Introdução
Há pouco mais de três décadas o Brasil vem protagonizando um debate sobre tema que tornou-se conhecido como “gestão democrática” no campo da política educacional e que passou a integrar a pauta das agendas de políticas que vieram a ser definidas desde então. A expressão integrava as palavras de ordem do movimento de educadores em tempos então conhecidos como de “abertura” política, os quais assinalaram a transição da ditadura para a democracia.
A ideia da gestão democrática como princípio orientador da educação pública foi incorporada à Constituição Federal de 1988 (Art. 206, VI) e referendada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB (Lei nº 9.394/1996. Art. 3º, VIII). Passadas algumas décadas, o tema ainda representa desafio a formuladores e implementadores de políticas. Evidência nesse sentido é o fato de que o Plano Nacional de Educação (PNE) 2014 - 2024, aprovado por lei nº 13.005/2014, Meta 19), reforça a gestão democrática “associada a critérios técnicos de mérito e desempenho e à consulta pública à comunidade escolar” como meta a ser alcançada até 2016. Entretanto, como o texto irá detalhar, tal objetivo não foi atingido no período considerado. Dados sobre processos de escolha de diretores obtidos pelo Questionário do Diretor Prova Brasil1, por sua vez, evidenciam que a indicação permanece como critério predominante de acesso ao cargo de dirigente em escolas brasileiras.
Comprendendo a centralidade do princípio da gestão democrática para o entendimento sobre a concepção de liderança escolar que veio a se firmar no Brasil, este artigo procura situar a questão no quadro mais amplo de um contexto propício a uma interpretação política do tema. Nessa perspectiva, aprofunda alguns elementos desse debate central no campo da política educacional das últimas décadas. O texto procede a um mapeamento sobre o tratamento dispensado à gestão democrática nos principais marcos legais do país, debruçando-se sobre a Constituição Federal (1988), a LDB (1996) e o PNE (2014). Ao mesmo tempo, focaliza duas abrangentes iniciativas de formação de gestores buscando identificar em que medida a temática da liderança é contemplada, seja por um foco mais político associado à gestão democrática ou por uma visão mais técnica, associada às habilidades gerenciais requeridas a um diretor de escola.
O artigo se propõe a aprofundar a tese de que em virtude da preponderância de uma reflexão mais orientada para o princípio da gestão democrática e seus desdobramentos no campo da implementação de políticas, a discussão sobre liderança acabou por assumir um caráter margninal nesse debate, penetrando o campo de forma um tanto lateral pela via de estudos e pesquisas relacionados à temática da eficácia escolar. O surgimento dessa reflexão, por sua vez, guarda alguma articulação com a emergência da literatura sobre as políticas de avaliação de larga escala, de modo particular a partir de meados dos anos noventa do século XX.
A visão teórica subjacente à proposição da tese do texto fundamenta-se no campo da análise de políticas públicas. Primeiro, é oportuno registrar que as políticas são sempre escolhas que os governos fazem ou deixam de fazer (SOUZA, 2006, p. 24). Segundo, essas escolhas são
(...) resultado, sempre provisório, de um processo de negociação assimétrico. As políticas de educação, sobretudo nas sociedades contemporâneas, são construídas em meios marcados pela heterogeneidade e pela complexidade, sujeitas a procuras sociais nem sempre compatíveis e muitas vezes contraditórias, e que obrigam a definir prioridades, a excluir caminhos e a ultrapassar compromissos (TEODORO, s.d., p. 119)
Na medida em que tais “procuras sociais nem sempre compativeis e muitas vezes contraditórias” induzem determinadas escolhas e excluem outras, alguns temas acabam por incorporar-se às políticas, enquanto outros são secundarizados. Este seria o caso da gestão democrática versus liderança, sendo uma escolha priorizada e, outra, excluída. E, terceiro, ainda, vale observar que determinadas iniciativas permanecem como “demandas reprimidas”, o que poderia ser o caso de pressões por iniciativas associadas à liderança. Como observa Rua (s. d) boa parte
(...) da atividade política dos governos se destina à tentativa de satisfazer as demandas que lhes são dirigidas pelos atores sociais ou aquelas formuladas pelos próprios agentes do sistema político, ao mesmo tempo que articulam os apoios necessários (...) é na tentativa de processar as demandas que se desenvolvem aqueles «procedimentos formais e informais de resolução pacífica de conflitos» que caracterizam a política. Quanto às demandas, alguns aspectos devem ser considerados. Existem, basicamente, três tipos de demandas: as demandas novas, as demandas recorrentes e as demandas reprimidas (p. 3).
O que diferencia esses três tipos de demandas? Como o próprio termo sugere, as demandas novas articulam-se à presença de novos atores políticos ou novos problemas; as demandas recorrentes referem-se à “problemas não resolvidos ou mal resolvidos”, e que, por isso mesmo, permanecem no âmbito do “debate político e na agenda governamental” (p. 3). As demandas reprimidas, por seu turno, dizem respeito às “não decisões” também denominadas de “estados de coisas” (p. 4). Observando-se a presença e ausência dos temas aqui considerados na agenda das políticas educacionais, faz sentido compreender a gestão democrática como uma demanda recorrente, presença marcante nas propostas para a educação desde meados dos anos oitenta do século XX, ainda permanece como desafio para a construção de políticas e, por vezes, princípio ignorado por formuladores e implementadores de políticas
Seria a liderança uma demanda reprimida no campo da política educacional? É possível. A julgar pela literatura sobre o assunto, um ‘estado de coisas’ refere-se a algo que “incomoda, prejudica, gera insatisfação para muitos indivíduos, mas não chega a constituir um ítem da agenda governamental, ou seja, não se encontra entre as prioridades dos tomadores de decisão” (p. 6). Muitas situações “permanecem ‘estados de coisas’ por períodos indeterminados, sem chegar a serem incluídos nas pautas dos governos, pelo fato de que existem barreiras culturais e institucionais impedindo que sequer se inicie o debate público do assunto” (p. 6). É verdade que a temática da liderança não chega a ser “algo que incomoda, prejudica, gera insatisfação”, por outro lado, sua articulação à perspectiva do gerencialismo não deixa de despertar certo ranço entre muitos educadores que rejeitam tais aproximações epistemológicas.
A hipótese de que a temática da liderança não foi suficientemente forte a ponto de resultar na formulação de políticas nesta direção é plausível. Afinal, os movimentos organizados de educadores, desde muito antes da Assembleia Nacional Constituinte (1987), expressavam demandas pela gestão democrática. Se é verdade que esses tiveram importante papel na influência de produção dos textos legais que disciplinam a matéria, na prática, outras forças igualmente relevantes têm se apresentado contrárias a tais iniciativas, a exemplo dos agentes políticos representantes do poder local como prefeitos e vereadores que, na prática, resistem a formas democráticas de acesso a cargos, por, de algum modo, imporem barreiras ao avanço do clientelismo.
1. Liderança e gestão democrática
O debate sobre liderança no campo educacional tem raízes em contextos internacionais, configurando-se como objeto de estudos e políticas em muitos países (LEITHWOOD et al., 2006; WEINSTEIN, 2016), inclusive em contextos ibero-americanos (BENTO; OLIVEIRA, 2013; BOLIVAR; YÁÑEZ; MURILLO, 2013; UNESCO, 2014; LIMA; SÁ, 2017; e, BOLIVAR, 2017). No Brasil, todavia, como já observado, este não tem sido um tema privilegiado no debate sobre gestão educacional e escolar, adentrando a literatura nacional sob o foco dos estudos sobre eficácia escolar (BROOKE; SOARES, 2008).
Na primeira década do século XXI alguns estudos realizados a partir do desempenho dos municípios e escolas na Prova Brasil indicaram a liderança como fator associado a bons resultados. No estudo Desempenho dos alunos na Prova Brasil: diversos caminhos para o sucesso educacional nas redes municipais de ensino (BRASIL/MEC/INEP/Banco Mundial, 2008) é possível encontrar considerações relevantes sobre a liderança como fator estratégico na obtenção de bons resultados das redes de ensino. Segundo a pesquisa, “a visão de uma educação de qualidade e a liderança para imprimir mudanças no ensino e na aprendizagem parecem estar associadas ao perfil do/a secretário/a municipal de educação” (p. 42). Dentre o repertório que contribui para que os secretários se articulem e liderem a cena educacional podem ser elencados “sua qualificação e experiência pregressa”, como também outros fatores que contribuem para uma liderança bem-sucedida capaz de exercer “influência sobre o desempenho das redes municipais”, a saber “envolvimento com os partidos locais, especialmente com o do prefeito; relação com o ambiente escolar, etc.” (p. 46).
No que se refere ao modelo de gestão dos secretários, observou-se a presença de dois perfis distintos:
(...) a modalidade racional e técnica, com o poder mais concentrado nas mãos do/a secretário/a; e a modalidade participativa, que privilegia o comprometimento político de todos os atores relevantes do contexto educacional. Dois casos típicos, ambos propiciando bons resultados em termos do desenvolvimento das habilidades cognitivas dos alunos (op.cit., p.46)
O que se observa é que mesmo emergindo referências à liderança, essa não é condicionante para identificação dos gestores, situando-se num espaço epistemológico genérico, sendo outros atributos considerados com mais destaque.
Outro estudo que detecta a liderança como presença estratégica na composição da eficácia escolar, denominado Redes de aprendizagem: boas práticas de municípios que garantem o direito de aprender, foi realizado pelo Fundo Internacional de Emergência para a Infância das Nações Unidas (Unicef) em parceria com o Ministério da Educação (MEC) e a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) (s. d.). Analisando fatores de sucesso em 37 redes de ensino, a pesquisa observou que em algumas redes, o perfil e papel da direção escolar é mencionado como fator de sucesso, como se vê em comentário sobre a pesquisa:
Pouco menos de um quarto das redes visitadas mencionou a atuação e a capacidade dos diretores escolares como fator de sucesso. De modo geral, a direção é citada como parceira e inspiradora das práticas da escola, como garantidora das boas condições de trabalho e guardiã do foco na aprendizagem. Em algumas das redes visitadas, os diretores são eleitos por voto direto da comunidade. Em outras, nomeados pelo prefeito ou pelo dirigente de Educação do município - no último caso, sempre com o endosso do prefeito. (s.d., p. 78)
É interessante notar que o estudo trata da gestão em municípios e, nestes, o tema da liderança aparece como condição positiva para o exercício da gestão escolar, mas mais uma vez, de forma genérica, sem qualificativos e com baixa explicitação das caraterísticas necessárias para o sucesso da liderança escolar.
Para além dos estudos tratados no âmbito da literatura sobre eficácia escolar, é oportuno observar também que, por tempo considerável, os interesses na área de circunscreveram a temas específicos da liderança (PENA, 2013; ROMANO; OLIVEIRA, 2015), sendo escassa a produção sobre questões mais gerais (LÜCK, 2008, 2009; POLON, 2011; e, HONORATO, 2012). Só na segunda década do século XXI começam a aparecer estudos que procuram investigar relações mais efetivas entre liderança e outras variáveis escolares. É o caso da pesquisa de Oliveira e Waldhem (2016) realizada com dados do Questionário do Professor da Prova Brasil 2013 em escolas do Rio de Janeiro, que constata a existência de “relação entre a liderança do diretor, o clima escolar e os resultados dos alunos (p. 838), combinação que, segundo os autores, Rutter et al. (2008) chamam de ‘efeito institucional’. Outro estudo de Oliveira e Carvalho (2018), associa a liderança do diretor a resultados educacionais. Na literatura recente destaca-se ainda estudo sobre sobre a articulação entre liderança e clima organizacional na gestão escolar (OLIVEIRA, 2018), temática associada à literatura sobre eficácia escolar (BROOKE; SOARES, op. cit.).
Ao lado de uma presença pouco significativa na bibliografia sobre gestão escolar brasileira, vale assinalar a escassez de iniciativas especificamente voltadas para o fomento à liderança no âmbito dos sistemas de ensino. Embora figure como foco de processos de seleção para diretores escolares e em cursos de formação (EVANGELISTA, 2016), não é possível afirmar que, em seu sentido literal, o tema tenha conquistado lugar de destaque na política educacional brasileira.
Paralelamente a tais circunstâncias, conforme a tese enunciada no início desta reflexão, a formulação e busca de implementação do princípio da “gestão democrática” nas escolas públicas teria forte associação com a dimensão política da liderança escolar e, portanto, significativa imbricação com o tema. Considerando tal cenário, seria plausível afirmar que a temática da gestão democrática de algum modo teria se sobreposto à da liderança no debate e nas políticas associdas à gestão educacional e escolar no Brasil. Para avançar no aprofundamento de tal tese, é oportuno identificar evidências empíricas que de algum modo possam contribuir para fundamentar tal argumento. Primeiro, é preciso examinar o contexto mais amplo do país no qual são concebidas e circulam ideias que podem, ou não, vir a se materializar em teses orientadoras da formulação e implementação de políticas educacionais.
Um conjunto de elementos permite supor que a perspectiva acima considerada faz sentido, articulando-se ao debate sobre gestão democrática, forjado em meio ao movimento pela redemocratização política. O mesmo teve início no final dos anos setenta do século passado, vindo a consolidar-se no âmbito do movimento de luta por eleições diretas e por uma Constituinte, que veio a resultar na Constituição de 1988. O tema ganhou destaque entre educadores defensores de uma educação pública democrática forjada sob novas bases.
Uma retrospectiva dos movimentos associados à defesa de tais teses permite detectar fortes sinais de sua presença já no alvorecer dos anos oitenta do século XX, quando ocorreram as primeiras conferências nacionais de educação, mais especificamente a IV Conferência Nacional de Educação, realizada em 1986 (FERREIRA, 1987; MAGALDI, GONDRA, 2003) e, depois, o Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública na Constituinte de 1987 (PINHEIRO, 2015; PINHEIRO; DAL RI, 1986).
Observada a sintonia entre o contexto mais amplo e a emergência das ideias em torno de uma gestão democrática, vale registrar um segundo elemento a fortalecer a tese proposta. O tema foi privilegiado não apenas do ponto de vista jurídico e normativo orientador da política educacional, como também de iniciativas diversas de formação de gestores escolares. Exemplos nesse sentido foram o Programa de Capacitação a Distância para Gestores Escolares (Progestão) e o Programa Nacional Escola de Gestores da Educação Básica Pública (PNEGEB) mais conhecido como Escola de Gestores. Ambos tiveram seu foco na gestão democrática, como indicam estudos desenvolvidos tanto sobre a primeira iniciativa - o Progestão - (BUENO, 2007; NOGUEIRA, 2008; e, SCOTUZZI, 2008; BIANCO; SOUZA; SOUZA REIS, 2014), quanto sobre a segunda - o Escola de Gestores - (FERNANDES, 2014; ALMEIDA, 2015; FERNANDES; TEIXEIRA, 2015 e MELO, 2017; e, SOTTANI et al., 2018). Esses dois programas foram as maiores iniciativas de formação de gestores educacionais e escolares nas duas primeiras décadas de vigência da LDB.
O Progestão foi concebido e desenvolvido pelo Conselho Nacional de Secretários da Educação (Consed) em parceria com as secretarias estaduais e municipais de educação, tendo contado com apoio e cooperação da Fundação Ford, da Universidad Nacional de Educación a Distancia (Uned) e da Fundação Roberto Marinho. Foi desenhado a partir de uma demanda específica de um grupo de Secretários de Estados da Educação, no final da década de 1990, tendo como meta principal o desenvolvimento de uma gestão democrática focado no sucesso escolar do aluno. Organizado de modo a ser oferecido como curso de extensão ou especialização, foi utilizado pelos secretários estaduais e municipais de educação para capacitar os gestores escolares e as equipes técnicas da área de gestão das secretarias, funcionando a partir de demandas dos estados e por diversos anos seguidos. Os materiais didáticos abordavam temas como a função social da escola (Modulo I), promoção, articulação e envolvimento das pessoas na gestão escolar (Módulo II), construção coletiva do projeto pedagógico da escola (Módulo III), sucesso da aprendizagem do aluno e sua permanência na escola (Módulo IV), princípios de convivência democrática na escola (Módulo V), gerenciamento dos recursos financeiros (Módulo VI), gerenciamento do espaço físico e do patrimônio da escola (Módulo VI), gestão dos servidores da escola (Módulo VIII) e avaliação institucional da escola (Módulo IX).
O segundo programa - Escola de Gestores - foi uma iniciativa de formação de âmbito nacional patrocinada pelo Ministério da Educação (MEC) desenvolvida a partir de 2005 e que fez parte das ações do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), tendo sido implementada por universidades federais em grande número de estados brasileiros. Seu surgimento decorreu da necessidade de se construir processos de gestão escolar compatíveis com a proposta e a concepção da qualidade social da educação, baseada nos princípios da moderna administração pública e de modelos avançados de gerenciamento de instituições públicas de ensino. Os conteúdos trabalhados neste curso enfocam temas relacionados a fundamentos do direito à educação, política e gestão da educação, prática de planejamento e gestão escolar, e tópicos educacionais.
Paralelamente à tendência mais ampla aqui esboçada, é oportuno registrar que nas redes públicas, a gestão escolar vai se instituindo e se configurando como um modelo de múltiplas dimensões - pedagógica, administrativa, financeira, recursos humanos, resultados, clima escolar, etc. - que será efetivado pelo diretor escolar ou por um núcleo de pessoas a quem cabe a gestão da escola. Sem explicitação das atribuições e competências necessárias ao gestor escolar, é de se supor que o tema da liderança não tenha penetrado no campo da política e da gestão escolar no Brasil como ocorreu em outros contextos, inclusive nos países ibero-americanos. É verdade, ainda, que diferentemente da questão da liderança, o tema da gestão democrática está enraizado na legislação que fundamenta a política educacional no Brasil, como se verá no tópico a seguir.
2. Gestão democrática e marcos legais
A Constituição de 1988 define a República Federativa como a “união indissolúvel dos Estados, Municípios e do Distrito Federal constituindo-se em Estado Democrático de Direito” (art. 1º). Do mesmo modo, reconhece a autonomia dos entes federados, mediante uma “organização político-administrativa da República Federativa do Brasil” que “compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos” (Art. 18). Considerando este modelo peculiar de organização federativa, em que os entes possuem autonomia, a rigor, são múltiplas as possibilidades de concepção e implementação de políticas educacionais, aí incluindo temas relativos à gestão educacional e escolar e, nesse âmbito, à liderança. O modelo federativo do país traz desdobramentos para a política educacional, uma vez que os princípios assegurados na Carta Magna (Arts. 205 e 206) na prática são efetivados em cenários estaduais e municipais com variados graus de diversidade (política, econômica e social) e respeitando a autonomia das unidades federadas.
A divisão da oferta da educação básica entre os entes federados tem resultado em elevada participação das redes municipais na oferta de educação infantil e de ensino fundamental. Os cargos de diretores e outras posições na gestão escolar podem ser fortemente influenciados pelo poder local (VIEIRA, 2011). Tal característica tende a se materializar em formas de ascensão aos cargos de diretores escolares que ferem o princípio da gestão democrática nos termos concebidos pela legislação educacional. Nesta esfera de atendimento, como se verá na segunda parte do texto, tendem a ser maiores as possibilidades de interferência política e de reprodução de práticas clientelistas cujas raízes devem ser buscadas nas origens patrimoniais do Estado brasileiro (FAORO, 2001). Sob tal perspectiva, as circunstâncias parecem ser pouco propícias à emergência de um contexto onde os temas associados à liderança possam encontrar terreno fértil.
Em estudo denominado Mapeamento de práticas de seleção e capacitação de diretores escolares, realizado em 2010 no âmbito de 24 Secretarias Estaduais de Educação (SEE) e 11 Secretarias Municipais (SME) de capitais, Lück (2011) constatou que em 67% dos estados e 82% das capitais pesquisadas a eleição foi a forma predominante de seleção de diretores escolares2. Essa constatação fortalece o entendimento da dimensão política da liderança expressa no princípio da gestão democrática, tal como interpretado pelos sistemas de ensino no país. Uma análise sobre respostas de diretores escolares acerca das formas de seu acesso a tal cargo, por sua vez, evidencia que são bastante diversos os entendimentos acerca da matéria resultando em distintos tipos e combinações cuja distribuição tende a variar conforme a esfera federativa (VIDAL; VIEIRA, 2015, p. 321). Dada a relevância dos processos de ascensão ao cargo para uma compreensão das questões relacionadas à gestão escolar democrática e sua associação com a liderança no contexto brasileiro, tal reflexão será atualizada e retomada no terceiro tópico deste artigo (3. Gestão democrática e formas de ocupação do cargo).
Os marcos legais mais significativos para uma compreensão do princípio da gestão democrática no âmbito das orientações normativas brasileiras são os dispositivos constitucionais, as orientações da LDB e do Plano Nacional de Educação (PNE 2014 - 2024). A Constituição Federal de 1988 (CF, Art. 206, VI) e a LDB (Lei nº 9.394/96, Art. 14) definem a gestão democrática como princípio orientador do ensino público. A LDB afirma que
Os sistemas de ensino definirão as normas da gestão democrática do ensino público na educação básica, de acordo com as suas peculiaridades e conforme os seguintes princípios: I - participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola; II - participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes (Art. 14).
Tais atributos não são triviais por sinalizarem a educação pública como espaço, por excelência, de sua aplicação, remetendo à autonomia das unidades federadas a legislação sobre a matéria. Por isso mesmo, ao longo do período posterior à CF de 1988, estados e municípios brasileiros mantiveram entendimentos próprios e, por vezes, muito diferenciados acerca do conceito de gestão democrática.
A organização federativa do país possibilita que os processos relativos à gestão democrática da escola pública sejam de livre deliberação dos entes federados, desde que atendidas as exigências da LDB. Uma pesquisa realizada em sites de secretarias estaduais e municipais de educação mostra que um número representativo delas não fornece informações sobre processos de escolha de diretores escolares. Assim, passados mais de vinte anos da publicação da LDB, ainda há incerteza em torno dos marcos legais e das práticas imprescindíveis à implementação da gestão democrática nos estabelecimentos públicos de ensino.
O PNE 2014 - 2024 explicita avanço nesta direção ao afirmar o objetivo de “assegurar condições, no prazo de 2 (dois) anos, para a efetivação da gestão democrática da educação, associada a critérios técnicos de mérito e desempenho e à consulta pública à comunidade escolar, no âmbito das escolas públicas, prevendo recursos e apoio técnico da União para tanto” (PNE, Meta 19). O Relatório do 2º Ciclo de Monitoramento das Metas do Plano Nacional de Educação, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP, 2018), entretanto, indica que a Meta 19 não foi cumprida no período previsto. Segundo o Relatório, “em 2014, apenas 328 dos 5.570 municípios brasileiros realizavam eleições e ao mesmo tempo instituíam a obrigatoriedade da participação em programas de formação em gestão escolar” (INEP, 2018, p. 89), ou seja, apenas 6% dos municípios atendiam aos critérios de escolha dos diretores escolares por meio de eleição e critérios técnicos de mérito e desempenho. Esses dados revelam que na ausência de normativos legais que definam claramente como deve ocorrer a escolha dos diretores escolares, a partir dos preceitos da gestão democrática, os municípios ficam à deriva e passam a tratar o cargo de diretor escolar como um espaço de poder para a gestão municipal.
Percebe-se que para além do princípio orientador da gestão democrática da escola pública no Brasil firmado na Constituição Federal de 1988 e na LDB, a legislação educacional posterior não avança de forma expressiva no sentido de definir o sentido de tal expressão e estabelecer atribuições e competências para os gestores escolares. Essa ausência reverbera também nas discussões sobre liderança. No caso da federação brasileira, em que União, Estados e Municípios são instâncias autônomas, conforme referido, têm proliferado definições de perfis profissionais diversos bem como modalidades distintas de recrutamento e escolha para ocupação de cargos em escolas públicas, como se verá no aprofundamento posterior a partir dos dados apresentados na segunda parte do artigo.
Os requisitos formais associados às funções de direção escolar são definidos na LDB que remete tal formação aos cursos de Pedagogia ou a cursos de pós-graduação, tal como dispõe o artigo sobre a matéria:
Art. 64. A formação de profissionais de educação para administração, planejamento, inspeção, supervisão e orientação educacional para a educação básica, será feita em cursos de graduação em pedagogia ou em nível de pós-graduação, a critério da instituição de ensino, garantida, nesta formação, a base comum nacional. (BRASIL, 1996, grifo das autoras).
Os itinerários percorridos pelos profissionais da educação antes de ascenderem a cargos de direção nas escolas indicam que, na prática, a docência tem se revelado como percurso predominante para tornar-se diretor(a). Estudo de Vidal e Vieira (2015, p. 124) sobre a matéria constatou que apenas 1,5% de uma amostra de 36% dos diretores de escolas públicas brasileiras não foi professor antes de ter ocupado este cargo. Não havendo consensos sobre o(s) significado(s) de gestão democrática há insuficiente clareza sobre o escopo teórico instrumental necessário para o cargo, assim como referências para um arcabouço programático sobre as iniciativas de formação inicial e continuada. O país também não possui, na sua hierarquia institucional, setor ou órgão responsável exclusivamente pela área de gestão escolar e são raros os estados ou municípios que possuem setores específicos no âmbito da gestão do sistema de ensino, para trabalhar especificamente com a gestão educacional e escolar.
Como é possível perceber, no Brasil, as discussões acerca da administração dos estabelecimentos públicos de ensino se concentraram no princípio da gestão democrática previsto em lei. Tal situação é compreensível para um país que viveu mais de vinte anos sob regime de ditadura civil militar, mas insuficiente para assegurar a capacidade de gestão de uma complexa estrutura envolvendo múltiplas dimensões gerenciais e que, conforme mostra a literatura internacional vem sendo considerada a chave para assegurar a qualidade da educação (VAILLANT, 2015). Estudos realizados por Elmore (2008) destacam que “la función principal de los directores debería ser impulsar el aprendizaje organizacional en los centros educativos” e Day et al. (2009) afirmam que “el aprendizaje organizacional es el camino para asegurar un liderazgo efectivo y un aprendizaje escolar de calidad” (apud VAILLANT, 2015, p. 4). Essas e outras questões têm passado ao largo do debate sobre gestão escolar em um contexto marcado pela defesa do discurso sobre gestão democrática.
3. Gestão democrática e formas de ocupação do cargo
No que se refere à definição sobre a ocupação do cargo de diretor escolar, a LDB dispõe em seu Art. 64 que
(...) a formação de profissionais de educação para administração, planejamento, inspeção, supervisão e orientação educacional para a educação básica, será feita em cursos de graduação em pedagogia ou em nível de pós-graduação, a critério da instituição de ensino, garantida, nesta formação, a base comum nacional.
Embora a gestão democrática da escola pública no Brasil se faça presente como princípio na Constituição Federal de 1988 e na LDB, a legislação educacional posterior pouco avança no sentido de definir conceitualmente o termo e estabelecer atribuições e competências para os gestores escolares. O conceito de gestão democrática da escola tem sido associado a alguns aspectos como: a escolha de diretores com variados graus de participação da comunidade escolar; a autonomia pedagógica, administrativa e gestão financeira; a elaboração do projeto pedagógico, currículos escolares, planos de gestão escolar, regimentos escolares e constituição de conselhos escolares ou equivalentes envolvendo a participação e consulta a comunidade escolar (contando com alunos e seus familiares) e local, assegurando a participação dos pais na avaliação de docentes e gestores escolares.
No âmbito do governo federal, além dos dispositivos da Constituição Federal de 1988 e da LDB de 1996 acerca da gestão democrática e participativa, não existe legislação que aprofunde ou explicite aspectos relacionados ao tema. Tal ausência provoca uma lacuna normativa e permite que os demais entes federados (estados e municípios) legislem sobre o assunto sem marcos referenciais que lhe deem suporte para a construção de fundamentos e princípios e, menos ainda, para a implementação de processos de gestão escolar.
Os dados coletados sobre as formas de ocupação do cargo apresentados no gráfico 1 mostram variados processos adotados pelos entes federados.
Observa-se que prevalece a escolha por indicação (45,9%), sendo que nas redes municipais, esse valor chega a 58,0%, e nas redes estaduais a 24,2%. O processo misto de seleção e eleição para ocupação do cargo de direção escolar é adotado por apenas 11,0% dos estabelecimentos de ensino, predominando nas redes estaduais (19,0%) e representando 6,6% nas redes municipais. O processo de eleição apenas está presente em 22,1% do conjunto das redes, sendo 26,3% nas redes estaduais e 19,6% nas redes municipais. Das modalidades elencadas, a ocupação do cargo de diretor por indicação apenas é a que mais preocupação causa, pela possibilidade de clientelismo, nepotismo e interferência político partidária a que tal escolha pode estar atrelada3. No entanto, estudo realizado por Oliveira e Carvalho (2018) mostra que há uma “associação positiva entre o desempenho em matemática no 5º ano (média por escola) e a liderança dos diretores; em contrapartida, constatou-se uma associação negativa entre os mesmos resultados de desempenho com a gestão de diretores nomeados nas escolas (em grande parte dos casos por indicações políticas).” (p. 15).
Embora não se tenha evidências de pesquisa, é possivel que o debate crítico sobre gerencialismo na educação (SILVA; ALVES, 2012; SILVA; SILVA; SANTOS, 2016), de alguma forma, tenha contribuído para resistência por parte dos educadores à temática da liderança no sentido mais amplo do termo e, sem articulação direta com a gestão democrática. A pouca ou precária articulação entre os dois temas pode, inclusive, responder pela a ausência de esforços no sentido de qualificar ou capacitar os gestores escolares nas técnicas de liderança.
Considerações finais
Este artigo procurou aprofundar o debate sobre liderança, explorando especificidades do contexto brasileiro. Verificou-se que este tem sido um tema relativamente marginal na literatura sobre administração escolar no país e nas iniciativas de formação continuada, que tendem a focalizar conteúdos associados à gestão escolar. Evidências nesse sentido foram encontradas em pesquisa no site do MEC e de secretarias de educação dos estados quando foi possível constatar a existência de lacunas em relação a conteúdos de liderança em processos formativos. Do mesmo modo, a revisão da literatura sobre duas das principais iniciativas de formação de gestores desenvolvidas na última década - o Progestão e o Escola de Gestores - aponta que, em ambos os casos, a gestão democrática é o principal tema aprofundado no que se refere à liderança dos diretores escolares.
Uma possível explicação para a ausência de uma reflexão mais objetiva em torno do tema da liderança estaria associada ao fato de que o princípio constitucional da gestão democrática incorporado à legislação educacional e remetido às unidades federadas, teria polarizado as atenções das iniciativas voltadas para a formação de gestores. A hipótese aqui proposta, porém, está por ser aprofundada em novos estudos sobre o tema. Fato é que até o presente, o Brasil não tem dispensado significativa atenção à liderança nos termos em que temática vem sendo tratada em outros contextos. Trata-se de um fenômeno que deve ser associado a circunstâncias próprias do país, assim como às resistências a modelos gerenciais de gestão escolar.
Passados mais de vinte anos de promulgação da LDB pode-se afirmar que os normativos legais do país avançaram numa proposta de gestão democrática e participativa da educação pública, primando pela autonomia escolar. Há, todavia, muito por ser feito no sentido de normatizar processos e definir políticas públicas que assegurem os pressupostos da gestão escolar. A evidência do não cumprimento da meta relativa à gestão democrática (Meta 19) do PNE 2014 - 2024 parece indicar que esta ausência merece ser melhor investigada, considerando que os dados provenientes do questionário do diretor do Saeb 2015 revelam que o processo de escolha dos dirigentes escolares, se dá, em grande parte, por processos não republicanos, sendo a indicação a modalidade preferida.
O que se depreende é que embora a LDB seja clara em sua opção política pelo modelo de gestão democrática como princípio orientador das escolas públicas, depois de mais de vinte anos de sua publicação, o processo de sua implementação nos sistemas de ensino brasileiro ainda não foi concluído.
Como foi possível perceber, aspectos relacionados à liderança escolar não são objeto de preocupação da política educacional implementada até o momento pelo Governo Federal. Ações pontuais, desenvolvidas no âmbito de sistemas de ensino específicos, sejam eles estaduais ou municipais, não foram objeto de investigação neste estudo. No entanto, é importante destacar que o tema gestão escolar tem sido objeto de interesse de diversas instituições não governamentais que desde o inicio dos anos 2000 criam projetos e desenvolvem iniciativas junto às redes públicas estaduais e municipais no sentido de capacitar em serviço gestores escolares em princípios de gestão empresarial, no qual a utilização de técnicas de liderança e mais recentemente coaching, se fazem presentes.
A despeito de uma relativa ausência de iniciativas públicas de apoio a um conceito técnico de liderança na gestão, é oportuno considerar que o tema tem integrado uma literatura fértil no campo dos estudos da eficácia escolar, como se viu na reflexão sobre o assunto. De tal maneira, ainda que se possa creditar ao princípio da gestão democrática a grande inspiração para uma operacionalização de políticas orientadas para uma visão política sobre liderança, tem havido e continua em aberto amplo espaço para a ampliação do debate sobre o tema. Demanda reprimida no campo das políticas de educação, a liderança permanece sendo questão de natureza estratégica na esfera das organizações.