Uma das características inerentes da sociedade capitalista é a capacidade de mudança, de transformação, desde os primórdios da revolução industrial até os dias atuais o sistema capitalista consegue transfigurar-se, reinventar-se de forma constante e rápida conforme constatou o velho Marx (1998, p.734): “a velocidade das mudanças na composição orgânica do capital e na sua forma técnica e no número crescente de ramos de produção é assustador”. O pensador alemão observou as mudanças do seu tempo ao considerar o desenvolvimento industrial nos séculos XVIII e XIX “avançam com rapidez” (idem, p.732). Marx destaca essa característica como algo muito singular no capitalismo, sua capacidade de movimento, transformação, inovação, mudanças que dão sobrevida e novos contornos a esse modo de produção.
Outro aspecto de grande relevância dos primórdios da revolução industrial foi o povoamento das cidades. Hobsbawn (2013) destaca que em menos de um século, a população da cidade de Manchester cresceu de 17.000 mil para 180.000 habitantes, sem condições sanitárias adequadas, encoberta de fumaça e condições insalubres, tornou-se terreno fértil para diversas epidemias. Apenas após 1848, a cidade começa a adquirir equipamentos públicos e investimentos em saneamento a fim de dirimir os efeitos das epidemias.
O capitalismo tupiniquim, por assim dizer, não foge à regra e é permeado de mudanças e constantes transformações. Azevedo (1950) amparado em Durkheim, destaca o fenômeno da circulação como um dos pressupostos básicos ao processo de civilização humana. Em sua ótica, no Brasil, que guardava resquícios de uma sociedade colonial, foram as ferrovias que desenvolveram e ampliaram “a concentração da população [...] atraindo para os grandes centros a maior parte das indústrias, sobre aquelas que são especificamente urbanas” (AZEVEDO, 1950, p.20). Ainda segundo o autor, a ação das ferrovias e seu impacto é fundamental para compreensão do êxodo rural, que seria senão o principal, mas “certamente um dos principais fatores dos movimentos demográficos das cidades como do ritmo de acréscimo da população urbana” (idem).
Assim, o que pretendemos neste trabalho é analisar as formas de implementação capitalista no interior paulista, com especial destaque a educação na cidade de São Manuel, localizada na Cuesta de Botucatu, nos três primeiros decênios do século passado.
Tomaremos como referência a obra de Pierre Monbeig, Fazendeiros e Pioneiros de São Paulo, que analisa as mudanças ocorridas no interior paulista através da introdução do trabalho imigrante2, com o desbravamento das matas em busca da chamada terra roxa, a abertura de estradas de ferro, todo esse movimento possibilitou uma nova etapa na fase de desenvolvimento paulista. Porém, discutiremos esse processo descrito por Monbeig, à luz das reflexões de Florestan Fernandes, sob outro olhar, o sociólogo uspiano encara o mesmo fenômeno como um processo de revolução burguesa em curso e atrela a educação a esse fator, sem encará-la com a mesma pujança, demonstrada pelo desenvolvimento sócio-cultural do período.
Às análises das fontes da história da educação em São Manuel, dos jornais, almanaques e fotografias corroboram em boa medida com as teses de Florestan, demonstrando que a educação não conseguiu atender as exigências de uma sociedade em mudança, ficando presa a padrões estáticos de desenvolvimento.
Sociedade em movimento e povoamento do interior paulista
Monbeig (1984) procura demonstrar que o processo de povoamento do oeste paulista intensificado pela expansão cafeeira modificou as condições de desenvolvimento, a rapidez, o dinamismo com que se processou, modernizou a chamada zona pioneira de 70 anos em 5 anos. Essas condições foram alcançadas devido ao desbravamento dos imigrantes, que com o bandeirantismo desmatou florestas e criou núcleos de povoamento ainda inabitados.
Esses núcleos de povoamento foram possíveis devido à expansão do plantio café, como se sabe, essa expansão se deu com maior intensidade no vale do rio Paraíba do Sul, apesar de incerta e instável, rendeu-lhe a denominação de “franja pioneira”, caracterização que encaixa-se adequadamente na região da Cuesta de Botucatu.
O movimento de expansão dos cafezais rumo a região da Cuesta de Botucatu, ocorreu em função da crise econômica e da superprodução, que assolou a monocultura do café no início do século. Apesar do atraso, a expansão foi muito promissora com produção de 45 milhões de arrobas de café no seu início, aumentando rapidamente ao considerar o munícipio de São Manuel, crescimento de 151.000 para 1.592.105 de arrobas de café, sendo um dos rendimentos mais altos do Estado. (MONBEIG, 1984).
A terra roxa, fértil, que em outras regiões não tinha a mesma juventude das plantações da Cuesta, atrelada e as condições climáticas, garantiam uma melhor produção que outras regiões. Esse aspecto é fundamental para o desenvolvimento das estradas de ferro, que apesar de disputas políticas retardarem a chegada da ferrovia3, isso não demorou a acontecer. No ano de 1889 (Figura 1), a companhia Sorocabana de Estradas e Ferro chegaria a Botucatu e a companhia Ituana com a navegação instalaria uma pequena linha local até os cafezais de São Manuel, o que “durante muito tempo, essa combinação rio-trilho foi o único meio de atingir São Manuel, de onde ia-se a cavalo a Lençóis4” (MONBEIG, 1984, p.176).
A construção da estação de trem (Figura 1) deu grande impulso ao povoamento da cidade de São Manuel, “ao approximarem-se5 de São Manoel os comboios da Sorocabana, surge os olhos deslumbrados do forasteiro com a maravilhosa cidade” (CALDEIRA, 1928, p.18). Aqui é possível observar que o contingente de pessoas que vêm a cidade não é pequeno, ocasionando “metarmorphoses constantes e notabilíssimas” (idem, p.16).
As transformações são indubitáveis ao desenvolvimento da cidade, junto com a estrada de ferro e o povoamento, São Manuel começa a adquirir contornos de uma cidade moderna para o período, ali são construídas a primeira subdelegacia, o cemitério municipal, o paço municipal, instala-se cartório, os hotéis Paulista e Sandroni, além de armazéns, alfaiates, matadouro, mercado municipal e casa de câmbio. Em 1904, São Manuel, já contava com água encana e serviço de correio,6 surgem também profissionais liberais como advogados para oferecer seus serviços, toda essa gama de atividades considerando uma cidade com “19 ruas... 9 parallelas e 10 perpendiculares” (OLIVEIRA, 1904, s.n.). A transformação é notável ao analisarmos as fotos abaixo das principais ruas de São Manuel:
Na Figura 2 temos a Avenida Irmãs Cintra sem calçamento, poucas casas, há postes nas ruas, mas não há sinais de lâmpadas e iluminação pública, poucas pessoas circulando pela via e não há evidência de nenhum tipo comércio. Por sua vez, na Figura 3, passados sete anos, observamos a rua Floriano Peixoto, a paisagem parece modificar completamente e aparece uma cidade bem diferente da retratada na foto acima.
A primeira modificação observável é a rua com calçamento, iluminação pública, elementos fundamentais da urbanização da cidade. Essa transformação ocorre não só através dos equipamentos públicos, mas culturais, como o teatro municipal e fundamentalmente a atividade econômica com força nas lojas do comércio e no hotel Volpini. O povoamento é visível ao ver as pessoas transitando pela rua e a edificação das construções tem contornos em suas fachadas de alvenaria denotando o que Monbeig (1984, p. 361) chamou de “vizinhança da casa burguesa, de estilo moderno, ‘futurista’”.
Esse tom futurista, destacado por Monbeig, pode ser apreendido sob a ótica da influência francesa, que provocaram grandes transformações em diversas cidades brasileiras, inclusive na capital federal, “as mais importantes capitais estaduais e cidades portuárias, os centros urbanos do Oeste Paulista que concentraram e orientaram sua economia para a produção do café” (FOLLIS, 2004, p. 24). Por sua vez, esse projeto de urbanização adquire um sentindo de racionalização e higienização do espaço da cidade, que veio acompanhado do alargamento de ruas a fim de garantir espaços de circulação para as pessoas e evitar a transmissão de epidemias. O embelezamento da cidade, em especial, na cidade do Rio de Janeiro veio acompanhada da expulsão de setores boêmios do centro da cidade, processo idêntico que aconteceu na Europa para “evitar ou reprimir possíveis revoltas das classes pobres, identificadas como classes perigosas” (idem).
Em que pese as devidas diferenças, processo semelhante de modernização e urbanização ocorreu “nos centros urbanos do Oeste Paulista, beneficiados pela riqueza proveniente da cultura cafeeira e pela chegada da ferrovia” (idem, p.31)
Assim, começava-se o grande esforço da urbanização “as ruas começam a ser pavimentadas, orladas de passeios, providas de esgotos, melhora o serviço de eletricidade; arruma-se o jardim público” (MONBEIG, 1984, p.361). A seguir podemos ver evidências dessa premissa, a figura abaixo mostra a praça Prudente de Moraes de 1906, ali podemos observar a orla de passeio ao seu redor com bancos e casas na parte de cima da Figura 4.
A estação de trem possibilitou o processo de urbanização da cidade de São Manuel, ao seu entorno a cidade vai constituindo com uma estrutura sólida capaz de atender as necessidades de quem ali vivia. Isso permitiu a implantação de uma indústria incipiente, que em conjunto com as profissões liberais representavam a segunda parcela em arrecadação de impostos do município (CALDEIRA, 1928).
Devido ao aumento rápido da população, outras demandas começam a surgir e o tom de desenvolvimento meramente econômico ganha contornos sociais, culturais, políticos que dão o tom do processo de implementação capitalista no interior capitalista, onde o “habitat burguês e proletário são mal diferenciados e coexistem tanto nas ruas mercantis, quanto nas imediações da estação” (MONBEIG, 1984, p.361), transfigurando uma suposta democracia e diversidade vivida naquele instante. A escola emerge em meio a essas demandas da população e dentro do processo desenvolvimento de urbanização descrito acima. Todavia, a escola contribui como partícipe desse processo de modernização em São Manuel? Estaria ela atendendo aos anseios de uma sociedade em mudança? O que pretendemos nas seções posteriores é discorrer um pouco sobre as questões acima levantadas.
Escola, educação e padrões de sociabilidade em São Manuel
A primeira escola de São Manuel é o grupo escolar, “Dr. Augusto Reis”, fundado em 16 de fevereiro de 1900, até os anos 1930 era única escola de São Manuel. Apesar de encontrarmos registros nos anos 1920 de escolas isoladas em alguns distritos, com 20 a 50 alunos, pela análise das fontes7 essas escolas eram isoladas e funcionavam através da abnegação de um único professor de forma um tanto livre. Pois, não há registro nos jornais, almanaques de estruturas institucionais escolares, mormente há citação de professores que se empenhavam com o ato de ensinar.
Esse fato é importante, pois o grupo escolar “Dr. Augusto Reis” é uma das primeiras construções/edificações e nasce como fruto do processo de urbanização e modernização da cidade. Na Figura 5, podemos observar que a escola é construída ainda em meio a ruas sem calçamento e como o único prédio da quadra, o que nos leva entender que a escola era considerada um símbolo de grande relevância para a cidade.
Porém, apesar da importância atribuída à escola no início do século, nos parece que a educação não acompanhou o ritmo de desenvolvimento da cidade, ao analisar o número de construções escolares percebemos um enorme vácuo de tempo. A escola normal de São Manuel só foi inaugurada nos anos 1930, ficando mais de 30 anos sem a construção de alguma escola no munícipio, restringindo-se apenas a existência da Dr. Augusto Reis.
Todo esse período sem a construção de outra escola, isso, ainda, levando em consideração que um dos ideários republicanos era erradicar a ignorância pela difusão da instrução, que perpassava por uma crítica ao sistema político representado pela “farsa de um sistema representativo num pais de analfabetos” (MORAES, 2006, p.148). Ideário que não saiu do papel, ao menos, na cidade de São Manuel continuavam intactos.
Por sua vez, apesar de única durante mais de duas décadas, ela é referenciada nos jornais locais como símbolo de qualidade e orgulho da cidade. O jornal, O Movimento, notícia a existência de vagas abertas para o grupo escolar e exalta a qualidade do mesmo, que enviava “alumnos para as escholas complementares de Piracicaba e Itapetininga” (O MOVIMENTO, 1903, p.2). Após tecer comentários e fornecer informações sobre os horários de aulas, frequência, refeições e higiene, o jornal escreve sobre as finalidades dos grupos escolares: “acabar com creanças mal creadas” (O MOVIMENTO, 1903, p.2).
O periódico é bem descritivo quanto aos objetivos a serem alcançados pelo grupo escolar: “imaginae os grupos escholares conseguem o seu desinteratum: meninos calados, cabisbaixos, sisudos e com os olhos para o chão” e o tom de controle deve ser acompanhado de ‘nenhum choro, nenhum grito” (O MOVIMENTO, 1903, p.3). Mas adiante, o jornal trata com resignação essas finalidades descritas, afirmando que “lá no céo sim, que é bom, creanças aos milhares, pulando, gritando, brincando pedindo mammadeira, doces e bananas, teteias, polichenelos e bonecas!” (O MOVIMENTO, 1903, p.3).
O Movimento faz uma crítica ao modelo de educação dos grupos escolares, por assemelhar-se mais com uma instituição de correção, do que uma instituição educacional. A crítica do jornal vai ao encontro do que era considerada cultural infantil, de como ela era vista fora da escola e não absorvida pela mesma.
Continuando com sua crítica, o jornal retrata a figura do Diretor da escola comparado-o com o porteiro do céu, simbolicamente ilustra a figura do Diretor como carrasco, da escola como prisão e de outro lado, do porteiro do céu com a liberdade e a compreensão, caricaturando o Diretor como um indivíduo corretor “com uma régua preta na mão” exigindo crianças “limpas, de barrigas cheias, horas certas, corretas e com modos de gente grande” (O MOVIMENTO, 1903, p.3) e a figura do porteiro do céu completamente oposta, do benfeitor. Apesar de uma crítica um tanto maniqueísta, ela é salutar para perceber que o Movimento considerava a escola como um lugar perverso e extremamente controlador;
Pois, sim, vai-se ninando: os meus filhos irão ao Século XXI descalços, unhas grandes, atrasados, com fome e feios... E se quiserem assim. Não fui eu que inventei escholas, não, senhoras. Quem tiver obrigação que embale o Mateus. (O MOVIMENTO, 1903, p.3)
Mesmo com as críticas, o jornal não desconsidera a escola como elemento importante, questionava os valores nela sedimentados e o sentido controlador que procurava impregnar e transformar a criança em um adulto em miniatura.
Em uma revista denominada A Escola de 19038, destinado ao público infantil, mas com uma linguagem rebuscada e difícil compreensão para as crianças, observa-se outro conteúdo como: “a sciencia infantil é muito limitada quanto a complexidade dos phenômenos, mas é riquíssima quanto a observação dos factos” (A ESCOLA, 1903, p.1). A linguagem utilizada pela revista A Escola9, corrobora a crítica de o Município quanto a tentativa do grupo escolar transformar a criança em um adulto em miniatura e demonstra o quão distante a escola estava do público infantil ao adotar essa linguagem abstrata, verbalista, incompreensível aos olhos da cultura infantil.
A ideia da educação como forma de socialização metódica do indivíduo também se faz presente na revista, ao comentar os avanços da instrução pública em São Paulo, salienta que a escola aboliu os castigos físicos e agora o amor adentrava na escola, mas era necessário ir além do amor, do aprender a ler e escrever, era preciso desenvolver os “aspectos physicos, intellectual e moral” (A ESCOLA, 1903, p.1)
Para desenvolver esses aspectos, a instrução cívica destinava-se a formar o cidadão “dando-lhes regras de conducta, firmes e seguras para se dirigir na vida pública”. (idem). A civilidade é outro elemento marcante na revista, entendida como regras de conduta social, capaz de estabelecer laços de sociabilidade, respeito, subserviência e ordenamento social,
a civilidade produz a boa intelligência em particular, a paz e a ordem em geral, porque ela tira sua origem num sentimento dum coração bem formado, dentre os quaes podemos lembrar o respeito aos superiores, a benevolência com os iguaes e a indulgencia para com os inferiores (A ESCOLA, 1904, p.6)
A ideia de uma educação voltada para a regulação social é nítida, a grande preocupação da escola é orientar o indivíduo, socializar, integrar esse indivíduo ao seio da sociedade, sem ter uma noção de qual sociedade ou estrato social esse indivíduo será inserido. Em outro jornal dos anos 1930, O Normalista, esse discurso de finalidades educacionais se mantêm, apesar de criticar e tentar mostrar o seu caráter de diálogo com as tendências modernas em educação, adere a mesma prerrogativa da educação como um instrumento de adaptação ao meio social,
com dialecta abstrusa, com seu espiritualismo retrógado, a férula dos idos tempos que nada de útil realizava a escola. Ainda bem que os pedagogos de agora, depois de muito perlustrarem pratica e theoricamente os problemas do ensino inferiram a finalidade ideologica da escola, de contínuo aperpheiçoamento do sêr, de adaptação, constante e progressiva ao meio social (O NORMALISTA, 1936, p.1)
Apesar desse suposto diálogo com as tendências modernas em educação, o Normalista também salienta uma adaptação os ditames sociais. Outro aspecto relevante dessa premissa é a introdução das aulas de educação física na escola (Figura 6).
Vale destacar, que os exercícios de educação física fora introduzida através da Reforma Francisco Campos em 1931, como obrigatório todos os dias e duração de 30 a 45 minutos, pois tratava-se de um projeto político mais amplo e intervencionista do governo Vargas e passava pelo apoio dos militares10 que tinham o intuito do disciplinamento e segurança nacional (HORTA, 1994).
Dessa forma, pudemos analisar que mediante as finalidades, os objetivos educacionais da escola em São Manuel apresentavam um cunho normalizador, com sentidos socializantes de integrar o indivíduo a sociedade, de moralizar a criança. Cremos que esses aspectos educativos prescritos durante os 3 primeiros decênios do século do passado em São Manuel dão mostras de que a educação passou por poucas mudanças e teve um diálogo restrito ou inexistente com a cultura moderna, ou a própria cidade moderna que florescia no período.
Educação, modernidade e revolução burguesa no interior paulista.
Cecília Hanna Mate ao discutir a modernidade na educação aponta alguns projetos que foram essenciais nos anos 1920, projetos estes, que tiveram figuras marcantes como Fernando de Azevedo e Lourenço Filho e buscavam um diálogo de reeducação com a sociedade, dos quais a “técnica e a ciência foram ingredientes constitutivos” (MATE, 2002, p. 17).
O que percebemos nas análises das fontes em São Manuel é ausência de qualquer discurso científico ou de métodos de ensino utilizados na escola, que forneceriam os instrumentos para a aquisição do conhecimento. O discurso reinante nas fontes é doutrinador e moralizador, com um único intuito: adaptar o indivíduo ao meio social.
Esse viés moralizador pode ser entendido à luz de preocupações do período, a solução para os problemas sociais viria de um novo reordenamento social, da modificação de hábitos e costumes “na maioria dos projetos que ganham alcance neste momento, o propósito explícito de higienizar, civilizar, modernizar, enfim, preparar camadas da população para novos hábitos de vida e trabalho” (MATE, 2002, p.36). Além desse componente, as reformas educacionais de 1890 e 1898, com grande influência positivista e conteúdo doutrinador, podem ter de algum modo influenciado o princípio norteador observados nas fontes, devido ao seu caráter de introdução de um intelectualismo irrealista11.
Assim, partindo da noção de modernidade sob a ótica de Mate (2002, p.24) “diríamos que as definições de modernização da escola feitas naquele período, como a introdução de técnicas e técnicos especializados em aspectos determinados da aprendizagem/escolaridade”, não foram feitas, pensadas ou discutidas em São Manuel. A racionalização do tempo dentro da instituição escolar pensada por alguns renovadores como sentido de modernidade escolar, deve analisada apenas como uma mera forma de organização burocrática e de resultados gradativos de disciplinarização dos corpos.
Por sua vez, o elemento de modernidade presente em setores da intelectualidade estava na necessidade de ir ao povo, transformar, reformar a sociedade via a educação, “a obra de modernização não resulta do dinamismo e do empreendimento da sociedade civil, mas tem no Estado o projeto da modernidade associado ao ideal de construção da nação” (LAHUERTA, 1997, p. 104). Sob a influência do estado é que se inicia nos anos 1920, inúmeras reformas educacionais, com uma agenda de remodelação da sociedade via educação. Para a intelectualidade em gestação; estruturar e organizar o espaço cultural significava criar instituições modernas, abertas a pesquisa e ao espírito de renovação canalizado na seguinte frase: “a reforma da sociedade será captada pela ótica da reforma da educação e do ensino” (MARTINS, 1987, p. 87)
Essa modernidade iria além de padrões, hábitos e costumes, passava por remodelamento da sociedade na qual primava os intelectuais. A ideia de ir ao povo, da unificação cultural fazia parte de um conjunto amplo conjunto de proposições, ao qual, os renovadores foram precursores, ideais como coeducação, laicidade, gratuidade no ensino, descentralização dos sistemas de ensino, ensino democrático faziam parte de uma agenda moderna, que pressupunha modificar as entranhas de uma sociedade arcaica, coronelista baseada no voto de cabresto.
Por isso, consideramos restritos os elementos de modernidade na educação em São Manuel, o que temos em São Manuel é ausência de uma ampliação do sistema de ensino, com métodos autoritários e centrado em valores morais. Por sua vez, podemos entender o fenômeno dentro do processo de acumulação do capital, Tidei de Lima (1978, p.52) destaca que a implantação de trilhos e as construções das estações de trem abrem espaço para inúmeros empreendimento, dando início “às múltiplas perspectivas para que se abrem para a acumulação capitalista”. A tese apontada por Tidei de Lima centra-se no massacre indígena e na comercialização de terras, como início do processo de acumulação do capital.
De todo modo, creio que a própria construção das estradas de ferros e a diversificação de serviços, casas de câmbio, comércio, hotéis, foram responsáveis para a implementação do processo de acumulação do capital e não apenas a comercialização de terras. Florestan Fernandes, por sua vez, conceitua o tema da modernidade no Brasil dentro de um quadro mais amplo da sociedade de classes, da revolução burguesa e do desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Assim, nessa conceituação, a revolução burguesa seria um conjunto de transformações tecnológicas, científicas, econômicas, políticas e educacionais, envolvendo processos psicossociais, sóciodinâmicos e socioculturais de uma sociedade, no Brasil isso se processou entre o final do século XIX e até o período militar (1964-1985), ocorrendo de modo dissociado entre dominação burguesa e processo democrático “resultante da forma típica de acumulação de capital nos quadros do capitalismo periférico e dependente” (RODRIGUES, 2010, p. 80-grifos do autor).
Nesse contexto, a burguesia brasileira converge para o Estado no plano de uma unificação política, mas não assume um papel histórico de liderança no processo modernizador da sociedade como um todo, pelo contrário, utiliza-se do dilema de país dependente para mobilizar “vantagens que decorriam tanto do ‘atraso’ quanto do ‘adiantamento’ das populações” (FERNANDES, 2006, p.241-2). A formação da sociedade brasileira assume uma coexistência de formas específica: de uma pequena minoria dos incorporados a uma ordem civil e, outra, de grande parte da população que ficava alijada dessa inclusão criando assim duas nações:
Portanto, estamos diante de uma burguesia dotada de moderado espírito modernizador e que, além do mais, tendia a circunscrever a modernização ao âmbito empresarial e às condições imediatas da atividade econômica ou do crescimento econômico. Saía desses limites, mas como meio - não como um fim - para demonstrar sua civilidade. (FERNANDES, 2006, p.242)
Esse processo desarticulado garante a acumulação de capital, conciliando formas antigas e modernas na sociedade, pois é dessa ambiguidade que se dá o processo de acumulação que financia a burguesia e seu processo de modernização da sociedade, priorizando determinado setores como a indústria, a tecnologia, que possibilitaram manter seu padrão de acumulação. Esse modelo de desenvolvimento fez coexistir dois modos distintos de vida social, o arcaico e o moderno, mas com privilégio, sem universalizar a igualdade, “segregando os tempos da modernidade social, econômica e política, privatizando o poder político” (RODRIGUES, 2010, p.80).
Neste contexto, Florestan aponta para uma revolução burguesa em curso, onde o desenvolvimento autocrático propiciou um modelo de modernização que marcaram as formas de dominação do desenvolvimento capitalista. Por sua vez, a educação como elemento desse processo, não acompanhou os avanços obtidos com o regime republicano e manteve-se em uma estrutura obsoleta incapaz de atender as necessidades de uma sociedade em mudança. Para ele, o dilema educacional brasileiro consistia na seguinte:
Como herança do antigo sistema escravocrata e senhoril, recebemos uma situação dependente inalterável na economia mundial, instituições políticas fundadas na dominação patrimonialista e concepções de liderança que convertiam a educação sistemática em símbolo social dos privilégios e do poder dos membros das camadas dominantes (FERNANDES, 1959, p.54)
Essa herança da educação, enquanto privilégio e status social, dificultou um avanço da escola enquanto função equalizadora e de capacidade de estabelecer padrões mínimos de socialização. Além disso, ocasionou um dos problemas mais graves na formação dos professores: “a preparação científica dos educadores se ressente de caráter predominantes ‘informativo’ e livresco. Em regra, falta-lhes domínio autêntico do ponto de vista científico” (FERNANDES, 1959, p.35). Esses fatores podem ser facilmente detectados pelas fontes e nos jornais analisado, onde não há preocupação visível com método científico e ou conteúdo pedagógico, mas com prevalência na autoridade e na capacidade disciplinar da educação.
Diante disso, uma das soluções apontadas pelo autor é “adaptar a educação aos recursos fornecidos pela ciência e às exigências da civilização científica representa a tarefa de maior urgência e gravidade” (idem), ou seja, colocar a educação na rota da modernidade seria introduzir a ciência no sistema educacional e adaptá-la aos padrões civilizatórios em questão.
Considerações finais
A partir das discussões elencada no texto, buscamos entender a ideia de modernidade no interior paulista, olhando para a obra de Monbeig (1984), que denomina esse processo de povoamento do Oeste paulista de expansão da civilização capitalista, Florestan, por sua vez, fala em um processo de revolução burguesa em curso. Ambos os conceitos estão observando o mesmo objeto com determinados olhares, mas que nos fez refletir e entendê-los a luz do desenvolvimento capitalista nos anos 1920, não como excludentes e sim complementares de ângulos distintos.
Evidentemente, que este olhar foca-se nas fontes, nas quais indicam que a cidade de São Manuel passou por um processo de modernização e ao mesmo de implementação do capitalismo, gerando uma gama de serviços essenciais que podemos considerar como um processo de revolução burguesa em curso, de modernização e urbanização da cidade, fazendo parte de garantias civis e sociais possibilitadas pelo desenvolvimento autocrático do capitalismo no Brasil, que pouco acrescentou em termos educacionais, ou seja, o espírito modernizador teve como ponto fundamental a logística para a produção e escoamento da produção do café e consequentemente, aumento de sua produção. No que concerne ao espírito mais amplo de modernização, de uma revolução nos moldes clássicos, conforme conceituado por Florestan Fernandes, isso não se processou de fato.
As fontes analisadas dão pistas significativas que a educação não acompanhou o ritmo impresso pela sociedade, depois da inauguração da escola “Dr. Augusto Reis” passaram mais de 30 anos sem a construção de uma nova escola, apenas escolas isoladas sem prerrogativas institucionais, funcionando através da abnegação de professores faziam parte do aparelho educativo, sem contar que a grade parte da população habitava no mundo rural e a escola em tela foi construída no perímetro urbano, fatos esses, que coaduna com as teses de Florestan de um modelo de desenvolvimento autocrático, que privilegiou os lucros do café em detrimento da educação popular.
Outro fator analisado é referente às finalidades escolares, o papel do grupo escolar como elemento de socialização metódica do indivíduo é patente nas fontes. Essa característica não é proeminente para considerar a educação do município de São Manuel na rota da modernidade, pois fatores como inovação, ciência que eram características inerentes à modernidade no período não estavam presentes nas fontes avaliadas. Entendemos, assim, que enquanto a sociedade passou por um processo de modernização, a educação ficou estática, preso a um modelo de educação anterior tanto em métodos escolares pouco exposto nas fontes como em número de escolas construídas.