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Revista Eletrônica de Educação

versão impressa ISSN 1982-7199

Rev. Elet. Educ. vol.13 no.3 São Carlos set./dez 2019  Epub 01-Set-2020

https://doi.org/10.14244/198271993591 

Dossiê Políticas de Educação superior e produção do conhecimento no Brasil: novos modos de regulação e tendências

Bem público, teoria do capital humano e mercadorização da educação: aproximações conceituais e uma apresentação introdutória sobre "público" nas Declarações da CRES-2008 e CRES-2018

Public good, human capital theory and commodification of education: conceptual approaches and an introductory presentation on "public" in the CRES-2008 and CRES-2018 Declarations

IUniversidade Estadual de Maringá (UEM), Maringá-PR, Brasil - Professor na Universidade Estadual de Maringá, doutor em Educação pela FE-USP, visiting fellow no Wolfson College da Universidade de Cambridge, pesquisador do CNPq. E-mail: mlnazevedo@uem.br


Resumo

O presente artigo tem o objetivo de analisar a chamada teoria do capital humano e precisar o conceito de bem público, bem como a frequência da expressão “público” nas Declarações aprovadas nas Conferências Regionais de Educação Superior na América Latina e Caribe, em 2008 e 2018. Para isto, em termos metodológicos, o presente artigo analisa documentos de determinadas Organizações Internacionais (UNESCO, Banco Mundial e OCDE) e busca apoio na História dos Conceitos de Reinhart Koselleck e em autores como Roger Dale, Bob Jessop, Stephen Gill, Paul Samuelson, Karl Polanyi, Pierre Bourdieu.

Palavras-chave: Bem público; Teoria do capital humano; Mercadorização; Educação; CRES 2008 e CRES 2018

Abstract

The purpose of this article is to analyze the so-called human capital theory and to clarify the concept of public good, as well as the frequency of the expression "public" in the Declarations adopted at the Regional Conferences of Higher Education in Latin America and the Caribbean in 2008 and 2018. For this, in methodological terms, this article analyzes documents from certain International Organizations (UNESCO, World Bank and OECD) and seeks theoretical support in Reinhart Koselleck's History of Concepts and other authors such as Roger Dale, Susan Robertson, Bob Jessop, Stephen Gill, Paul Samuelson , Karl Polanyi and Pierre Bourdieu.

Keywords: Public good; Human capital theory; Commodification; Education; CRES 2008 and CRES 2018

“[...] a crise na educação envolve muitos outros aspectos. Somos sempre tentados a admitir que estamos perante problemas específicos, perfeitamente delimitados pela história e pelas fronteiras nacionais, que só dizem respeito a quem por eles é diretamente atingido” (H. Arendt. A Crise na Educação, 2005.)

Introdução

Todo conceito, assim como todo texto, carrega consigo o contexto de sua produção e de seu desenvolvimento. A necessidade de precisar o que é bem público reside no fato de que o sistema capitalista é um sistema baseado na produção e na troca de mercadorias, porém há bens que, tendo em vista o bem comum, não podem tornar-se mercadorias. Assim, a definição de bem público é uma forma de sinalizar que, mesmo no sistema capitalista, há bens que são produzidos, protegidos e disponibilizados por intermédio da esfera pública do Estado e não podem (ou não deveriam) ser objeto de mercadorização, de terceirização ou concessão em Parceria Público-Privada (PPP). Por isto, bens públicos e bens comuns, a exemplo da educação e do conhecimento, ao serem tratados inadequadamente como mercadorias ou bens privados, sujeitos a leis de mercados, exemplificam formas de privatização, mercadorização, expropriação e “cercamento” (enclosure), passando a ser considerados “mercadorias fictícias” como bem denominou Polanyi (1980), na obra A Grande Transformação (JESSOP, 2007; AZEVEDO, 2013).

Além disto, como necessário complemento de análise sobre a mercadorização da educação, a chamada teoria do capital humano será criticamente tratada. Isto porque, segundo o que requisita o mundo do capital, são constantes e recorrentes exigências de novas habilitações para a ocupação de postos de trabalho, reafirmando a necessidade de o trabalhador “investir-se” de novos conhecimentos e de procurar novas qualificações. Tais requisitos significam uma radicalização ideológica da teoria do capital humano, pois, não se trata apenas de uma promessa de rendimentos superiores para aqueles trabalhadores que estejam em aprendizagem ao longo da vida, mas de uma forma de demonstrar que essa é a única chance posta aos proprietários da força de trabalho de manterem-se em condições de empregabilidade.

Neste sentido, para se alcançar a compreensão desta realidade, em termos metodológicos, o presente artigo recorre à literatura em políticas públicas de educação e à História dos Conceitos de Reinhart Koselleck, de maneira a poder interpretar criticamente a teoria do capital humano e a compreender o conceito de “bem público”, seu contexto e, especialmente, seu tratamento nas Declarações aprovadas nas Conferências Regionais de Educação Superior na América Latina e Caribe, em 2008 e 2018.

Bem público nas Declarações da CRES 2008 e CRES 20181: uma breve introdução ao debate

Na América Latina e no Caribe, particularmente, faz-se necessária uma Educação que contribua eficazmente para a convivência democrática, tolerância e promoção de um espírito de solidariedade e de cooperação; que construa a identidade continental; que gere oportunidades para quem hoje não as tem e que contribua, com a criação do conhecimento, para a transformação social e produtiva de nossas sociedades. Em um continente com países que emergem da terrível crise democrática que provocaram as ditaduras, e que ostenta a penosa circunstância de ter as maiores desigualdades sociais do Planeta, os recursos humanos e o conhecimento serão as principais riquezas de todas quantas dispusermos (Declaração da CRES 2008, p. 3).

Dez anos depois da II Conferência Regional de Educação Superior na América Latina e Caribe (CRES 2008), aconteceu a terceira versão da CRES, em 2018 (a primeira CRES ocorreu em 1996). Por isso, chamar a atenção, de pronto, para esta cronologia é somente para ressaltar que entre as duas últimas conferências regionais, de 2008 e 2018, nota-se um enfraquecimento dos argumentos em favor da Educação Superior como um bem público.

Por isto, vale retornar à epígrafe anotada no início, que corresponde ao item 4 da Declaração da CRES de 2008, justamente na parte dedicada ao tema “B - A Educação Superior como direito humano e bem público social”, para se perceber a confiança de seus participantes na importância da Educação Superior como um bem público para todos os países da América Latina e Caribe. Isto porque a Educação Superior é fator indispensável, entre outros papéis, para fortalecer valores, tais como: democracia, coesão, integração, respeito mútuo, interculturalidade, solidariedade e cooperação. Ademais, a Educação Superior é o espaço por excelência para produção do conhecimento, ciência, formação de pessoal (ensino), extensão, comunicação com a sociedade, transformação social e produtiva de um País ou região; podendo contribuir ainda para a construção da identidade regional (regionalidade) em processos de integração (regionalização) de países para se ter um bloco coeso, a exemplo do que tenta fazer a União Europeia e, mesmo, o Mercosul (HETTNE, 2005; AZEVEDO, 2018).

A expressão pública/o, independentemente do sentido empregado, aparece 20 vezes na II Declaração da CRES 2008, enquanto que na III Declaração da CRES 2018, este mesmo termo é citado somente quatro vezes, sendo que em uma das passagens, para ser justo com o texto e o contexto, a palavra aparece para reafirmar o que foi declarado nas duas conferências regionais anteriores (1996 e 2008), ou seja, para lembrar que tradicionalmente na América Latina e Caribe a Educação Superior é considerada um bem público social, um direito humano universal e um dever dos Estados. Literalmente, consta na III Declaração da CRES 2018:

La III Conferencia Regional de Educación Superior de América Latina y el Caribe, refrenda los acuerdos alcanzados en las Declaraciones de la Reunión de la Habana (Cuba) de 1996, la Conferencia Mundial de Educación Superior de París (Francia) de 1998, y de la Conferencia Regional de Educación Superior celebrada en Cartagena de Indias (Colombia) en 2008, y reafirma el postulado de la Educación Superior como un bien público social, un derecho humano y universal y un deber de los Estados (CRES 2018, p. 1).

Desta forma, em razão de o objetivo deste debate introdutório ser o analisar a frequência da expressão público/a nas Declarações da CRES 2008 e da CRES 2018, a partir de agora, será apresentado um esboço de discussão conceitual sobre bem público aplicado à educação e, também, uma análise crítica sobre a teoria do capital humano.

Educação e bem público

Bem público pode ser tratado como um legítimo conceito, pois, conforme os pressupostos de Koselleck (1992), é uma expressão que comporta, simultaneamente, padrão, conteúdo e sentido. Nas palavras do historiador alemão, “cada palavra remete-nos a um sentido, que por sua vez indica um conteúdo. No entanto, nem todos os sentidos atribuídos às palavras eu consideraria relevantes do ponto de vista da escrita de uma história dos conceitos” (KOSELLECK, 1992, p. 135). Ademais, bem público é um conceito que está envolto em um contexto histórico de produção que envolvem acumuladas lutas históricas para sua construção. Por isto, bem público pode ser considerado um objeto da História dos conceitos políticos (KOSELLECK, 1992). Afinal, bem público é, ao mesmo tempo, continente e conteúdo de lutas e disputas sociais. É por isto que Koselleck adverte que um conceito é diferente de uma palavra ou de uma expressão. Ademais, o autor ressalta que um conceito é, simultaneamente, fator e indicador, isto é, “todo conceito é não apenas efetivo enquanto fenômeno linguístico; ele é também imediatamente indicativo de algo que se situa para além da língua” (1992, p. 136).

Neste sentido, pode-se perguntar, quais são os indicativos de “bondade” que caracterizam a educação institucionalizada? O que é bem público? Quais os fatores que caracterizam a educação como um bem público? Primeiramente, na tentativa de ensaiar possíveis respostas, a educação, em todos os níveis, etapas e modalidades, é um direito humano e social fundante da gramática cidadã, cujas externalidades positivas, praticamente incomensuráveis, são apropriadas pelo próprio indivíduo educado, que recebe benefícios (diretos/indiretos e materiais/imateriais), e pela sociedade, que é recipiente de externalidades positivas geradas pelo bem público distribuído com qualidade a todos, ou seja, educação, qualificação, civilidade, cultura, conhecimento, ciência, etc.

Argumentar em favor de que a educação enquadra-se no padrão, conteúdo e sentido de um bem público, em tempos de globalização, de mercadorização e de transnacionalização da educação, é um objetivo complexo. Marco Antônio Dias (2016), baseado em Annie Bartoli, autora de Management dans les organisations publiques, demarca três princípios em serviço público que demonstram tratar-se de um bem público: 1) igualdade; 2) continuidade ou permanência; 3) adaptabilidade e flexibilidade. Em sua interpretação:

El servicio público, llamado a hacer operacionales los bienes públicos, se basa en tres principios: ▪ Igualdad: todos tienen derecho al servicio público sin discriminación. Con respecto a la educación superior, el concepto se define claramente tanto en la Declaración Universal de los Derechos Humanos, como en la Declaración de la Conferencia Mundial sobre Educación Superior de 1998 en París; ▪ Continuidad o permanencia: el servicio público debe responder, de forma permanente y sin interrupción, a las necesidades de todos los ciudadanos; ▪ Adaptabilidad y flexibilidad: el servicio público debe adaptarse a la evolución de la sociedad (DIAS, 2016, p. 19).

Não é ocioso dizer que a história recente tem registrado forte regressão política das bandeiras em favor do bem estar social e de plataformas populares e inclusivas, de tal maneira que recorrer ao conceito de bem público de Paul Samuelson (1954), mesmo sendo um economista historicamente identificado com o pensamento neoclássico, nestes obtusos tempos, é um apoio às posições mais progressistas em favor da interpretação conceitual de que a educação, inclusive a Educação Superior, é um bem público.

Assim, pode parecer paradoxal, mas o recurso à autoridade de Samuelson (1954), não obstante pertencer à escola neoclássica do pensamento econômico, tem o sentido de reforçar um argumento historicamente progressista em favor da educação como um bem público. Samuelson produziu um modelo de definição de bem público que vem sendo posto à prova há mais de meio século. De modo que sua categorização de bem público tem sido aceita por policymakers, à direita e à esquerda, e por um amplo espectro de acadêmicos, de diversas áreas do conhecimento, que analisam políticas públicas. Neste sentido, por ser a educação uma atividade pública de cultivo e distribuição de conhecimento, cultura, ciência e valores, como civilidade e respeito mútuo (entre cidadãos e entre gerações), deduz-se, a partir do modelo de classificação de Samuelson (1954) e outros comentadores, que a educação faz parte da coleção de bens públicos.

Desta forma, a partir do que preconiza Samuelson, para que um bem possa ser considerado um bem público, este deve cumprir duas condições: a) não-exclusividade e b) não-rivalidade. Isto é, em relação à primeira, significa que o acesso ao bem não pode ser exclusivo a um número limitado de cidadãos. Já em relação à segunda condição, o acesso ao bem não pode implicar em diminuição deste mesmo bem a outro cidadão, gerando rivalidade entre cidadãos.

Desta forma, por exemplo, segundo dados compilados em Education at a Glance 2018, em média, ao menos 90% da população com idade entre 4 e 17 anos, em 2016, estavam matriculados em escolas nos países de abrangência da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE/OECD (2018). Estudantes de 15 e 16 anos de idade (que, em geral, estão no final do Ensino Médio), representam 95% desta faixa etária nos países da OCDE (2018). Em uma visão mais abrangente, Education at a Glance 2018 (OECD, 2018, p. 150) ilustra com uma tabela a cobertura educacional para um rol de países, inclusive o Brasil, demonstrando a transição de matriculados entre 16 e 20 anos:

Nos termos teórico-conceituais de Samuelson (1954), tomando por referência o pensador sobre Educação Superior, Marco Antônio Dias (2016) e tendo evidências empíricas da própria OCDE, que demonstram a ampla cobertura educacional nos países centrais, é permitido classificar a educação como um bem público, especialmente na contemporaneidade em que muitos países já alcançaram a ampla oferta de educação institucionalizada para seus cidadãos. Afinal, não é ocioso ressaltar, estão postas todas as condições para a universalização da educação em todos os níveis na ampla maioria dos países do Globo.

Neste sentido, por um lado, dadas as condições de universalização da educação de distribuição com igualdade a todos os estudantes na idade apropriada (sem faltas e discriminações), evidentemente, não haveria razão de escassez deste bem e de rivalidade para seu acesso. Além disto, tendo todos os estudantes o direito garantido de frequentar a escola e de acessar a correspondente vaga para o exercício deste direito, não haveria excludência2. Isto, pois, o acesso universalizado à educação, a frequência em aulas e a comunicação efetiva, por intermédio de professores devidamente graduados e capacitados, com o conteúdo programado de estudos, seriam evidências da inclusão de todos, ou seja, da não exclusão de cidadãos ao bem público educação (não-excludência) e do convívio nas escolas sem rivalidades, não havendo motivo para a escassez deste bem ou a diminuição do conteúdo estudado para outro cidadão (não-rivalidade). A propósito, a mercadorização, com diferentes qualidades e modalidades de oferta, é um modo de tornar a educação um bem escasso, gerando rivalidade entre cidadãos, ou se preferir, entre consumidores de uma mercadoria fictícia (POLANYI, 1980; JESSOP, 2007; AZEVEDO, 2013).

Por outro lado, em qualquer país do Globo, enquanto houver escassez deste bem (educação) ou sua não universalização, significa, não que a educação possa ser tratada como uma mercadoria, mas sim que há um déficit de democracia no país considerado. A ampliação do acesso à educação, com qualidade, mediante políticas públicas adequadas, demonstra que a sociedade está em processo de democratização, pois enquanto houver rivalidade na frequência e/ou excludência de cidadãos a este direito social e subjetivo, que é a educação, ainda estará incompleta a democracia. Ou seja, déficit na oferta universalizada de educação significa, em igual proporção, que há déficit democrático na sociedade considerada. Não obstante, conforme reconhecia Gramsci, a educação por si só não faz uma sociedade democrática, mas o processo de democratização e de construção da justiça social necessariamente precisa, de acordo com Gramsci, da escola unitária de qualidade para todos (NOSELLA; AZEVEDO, 2012).

A ideia de universalização substantiva também é válida para os grupos etários que deveriam estar matriculados em Educação Superior. Algo historicamente próximo, isto porque na contemporaneidade, vale ressaltar, mesmo que os números não sejam expressivos o suficiente para evidenciar a universalização da Educação Superior, há países já com altos índices de frequência em Educação Superior e a tendência mundial é o crescente aumento da taxa de matrículas nesta etapa de educação, conduzindo os grupos etários correspondentes a não descuidarem da formação universitária e a exigir dos poderes públicos os espaços necessários nas instituições de educação superior.

No entanto, de acordo com a OCDE, as taxas de matrículas são expressivas nos países da OCDE, mas com alguma queda quando os jovens atingem 20 anos e são compelidos para o mundo do trabalho, baixando para “55%, em média, nos países da OCDE, à medida que os alunos começam a ingressar no mercado de trabalho” (OECD, 2018, p. 155). Gomes e Moraes (2012), baseados em Trow (2005), consideram que a oferta de Educação Superior é classificada como de elite ao atender até 15% da faixa etária de 18 a 24 anos, de massa se atender de 16% e 50% e universal quando acolhe mais de 50% do grupo etário de 18 a 24 anos.

Determinados países, coincidentemente os mais desenvolvidos, a exemplo dos Estados Unidos da América (EUA), têm conseguido alcançar níveis de cobertura que podem confirmar que seus sistemas de educação são universalizados, abertos e acessíveis a todos. Dados publicados pela UNESCO, em 2007, evidenciam que os Estados Unidos da América, país que comporta 5% da população mundial, participam com o equivalente a 28% do gasto mundial em educação. De acordo com o Instituto de Estatísticas da UNESCO, “o país [EUA] destina a mesma quantidade que a soma combinada dos governos de seis regiões do mundo: os Estados Árabes, Europa Central e Oriental, Ásia Central, América Latina e Caribe, Ásia Meridional e Ocidental e África Subsaariana” (UNESCO, 2007, p. 11). Após a crise de 2008, este quadro de gastos com educação não mudou substancialmente. Segundo a OCDE, em 2015, os EUA continuavam sendo o país com mais gastos em educação, com alocações em instituições educacionais de mais 200 mil dólares por ano por estudante (PPP - Purchasing power parities - Paridades de poder de compra3). O Brasil, no mesmo levantamento da OCDE, estava à frente somente da Turquia e do México em gastos em educação (OECD, 2018).

Em sociedades democráticas, cabe ressaltar, não se justifica a privatização ou o tratamento da educação como uma mercadoria com argumentos escorados em uma suposta busca de equilíbrio entre oferta e demanda ou apoiados na pretensa superioridade da administração privada. Tratar a educação como uma mercadoria ou um serviço comercializável, estimulando sua mercadorização, é uma política antidemocrática. Em poucas palavras, a provisão de educação com qualidade para todos, ou seja, a oferta universalizada de educação em todos os seus níveis - do Fundamental ao Superior - é condição necessária para a substantiva democratização da sociedade. Por isto, o caráter de bem público da educação, em sociedades democráticas, precisa ser preservado ou, sendo o caso, reconquistado.

Neste sentido, a educação, sem ressalvas, deve ser considerada um bem público. O cumprimento do dever do Estado de prover educação com qualidade para todos, possibilitando o exercício do direito à educação e a frequência dos cidadãos à educação institucionalizada, não implica em exclusão ou rivalidade. Até porque a educação, do nível infantil ao superior, tende necessariamente à universalização. Entretanto, paradoxalmente, mesmo com a tendência à universalização, há Estados que fazem políticas de mercadorização e de privatização da educação. Em relação à Educação Superior, Marginson (2016) nota que os EUA tratam, em grande medida, este nível de educação como um bem privado e que os países nórdicos e da Europa Ocidental, majoritariamente, preferem adotar políticas de provisão de Educação Superior como um bem público. Marginson (2016) observa que, em diferentes países, há entendimento dissente do conceito de bem público, com maior evidência de dissensão nas políticas de educação pós-secundária.

Entretanto, nas etapas educacionais anteriores à educação superior, vale notar que os EUA, mesmo propugnando políticas privatistas e parcerias público-privadas (PPP), a exemplo da charter school, tem sua Educação Básica majoritariamente pública. Dados do National Center for Education and Statistics revelam que de um total próximo de 56 milhões de estudantes matriculados, em 2018, em escolas elementares e secundárias nos EUA, 5,9 milhões de estudantes (10,5%) estavam registrados em escolas privadas elementares e secundárias e 50,7 milhões de alunos (89,5%) estavam matriculados em escolas públicas elementares e secundárias (NCES, 31 Jan 2019).

Mesmo com a vasta maioria de estudantes em escolas públicas, há uma opinião favorável crescente à adoção de políticas pró-privatistas nos EUA, conforme pontuado por Marginson (2016). Uma pista para a compreensão deste fenômeno pode estar correlacionada ao fato de que nos EUA a educação está mais associada à realização de um direito individual do que à promoção do bem comum. Isto é, os formuladores de políticas públicas nos EUA estão mais afeitos à defesa da igualdade de oportunidades, um valor básico e essencial do liberalismo, do que da igualdade substantiva entre os cidadãos com vistas à distribuição de um bem público para a promoção do bem comum. Enquanto que, segundo Marginson (2016), em outros países, como aqueles situados nas regiões da Escandinávia e da Europa Ocidental, as políticas públicas tendem a aceitar a educação como bem público a ser distribuído com vistas à provisão de um direito aos cidadãos e, ainda, substantivamente e principalmente, para a promoção do bem comum. Nestes países, bem público e de bem comum são conceitos próximos (JAEDE, 2017),

Por isto, mesmo com diferenças sociais e imperfeições na qualidade educacional, na Europa Ocidental e na Escandinávia, o conceito de bem público tem o sentido de promover a justiça social e o bem comum, mais do que o sentido do exercício de um direito individual. Não obstante, vale ressaltar, nos casos em que a educação é tratada estritamente como um direito individual, colocam-se, consentaneamente, as condições jurídicas compatíveis para a oferta deste direito individual, para além das instituições públicas, também por provedores privados de maneira direta ou por intermédio de Parcerias Público-Privadas (PPP) e de homeschooling (ensino no domicílio pelos pais ou por familiares) - uma ação social de educação de âmbito familiar, que pode ser interpretada como estando apartada da comunidade (bem comum) e da sociedade (bem público).

Para reforçar este argumento, da desvalorização da educação como bem público e bem comum pelos formuladores de políticas públicas educacionais nos EUA, recorre-se a Labaree (2012) que percebe a existência de uma hegemonia dos consumidores nas sociedades neoliberais contemporâneas. A preponderância da ideia de consumidor na relação com os entes públicos transforma o cidadão em cliente, dificultando ainda mais o entendimento dos formuladores de políticas públicas de que a educação deve ser compreendida como um bem público. Isto porque o consumidor é caracterizado como tal por buscar individualmente a satisfação de suas necessidades, materiais e espirituais, no mercado. Assim, uma demanda na qualidade de cliente (consumidor) a qualquer repartição ou setor público torna-se um desafio à preservação orgânica da cidadania e da vida comunitária, pois a distribuição justa e igualitária de bens públicos é o que preserva e promove molecularmente o bem comum.

Aliás, diga-se de passagem, é justamente o modelo de serviços a clientes que o Brasil vem internalizando, correspondendo à hegemonia de consumidores nos EUA, como ocorreu com as reformas para a Educação Superior a partir dos acordos MEC-USAID de 1968 (PELEGRINI; AZEVEDO, 2006) e, mais recentemente, para a Educação Básica com as avaliações de alto impacto (ENEM, Prova Brasil, etc.), aquisição de sistemas de ensino (apostilas fornecidas por empresas privadas) e charter school (AZEVEDO, 2018). Assim, os formuladores de políticas no Brasil, nos três níveis de governança (municípios, estados e União), em grande medida, consideram a educação um serviço a ser prestado a clientes, em vez de um bem público a ser fornecido a cidadãos, tendo por consequência o aparecimento de parcerias público-privada (PPP), mercadorização e transnacionalização no campo da educação (AZEVEDO, 2015).

Por isto, é necessário questionar como fazer políticas de cidadania por intermédio da educação, se as políticas oferecidas pelas autoridades nacionais e regionais (a exemplo da Europa) empoderam os agentes de consumo e não os cidadãos? Como construir coesão social, em um País, Estado ou Região, incentivando o individualismo e solapando as bases da solidariedade? O incentivo ao consumismo não poderia ser mais evidenciado do que o que se apresenta no documento da Comissão Europeia intitulado Consumers (EUROPEAN COMMISSION, 2016), cujo primeiro item é reservado ao seguinte título 1. Why an EU consumer policy? Como um primeiro choque à pretensão de construção da europeidade social e da solidariedade regional, a resposta, em ressalto, das autoridades europeias é a de colocar o consumidor como prioridade número um [Putting the consumer first, original em inglês] (EUROPEAN COMMISSION, 2016). Este é um exemplo oficial, a prioridade ao consumidor europeu, comprovado por documento produzido pela Comissão Europeia, de que a europeidade do consumo e não a europeidade social e da cidadania que vem sendo tratada com precedência pelos dirigentes europeus. Tal proposição (da Comissão Europeia) é um paradoxo, pois como é possível promover a coesão regional e a integração europeia por intermédio de uma política que antepõe o consumidor ao cidadão? Afinal, este projeto de europeidade do consumo é um prêmio ao individualismo e à mercadorização, inclusive da educação, e o menosprezo do bem comum e do bem público.

Propostas de políticas mais recentes provenientes de organizações internacionais, a exemplo do Banco Mundial, como se fosse uma inovação generosa e uma concessão às forças progressistas4, têm considerado a educação como “bem público global”. Esta expressão composta, ao agregar “global” a “bem público”, está mais para uma adaptação aos tempos de globalização e uma sutileza para a construção do consentimento em favor, conforme vaticinou Stephen Gill (1995), da “civilização de mercado” (Market Civilisation) que é baseada, na definição do mesmo Gill, em um “sistema de livre iniciativa transnacional baseado no mercado” (em inglês “market-based transnational free enterprise system”) (1995, p. 400). A propósito, a “civilização de mercado” é, lamentavelmente, em relação ao campo educacional, a própria materialização da AGEE (Agenda Globalmente Estruturada da Educação) apresentada criticamente por Roger Dale, para quem a globalização “é um conjunto de dispositivos político-econômicos para a organização da economia global, conduzido pela necessidade de manter o sistema capitalista, mais do que qualquer outro conjunto de valores” (2004, p. 436). Porém, para além desta definição, conforme reconhecem Susan Robertson e Roger Dale (2015), ao analisarem o processo de globalização da educação referenciados na Economia Política Cultural e Crítica da Educação ou, em língua inglesa, Critical, Cultural Political Economy of Education (CCPEE), a globalização não pode ser vista meramente como um [conspiratório] master plan das organizações internacionais, das potências mundiais e das grandes empresas transnacionais para o domínio global do capitalismo em tempos de economia baseada no conhecimento. Assim, mesmo que isto seja real, seria uma redução aos aspectos da política e da expansão do capitalismo. Para além desta evidência, em termos de interpretação teórica, criticamente, afora o político e o econômico, o processo de globalização comporta também diversos componentes culturais e é influenciada por ações e agências de variados atores sociais, inclusive do campo da educação.

Destarte, retomando a discussão sobre bem público, Marco Antônio Dias, ao analisar perspectivas para a Educação Superior, elabora pertinente distinção entre “bem público” e “bem público global”. Dias percebe que o adjetivo “global” tem sido agregado a “bem público”, formando uma nova expressão que vem sendo utilizada para se referir à educação em textos de variadas organizações internacionais, entre elas o Banco Mundial. Esta organização internacional considerou a educação como um bem público global no documento intitulado Constructing Knowledge societies: new challenges for tertiary education5, que foi publicado pelo Banco Mundial, em 2002. Apesar de ser uma longa citação, vale a pena conferir o raciocínio de Marco Antônio Dias:

(...) não há dúvidas de que é um documento progressista caso se compare com seu similar de 1994. Mas é um documento que não pode satisfazer a quem considere a educação superior um bem público. Nele, seus autores lançam a ideia bastante ambígua de que educação superior é um bem público global. Como bem assinalaram participantes latino-americanos na Conferência Paris + 5, a qual, em junho de 2003, revisou e confirmou as opções feitas pela Conferência Mundial de 1998, bem público é uma coisa, bem público global pode significar outra coisa completamente diferente. Aquele pode representar a cooptação de um movimento amplo, com raízes sociais profundas, que requer autonomia e independência, quando o “bem público global”, em tempos de OMC, pode muito bem significar uma volta a um período de uniformidade cultural. Não há que se esquecer de que tal definição foi feita no momento mais intensivo dos debates sobre as propostas levantadas na Organização Mundial do Comércio, as quais podem, segundo muitos, transformar a educação em simples mercadoria. Bem público global, no momento em que um pequeno grupo de instituições dominadas justamente por países industrializados e apoiado por departamentos do atual governo norte-americano e por instituições como a OCDE e o Banco Mundial, os quais tentam definir o que é qualidade com base na experiência de alguns poucos Estados-membros da OCDE, não é expressão de natureza a assegurar aos que pensam que educação é um direito que eles terão ganho de causa com o novo conceito. Bem público global pode, sim, significar a adoção de medidas neocolonialistas, inaceitáveis em pleno século XXI (2004, p.893).

Em documento do governo francês, uma publicação conjunta de dois Ministérios da República (Ministère des Affaires étrangères / Ministère de l’Économie, des Finances et de l’Industrie), intitulado Les biens publics mondiaux, os autores inferem que, após a queda do muro de Berlim, houve a mudança de foco nas estratégias geopolíticas francesas de apoio aos países em desenvolvimento, pois, a partir deste evento que marca a derrocada do bloco dos países comunistas, os países capitalistas centrais não precisavam mais se preocupar com o “perigo” vindo do Leste:

(...) a queda do Muro de Berlim resultou no desaparecimento de uma das motivações geoestratégicas para a ajuda: os países ocidentais não têm mais motivo para financiar o apoio aos governos dos países em desenvolvimento para garantir apoios no confronto leste-oeste (FRANCE, 2002, p. 5).

O referido texto, deve-se insistir, de responsabilidade de dois estratégicos Ministérios franceses, incentiva a adoção de políticas transnacionais em favor de Bens Públicos Globais, pois, de acordo com o governo da França, “as questões globais precisam ser abordadas globalmente” (FRANCE, 2002, p. 7). Para isto, haveria a mercadorização de serviços públicos em escala global, de modo que a cooperação internacional para o desenvolvimento, que antes era considerada como uma política de solidariedade internacional para o apoio ao desenvolvimento, sofreria uma metamorfose, expondo uma simbologia oposta ao seu significado original, isto é, os intercâmbios internacionais, baseados na fraternidade entre os povos, assumiriam a forma de trocas transnacionais baseadas em rivalidade e fictícia escassez. Cria-se, portanto, um mercado global de serviços públicos. Segundo o documento francês,

Trata-se de uma mudança radical, na qual a assistência ao desenvolvimento seria gradualmente substituída pelo mercado, que subsistiria apenas na reduzida forma de luta contra a pobreza, mas com o risco de ser confundida com uma relação essencialmente caritativa. Em sentido restrito, o combate à pobreza viria a apoiar estratégias para fortalecer os mecanismos de mercado, para administrar as consequências sociais dos processos de ajuste e de liberalização das economias (FRANCE, 2002, p. 6).

Enfim, em lugar de uma possível provisão internacional solidária de bens públicos, como se se tratasse da continuidade da ideia clássica de cooperação internacional, a proposta do governo francês, ecoando os tempos de globalização e de neoliberalismo, reforça a hegemonia dos consumidores e a tendência de mercadorização em escala global para a provisão do que, historicamente, seriam considerados bens públicos. Em resumo, a política externa de variados países centrais, a exemplo do que defende o Governo Francês, contemporaneamente, parece visar prioritariamente à conquista e à ampliação de poder e mercados, demonstrando estar orientada pelos princípios mais duros do realismo em Relações Internacionais6. Quer parecer que a diplomacia dos tempos neoliberais declara preferência pela dureza e pelos constrangimentos de mercado e desvaloriza o exercício da suavidade, própria da solidariedade internacional7.

Despesas e Investimentos em Educação: UNESCO e Banco Mundial em foco

Marco Antônio Dias compara o Banco Mundial e a UNESCO no que se refere à concepção que estas duas organizações internacionais têm a respeito da natureza da educação. Dias afirma que a UNESCO aproxima-se mais da concepção de que a educação deve ser tratada como um bem público, ou seja, como um direito social a ser estendido a todos8. De acordo com Dias,

O Banco [Mundial], dada a sua natureza comercial, partia de uma visão economicista da sociedade, ao passo que a UNESCO, com base em sua Carta Constitutiva, seja sob a direção do senegalês Amadou Mahtar M’Bow, seja sob o comando do catalão-espanhol Federico Mayor, considerava a educação, em seu conjunto, um bem público. Segundo a especialista sueca Berit Olsson, ‘a UNESCO discute a sociedade como uma entidade coletiva, ao passo que o Banco Mundial dá a impressão de ver a sociedade apenas como um mecanismo para regular o sistema de mercado’ (2004, p. 897).

A diferença de tratamento conceitual da educação deita raízes no entendimento diverso de sua natureza: bem público (a educação como um direito social e humano) ou mercadoria (a educação como mercadoria/negócio e fonte de lucro e vantagens individuais). Por isto, de acordo com Dias, historicamente, os documentos produzidos pela UNESCO tendem a considerar a educação, em grande medida, como um direito social e humano9.

Não sem razão, a maior parte das alocações orçamentais do Estado para a educação é para cobrir despesas de pessoal e custeio em geral, por isto, contabilmente, as despesas correntes e de custeio em educação são classificadas como “gastos”. Já os ativos fixos, a exemplo de imóveis e bens duráveis, são classificados como “investimentos”. Mesmo que a expressão “investimento” possa parecer retoricamente mais simpática, deve-se fazer a devida distinção das alocações orçamentárias.

Na realidade, a composição das contas públicas (rubricas de receitas, gastos e investimentos) permite notar quais são as políticas e as prioridades do Estado. Por exemplo, o pagamento de juros sobre a dívida pública faz parte também dos “gastos” do Estado. Aliás, esta é a despesa que mais compromete as contas do Estado brasileiro. De acordo com a associação Auditoria Cidadã da Dívida, durante o ano de 2018, o Brasil pagou como juros e amortizações R$1.065.725.301.673 (hum trilhão, 65 bilhões, 725 milhões, 301 mil Reais), o mesmo que R$2,9 bilhões de Reais a cada dia, para rolar uma dívida interna federal de R$5.523.121.023.828,08 (cinco trilhões, 523 bilhões, 121 milhões, 23 mil Reais) e dívida externa total US$ 556.326.219.643,40 (556 bilhões, 326 milhões, 219 mil dólares) [dados da dívida referentes a dezembro de 2018] (AUDITORIA CIDADÃ DA DÍVIDA, 28 fev. 2019).

Vale ressalvar que contratos de empréstimos, mesmo que justificados para investimentos, com ou sem períodos de carência, são geradores de gastos em juros e amortizações. Isto porque, em termos econômicos, investimento é um montante de capital aplicado com a intenção de, no futuro, obter rendimentos e retornos (social, cultural, político, econômico - material ou imaterial), mas nem sempre garantidos. Entretanto, independente disso, a análise da composição de gastos e investimentos de um Estado permite perceber a preocupação do ente público com o bem estar da população. Assim, analisar a estrutura de gastos públicos é fundamental para demonstrar em que nível o Estado está comprometido com o bem-estar social e, mesmo, levantar os atores sociais que se beneficiam das políticas ou que capturam o Estado para seus interesses (AZEVEDO, 2016; AZEVEDO, 2013).

Não surpreendentemente, as reais execuções orçamentárias correspondem ao real funcionamento do Estado e, para ilustrar, o quadro de investimentos públicos é proporcionalmente bem menor que o de gastos públicos. Para se ter uma ideia, “entre 2000 e 2017, a média anual do investimento público no Brasil foi de apenas 1,92% do PIB” (LAMUCCI, 28 nov. 2018). Especialmente, sobre investimento público (não só em educação, mas em todos os setores de Estado), a título comparativo, o Jornal O Valor, em matéria jornalística de 28 nov 2018, com base em dados do Observatório de Política Fiscal do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV), registra que o Brasil, no período de 2000 a 2017, foi o segundo que menos alocou recursos para investimentos públicos (1,92%), somente à frente da Costa Rica (1,87%) e bem atrás de países como: Estônia (5,28%), Coréia do Sul (5,12%), Peru (4,73%), Finlândia (3,78%) Estados Unidos da América (3,67), Portugal (3,47%) e Turquia (3,38%) (LAMUCCI, 28 nov. 2018).

Assim, procurando descortinar as nuances ideológicas e sendo respeitoso com o uso adequado do léxico corrente nas Ciências Sociais Aplicadas, nota-se que os estudos da UNESCO, publicados até a década de 2010, são menos propensos a aceitar o uso ideológico, ao menos explicitamente, da teoria do capital humano e, por decorrência, da expressão “investimento em educação” ou “investimento em capital humano” como equivalentes à “alocação orçamentária” para gastos e custeio em educação. Tal correção terminológica, sem querer extrair açodadas conclusões, não deixa de ser um desafio à validade epistemológica da teoria do capital humano10, referencial teórico este que considera a educação como um investimento (público ou privado) no indivíduo (um input na forma de bem imaterial, criando vantagens materiais ao sujeito mais educado, que são externalidades apropriadas individualmente).

A título ilustrativo, no relatório Education for All by 2015. Will we make it? publicado em 2007, não se encontra a expressão “capital humano”. O termo “investment” (investimento) ocorre apenas 14 (quatorze) vezes, enquanto que a palavra expenditure (gasto) aparece 493 (quatrocentos e noventa e três vezes), demonstrando que os elaboradores do referido documento são mais afeitos ao sentido de que a educação é um direito social a ser provisionado com as devidas alocações orçamentárias pelo Estado, inclusive incentivando a gratuidade escolar e, mesmo, a transferência de rendas para as famílias que têm crianças matriculadas11. Ressalta a UNESCO:

Desde Dakar, duas iniciativas para o aumento da participação das crianças em desvantagem tem se expandido: abolição de taxas de matrícula (gratuidade) aliada a pagamentos compensatórios para as escolas e transferências de recursos financeiros às famílias que mantêm as crianças matriculadas (bolsas). Ambas têm por objetivo a expansão do acesso, mas têm implicações significativas para as despesas públicas (2007, p. 153)12.

Dessa forma, salvo exceções, como apresentado anteriormente em relação ao constante em documento da UNESCO, nota-se o uso ideológico do conceito de capital humano, coincidindo, na prática, com a tendência da transformação do padrão da acumulação capitalista, ou seja, quando o sistema capitalista tende a eludir a organização da produção fordista e enveredar-se para a acumulação flexível (HARVEY, 1993; AZEVEDO, 2001). Em outras palavras, evidencia-se que a teoria do capital humano tem se tornado um forte substrato ideológico para esta mudança do padrão de acumulação capitalista, o que tem sido, também, um dos relevantes pressupostos teóricos para justificar financiamentos, orientações políticas e técnicas, no sentido de promover reformas em vários setores da sociedade, inclusive na educação, a partir de governos que concordam com as orientações da OMC (Organização Mundial do Comércio), Banco Mundial e OCDE e que aceitam os ensinamentos e/ou condicionalidades inscritas em cláusulas contratuais de financiamento com organizações internacionais, especialmente aquelas estabelecidas em empréstimos contraídos com o Banco Mundial13.

As reformas liberalizantes, baseadas principalmente nas propostas de economistas filiados à economia neoclássica ou às correntes liberais ortodoxas, concebem suas políticas educacionais com base na teoria do capital humano. De forma que a educação é tratada como um investimento pessoal e colocam em causa a oferta pública de educação em estabelecimentos escolares públicos. As correntes de pensamento subsidiárias à teoria do capital humano, por interpretarem o ensino como um investimento no próprio indivíduo, consideram o aprendizado como um input de conhecimento em um dos fatores de produção (trabalho) ou, se preferir, no proprietário da força de trabalho (trabalhador).

De acordo com a teoria do capital humano, o “adquirente” do novo conhecimento torna-se capaz de ser mais produtivo, rendendo-lhe maiores ganhos por intermédio da maior produtividade gerada pelo conhecimento adicionado ao indivíduo. Para os aderentes à teoria do capital humano, o conhecimento “agregado” tem o efeito de proporcionar rendimentos superiores a seu proprietário (o trabalhador educado). Desta forma, não é demasiado ressaltar que os pressupostos da teoria do capital humano têm permanecido ideologicamente operativos desde os anos 1960, especialmente a partir da publicação dos livros O valor econômico da educação e O capital humano: investimento em educação e pesquisa, de Theodore W. Schultz (em língua portuguesa, estas obras foram editadas no Brasil na década de 1970)14. Segundo Schultz, ganhador do Prêmio Nobel, em 1979, pelo desenvolvimento da teoria do capital humano, quando era professor na Universidade de Chicago, "o pensamento econômico tem negligenciado examinar duas classes de investimento que são de capital importância nas modernas circunstâncias. São elas o investimento no homem e na pesquisa [...]" (1973a, p. 15).

Para os pensadores afinados com a teoria do capital humano, maiores alocações de recursos para a educação causam reflexos diretos no aumento salarial e no crescimento econômico. O esforço do trabalhador por sua escolarização/qualificação, segundo essa teoria, significa, em nível individual, mobilidade social, aumento da produtividade e maiores ganhos salariais e, em um plano macroeconômico, desenvolvimento econômico, gerando, por consequência, segundo este raciocínio, um crescimento da produção total do país.

Em dada população com taxas de escolarização baixa, isto é, em uma sociedade com escassez de diplomados, a demanda por trabalhadores qualificados faz aumentar os ganhos salariais na proporção do tempo de escolaridade. Esta é das justificativas para a cobrança de taxas escolares e a responsabilização do trabalhador por sua formação e por sua suposta empregabilidade. Segundo esta hipótese (corrente entre os sequazes da teoria do capital humano), receberiam maiores salários aqueles indivíduos que mais tempo estudaram e se qualificaram para o trabalho. Entretanto, em um cenário em que a educação se tornasse universalizada, uma tendência evidenciada pelas estatísticas sobre taxas crescentes de escolarização15, especialmente, em tempos de “economia baseada no conhecimento”, o diferencial baseado em tempo de escolaridade diluiria-se, não mais significando expressivos ganhos salariais para os portadores de títulos escolares.

Por sinal, independentemente da posse ou não de diplomas, a tendência posta na contemporaneidade é a ocupação precária de uma vasta parte da classe trabalhadora por intermédio de contratos de trabalho com prazo determinado e intermitente, formando uma massa de trabalhadores precários, que vem sendo chamada de “precariado”, uma nova expressão, resultado da fusão dos termos “precário” e “proletariado”, para referir-se à parte da classe trabalhadora que está empregada temporariamente, sem segurança e submetida a contratos e ocupações que exigem flexibilidade (ALVES, 2013; STANDING, 2013).

Neste sentido, diferentemente do que professa a teoria do capital humano, a grande massa de trabalhadores, mesmo os portadores de diplomas e com qualificação em Educação Superior têm sido igualados pela precariedade e pelos baixos salários. Países da Europa que têm conseguido massificar ou mesmo universalizar a Educação Superior e que oferecem condições para que seus cidadãos consigam alcançar os melhores equipamentos culturais, paradoxalmente, apresentam uma oferta restrita de empregos a seus cidadãos por contratos temporários e, para enrascar ainda mais a situação, com salários próximos da base mínima de remuneração. Na Espanha, este fenômeno, conforme relata Luciana Stein, gerou os mileuristas, que são os novos trabalhadores com Educação Superior que recebem um salário básico pouco superior a €1.000,00 (mil Euros). De acordo com a jornalista Stein,

(...) eles se vestem com estilo, são educados, informados e pobres. Muitos deles conhecem a cozinha desconstrutivista de Ferrán Adriá, mas a 150 km do restaurante do chef do El Bulli, no centro de Barcelona, eles só podem pagar 4 euros pelo almoço. Eles têm sites, livros, programas culinários dedicados a eles e compõem um grupo social que está sendo disputado pelos candidatos das próximas eleições gerais espanholas de 9 de março. ‘Os mileuristas ganham 1 mil euros ao mês. Uma hipoteca custa 1 mil euros ao mês. Como se alimenta um mileurista?’, pergunta o candidato ao governo da Catalunha Joan Herrerra em anúncios nas estações de metrô [...]. Herrerra está se referindo a uma população que não é pequena. Segundo dados oficiais, há quase 11 milhões de assalariados que não ganham mais de 1.100 euros mensais no país - o aluguel de um apartamento em uma cidade como Barcelona é de no mínimo de 600 euros (21 fev. 2008).

O retrato traçado a respeito desses jovens trabalhadores urbanos demonstra que se trata de um grupo muito qualificado e que aceitou a premissa de que o esforço na formação intelectual, a educação propriamente dita, traria como contrapartida a mobilidade social, melhor posicionamento no espaço social e aumento salarial. Segundo Stein,

Os jovens são o grupo que chama mais atenção entre os mileuristas pelo seu nível de qualificação. Eles seguiram a cartilha, escutaram seus pais e o plano não está dando certo. Estudaram, falam idiomas, fizeram cursos de especialização, e têm experiência de vida, não são calouros. Tudo isso não lhes garante um salário mais gordo e nem sempre há trabalho [...]. A expressão mileurista foi criada há dois anos pela publicitária Carolina Alguacil depois de ver técnicos agrícolas, engenheiros e licenciados em letras com salários que não correspondiam a suas profissões (21 fev. 2008).

A ampliação da oferta de postos de trabalho, o aumento da massa salarial e a maior participação do trabalho na renda nacional são manifestações do crescimento econômico e não o contrário. Não é a percepção estatística de maior nível de escolarização dos trabalhadores que gera o crescimento econômico, remunerações mais elevadas ou maior oferta de vagas de trabalho. Em extensa reportagem, baseada em dados do IBGE, o Jornal Folha de S. Paulo confirma:

Com a expansão do ensino superior sem o crescimento correspondente no mercado de trabalho, profissionais com graduação disputam empregos de nível médio e até fundamental. O fenômeno é visível principalmente em concursos públicos, mas aparece na Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio), do IBGE. Em 2006, um em cada dez trabalhadores urbanos com diploma universitário estava ocupado em áreas com baixo perfil de escolaridade. São quase 700 mil graduados em ocupações como vendedor em loja, recepcionista ou operador de telemarketing. Segundo o Ministério da Educação, 737 mil alunos se formaram em 2006 na educação superior, o triplo de 1995 (246 mil). A falta de oportunidades compatíveis com sua qualificação para uma parcela desses formados faz com que, hoje, um em cada 20 carteiros tenha superior completo, segundo os Correios (LOBATO, 04 fev. 2008).

Esse tipo de fenômeno social, ocorrido tanto na Espanha como no Brasil, em pleno século XXI, permite constatar, novamente, o sentido ideológico da teoria do capital humano, pois, conforme exposto anteriormente, a flexibilidade das relações de trabalho e a responsabilização do próprio trabalhador por sua formação e pela manutenção de suas condições de “empregabilidade” são consequências previsíveis da aplicação da teoria do capital humano. O resultado prático da teoria do capital humano não se refere ao que se enuncia em seu corpus, que seria o de maior remuneração ao trabalhador mais escolarizado e crescimento econômico superior para os países com a população com taxas de escolarização mais altas. Na realidade, a teoria do capital humano tem servido como ideologia de reformas trabalhistas, educacionais, sociais e econômicas, emulando o individualismo, a flexibilidade do trabalho e a mercadorização, o que, em resumo, significa a revogação da proteção dos trabalhadores, a privatização da oferta de bens públicos (inclusive da educação) e o aviltamento do Bem-Estar Social.

Curiosamente, mesmo os estudos baseados na teoria do capital humano, ao não encontrar o suporte empírico no nível de escolaridade/educação para explicar as (des)igualdades salariais, aceitam que existem outras variáveis que formam o preço da força de trabalho. Priscilla Albuquerque Tavares admite que;

(...) mesmo indivíduos com níveis de educação ou experiência iguais não são igualmente remunerados. A explicação para isso é que mesmo os trabalhadores iguais em características observáveis não são igualmente produtivos, pois diferem em habilidades não observadas, que também são valorizadas no mercado de trabalho (2007, p. 8).

Porém, retomando o argumento sobre as organizações internacionais e a teoria do capital humano, a partir dos anos 1990, as reformas de matiz liberalizante para a educação, principalmente para a Educação Superior, com as especificidades de cada país, tiveram por referência ideológica a teoria do capital humano16. O Relatório Anual de 1996, publicado pelo Banco Mundial, assevera que “em todo o mundo, os países se esforçam para investir no indivíduo e para valorizar o capital humano com a ajuda do Banco Mundial e de outros organismos internacionais” (BANCO MUNDIAL, 1996, p. 51).

O referido Relatório observa que “este tipo de investimento está realmente no centro das atenções das obras encaminhadas pelo Banco Mundial após o início dos anos 90” (BANCO MUNDIAL, 1996, p. 51). De forma que as reformas educacionais de corte liberalizante, em especial aquelas financiadas pelo Banco Mundial, baseiam-se essencialmente na teoria do capital humano. Segundo o Banco Mundial, seus anos de experiência no financiamento para o desenvolvimento e a melhoria do nível de vida nos países em desenvolvimento permitem concluir que isto “resgata a noção de investimento no indivíduo e é por isso que os termos 'capital humano' são as palavras-chave da economia do desenvolvimento atualmente” (BANCO MUNDIAL, 1996, p. 51). A OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico), que é, concomitantemente, um organismo nucleador de políticas e de pensamento (think tank) dos países considerados desenvolvidos, assume o mesmo referencial de análise17. A teoria do capital humano é recorrente em suas análises e publicações. Donald J. Johnson, Secretário Geral da OCDE, afirma:

(...) conhecimento, habilidades e competências constituem um recurso vital para o crescimento econômico sustentado e para a redução das desigualdades sociais nos países de abrangência da OCDE. Este ativo, o qual é frequentemente compreendido como capital humano, tem sido identificado como um fator-chave no combate ao alto e persistente desemprego e aos problemas de baixos salários e pobreza (OCDE, 1999, p. 3).

Deve-se esclarecer que a objeção à teoria do capital humano não está na suposta promoção da educação como objetivo ou como alavanca das políticas de desenvolvimento, mas no fato de tornar o ensino um simples input econômico a seu portador e de tratar a educação, ideologicamente, como uma mercadoria ou um investimento que se agrega ao indivíduo, justificando a mercadorização, a retirada de direitos dos cidadãos, as reformas liberalizantes e o individualismo. Alternativamente, como se percebe, a educação, em qualquer de seus níveis, do básico ao superior, deve ser considerada um bem público e um direito humano fundamental18.

A teoria do capital humano está em direta oposição ao tratamento da educação como um direito social e humano e, também, com o conceito de educação como bem público ao considerar que os trabalhadores são proprietários de capital (humano) e, por decorrência (ideo)lógica, são capitalistas. Nas palavras do próprio Schultz, "os trabalhadores transformaram-se em capitalistas, não pela difusão da propriedade das ações da empresa [...], mas pela aquisição de conhecimentos e de capacidades que possuem valor econômico" (1973a, p. 35). Contrariamente a este argumento, a mais valia (que contém a potencialidade do lucro) é apropriada por quem aluga a força de trabalho, ou seja, o capitalista (seja ele indivíduo, fundo, sociedade de cotas, sociedade anônima, conglomerado, etc.), que também é o proprietário dos meios de produção19.

Ainda, segundo a teoria do capital humano, o conhecimento assimilado e agregado ao ser humano é um fator que, relacionado ao mundo da produção e da distribuição, possui as particularidades de aumentar a produtividade econômica e proporcionar rendimentos ao indivíduo que o possui. Schultz, em defesa de sua tese, afirma que "a característica distintiva do capital humano é a de que é ele parte do homem. É humano porquanto se acha configurado no homem e é capital porque é uma fonte de satisfações futuras, ou de futuros rendimentos, ou ambas as coisas" (1973a, p. 53).

Esse modelo teórico é compatível com tendências contemporâneas no mundo do capital e do trabalho, a exemplo da flexibilidade, precariado, privatização, transnacionalização, mercadorização, capitalismo de plataforma, economia baseada no conhecimento20, etc., e vem justificando ideologicamente reformas educacionais que estimulam o individualismo, a formação de consumidores em lugar de cidadãos, o enfraquecimento do Estado de Bem-Estar Social e o abandono do conceito de educação como um bem público.

Epistemologicamente, os pressupostos filosóficos e sociológicos da teoria do capital humano identificam-se com o individualismo metodológico fundado por Friedrich von Hayek e Karl Popper21. Segundo Hayek, “concepções ou ideias podem, evidentemente, existir apenas em espíritos individuais” (apud LAURENT, 1994, p. 55). Em seguida, Hayek complementa o argumento em favor do individualismo, afirmando que “não é o conjunto dos espíritos individuais em toda sua complexidade, mas são as concepções individuais, as opiniões que as pessoas formaram deles mesmos e das coisas que constituem os verdadeiros elementos da estrutura social” (apud LAURENT, 1994, p. 55).

Neste sentido, conforme enuncia a própria denominação do mencionado referencial de análise, o individualismo metodológico tem como sujeito essencial da ação social o indivíduo. De acordo com Brémond, analisando o quadro teórico do pensador austríaco, "a única maneira, para Hayek, de compreender os processos econômicos consiste em partir da análise do indivíduo" (1989, p. 93). Essa forma de pensar, portanto, coloca o mercado como meio eficaz de alocação de recursos e de circulação de informações para a tomada de decisões (Qual é o melhor curso? Qual é o conteúdo curricular apropriado? Onde se localiza a excelência universitária?). Para Hayek, segundo a interpretação de Brémond, “o mercado é eficaz porque proporciona a melhor gestão possível da informação. É a única forma de administrar e, em particular, coordenar a multiplicidade de informações que caracteriza as sociedades complexas” (1989, p. 94).

Para as escolas liberais ortodoxas, como a de Hayek, o mercado é o instrumento de alocação de recursos por excelência. Entretanto, o mercado, instituição historicamente construída como um dos meios de encontro de produtores de mercadorias, não tem capacidade sensório-racional. Não se pode delegar ao mercado, conforme também desejava Say com a sua “Lei dos mercados” (AZEVEDO, 2001), a coordenação das ações humanas e, por consequência, o destino da sociedade. Polanyi, de maneira oposta, afirma que é uma utopia a ideia de um mercado autorregulável. Uma sociedade disciplinada puramente pelo mercado, como projetam variados pensadores do neoliberalismo, seria a realização de uma distopia caracterizada por injustiça social, anti-humanismo e egoísmo. Seria semelhante ao que profetizou Polanyi sobre uma imaginária sociedade regulada meramente pelo livre mercado: “uma tal instituição não poderia existir em qualquer tempo sem aniquilar a substância humana e natural da sociedade; ela teria destruído fisicamente o homem e transformado seu ambiente num deserto” (1980, p. 23).

Não obstante o negativo cenário desenhado por Polanyi (1980) para uma sociedade com predomínio do mercado autorregulável, a teoria do capital humano encontra fecundo terreno no atual contexto de transnacionalização da educação, de formação de um mercado global de educação e de acumulação flexível do capital, que formam um fértil substrato ideológico que sustenta a distopia neoliberal, que pressupõe a flexibilidade no mundo do trabalho, ocasionando a competição espetacular por empregos, precarizando as condições de trabalho, eliminando postos tradicionais de trabalho e enfraquecendo a organização da classe trabalhadora. De acordo com Harvey, a acumulação flexível “parece implicar níveis relativamente altos de desemprego 'estrutural' [...], rápida destruição e reconstrução de habilidades, ganhos modestos (quando há) de salários reais e o retrocesso do poder sindical [...]” (HARVEY, 1993, p. 141).

A teoria do capital humano, em tempos de acumulação flexível do capital, renova exigências de qualificação, atualização e aprendizagem constantes do trabalhador. Apesar de a teoria do capital humano ser anterior à implementação do processo de trabalho baseado na acumulação flexível, esta ideologia está em conexão com sua efetivação e consolidação no mundo do trabalho.

Vale repetir, conforme argumentação anterior, que a teoria do capital humano considera o trabalhador como um capitalista. Esse tipo de assertiva induz o leitor menos atento a conclusões errôneas. Na realidade, essa teoria é o resultado de um sofisma, pois, seus defensores partem de premissas, diga-se de passagem, equivocadas, em virtude de tomarem o aparente como essência, ou seja, como se o trabalhador educado se transformasse em capitalista pelo fato de ter dedicado um tempo de sua vida aos bancos escolares. A aparência não substitui a essência. O trabalhador possui a força de trabalho. Essa especial mercadoria, fundamental para o processo de trabalho, educada ou não, qualificada ou não, é a única capaz de produzir maior valor do que seu custo aplicado à produção. Dessa maneira, pode-se inferir que a teoria do capital humano é uma ideologia, pois é um constructo falsificado da realidade22.

O exemplo exposto anteriormente a respeito do “mileurismo”, na Espanha, talvez fosse o suficiente. Entretanto, como mais um argumento, poder-se-ia imaginar uma possível sociedade de democracia substantiva, em que todos os habitantes tivessem, na idade adequada, acesso integral e unitário à educação de qualidade, sendo esta [a educação] considerada um direito de todos e um bem público provisionado diretamente pela esfera pública. De forma que o campo da educação seria constituído por atores sociais democraticamente equalizados na posse de capital cultural provisionado, precipuamente, por um sistema de escolas unitárias de qualidade para todos. Nesta utópica sociedade, o capital cultural, conceito metafórico de Bourdieu (1983), estaria sendo democraticamente distribuído, de modo que não haveria marcadores distintivos e classificatórios devidos à frequência escolar, nem déficits educativos. Esta ideação, logo utópica, é apresentada para permitir questionar: como se sustentaria a ideologia do capital humano em uma sociedade democrática, unitária e substantivamente educada? Cuja consequente resposta não poderia ser outra: não haveria suporte para a ideologia do capital humano porque se houvesse “gastos” e “investimentos” suficientes para a distribuição igualitária de educação - sem escassez, sem rivalidade e sem excludência -, o “retorno” também seria igual e suficiente para cada um e para o coletivo. Ou seja, a teoria do capital humano encontra substrato de apoio em ambientes de desigualdades, pois se todos os cidadãos fossem equitativa e igualmente educados, não seria o “investimento” em educação que criaria diferenças entre os indivíduos. Por analogia, pode-se chegar a esta mesma conclusão, analisando o que afirma Friedman, insuspeito ideólogo do neoliberalismo e da teoria do capital humano. Em suas palavras:

Se houvesse capital prontamente disponível para investimento em seres humanos (como existe em termos de investimento em bens físicos), quer através do mercado quer através do investimento direto pelos indivíduos envolvidos ou por seus pais ou benfeitores, a taxa de retorno sobre o capital tenderia a ser quase igual nos dois campos. Se ela fosse maior sobre o capital não humano, os pais teriam um incentivo para esse capital para seus filhos em vez de investir uma soma correspondente em treinamento vocacional, e vice-versa (FRIEDMAN, 1983, p. 96).

Enfim, entre a utopia da escola unitária, democrática e de qualidade substantiva a todos e a distopia neoliberal para a educação, que tem a teoria do capital humano como fundamento, tem predominado esta última, que desafia a ideia republicana de bem público e que é uma ideologia compatível com o individualismo, a acumulação flexível do capital e a mercadorização da educação. De resto, em tempos de luta pela ampliação de mercados e pelo poder, a hegemonia neoliberal é corroborada, nomeadamente, por países centrais do capitalismo e organismos internacionais, como é o caso do Banco Mundial e da Organização Mundial do Comércio (OMC), que estimulam reformas liberalizantes, convocando os países para a liberalização transnacional do setor de serviços com vistas, inclusive, à formação de um mercado global de educação (AZEVEDO, 2015)23.

Considerações finais

“[...] em virtude de certas teorias, boas ou más, todas as regras da saudável razão humana foram postas de parte” (H. Arendt. A Crise na Educação, 2005.)

A teoria do capital humano tem sustentado ideologicamente várias vertentes do individualismo e da flexibilidade no mundo do trabalho. O movimento de liberalização ortodoxa faz parte de um movimento de despolitização das relações sociais e de estabelecimento de mercados como instâncias mediadoras dessas mesmas relações, isto é, substituindo os instrumentos políticos da democracia moderna pelo mercado como arena de resolução de conflitos e provisionador de serviços públicos (mesmo aqueles considerados compulsórios).

Esse tipo de liberalização revigora teorias que têm o mercado como ótimo alocador de recursos e eficiente distensor dos conflitos políticos. O que, a exemplo da teoria do capital humano, enfraquece a defesa da educação como um direito humano e um bem público que deve ser provisionado diretamente pelo Estado. Milton Friedman, teórico da liberalização ortodoxa e defensor da teoria do capital humano, questiona a eficácia da democracia política na definição de questões que envolvam a democracia econômica, por isso propõe a mercadorização das demandas sociais em lugar da luta política. Afirma o economista,

(...) qualquer aumento do número de questões, para as quais é necessária uma concordância explícita, sobrecarrega demais os fios delicados que mantêm uma sociedade coesa. Se chegar a questões nas quais os homens estão profundamente envolvidos, mas de pontos de vista diferentes, pode ocorrer rompimento da sociedade. Diferenças fundamentais sobre valores básicos quase nunca, ou nunca mesmo, podem vir a ser resolvidos nas urnas; na verdade, só podem ser decididos, embora não resolvidas, por meio de um conflito. As guerras civis e religiosas da história constituem testemunhos sangrentos desse julgamento (FRIEDMAN, 1983, p. 30).

Frise-se que, para Friedman, a educação superior é meio de preparação vocacional e de aprimoramento profissional. A partir dessa perspectiva teórica, a educação é considerada como um investimento no próprio indivíduo. Para ilustrar estas considerações finais, vale ressaltar a asserção de Friedman:

(...) trata-se [a educação] de uma forma de investimento em capital humano precisamente análoga ao investimento em maquinaria, instalações ou outra forma qualquer de capital não humano. Sua função é aumentar a produtividade econômica do ser humano. Se ele se torna produtivo, será recompensado, numa sociedade de empresa livre, recebendo pagamento por seus serviços - mais alto do que receberia em outras circunstâncias. Essa diferença no retorno é o incentivo econômico para o investimento de capital - quer sob a forma de uma máquina quer em termos de ser humano (1983, p. 95).

Em síntese, este é o princípio basilar da teoria do capital humano, corrente organizada e sistematizada na Universidade de Chicago. Os teóricos a ela filiados tratam a educação como um investimento em capital humano, ou seja, o conhecimento assimilado e agregado ao ser humano tem o efeito de proporcionar rendimentos maiores a seu proprietário.

A educação não pode ser classificada como um mero investimento no indivíduo, pois não se trata de um simples instrumento econômico, pragmaticamente comprado e utilizado por indivíduos com vistas a obterem maiores ganhos, como desejam organizações internacionais, a exemplo do Banco Mundial, OMC e OCDE, e teóricos relacionados à economia neoclássica que têm a teoria do capital humano como referencial de análise e de políticas. A educação, por ser um direito humano e social, duramente conquistado pelos movimentos populares, deve ser considerada um bem público. Não é inútil salientar que para se alcançar o ideal de se prover educação de qualidade para todos, o Estado tem de destinar, em orçamento público, na forma de investimento e custeio, o montante necessário com vistas a prover um direito social inalienável e inegociável.

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1 A Conferência Regional de Educação Superior na América Latina e Caribe (CRES 2018) aconteceu dez anos depois da CRES 2008 e 22 anos após a CRES 1996 (o primeiro encontro regional de atores sociais relacionados com a Educação Superior). As três edições da CRES foram promovidas pelo Instituto Internacional da UNESCO para a Educação Superior na América Latina e no Caribe (IESALC-UNESCO) com variados apoios, inclusive de universidades e ministérios responsáveis por educação, ciência e tecnologia de países da região.

2No Brasil, a Educação Básica é obrigatória e gratuita dos 4 aos 17 anos (Lei nº 12.796, de 4 de abril de 2013 e Emenda Constitucional nº 59 em 2009).

3Purchasing power parities (PPPs) ou Paridades de poder de compra “são as taxas de conversão de moeda que igualam o poder de compra de diferentes moedas, eliminando as diferenças nos níveis de preços entre os países. Em sua forma mais simples, as PPPs mostram a proporção de preços em moedas nacionais do mesmo bem ou serviço em diferentes países” (OECD, 20 Fev 2019). Esta tradução como as demais neste artigo são de responsabilidade do autor.

4De maneira geral, especialmente entre os atores sociais progressistas, a educação tem sido historicamente considerada um bem público. Assim, tratar a educação como um “bem público global” (com vistas ao consentimento) poderia sensibilizar atores sociais que são críticos ao tratamento da educação como uma mercadoria, porém, na verdade, esta expressão é compatível, não com uma suposta solidariedade internacional pela educação, mas com a formação de um mercado global de educação.

5O Banco Interamericano de Desenvolvimento, em 2007, apresentou um programa de financiamento para a produção de bens públicos regionais. De acordo com este documento, “el BID es la primera institución multilateral en llevar la discusión global acerca de los ‘bienes públicos transnacionales' más allá de los conceptos teóricos, y en promover activamente, a través del apoyo financiero, el desarrollo de los bienes públicos regionales en América Latina y el Caribe” (BID, 2007, p. 2).

6Amado Luiz Cervo, professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), adverte: “desvendar as ciladas da teoria é tarefa tão relevante quanto apropriar-se de seu conhecimento (...). O realismo [em Relações Internacionais] propõe ao mundo interesses, valores e padrões de conduta do Ocidente” (2008, p. 10). Para maior precisão sobre o conceito de “Realismo”, sugere-se a leitura do artigo “Conceitos em Relações Internacionais” de Cervo (2008).

7Joseph Nye Jr é o criador dos conceitos de soft Power (poder suave), hard Power (poder duro) e smart Power (poder inteligente), este último (smart) é a combinação de soft e hard Power. Vale ressaltar aqui, citando Nye Jr., que “soft power de cooptação (poder de cooptação) é tão importante quanto o hard power (o poder de comando rígido). Se um estado pode fazer o seu poder parecer legítimo aos olhos dos outros, vai encontrar menos resistência à sua vontade. Se sua cultura e sua ideologia são atraentes, os outros vão segui-lo com mais disposição. Se pode estabelecer normas internacionais em conformidade com a sua sociedade, é menos provável que tenha de mudar. Se pode apoiar instituições que fazem com que outros estados queiram canalizar ou limitar suas actividades de acordo com as preferências do estado dominante, isto pode poupar os custos do exercício do poder coercitivo ou hard Power” (NYE, 1990, p. 167).

8Percepção válida, segundo Dias, pelo menos até o final da gestão de Federico Mayor como diretor geral da UNESCO (de 1987 a 1999). Em texto de 2007, Marco Antônio Dias observa que alguns setores da UNESCO têm aceitado o modelo anglo-saxônico de universidade e o ideário divulgado pela OCDE e Banco Mundial (2007, p. 14).

9A Declaração de Incheon “Educação 2030: Rumo a uma Educação de Qualidade Inclusiva e Equitativa e à Educação ao Longo da Vida para Todos”, publicada pela UNESCO em 2015, refirma que “a educação é um bem público, um direito humano fundamental e a base que garante a efetivação de outros direitos” (UNESCO, 2015, p. 1).

10A teoria do capital humano será objeto de análise à frente, porém, adiantando a argumentação, nota-se que os documentos publicados pelo Banco Mundial têm a teoria do capital humano como referencial de análise predominante.

11Não há razão para a existência de preconceito a respeito da expressão “gasto” em educação. A maior alocação de recursos para a educação inscreve-se na forma de gastos e custeios, que são as rubricas relativas ao pagamento de salários dos profissionais da educação e manutenção geral.

12“Since Dakar, two initiatives for increasing the participation of disadvantaged children have been expanded: abolition of school fees matched by compensatory payments to schools, and cash transfers to targeted households whose children enrol. Both aim to expand access, but can have significant implications for public expenditure.”

13“Não há que se esquecer de que tal definição foi feita no momento mais intensivo dos debates sobre as propostas levantadas na Organização Mundial do Comércio, as quais podem, segundo muitos, transformar a educação em simples mercadoria. Bem público global, no momento em que um pequeno grupo de instituições dominadas justamente por países industrializados e apoiado por departamentos do atual governo norte-americano e por instituições como a OCDE e o Banco Mundial, os quais tentam definir o que é qualidade com base na experiência de alguns poucos Estados-membros da OCDE, não é expressão de natureza a assegurar aos que pensam que educação é um direito que eles terão ganho de causa com o novo conceito. Bem público global pode, sim, significar a adoção de medidas neocolonialistas, inaceitáveis em pleno século XXI.” (DIAS, 2004, p. 910).

14No Brasil, Gaudêncio Frigotto, Claudio Salm e Wagner Rossi são pioneiros na crítica à teoria do capital humano (Ver Referências de suas obras).

15“As a result of the rapid educational expansion in the aftermath of the Second World War the proportion of 25-34 year-olds with upper secondary education or higher has almost doubled across OECD countries, from 43% in 1965 to 84% in 2015” (OECD, 2017, p. 1).

16“Deve-se estar atento às soluções sugeridas pelo Banco, pois apesar de muitas propostas coincidirem com o anseio do movimento de democratização da Educação Superior, muitas vezes, nessas recomendações, podem estar embutidos venenos que piorariam a situação do setor público. Em vez de solidariedade e estímulo ao bem comum e social, o Banco Mundial pode estar, como um ‘cavalo de Tróia’, sugerindo a inserção no campo universitário da maior dose de competição e de um processo de mercadorização mais intenso.” (AZEVEDO; CATANI, 2005, p. 90).

17A OCDE tem reforçado o uso do conceito da teoria do capital humano, como se nota no glossário da OCDE, disponível em meio eletrônico: “Human capital is productive wealth embodied in labour, skills and knowledge” (http://stats.oecd.org/glossary/detail.asp?ID=1264, 20 fev 2008).

18Deve-se considerar a educação como um bem público e um direito dos cidadãos em todos os níveis e etapas, pois não teria sentido a educação ser considerada bem público nos ensinos fundamental e médio (os anteriores primário e secundário) e ser considerada uma mercadoria na educação pós-secundária ou educação superior.

19Na realidade, o trabalhador possui a mercadoria força de trabalho que, mesmo sendo lapidada educacionalmente, não muda sua condição nas relações de trabalho. O proprietário dos meios de produção, este sim o capitalista, é um comprador e vendedor de mercadorias. Do trabalhador, o capitalista compra a força de trabalho que, em troca recebe equivalentes monetários para ir ao mercado adquirir os meios necessários para a manutenção e, na margem, realização de projetos individuais e familiares (produção e reprodução da vida social). O trabalhador pode alcançar melhores condições de remuneração e de trabalho de acordo com seu grau de organização e de poder de pressão de sua categoria profissional ou da própria classe trabalhadora como um todo. Em uma economia capitalista, a força de trabalho também está sujeita às leis de mercado. Segundo Marx, "a remuneração do trabalho subirá ou baixará de acordo com as relações entre oferta e procura, conforme o aspecto que tomar a concorrência entre compradores da força de trabalho - os capitalistas - e os vendedores da força de trabalho - os operários" (1985, p. 24).

20Sobre a economia baseada no (cercamento do) do conhecimento ou sobre os “enclosures” do conhecimento na contemporaneidade, mais detidamente pode ser consultado em Azevedo (2013).

21"[...] esta denominação [individualismo metodológico] foi utilizada explicitamente pela primeira vez no início dos anos 1940 por Friedrich Hayek e, posteriormente por Karl Popper, em artigos d'Economica" (LAURENT, 1994, p. 4-5). Segundo Jean-Yves Capul e Olivier Garnier, nas Ciências Sociais, o individualismo metodológico é um "princípio de explicação, válida para todo fenômeno social, que consiste em reconstruir as motivações de indivíduos tocados pelo fenômeno em questão e, posteriormente, em analisar o mesmo fenômeno como resultado dos comportamentos individuais determinados por estas motivações" (1996, p. 143).

22Marx e Engels, na obra A Ideologia Alemã, lembram que "até aqui, os homens têm sempre criado representações falsas sobre si próprios, e daquilo que são ou devem ser" (1984, p. 7). Explicam também que a ideologia é um fenômeno próprio do processo histórico: "se em toda a ideologia os homens e as suas relações aparecem de cabeça para baixo como numa Câmera obscura (negrito e itálico originais), é porque este fenômeno deriva do seu processo histórico de vida, da mesma maneira que a inversão dos objetos na retina deriva do seu processo diretamente físico de vida" (1984, p. 22).

23A OMC (Organização Mundial do Comércio), desde 1995, a partir do GATS (The General Agreement on Trade in Services - Acordo Geral de Comércio de Serviços), tem defendido que a educação e mais 11 diferentes setores sejam passíveis de liberalização no mundo do comércio internacional. O GATS classifica em quatro as formas de oferta de serviços em nível internacional. Nesse esquema, a educação, em seus vários níveis e modalidades (primária, secundária, superior, adultos, a distância, etc.) passaria a ser apenas mais um serviço a ser provisionado no mercado globalizado, de acordo com a seguinte classificação: (1) Cross-border supply (oferta transfronteiriça): mobilidade do programa/modalidade (educação a distância, educação on line, franquias de cursos); (2) consumption abroad (consumo no exterior): mobilidade estudantil (graduação no exterior, graduação-sanduíche, estágios, etc.); (3) commercial presence (presença comercial): mobilidade da instituição (campus filial e campus extensão); (4) presence of natural persons (presença pessoal direta do provedor): mobilidade científico-acadêmica (professores e pesquisadores que trabalham temporariamente no exterior).

Recebido: 25 de Julho de 2019; Aceito: 28 de Agosto de 2019

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