver (usando uma bola, ossos e sua saia). No quinto dia do castigo, quando Carrapicho foi averiguar, deparou-se com o falso cadáver. Ainda naquele dia, ao encontrar um soldado, Lamparina o induziu a ir até sua casa (sem mencionar o acontecido, apenas para assustar Carrapicho). Carrapicho, então, correu assustado quando o soldado bateu palmas em frente à sua casa (O Tico-Tico, 30/05/1934, p. 8).
Lamparina foi submetida a ficar sem se alimentar por uma semana, mesmo que a alimentação seja uma função básica para a existência humana, mas Carrapicho achou correto aplicar à menina tal punição e apenas após cinco dias foi verificar como estava se portando. Somado a isso, ele realmente ficou preocupado somente quando o policial chegou à sua casa, já que ele achava que seria responsabilizado pelo cadáver de Lamparina. Carrapicho, enquanto adulto e, em tese, responsável pela menina, cometeu uma série de erros, mas, nas narrativas, sua negligência para com Lamparina não era vista como um problema. Lamparina havia quebrado uma xícara (em outras histórias isso também acontece), o que demonstra que ela era considerada desastrada. Havia também o puxão de orelha que Carrapicho deu na menina (que também ocorreu em outras histórias), demonstrando uma punição física, a qual ela frequentemente era submetida. Mesmo sendo castigada, a menina ainda aprontava (chamando o policial para assustar Carrapicho).
As más condutas da personagem eram punidas mostrando um exemplo para os leitores, ainda que, nesse caso, estejamos falando de um exemplo do que não deveria ser feito pelas crianças, já que agir como a garota poderia acarretar punições. Utilizar de estereótipos físicos e comportamentais atribuídos aos negros na personagem para estabelecer um parâmetro de normalidade, do que é aceitável, mostra o racismo presente nessas histórias. Acrescido a isso, Hall (2016) mostra como a estereotipagem contrapõe à normalidade (e aquilo que é aceitável) à anormalidade (e que não pode ser aceito).
Dessa forma, Lamparina era constantemente punida por suas peripécias. É possível pensar que nos anos em que as histórias circularam, os castigos impostos a ela eram vistos como normais e, inclusive, divertiam os leitores enquanto os advertiam acerca das condutas ideais a serem seguidas. Assim, Gonçalves (2013, p. 116), ao se referir às histórias presentes nessa revista como um todo, afirma que “O Tico-Tico pretendia estabelecer uma pedagogia moral e imprimir hábitos e regras de comportamentos entendidos como ‘civilizados’”.
Em algumas narrativas, os personagens se referem a Lamparina como negrinha e sempre é afirmado que essa expressão não lhe agradava, sendo que esse termo já aparecera na primeira história. O que J. Carlos pretenderia demonstrar ao deixar claro que Lamparina não gostava de ser chamada dessa forma, mas ainda assim existir quadrinhos nos quais ela é referenciada como negrinha por outros personagens? Na análise das histórias, é evidente o uso do termo como uma forma de desqualificá-la. Assim, o termo pejorativo parece ser usado como um termo cômico para os leitores. Ao fazer isso, ocorre o reforço de um dialeto racista. O que as histórias deixam claro é que a menina não age de forma apática aos modos como é tratada pelos outros, ou seja, ela não aceita de maneira submissa que lhe tratem mau, e sempre que alguém não lhe agrada, ela retribui com uma de suas armações. Sendo assim, não é de se estranhar que ela não goste de ser chamada de modo pejorativo e que, diante do termo negrinha como desqualificador, ela reaja. Além disso, existem histórias que ilustram outro aspecto ligado à personagem que, mesmo sendo uma criança, é responsável por tarefas domésticas como, por exemplo, servir as visitas. (O Tico-Tico, 22/08/1934, p. 8). Esse aspecto está ligado a subserviência que a ideologia racista atribui às pessoas negras.
Mais um exemplo emblemático dos estereótipos e preconceitos presentes nas histórias de Lamparina está justamente na última aparição da personagem, em fevereiro de 1944, em uma narrativa intitulada “A vingança da Lua”. É contado que, assim como os macacos, existiam crianças que gostavam de fazer caretas, como era o caso de Lamparina. Até mesmo a Lua era alvo das caretas da menina. Em uma noite em que Lamparina se colocou a fazer caretas para ela, em vingança, a Lua lançou sobre a garota várias estrelas que foram enfiando no seu corpo. Enquanto Lamparina tentava correr em vão, os meninos que viam a cena e o desespero dela ficaram rindo e zombando, chamando-a de “porco-espinho” (O Tico-Tico, 02/1944, p. 36).
É expressivo verificar que nem mesmo um astro celeste escapou das travessuras de Lamparina e acabou por puni-la. E, diga-se de passagem, um castigo cruel, já que ao ser espetada pelas pontas das estrelas, a menina ficava incomodada, ao ponto de correr. Somado a isso, J. Carlos atribui fazer caretas a um comportamento de meninos e macacos, e coloca tal mania como sendo pertencente também a Lamparina, masculinizando-a e animalizando-a. As outras crianças na cena não se comoveram com o sofrimento da pequena; ao contrário, tiraram sarro. Afinal, Lamparina não seria digna de empatia e ajuda? A narrativa retrata a agonia da garota e o divertimento dos meninos. Essa história sintetiza pontos de sua animalização, suas atitudes seguidas de punições (para servir de exemplo) e a normalização de tudo isso.
Após essa história, Lamparina não aparece mais nos enredos, mas Carrapicho e Jujuba ainda são encontrados, pelo mecanismo de busca da Biblioteca Nacional Digital, em duas ocorrências após a edição de fevereiro de 1944. A primeira delas no texto “O cinquentenário de O Tico-Tico”, de outubro de 1955, que lista personagens das histórias em quadrinho da revista. Todavia, estranhamente, o nome de Lamparina não aparece na lista (O Tico-Tico, 10/1955, p. 18). Por que a Lamparina, que já fora inclusive capa de O Tico-Tico, teria sido relegada ao ostracismo a ponto de sequer ser mencionada nessa relação dos personagens no cinquentenário da revista? A última ocorrência com o nome dos dois está em um texto que traz falas de um dos leitores da revista, no qual se relata que seus personagens favoritos eram Carrapicho e Jujuba (O Tico-Tico, 04/1956, p. 14).
LAMPARINA: UMA REPRESENTAÇÃO DO PRECONCEITO PRESENTE NO IMAGINÁRIO SOCIAL DE SUA ÉPOCA
É notório que a animalização, os estereótipos racistas e as punições dadas à Lamparina eram normalizadas naquele contexto por representarem as concepções que certos setores da sociedade haviam criado sobre a população negra, sobre seus comportamentos e sobre o tratamento que mereciam. Os comportamentos da garota não eram os ideais. O papel e a posição social que a Lamparina ocupava eram de inferioridade em relação aos personagens brancos. Para Hall (2016), a representação é um meio de produção e partilha de significados dentro de uma cultura - elaborados, claro, por integrantes dessa cultura. A representação de Lamparina no imaginário social da época era de escárnio, sendo Lamparina mais um símbolo de consolidação do racismo de seu tempo.
Segundo Baczko (1985, p. 313), “A influência dos imaginários sociais sobre as mentalidades depende em larga medida da difusão destes e, por conseguinte, dos meios que asseguram tal difusão”. Nesse sentido, Gonçalves (2013, p. 113) afirma que “O Tico-Tico foi um periódico que dialogou de maneira intensa com a cultura e a intelectualidade da sua época e que deixou marcas profundas no imaginário social de seus leitores”. Por isso, é inevitável especular se, de fato, essas representações preconceituosas da personagem foram assimiladas pelos leitores da revista.
A revista contava com espaço dedicado para a publicação de histórias escritas pelos leitores. Na seção “Meu jornal”, aparece um texto que trazia como personagens Lamparina e Carrapicho, escrito por um leitor de 12 anos. A história, intitulada “O bode”, conta que Lamparina era malvada e destinava aos animais comprados por Carrapicho um mau tratamento. Um dia, Carrapicho teria colocado no curral um bode batedor, e Lamparina estava disposta a fazer alguma maldade com ele, mas o bode “[...] Deu tal marrada na preta Que ella disse: _ Amem” (O Tico-Tico, 27/03/1935, p. 14).
A história em questão possibilita defender a ideia de que, em alguma medida, o que era contado nas histórias de Lamparina foi assimilado pelos leitores, ao menos por esse específico, já que a narrativa permite verificar que a forma de representar a personagem se manteve fiel às ideias de J. Carlos. Se o leitor da revista escolheu escrever uma história na qual a personagem Lamparina também tem comportamentos duvidosos e acaba sendo punida por eles, é devido ao fato de que, em alguma medida, aquilo fazia sentido para ele, o que parece demonstrar que aquela representação fora assimilada como aceitável e normal. A própria utilização do termo preta parece estar remetendo um tom pejorativo.
Somado a isso, a revista contava com a seção “Desenhos que a gente faz”, na qual desenhos dos leitores eram divulgados. Por vezes a Lamparina fora desenhada com os mesmos traços das histórias de J. Carlos, não sendo alterado nenhum traço da personagem. Assim, em alguma medida, os traços com os quais Lamparina foi para o papel e o que era narrado nas suas histórias fora assimilado pelos leitores. Não é possível afirmar que este leitor - ou qualquer outro leitor - cresceu e se tornou racista, uma vez que a revista de modo algum determinava os pensamentos e atitudes de alguém. Todavia, não é possível negar que ela educava e influenciava o olhar das crianças sobre si e sobre o outro.
Dávila (2005) aponta que a escola pública brasileira da primeira metade do século XX foi permeada por ideais eugênicos, ou seja, por noções que se respaldavam nas ciências sociais e biológicas para defender que os seres humanos poderiam ser aperfeiçoados. Embora O Tico-Tico não fosse um material escolar, poderia estar alinhado a essas ideias. Desse modo, as desigualdades raciais que permeavam a sociedade também se faziam presentes no âmbito educacional, perpetuando elementos intrínsecos da estrutura racista brasileira por meio das questões sociais, econômicas, políticas e culturais, que não se desconectavam das práticas e materiais de ensino.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com a personagem Lamparina, é possível constatar ensinamentos racistas, ou seja, verificar como o racismo era ensinado por meio das caracterizações atribuídas à personagem e por seus comportamentos. Por isso, J. Carlos, ao desenhar a pequena Lamparina, ilustrou em seus traços e narrativas um pouco do racismo que perpassava as representações feitas sobre a população negra do Brasil naquele momento. Assim, quando pensamos em O Tico-Tico como um material não escolar de educação, precisamos refletir sobre os possíveis impactos dessa revista infantil em seus leitores. No caso específico por nós analisado, uma consequência que pode ter ocorrido é a aprendizagem e/ou reforço de ideologias racistas.
Desse modo, as histórias traziam a inferiorização de Lamparina, enquanto uma personagem negra, em relação aos personagens brancos. Essa representação fora moldada por diferentes prismas, ou seja, no exagero de seus traços, mesclados à simplicidade de suas características físicas e ainda fundidos aos comportamentos animalescos, selvagens e inadequados da personagem. Mas essa representação de Lamparina esteve imersa em um contexto social no qual o racismo presente em seus traços era normalizado pelo imaginário social, sendo apresentado como comicidade. Em virtude disso, Lamparina é um símbolo das imagens racistas das histórias em quadrinhos de sua época, representando a pretensa inferioridade que o imaginário social atribuía aos negros.