Introdução
O estudo da trajetória e das ideias de Alceu Amoroso Lima (1893-1983) tem suscitado o interesse de pesquisadores, especialmente nos campos da educação e da história. Evidências disso são as pesquisas de Rodrigues (2006), Arduini (2015), Skalinski Junior (2014) e Carneiro Junior (2011), dedicadas exclusivamente à trajetória intelectual de Amoroso Lima. Com uma obra volumosa, que vai desde a crítica literária até os ensaios de filosofia e de economia, o legado do intelectual permite muitos enfoques. No presente trabalho analisamos as ideias políticas de Amoroso Lima, desde a sua conversão ao catolicismo, em 1928, até o início de sua interpretação e apropriação (CHARTIER, 1990 e 2002) do pensamento de Jacques Maritain (1882-1973), no ano de 1938.2
Do ponto de vista metodológico, o estudo analisará a trajetória e as ideias políticas do intelectual dentro de um contexto histórico específico. Assim, utilizará das contribuições da história intelectual, tal como foi apresentada por Vieira (2008), Silva (2002), Sirinelli (2010) e Dosse (2004 e 2009). Na análise da trajetória (LEVI, 1996 e 2000), (GINSBURG, 1987), (ELIAS, 1994), recorrerá a Bourdieu, no texto sobre “a ilusão biográfica”, publicado na obra “Razões práticas”, entre outras reflexões (2013 e 2011) e também a Gramsci (2007), no que tange ao tema da Ação Católica. Na investigação das ideias políticas (RÉMOND, 2010), (KOSELLECK, 2006) se estabelecerá um diálogo com a historiografia da educação (SAVIANI, 2013) e (CURY, 1984 e 2001), a fim de permitir a melhor caracterização do contexto histórico no qual se inseriu Amoroso Lima. A análise da trajetória de Amoroso Lima foi suscitada com base numa pesquisa de doutorado, com o intuito de compreender melhor a organização da intelectualidade católica no Brasil, especialmente na década de 1930.
As fontes históricas que fundamentam o estudo são as seguintes obras de Amoroso Lima: Adeus à Disponibilidade: carta a Sérgio Buarque de Holanda (1928); Tentativa de Itinerário (1929); Debates Pedagógicos (1931); Política (1932); Os Postulados Católicos ou Reivindicações Católicas (1934); O Sentido da Nossa Vitória (1934) e Indicações Políticas: da Revolução à Constituição (1936).3 Exceto a carta destinada a Sérgio Buarque de Holanda, as demais produções são coletâneas de artigos e reflexões difundidas pelo intelectual através da imprensa (revistas e jornais) e em suas conferências pelo Brasil.
A hipótese que orienta o trabalho é a de que o processo de conversão de Amoroso Lima ao catolicismo marcou uma nova tomada de posição, no sentido indicado por Bourdieu (2013 e 2015), em sua trajetória intelectual. Essa mudança de posicionamento político e ideológico correspondeu à assimilação das ideias hegemônicas no catolicismo brasileiro da época. Desse modo, optamos por compreender suas ideias políticas em um primeiro momento vinculadas ao ideário católico contrarrevolucionário representado por Jackson de Figueiredo (1891-1928) e, posteriormente, ligadas a uma mudança de posições integristas (ANTOINE, 1980) rumo à democracia cristã de Jacques Maritain, representada pelo catolicismo liberal (AZZI, 1991) e (MARTINA, 2005).
A conversão e o início da militância católica
Esse período da trajetória de Amoroso Lima é marcado pela influência de Jackson de Figueiredo,4 que teve grande importância no seu processo de conversão ao catolicismo (SAVIANI, 2013, p.256). Essa conversão foi precedida de um intenso diálogo epistolar entre os dois personagens, o qual tem início em 1919 e estende-se até 1928, sendo interrompido por força do trágico falecimento de Jackson de Figueiredo.
Antes de prosseguir, é oportuno sublinhar, em observância à advertência de Dosse (2004, p.287) - para quem na história intelectual deve-se ter cuidado no uso de certas “palavras mágicas”, tais como “influência e crise” - que, ao defender a influência de Jackson de Figueiredo sobre a conversão de Alceu Amoroso Lima, não estamos insistindo em um determinismo mecanicista. Mas estabelecemos relações, como sugere Bourdieu, na forma de um pensamento relacional, isto é, a trajetória está inserida numa complexa trama de relações sociais e intelectuais.
A respeito da formação de Amoroso Lima, Rodrigues (2013, p.66) apresentou alguns dados que devem ser levados em consideração. Alceu Amoroso Lima nasceu no Rio de Janeiro em 11 de Janeiro de 1893 e morreu em Petrópolis em 14 de agosto de 1983. Era filho de Manuel José Amoroso Lima e Camila da Silva Amoroso Lima, membro de uma família rica que tinha negócios no ramo da indústria têxtil. Entre os anos de 1900 a 1912, Alceu Amoroso Lima viajou três vezes pela Europa. Sendo que a primeira viagem foi realizada quando ele contava apenas sete anos de idade. Em 1909 iniciou os estudos de ciências jurídicas, concluídos em 1913. Após o término dos estudos foi para Paris, onde participou de um curso com o filósofo francês Henri Bergson. Em 1917 iniciou o trabalho no Itamarati, órgão da chancelaria do Ministério das Relações Exteriores. No ano seguinte, 1918, casou-se com Maria Teresa de Faria, em Petrópolis. No ano de 1919, Amoroso Lima criou o pseudônimo de Tristão de Athayde, que apareceu pela primeira vez a 17 de junho em O Jornal. Ainda nesse mesmo ano, começou seu diálogo epistolar com Jackson de Figueiredo. Essas informações permitem-nos contextualizar o processo que culminará na conversão de Amoroso Lima ao catolicismo.
Outros aspectos da trajetória de formação de Amoroso Lima (1973a) merecem ser ressaltados, como suas experiências educativas com João Kopke (1852-1926), Fausto Barreto (1852-1908) e Silvio Romero (1851-1914). Afirmou: “Costumo dar ênfase muito especial a João Kopke, na infância, e a Silvio Romero na primeira mocidade” (p.37). De acordo com sua opinião, “ambos foram para mim muito mais que professores” (p.37). Além disso, Amoroso Lima foi aluno do Ginásio Nacional, “hoje de novo Pedro II” (p.38). Sua experiência no antigo Ginásio Nacional, o tradicional e aristocrático Colégio Pedro II, foi marcante. Descreveu o rigoroso exame de admissão: “tive que me preparar para ingressar no Ginásio Nacional” (p.39). A consideração dos educadores que teve e da escola que frequentou permite sustentar que Amoroso Lima era um membro da elite carioca, tal condição viabilizou-lhe o acesso a uma educação privilegiada.
Amoroso Lima foi educado por professores particulares e estudou em renomadas instituições públicas de ensino: o Ginásio Nacional (Colégio Pedro II) e a Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro. A legislação educacional do período era inspirada na Constituição de 1891, que defendia o laicismo da República. Segundo Cury (2001), a separação entre a Igreja e o Estado ocorreu por meio do Decreto 119-A de 07/01/1890. Esse texto legislativo teve decorrências na primeira Constituição da República, especialmente no seu artigo 11, por meio do qual, “o Brasil tornava-se jurídica e politicamente um país laico” (p.223). Com a Carta Magna de 1891, estabeleceu-se no país a liberdade de culto e o catolicismo deixou de ser a religião oficial do Estado. A promulgação da Constituição teve consequências práticas na vida da Igreja, tais como: “o fim da provisão de recursos do Estado para o clero (regime do padroado); a proibição do voto aos religiosos, monges, padres e demais clérigos; ficava assegurada a liberdade de credo; somente o casamento civil seria reconhecido pelo Estado; e os cemitérios passariam a ter caráter secular” (p.224-225). Mas foi o artigo 72, parágrafo 6, do texto constitucional que teve mais consequências para o campo da educação: “Será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos”. Rui Barbosa (1849-1923) desempenhou um papel fundamental no processo de separação jurídica e política da Igreja e do Estado. Da mesma forma, influenciou na Constituição e a educação desenvolvida nas instituições públicas passou a ser leiga. O ensino superior nas primeiras décadas republicanas era praticamente um monopólio do Estado. Apesar de conter um laicismo veemente, Amoroso Lima considerou a Constituição de 1891, “a carta de alforria da Igreja” (LIMA, 2001, p. 125). Ele assinalava vantagens para a Igreja com o fim do regalismo, como a maior liberdade para as atividades eclesiais. Aliás, esse é um debate importante no interior da Igreja no século XIX, as lutas, embates e tensões entre regalistas e ultramontanistas.
Com a derrocada da Primeira República, houve um novo arranjo de poder depois da Revolução de 1930 e também uma reaproximação entre a Igreja e o Estado. A intenção dos líderes católicos era “recristianizar a sociedade e a própria instituição do Estado”, para o que faziam uso da educação como forma de “ressocialização das elites dirigentes segundo os princípios cristãos”. Foi um período marcado por um “confronto entre as diversas filosofias pedagógicas” (SALEM, 1982, p. 99), confronto que fomentou intenso debate político e ideológico entre pensadores católicos e liberais ou laicos (CUNHA, 2011) e (CURY, 1984).
Para Scott Mainwaring (2004, p.47), a Igreja protagonizou uma reaproximação com o Estado ainda durante a República Velha, mais precisamente, nos governos de Epitácio Pessoa (1918-1922) e de Arthur Bernardes (1922-1926),5 presidentes apoiados por líderes eclesiásticos. Mas foi no governo de Getúlio Vargas que aconteceu uma “proximidade excepcional”.
O marco do “renascimento católico” no Brasil “se formalizou com a criação da Revista A Ordem (1921) e do Centro Dom Vital (1922)” (SALEM, 1982, p. 101). Fomentar a “cooptação dos intelectuais” era o cerne do projeto eclesial capitaneado pelo cardeal Leme. Esta seria a estratégia para a “irradiação da ampla obra de apostolado”. Há que se ter em conta que a Igreja procurava “combater as bases agnósticas e laicistas do regime [republicano], disseminando a doutrina cristã pela sociedade e suas instituições”. Era a tentativa de uma “reconquista da inteligência brasileira” para a Igreja. A universidade católica visava “o recrutamento e socialização de elites que, orientadas segundo princípios cristãos, se capacitariam para promover a unificação moral do país” (p. 103). Na visão dos católicos, “a universidade - enquanto locus especializado de geração e socialização das camadas dirigentes - tinha de ser católica” (p. 133). Segundo Salem, esse movimento de organização do laicato católico militante contou com a “tríplice liderança de Dom Leme, Alceu e Franca”, isso em “concordância com os desígnios da Santa Sé” (p. 109). O Rio de Janeiro constituiu-se o núcleo da renovação do catolicismo brasileiro representado nos ideais da neocristandade.
A estratégia da Igreja concentrava-se em dois pontos fundamentais: as massas e as elites. Ou, em outros termos, a sociedade e os intelectuais. Era preciso cristianizar os intelectuais, por isso, o trabalho de “conversão” deveria ser realizado. Dentro desse contexto, é que podemos situar a conversão de Alceu Amoroso Lima. Como um evento religioso, mas principalmente como nova forma de sociabilidade e consagração (BOURDIEU, 2015) e (PEREIRA, 2012). Compreendendo os rituais religiosos como formas de estratificação social (DURKHEIM, 2009) e (WEBER, 2012).
Amoroso Lima (2003, p. 650) converteu-se oficialmente ao catolicismo no dia 15 de agosto de 1928, contando 33 anos de idade, “quando recebe a Eucaristia das mãos do padre Leonel Franca (1893-1948), na igreja de Santo Inácio, no Rio - no que chamou de sua ‘segunda Primeira Comunhão’”. Um relato da sua conversão encontra-se no texto Adeus à Disponibilidade: carta a Sérgio Buarque de Holanda (1928). Nesse mesmo ano, meses depois, “com a morte de Jackson de Figueiredo, ocorrida no dia 4 de novembro, assume a presidência do Centro Dom Vital e a direção de A Ordem, revista da instituição”. Guilherme Arduini (2015, p. 22) sustentou que Figueiredo “travava uma luta intelectual para ‘reconverter’ Amoroso Lima”. Tratava-se, de fato, de uma reconversão, pois, para o pesquisador: “Amoroso Lima havia recebido a catequese durante sua infância, mas logo em seguida abandonado a fé por desinteresse”.
A conversão de Amoroso Lima foi decorrência de múltiplos esforços de personalidades importantes do catolicismo da década de 1920, principalmente de Jackson de Figueiredo, do padre Leonel Franca e o do cardeal Dom Sebastião Leme, arcebispo do Rio de Janeiro à época. Participaram do processo de conversão de Amoroso Lima os personagens que, ao lado dele, integrariam nos anos seguintes aquilo que Saviani (2013, p. 265) nomeou de “trindade católica”. Na sua interpretação da história da educação brasileira na década de 1930, Saviani identifica dois grupos em contraste: de um lado, uma “trindade governamental”, formada por Getúlio Vargas, Francisco Campos e Gustavo Capanema e, do outro lado, uma “trindade católica”, integrada pelo cardeal Leme, o padre Leonel Franca e Alceu Amoroso Lima. Ambas as tríades miravam diretamente nos assuntos relacionados à educação. Nesse embate ideológico e político no campo educacional do período atuaram diretamente três personagens principais: Lourenço Filho, Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira. Nas palavras de Saviani (2013, p. 218), eles formavam a “trindade cardinalícia do movimento da Escola Nova”.
Amoroso Lima (2001) considerou a importância das palestras do padre jesuíta Leonel Franca, realizadas nos anos de 1928 e 1929, no Centro Dom Vital, no Rio de Janeiro. Posteriormente reunidas em uma publicação intitulada de Psicologia da Fé (1934), as palestras giravam em torno da “psicologia da conversão”.6 A conversão dos intelectuais, dos livres pensadores e dos homens de letras era incentivada pelo mentor do grupo do laicato católico. Assim, é possível compreender o processo de adesão de personagens esclarecidos ao catolicismo.
Aos olhos de Amoroso Lima (2001, p. 116), as conferências do padre Leonel Franca, S.J. versavam precipuamente sobre três temas: “o divórcio”, “a psicologia da fé” e “a vida sobrenatural”. O público das conferências foi descrito nesses termos: “Outra iniciativa do Centro Dom Vital, por essa época, foi as conferências mensais do Pe. Leonel Franca, S.J., no Santo Inácio. A grande sala ficava cheia, desde um ex-presidente da República, Epitácio Pessoa, até os poetas recém-convertidos, como Murilo Mendes ou esse estranho Rimbaud brasileiro, Ismael Nery”. Salientou que “a sua precária saúde [do padre Franca] e a preocupação da universidade [PUC-Rio], em via de fundação, não permitiam o seu comparecimento frequente à nossa Praça 15”. Amoroso Lima ainda destacou que o Centro Dom Vital destinava-se ao “apostolado intelectual”.
Ao se referir à sua própria conversão, Alceu Amoroso Lima (1973a) declarou: “a conversão de 1928 foi uma conversão a Deus, a passagem do diletantismo, do descompromisso, para os problemas transcendentes, isto é, das origens e dos fins da vida e do ser humano” (p. 234). O líder da Ação Católica no Brasil pertenceu à geração de uma “mocidade precocemente envelhecida” e tinha alguns companheiros da “sagacidade prematura de existir”, e todos estavam, no seu dizer, “como em um fim de picada ou em um beco sem saída”. Essa geração era marcada pelo “sibaritismo” e pelo “diletantismo”. Amoroso Lima nomeou sua geração como uma “geração perdida” ou “pelo menos desperdiçada”. Afirmou ter se convertido da “excessiva vagabundagem de espírito” e do “desencanto pela vida” (LIMA, 1973b, p. 824). Nas palavras do padre Leonel Franca (1934, p.298), a conversão consistia em escolher como filosofia de vida a “alegria cristã”.
A contrarrevolução e a neocristandade
Precisamos pontuar os vínculos de Amoroso Lima com o ideário contrarrevolucionário representado por Jackson de Figueiredo. Para Barros (1986), a partir do final do século XIX, no Brasil, surgiu a chamada “mentalidade católico-convervadora” (p.25). Esse projeto católico tinha por objetivo combater o regalismo (a Igreja submetida ao imperador) e defender o ultramontanismo (a Igreja submetida ao papa). Ainda, buscava rejeitar o liberalismo, o protestantismo e “catolizar o Brasil” (p.28). O exemplo mais característico desse embate entre as diferentes tendências do catolicismo foi a “Questão Religiosa”, que ocorreu de 1872 a 1875. Nesse período houve uma grande tensão entre a Igreja Católica e a Maçonaria. A militância dos bispos ultramontanos, entre os quais se destacavam Dom Antônio de Macedo Costa (1830-1891) e Dom Vital de Oliveira (1844-1875), foi decisiva para reformar o catolicismo brasileiro da época segundo as diretivas emanadas de Roma, sob o pontificado de Pio IX. De acordo com Barros (1986), é nesse período surgirá a “reação católico-conservadora contra as idéias liberais e cientificistas” e a “organização do laicato católico, frequentemente mais ortodoxo, mais ultramontano do que o clero”. Entre os leigos se destacavam os deputados “Leandro Bezerra e Tarquínio de Souza” e os senadores “Cândido Mendes de Almeida, Zacarias, Figueira de Mello, Rodrigues Silva, Francisco de Paula Silveira Lobo, etc”, todos eram “paladinos do Syllabus (1864)” e faziam apologia dos “ideais ultramontanos” (p.33). Desse modo, há uma incidência da mentalidade “católico-conservadora” sobre a trajetória de Alceu Amoroso Lima.
Villaça (2006) também entendeu que a “reação católica” começou, de fato, com a “Questão Religiosa”, em 1873. Destacou a importância de Tobias Barreto (1839-1889), da “influência germânica na cultura brasileira” e da Escola do Recife, sede do pensamento espiritualista que se radicalizou no Brasil, na década de 1870-80. A figura do bispo Dom Vital de Oliveira “é a primeira afirmação antipombalina - católica - da história espiritual do Brasil” (p. 10). O pensamento católico dessa época era marcado pelo “tradicionalismo ou um certo reacionarismo”. Seus representantes mais autorizados eram Carlos de Laet (1847-1927) e Eduardo Prado (1860-1901). Certa “renovação católica” começou a se esboçar com “os três primeiros convertidos da nossa história cultural - Júlio Maria, em 1880, Nabuco, em 1892, e Felício dos Santos, em 1897”. Mas foi Júlio Maria o personagem de maior militância e abertura (“quase liberal”), a despeito de se manter um “vigorosíssimo antipositivista e um apologeta” (p.11). Foi Júlio Maria (1850-1916) que se destacou entre os escritores e literatos convertidos ao catolicismo, por não ser tão afeito à ordem monárquica, como Prado, Laet e Nabuco. No ocaso do império, ele defendeu a separação entre “o Altar e o Trono” (p.12). Dessa forma, começou a surgir no Brasil um laicato católico organizado e militante.
Para Villaça (2006, p.12-13), Jackson de Figueiredo veio ocupar a lacuna deixada por Carlos de Laet entre os pensadores católicos, no contexto do século XX. A sociabilidade de Figueiredo continha alguns nomes importantes, tais como: Tristão de Athayde (Alceu Amoroso Lima), Lourival Fontes, Sobral Pinto, Hamilton Nogueira, Durval de Morais, Francisco Karam, Barreto Filho, Augusto Frederico Schmidt, Afonso Pena Júnior e Leonel Franca. O fundador do Centro Dom Vital e da revista A Ordem foi um “homem controvertido” e uma personalidade bastante polêmica. Tinha uma tendência particular “ao reacionarismo, ao autoritarismo e antiliberalismo”, não obstante sua vida boêmia, e era visto como “aberto, generoso e compreensivo”. Podemos caracterizar a trajetória de Figueiredo como “escritor, jornalista político e panfletário”. Foi um “homem público reacionário” que se servia do “termo reacionário com prazer, com volúpia”. Tornou-se um paladino do pensamento reacionário e protagonista da reação católica. “Reacionário era, para Jackson, o antiliberal”. O líder católico detestava “a democracia liberal, vinda de Rousseau e da Revolução Francesa” e “amava era a ordem, a autoridade, a estabilidade”. Opunha-se “às quarteladas, ao tenentismo e ao espírito revolucionário”. Sua atuação política era “a reação da ordem contra o revolucionarismo latente”. Para entender o que era reacionário, basta considerar “o discípulo de Joseph de Maistre, isto é, o reacionário”. Jackson de Figueiredo foi um seguidor apaixonado do pensamento político de Joseph de Maistre. Arduini (2015) sustentou que “Figueiredo é o introdutor das ideias de Maurras no Brasil” e, por sua vez, “Amoroso Lima um dos seus interlocutores” (p.22).
Apesar de Amoroso Lima (1973a) ter sustentado que “a partir de 1924 ou 1925, aliás, depois do meu encontro com Jackson de Figueiredo, começara a mudar minha atitude em face da vida” (p.95), podemos ponderar diferenças entre os dois líderes católicos. Amoroso Lima se reconhecia na “geração modernista, à qual pertenço” (p.85), representada pela Semana de Arte Moderna de 1922. Por outro lado, após a conversão de 1928, se deu uma “ruptura”. Segundo suas palavras, “em 1928, havia uma opção mais difícil e uma armadura mais dura: a da Fé”, por isso, “pensei em repudiar o Tristão” (p.96). Sobre as diferenças com Figueiredo, sustentou: “enquanto eu defendia ideias liberais, ele situava-se numa posição autoritária” e completou: “Jackson, além de autoritário, era um antimodernista” (p.118). Foi a experiência de 1928, quando assumiu a direção do Centro Dom Vital e da revista A Ordem, que Amoroso Lima definiu como marco maior da influência de Figueiredo.
Jackson de Figueiredo, no entanto, viria a exercer uma ação póstuma sobre mim. Com a morte dele completar-se-ia a sua influência. Morto, terminaria me vencendo ao menos por um tempo. Isto aconteceu quando fui convidado para substituí-lo na direção do Centro Dom Vital. O sentimento de responsabilidade, a tradição deixada por ele, a presença dos amigos comuns me empolgaram. A partir daí caminhei numa outra direção, passando do liberalismo anterior para uma posição ortodoxamente autoritária, baseada no sentimento da disciplina e da ordem. Fui tomado pela convicção de que o catolicismo era uma posição de direita [...]. Meus artigos sobre o integralismo datam dessa época. Achava que o integralismo era uma reação política nacional, de caráter unitário e autoritário, contra a fraqueza do Estado, o regionalismo e a luta de classes, em favor do Estado forte, da unidade nacional e da reforma corporativa da economia [...]. Esta era minha posição à época, uma posição marcadamente de direita, antiliberal, ortodoxamente autoritária (LIMA, 1973a, p. 120-121, grifo nosso).
Os estudiosos do catolicismo brasileiro, como Mainwaring (2004), Azzi (1994), Matos (2011) e Lustosa (1991), são unânimes ao se referir à época do pontificado de Pio XI como o período da neocristandade. A Igreja almejava uma nova aliança com o Estado e por isso estava disposta a contribuir com a política, contanto que o catolicismo fosse reconhecido como um bem da nacionalidade. O papado de Pio XI coincidiu com a ascensão de Mussolini na Itália. Nesse período, o papa, que havia perdido seus territórios nesse país, voltou a ser o soberano de um Estado, o Vaticano. Desse modo, voltou a reunir em si o poder espiritual (líder religioso) e o poder temporal (líder político e chefe de Estado). O projeto eclesial da neocristandade no Brasil procurava empregar o “esforço de recriação de um Estado Cristão” (AZZI, 1994, p. 9). Esse seria o grande ideal perseguido pelas elites católicas animadas por Dom Sebastião Leme a partir da década de 1920, principalmente após o Congresso Eucarístico Nacional de 1922 (DIAS, 1996). A contenção do laicismo republicano e a recriação do Estado Cristão são as metas desse período. O mito do Estado Cristão desse período tinha alguns “inimigos”: o liberal, o maçom, o comunista, o judeu, o protestante, o espírita, entre outros.
Na obra Política (1932), Amoroso Lima fez ampla referência à encíclica Immortale Dei (1885), de Leão XIII. O ensinamento do papa versava sobre “a constituição cristã dos Estados” e, portanto, lançava os fundamentos da mentalidade da neocristandade, isto é, o esforço católico de recriação do “Estado Cristão”. Como sabemos, tal projeto será levado a cabo no pontificado de Pio XI. Na visão católica (LIMA, 1956), o Estado deveria estar alicerçado no “direito natural: o direito de Deus” (p. 74). De acordo com Amoroso Lima, havia a necessidade de uma união dos “bens temporais aos bens espirituais, dos valores civis aos valores religiosos” e isso “não significa nenhuma imperfeição da parte da sociedade civil”. Ao contrário, “a cooperação dos dois poderes, o civil e o religioso” era a condição para uma sociedade “perfeita e completa” (p.32). Na encíclica havia muitos elogios à monarquia e aos antigos reinos católicos da Idade Média. É possível estabelecer um paralelo entre os pontificados de Leão XIII e Pio XI, principalmente por meio da comparação entre as encíclicas sociais desses papas: Rerum Novarum (1891) e Quadragesimo anno (1931). Ambos exibem uma abordagem conservadora da questão social, sobretudo através da tentativa de controle do movimento operário por meio do sindicalismo católico, baseado na doutrina social da Igreja.
Amoroso Lima (1946) explicou o caráter contrarrevolucionário da Ação Católica (1935), isto é, a Revolução espiritual que os católicos queriam empreender no mundo moderno. Para isso, criticou as ideias de Charles Maurras, líder da Action Française, que já haviam sido condenadas por Pio XI em 1926. Amoroso Lima (1956) reconheceu que tinha “simpatias remotas por Maurras, em 1912 ou 1913”, igualmente, as “simpatias que tive pelo fascismo, na Itália ou pelo integralismo no Brasil” (p. 56). Não obstante as críticas a Maurras, acrescentadas através das notas para a reedição de seu livro Política, em 1948 e 1956, respectivamente, o autor francês foi qualificado de “poeta e humanista”, que forjou a frase “politique d’abord” (a política primeiro) (p.80), base da teoria política do nacionalismo integral. Tais ideias tinham alguns adeptos entre os católicos, principalmente aqueles que seguiam orientações dos integristas. Amoroso Lima (1936) julgou como “errado” e “falso” o “politique d’abord” de Charles Maurras (p.62). Contudo, preferiu corrigi-lo na máxima “Societé d’abord” e, posteriormente, “catholique d’abord” (p.63). Assim, o líder católico apropriou-se das ideias de Maurras para defender o “Estado cristão”, na forma do “catholique d’abord”, um modelo político de corporativismo católico. Por seu turno, Alceu Amoroso Lima (1946), posteriormente, julgava nociva essa visão “moralista” e “autoritária” da Igreja, conforme declarou anos mais tarde:
Essa é a contrarrevolução a empreender. A Igreja não é apenas um ‘um templo de deveres’ (Maurras): a Igreja não é apenas um regaço para abrigar os nossos sofrimentos, ou uma barreira contra a revolução social ou os instintos pagãos renascidos. A Igreja é o Cristo vivo entre nós. [...]. Aos que querem regenerar o mundo pela Revolução, nós opomos a Regeneração do mundo pela Religião (LIMA, 1946, p. 31, grifo do autor).
Amoroso Lima sustentou que a Ação Católica convocava o laicato para a “regeneração do mundo pela religião”, no caso, o catolicismo. Ela seria a alternativa dos católicos à Revolução. Ou melhor, um modo de resolver a “questão social” do mundo moderno à luz da doutrina social da Igreja. Segundo Azzi (2008, p. 255), a Ação Católica no Brasil surgiu como resposta da Igreja à criação da Aliança Nacional Libertadora, em 1935, cujo feito fora estimulado pela Constituição de 1934.7 A Ação Católica fazia frente às forças de esquerda e buscava garantir as conquistas católicas obtidas na Constituição de 1934, bem como criar uma força de resistência ao avanço das ideias comunistas. Havia um pânico anticomunista entre os católicos e a Igreja procurava colocar o laicato católico a serviço do governo Vargas em troca de uma ação enérgica contra os comunistas. A inspiração da Ação Católica Brasileira vinha do modelo italiano promovido por Pio XI, que era centralizado nas mãos da autoridade clerical. O golpe de 1937 agradou a Igreja oficial, pois arrefeceu a força do comunismo.
A análise de Gramsci (2007), quando investigou a Ação Católica, teve o mérito de tratar a questão como um tema complexo. Sua análise é útil e necessária para mostrar a luta de forças e tendências ideológicas que disputam a hegemonia no seio da Igreja. Para Gramsci, “católicos integristas - jesuítas - modernistas, representam as três tendências ‘orgânicas’ do catolicismo, ou seja, são forças que disputam a hegemonia na Igreja romana” (p. 157). Os estudos sobre o catolicismo não podem incorrer na tentação de uma análise simplista, que não considere as disputas ideológicas no interior da Igreja.
Pio XI pretende limitar a importância dos integristas, abertamente reacionários e que tornam quase impossível a organização na França de uma poderosa Ação Católica e de um partido democrático-popular, que possa concorrer com os radicais, mas sem atacá-los de frente. A luta contra o modernismo desequilibrara excessivamente à direita o catolicismo; portanto, é preciso “centralizá-lo” nos jesuítas, isto é, dar-lhe de novo uma forma política dúctil, sem enrijecimentos doutrinários, com uma grande liberdade de manobra, etc.; Pio XI é realmente o papa dos jesuítas (GRAMSCI, 2007, p. 158, grifo nosso).
Carneiro (2010) sublinha que, entre 1922 a 1945, “segmentos conservadores da Igreja Católica”, entre outros, foram responsáveis por “núcleos de produção” de ideias de “extrema direita” no Brasil. Esses núcleos possuíam “ativistas e simpatizantes do nazifascismo” (p.433). Segundo a historiadora, “a partir de 1935, Getúlio Vargas não ocultava sua admiração pelas figuras e ideias de Hitler e Mussolini” e “as alianças com a Igreja garantiam ao Estado [varguista] um perfil católico” (p.235). Sustentou que o regime do Estado Novo configurou “um fascismo à brasileira”, com “pactos firmados com as lideranças da Igreja Católica” (p.264). O integralismo (CHASIN, 1999), (BERTONHA, 2004) foi o movimento mais característico do nazifascismo no Brasil. Carone (1976) afirmou que “o padre Hélder Câmara fez parte do Conselho Consultivo da Ação Integralista Brasileira (AIB), ao lado de Belisário Pena, Alcebíades Delamare, Pedro Moura e San Thiago Dantas” (p.196). Apesar de Pio XI dirigir críticas ao fascismo,8 através da encíclica Non Abbiamo Bisogno (1931), e reprovar o nazismo com a carta Mit Brennender Sorge (1937), é possível identificar a sua defesa da doutrina do Estado corporativo, especialmente na encíclica Quadragesimo anno (1931). Alcir Lenharo (1986, p. 162-163) encontrou entre os números 90 a 95 da encíclica Quadragesimo anno ideias ligadas à divulgação da doutrina do Estado corporativo. Arduini (2015, p. 112) foi ainda mais longe, ao defender que nessa encíclica: “Pio XI elogia o fascismo como o sistema mais próximo do desejável pela Igreja”. Schwartzman (2015) argumentou que o termo “corporativismo” fez parte “durante várias décadas das propostas políticas dos regimes autoritários, principalmente aqueles de inspiração católica conservadora” (p.109).
Em seu artigo de 1934, Tristão de Athayde, não poupou elogios aos integralistas, antes, afirmou ser o movimento integralista “perfeitamente compatível com a prática da doutrina social da Igreja e do catolicismo”. Segundo ele,
Inimigos comuns, amigos comuns - basta isso para criar entre o Integralismo e os católicos uma situação tal que só pode ser interpretada por uma compreensão sincera [...]. Considero ambas as participações [no integralismo] perfeitamente compatíveis, não só com a doutrina social católica, mas ainda com a prática efetiva do catolicismo [...]. Não vejo em nenhum desses pontos nenhuma dificuldade fundamental que justifique o temor de ingressar nas fileiras integralistas e muito menos o ataque ao movimento. [...]. Não vejo, pois, do ponto de vista doutrinário, qualquer empecilho irremovível que impeça a entrada de católicos para o Integralismo (LIMA, 1936, p. 195, grifo do autor).
Se o apoio ao integralismo de 1934, por Tristão de Athayde, pode ser considerado “tímido”, em 1935, seus escritos não deixam dúvidas sobre seu posicionamento político.
Tenho pelo movimento integralista a mais viva simpatia, como tenho pelo fascismo e por toda essa moderna reação das direitas, que mostraram a não inevitabilidade do socialismo. E, ao contrario, a possibilidade de reagir contra os erros da burguesia, do seu capitalismo e da sua democracia, sem o recurso à Revolução violenta e à ditadura do proletariado, a mais sangrenta e a mais estúpida a que se poderia chegar, para dar às classes operárias a posição justa que amanhã vão ter na sociedade, em reação contra a disfarçada escravidão em que o Liberalismo burguês as vem mantendo. Não se dê, pois, ás minhas palavras nenhum sentido de hostilidade ao Integralismo, e sim de justificação á exigência primacial a que acima me referi para todos os católicos no movimento: a preeminência da consciência católica sobre a consciência política (LIMA, 1936, p. 209-210, grifo nosso).
No livro Debates Pedagogicos (1931), o nome de Francisco Campos (1891-1968), à época ministro da educação do governo provisório, foi amplamente citado por Tristão de Athayde. As citações sempre foram amistosas e depositavam certa expectativa de que o ministro estaria disposto a atender as demandas da Igreja no campo da educação. Sustentou: “Confio nas altas qualidades de caráter, de talento e de ilustração do orientador de nossa educação pública” e, ainda, “conheço perfeitamente o respeito que tem pela voz da Igreja e o desejo sincero de servir à consciência católica brasileira” (p.65). Ainda, Athayde enalteceu o seu pertencimento à “Legião Mineira” (p.16). Para Carone (1989), o fascismo surgiu no Brasil em 1922, “com a Legião do Cruzeiro do Sul”, mas “oito anos depois proliferam outros partidos, como a Legião de Outubro, de Francisco Campos”, entre outros, que “precederam o integralismo” (p.101). De acordo com Horta (2012, p.91) a Legião de Outubro foi “criada em Minas Gerais, em fevereiro de 1931, por Francisco Campos (então ministro da Educação), com o apoio de Gustavo Capanema (então secretário do Interior e de Justiça do estado de Minas Gerais) e Amaro Lanari (secretário de finanças)”. A Legião de Outubro “fazia parte da estratégia elaborada por Francisco Campos para reforçar suas bases de sustentação política em Minas Gerais” e, no seu projeto, “estava incluído o envolvimento da Igreja”. Além disso, há um comentário de Tristão de Athayde, em tom mais crítico, às ideias de Azevedo Amaral (1881-1942). Para Gomes (2012, p. 78), Francisco Campos e Azevedo Amaral foram “dois intelectuais que se destacaram por suas formulações teóricas e pela aplicação dos modelos e princípios que defenderam”, isto é, contribuíram para a formação da “democracia autoritária”, consolidada durante a era Vargas. Esse elenco afigura-se evidência bastante clara da aproximação de Amoroso Lima com ideias autoritárias.
Schwartzman (2015) considerou que a Igreja teve “grande influência religiosa na educação brasileira estabelecida durante o governo Vargas” e que havia nesse período “um pacto entre a Igreja e o Estado promovido por Francisco Campos” (p.193). Tal acordo envolvia, principalmente, a tentativa de controle ideológico da educação por parte dos católicos. Caracterizou-se, portanto, o vínculo da Igreja com uma ditadura autoritária. No entendimento de Fausto (2011), “a marca dominante do sistema político vigente entre 1930 e 1945 foi a ditadura autoritária, informal (Governo Provisório), ou formal (Estado Novo), cortada apenas pelos anos de 1934-1937, em que as liberdades democráticas foram sendo suprimidas, após a tentativa de golpe do PCB, em 1935” (p.23). O pacto dos católicos com Vargas teve como contrapartida “a Igreja legitimando o Estado” (LUSTOSA, 1991, p.54). Dessa maneira, os líderes católicos aceitaram pagar o preço da legitimação de um Estado autoritário (FAUSTO, 2001) e (CHAUÍ, 2013).
Para Carvalho (2013), o Estado Novo “era um regime mais próximo do salazarismo português, que misturava repressão com paternalismo, sem buscar interferir na vida privada das pessoas”. Carvalho ainda salienta: “era um regime autoritário, não totalitário ao estilo do fascismo, do nazismo, ou do comunismo” (p. 109). O Estado Novo não era fascista, porém, era autoritário, valendo-se inclusive da repressão contra seus opositores. Miceli (2012) mostrou a importância de recordar “a parceria Capanema-Alceu” no campo da educação, advinda do pacto celebrado entre “o novo regime Vargas e a Igreja Católica”, viabilizado “por seu mentor Francisco Campos, com arreglo de Alceu Amoroso Lima” (p.383).
Segundo Costa (2015), Amoroso Lima apoiou a “ala conservadora” (p.209), principalmente ao engajar-se na militância católica no Centro Dom Vital, como continuador do legado de Jackson de Figueiredo. Apesar disso, reconheceu que o líder católico pertencia a um grupo de “acadêmicos modernizantes” (p.211). Ao comentar as ideias de Sérgio Buarque de Holanda, deixou clara a acusação desse intelectual sobre Amoroso Lima: “importar as ideias (conservadoras) de Action Française, de Jacques Maritain, de Julien Benda e T.S.Eliot” (p.212).
Os historiadores do catolicismo costumam dividir a Ação Católica em duas matrizes: a italiana e a belga.9 A italiana tem um forte cunho conservador, e promovia uma espécie de propaganda católica que pretendia espalhar o catolicismo através dos meios de comunicação social, rádio, cinema, jornal e diversas publicações da época. Em sintonia com a proposta da restauração do catolicismo por meio da recuperação de sua hegemonia no controle da vida social, a vertente italiana da Ação Católica se aproximava daquele tipo de regime que Eric Hobsbawm denominou “clerical-fascista”.10 Essa vertente buscava revigorar a ordem da cristandade na sociedade por meio da colaboração da Igreja com o Estado. Já a vertente francesa ou belga, que foi analisada também por Gramsci (2007, p. 160), mostrou-se mais próxima do que Eric Hobsbawm (2011, p. 119) chamou de “católicos sociais”, vinculados à Democracia Cristã. Nesse movimento eclesial e social complexo, com traços conservadores e modernizantes, situou-se a trajetória de Amoroso Lima.
Do Integrismo à Democracia Cristã
Miceli (2012) observou que o Centro Dom Vital e a Revista A Ordem foram esferas de atuação da Igreja no campo intelectual e, posteriormente, na sociedade da época. Essas iniciativas da Igreja visavam o “enquadramento institucional e ideológico dos intelectuais” (p.127-128). E, também, promoviam a formação de uma “intelligentsia católica” (p.162). Esses espaços de sociabilidade intelectual promoviam a difusão de doutrinas e tomadas de posições sobre questões temporais de interesse dos católicos. Além de Jackson de Figueiredo, outros nomes devem ser destacados no laicato católico da época, como: “Hamilton Nogueira, Jônatas Serrano, Perillo Gomes, Heráclito Sobral Pinto e Everardo Backheuser” (ARDUINI, 2015, p. 23).
Campos (1968) entendeu que o neotomismo foi a filosofia primordial dos intelectuais católicos ligados ao Centro Dom Vital e à revista A Ordem. Contudo, o neotomismo só seria consolidado como filosofia oficial dos vitalistas durante o período da liderança de Alceu Amoroso Lima. Jackson de Figueiredo “era discípulo de Farias Brito (1862-1917), de quem herdou os interesses pelos problemas filosóficos e a tendência espiritualista” (p. 81) e, de acordo com suas ideias, “o movimento jacksoniano representa, como movimento histórico, uma tomada de consciência da força espiritual do catolicismo, de natureza antipositivista, antimaterialista e antiliberal. Jackson de Figueiredo tinha o espírito um tanto ultramontano e reacionário” (p. 82). Ao analisar o neotomismo no estado do Rio de Janeiro, Fernando Arruda Campos, mostrou a importância de Alceu Amoroso Lima ao afirmar que “a doutrina política, que Alceu Amoroso Lima defende, desta forma, como um humanismo cristão que, visando evitar os excessos do liberalismo e do socialismo, procura manter-se em equilíbrio entre os extremos” (p. 211). O legado de Jackson de Figueiredo no Centro Dom Vital era anti-intelectualista e de política reacionária. Esse cenário mudou quando Alceu assumiu a direção do Centro e da revista, com a morte de Jackson, em 1928. Foi no “tomismo de Jacques Maritain que se encontrou uma fundamentação de bases metafísicas para a expressão do pensamento católico” (p. 214).
A nota, acrescentada por Amoroso Lima no livro Política, em 1948, evidencia bem a sua mudança de posicionamento político. O termo integralismo cristão desapareceu e foi preterido em favor de expressões como humanismo e democracia cristã. Argumentou: “Não podemos mais conservar o termo no original, mudando-o para democracia cristã, universalismo ou humanismo político [...] concepção política que reputamos a verdadeira” (LIMA, 1956, p. 130). Nesse período, Amoroso Lima engajou-se politicamente e tornou-se “cofundador do Movimento Democrata-Cristão na América Latina (Montevidéu, 1947)” (LIMA, 1984, p.87).
Para Maritain (1966), o humanismo integral consistia numa resposta à crise da civilização do século XX. Essa crise se traduzia na visão pessimista da modernidade, “com sua perversão mental e sua educação para a morte” e, por isso, havia a necessidade de uma “inspiração renovadora no âmbito das nações democráticas” (p. 142). Sua intenção era promover a articulação entre “o humanismo integral e a educação liberal”, através da qual Maritain buscava o desenvolvimento de uma “civilização personalista e comunitária fundada nos direitos humanos e satisfazendo as necessidades sociais do homem” (p. 143). Entendia ele que “a educação de amanhã deve acabar também com a separação entre a inspiração religiosa e a atividade secular do homem, já que o humanismo integral deve apresentar, como uma de suas características principais, um esforço de santificação da existência profana e temporal” (p. 144). Pio XI encarregou o filósofo Jacques Maritain de definir a política social da Igreja em face do mundo moderno.
Pode-se, assim, entender duas fases no pensamento de Maritain: a metafísica e a social. De acordo com Amoroso Lima, foi a partir da obra Humanismo Integral (1936) que Maritain começou a desenvolver uma espécie de tomismo social, ajudando a renovar o pensamento social da Igreja. Esse movimento caracterizou o que Azzi (1994, p. 129), chamou de “os maritainistas e o catolicismo liberal”. Tal grupo vivia em constante tensão com os católicos “autoritários”. Vê-se o surgimento de um catolicismo liberal rumo à democracia cristã e a abertura “para o social”.
O entendimento da trajetória de Alceu Amoroso Lima amplia-se quando se considera as próprias palavras de Tristão de Athayde (1969): “tenho tentado ser: católico em religião, tomista em filosofia, democrata em política e modernista em arte. Nem antimodernista porque católico como Jackson; nem anticatólico porque modernista, como Mário de Andrade. Ao contrário, católico e moderno em arte” (p. 47-48, grifo do autor).
Considerações Finais
A trajetória e as ideias políticas de Alceu Amoroso Lima no período de 1928 a 1938 indicam uma nova tomada de posição, que tinha por base a sua conversão ao catolicismo. Como o próprio Amoroso Lima qualificaria anos mais tarde, foi uma experiência reacionária. De modernista, antes de sua conversão, passou a militante do catolicismo integrista, ainda que por um curto período. Sentia-se na obrigação de continuar o legado de Jackson de Figueiredo, que fora um entusiasta do pensamento autoritário, anticomunista e antiliberal. Porém, a partir de 1936, o intelectual encontrou na filosofia de Jacques Maritain uma forma de conciliar catolicismo, humanismo e democracia.
O processo de mudança de posições integristas na direção da democracia cristã foi lento e contraditório. Isso supõe analisar o modo como Amoroso Lima leu, interpretou e se apropriou das ideias de Charles Maurras e de Jacques Maritain. Entretanto, essa é uma tarefa ainda a ser realizada por pesquisas posteriores.
Amoroso Lima encontrou no humanismo cristão de Maritain uma possibilidade de renovação para o catolicismo brasileiro do período. Com isso, afastou-se das posições autoritárias partilhadas no seio do laicato católico da época. O ano de 1936 foi o marco do início da apropriação e interpretação do pensamento de Maritain entre o laicato católico brasileiro. Esse processo foi protagonizado por Amoroso Lima e levou parte do grupo católico a distanciar-se de posições autoritárias e antidemocráticas.