Introdução
Este artigo apresenta resultados de pesquisa documental cujo objetivo foi compreender as estratégias pedagógicas utilizadas pela psicóloga e educadora russo-brasileira Helena Antipoff (1892-1974) na formação de educadores para a escola primária durante os anos de 1930. No intuito de conhecer melhor a Antipoff educadora, busca-se identificar como era realizada a formação avançada de professores sob sua direção, através do ensino de atividades práticas propostas no Laboratório de Psicologia da Escola de Aperfeiçoamento de Professores de Belo Horizonte. Essas atividades foram por ela denominadas “estudos escolológicos”, visando construir a “ciência da escola”, considerada como instituição complexa e multifacetada, que deveria ser observada a partir de diferentes pontos de vista, focalizando os elementos que, juntos, promovem a educação no ambiente escolar. Para melhor compreender a proposta de Antipoff, foi necessário descrever o contexto em que ocorreu sua vinda para o Brasil, bem como as concepções pedagógicas da educadora russa que embasaram sua atuação no ensino primário mineiro. A escolologia está relacionada às diretrizes do movimento da Escola Nova, de dimensão transnacional, que preconizava o estudo científico dos diferentes fatores que influem na dinâmica escolar e nos resultados educacionais, buscando tanto a eficiência do processo educativo quanto o desenvolvimento e a satisfação dos estudantes (Campos e Cruz, 2021).
Através dos estudos escolológicos, Antipoff tencionava introduzir as alunas da Escola de Aperfeiçoamento, em sua maioria professoras normalistas já atuantes no sistema de ensino primário mineiro, na pesquisa educacional. A ideia era, no decorrer do curso, conhecer a escola como instituição real, não ideal. Os cursos de psicologia educacional, segundo a autora, deveriam ser essencialmente práticos, com a teoria sendo ensinada como introdução à pesquisa sobre os fatores escolares relevantes para promover a aprendizagem. Em carta dirigida ao mestre Claparède em fevereiro de 1930, sobre sua experiência como professora em Belo Horizonte, Antipoff informa que estava iniciando um estudo pedológico das escolas da cidade, junto com suas alunas, visando a elaboração de monografias das classes escolares semelhantes às que já havia experimentado nas escolas de Genebra, onde foi sua assistente, entre 1926 e 1929, porém mais completas. Essas monografias deveriam “compreender o estudo global e detalhado de toda a vida dentro da classe, vista como uma sociedade cuja conduta é determinada por todas as condições físicas e psíquicas possíveis”, compreendendo:
o estudo do prédio escolar, do mobiliário, de todas as condições higiênicas e materiais, de todas as influências que emanam do mestre, do regime e do método escolar, das interações entre crianças, do sumário dos tipos de crianças - este último feito depois do estudo individual de cada uma delas (estudo físico, social, psicológico). O tempo desse estudo é de um semestre, cinco horas por semana (Ruchat, 2010, p. 71, tradução nossa)2.
Este artigo contém três partes. A primeira parte contextualiza a formação acadêmica e atuação profissional de Helena Antipoff, bem como sua chegada a Minas Gerais para atuar na Escola de Aperfeiçoamento de Professores de Belo Horizonte em 1929. Na segunda, apresenta-se a metodologia da pesquisa empírica, abordando os conceitos e a concepção pedagógica desenvolvida por Antipoff. As conexões entre o pensamento de Antipoff e as propostas dos psicólogos e educadores Édouard Claparède (1873-1940) e Alexander Lazursky (1874-1917) são abordadas buscando evidenciar as fontes teórico-práticas que inspiraram o desenvolvimento dos Estudos Escolológicos. A última parte compreende a análise e discussão dos dados. Partimos da hipótese de que a Escolologia foi uma das estratégias de formação de professores em que Antipoff construiu concepções próprias ao propor experiências de pesquisar a escola para compreender seus problemas, e só assim poder agir sobre eles, contribuindo para a construção da pedagogia experimental, isto é, da ciência pedagógica sustentada por estudos empíricos sistemáticos.
A propósito do valor da ciência na resolução dos problemas humanos, Antipoff cita os filósofos Auguste Comte (1798-1857) e Francis Bacon (1561-1626). Comte a inspira ao propor a ‘educação positiva’, baseada em conhecimentos científicos sobre as leis do desenvolvimento do espírito humano e sobre o funcionamento do mundo físico e social. Bacon, citado como fundador da ciência moderna, teria colocado em evidência a necessidade de julgamentos mais exatos sobre os fenômenos estudados, visando o sucesso das práticas por eles informados. De seu ponto de vista, essa atitude científica poderia contribuir para “o proveito da educação, que peca justamente pelo [...] “mais ou menos” dos julgamentos e pelo subjetivismo de tudo o que se refere à pedagogia” (Antipoff, 1992b, p. 116).
Helena Antipoff - uma professora desde cedo
Helena Antipoff, nascida em 25 de março de 1892, em Grodno na Rússia, viveu grande parte de sua infância em São Petersburgo. Criança interessada pelos estudos, antes de frequentar a escola já sabia ler, tendo sido alfabetizada pela mãe. Ajudou na alfabetização da irmã, revelando desde cedo habilidades para o magistério. Na escola secundária, Helena Antipoff interessava-se pelas experiências científicas, dedicava horas do dia aos laboratórios e bibliotecas. Considerava somente como verdadeiro o que fosse passível de verificação objetiva. Nesse período, interessou-se também pela arte como forma de estudar a cultura dos povos: teatro, museus, produtos artesanais (Antipoff, D., 1996).
Na universidade de Paris, a Sorbonne, teve contato com conferências sobre a psicologia, “ciência nova que chamava a atenção dos estudantes e intelectuais pelos resultados de pesquisas e descobertas apresentadas pelos laboratórios que se estabeleceram por várias universidades europeias” (Campos, 2012). Estagiou no laboratório da Rua Granges-aux-Belles, em Paris, sob a supervisão do psiquiatra Théodore Simon, coautor da escala Binet-Simon3, teste para medir a inteligência. Lá conheceu Édouard Claparède, neurologista, psiquiatra e psicólogo que iria influenciar fortemente sua formação como psicóloga e educadora. Com a criação do Instituto Jean-Jacques Rousseau em 1912, em Genebra, é convidada por Claparède a continuar lá seus estudos. Mais tarde, entre 1926 e 1929, passou a atuar como professora no Instituto Rousseau, já então integrado à Universidade de Genebra.
A convite do governo do Estado de Minas Gerais, Antipoff atuou como professora de psicologia na Escola de Aperfeiçoamento de Professores de Belo Horizonte de 1929 a 1944. A Escola foi construída para atender às propostas da reforma do ensino mineiro de 1927 - Reforma Francisco Campos/Mário Casasanta. De acordo com Ruchat (2008, p. 193), o trabalho de Antipoff na Escola de Aperfeiçoamento de Belo Horizonte contribuiu para que as teorias claparedianas fossem conhecidas no Brasil: “a experimentação psicológica, a pedagogia funcional, a pedagogia nova, a pedagogia ativa”.
Como dirigente do Laboratório de Psicologia instalado na Escola de Aperfeiçoamento, a educadora promoveu um extenso variado programa de pesquisas sobre o desenvolvimento mental e sobre os ideais e os interesses das crianças mineiras. Os resultados dessas pesquisas promoveram a introdução sistemática de testes de inteligência nas escolas primárias, visando subsidiar o processo de homogeneização das classes escolares por nível intelectual. Nessa época, Helena Antipoff elaborou reflexões sobre a relação entre meio socioeconômico e desenvolvimento mental das crianças, e propôs às escolas mineiras a adoção de programas de ortopedia mental4. Acreditava na proposta como meio de auxiliar no equilíbrio de oportunidades aos alunos provenientes dos estratos sociais menos favorecidos, que tendiam a apresentar resultados insatisfatórios nos testes de inteligência, por questões culturais. Suas reflexões se baseavam em observações realizadas nas escolas de Belo Horizonte por ocasião da realização dos estudos escolológicos, como veremos a seguir.
Metodologia
A análise documental proposta na pesquisa está norteada pelos debates teóricos e metodológicos da historiografia contemporânea, que investiga fatos, pessoas e instituições em relação ao cenário e época estudados (Campos, 2010). As fontes utilizadas foram os escritos de de Helena Antipoff publicados nas Coletâneas das Obras Escritas de Helena Antipoff, especialmente os volumes I (Psicologia Experimental), II (Fundamentos da Educação) e IV (Educação Rural), e a correspondência da educadora com Édouard Claparède (ANTIPOFF, 1992a, 1992b, 1992c; Ruchat, 2010). A correspondência contem cartas dirigidas a Claparède nas quais Antipoff dialoga com o mestre sobre suas iniciativas em Belo Horizonte.
Foram também utilizados como fontes para a pesquisa o Boletim nº 9, “Monografia de uma classe escolar de Belo Horizonte, Estudo Escolológico de 1931”, publicado em 1932 pela Secretaria da Educação e Saúde Pública, Inspetoria Geral da Instrução de Minas Gerais (Antipoff, 1932), e trechos das monografias escolológicas realizadas em 1930, selecionados, organizados e publicados por Helena Antipoff no exemplar da Revista do Ensino referente aos meses de outubro, novembro e dezembro de 1930 (Antipoff, 1930).
Para a compreensão do conceito de Escolologia foram identificados também os trabalhos dos teóricos com os quais Antipoff dialogou, especialmente as propostas da Pedagogia Experimental, de Claparède, e da Experimentação Natural, método de observação sistemática do comportamento, personalidade e interações humanas proposto pelo psicólogo russo Alexander Lazursky. O livro de Édouard Claparède, Psicologia da criança e Pedagogia Experimental (1956), foi uma das nossas fontes essenciais. No livro, Claparède discute amplamente a relevância do estudo da psicologia da criança como meio de propor e aperfeiçoar estratégias e métodos de ensino e aprendizagem. Os textos sobre a Experimentação Natural de Alexander Lazursky foram pesquisados nos volumes II e III das coletâneas já citadas.
A Pedagogia Experimental
A psicologia da criança é filha da necessidade: originou-se da necessidade de corresponder aos desejos das professoras, dos alunos do Seminário de psicologia educativa que Claparède dirigia em 1904, dos alunos do Instituto J. J. Rousseau e de inúmeras pessoas que vinham constantemente solicitar-lhe esclarecimentos a respeito dos múltiplos aspectos da infância. Esta obra não poderá ser suspeita de artificial nem de inútil e, muito menos, de rígida. “A ciência é uma cousa móvel e viva, diz Claparède, um tanto fugaz, mas que está progredindo sempre e que cumpre conquistar” (Antipoff, 1956, p. 16).
O livro Psicologia da Criança e Pedagogia Experimental (Claparède, 1956) originou-se de uma série de artigos de jornais e revistas, escritos por Édouard Claparède, reunidos em uma brochura, que o autor iniciou em 1905. Em 1909, foi publicado um volume com a intenção de constituir o primeiro tratado consagrado à psicologia da infância. Claparède enfatiza não ser esse livro um manual, tais ideias são reforçadas por Helena Antipoff no prefácio da publicação traduzida para o português de 1956. Para ela, o livro teria como finalidade apresentar o intenso movimento da ciência psicológica da criança: “Freqüentíssimamente, os manuais de psicologia são livros horrivelmente abstratos e vagos, tocando na vida mental e no procedimento humano do píncaro de uma torre tão alta que não permite distinguir o ser vivo e suas manifestações reais” (Antipoff, 1956, p. 16).
No livro são apresentadas as características da pedagogia tradicional utilizada até aquele momento. Destaca-se que os pedagogos não conheciam seus alunos, e afirma-se que a pedagogia deveria basear-se no conhecimento da criança, como a horticultura se baseia no conhecimento das plantas. Recomenda-se que o livro não deveria ser entendido como um programa de ensino a ser seguido, mas sim como necessário ao auxílio dos que quisessem estudar a psicologia da criança como ciência pedagógica. Este seria o ponto alto da obra para Helena Antipoff e suas professoras da Escola de Aperfeiçoamento de Professores de Belo Horizonte em 1930. Claparède já dizia: “Ora, para aperfeiçoar os métodos de ensino, é necessário conhecer, por pouco que seja, a psicologia da criança” (Claparède, 1956, p. 24).
Para Claparède, a pedagogia tradicional era baseada na crença comum de que seria necessário possuir uma ou mais das três aptidões para ser professor: bom senso; dom e prática diária (Claparède, 1956). Essas aptidões, contudo, na visão de Claparède, não seriam suficientes para a missão tão complexa da docência, argumento que sustenta suas justificativas para a Pedagogia Experimental:
Não sendo o bom senso, o dom e a prática capazes, por si sós, de resolver os problemas que se apresentam ao educador, é preciso buscar outra cousa, e esta outra cousa não pode ser, evidentemente, senão a experiência, tomando-a em sentido científico, à qual chamaremos, para distingui-la da simples experiência pessoal, experiência sistemática ou experimentação (Claparède, 1956, p. 43).
Dessa maneira, Claparède explicou a demanda que se apresentava na época pela Pedagogia Experimental, que objetivava estudar empiricamente os processos de ensino em situações concretas, visando desenvolver a ciência da educação, conforme o trecho destacado a seguir:
Uma investigação pertence à pedagogia experimental quando se faz ressaltar unicamente a parte objetiva do problema, de todo em todo se despreocupando de suas condições psicológicas. Enquanto a psicopedagogia tem, antes de tudo, por objeto estudar o espírito do escolar e tratar de formular, em termos psicológicos, o estado de seu desenvolvimento, ou a ação que sobre ele exerce determinado processo educativo, - a pedagogia experimental não considera senão os processos pedagógicos e formula seus resultados em termos pedagógicos (Claparède, 1956, p. 123).
No texto intitulado “Édouard Claparède Homem e Educador”, escrito por ocasião do falecimento do autor, Antipoff descreve a importância dada pelo teórico aos problemas da educação. Para ele, toda ação pedagógica deveria ser uma resposta a um problema. Tanto para Helena Antipoff, quanto para aquele que foi seu mestre, para uma nova concepção de educação seria necessária uma mudança completa na formação do professor, e essa preparação deveria ser, primeiramente, psicológica (Antipoff, 1992b). Segundo Claparède, para que essas reformas ocorressem, a pesquisa sobre a psicologia da criança e a formação científica dos próprios educadores deveriam ser fomentadas:
1) Intensificação das pesquisas científicas relativas à criança e ao desenvolvimento mental; 2) Preparação especial dos futuros educadores, e isto sob duplo ponto de vista: primeiro, para conservá-los cientes dos resultados das pesquisas psicológicas e das novas normas decorrentes para a educação e a instrução; e, em segundo lugar, para dar aos próprios educadores, tanto quanto possível, o espírito científico, isto é, a aptidão de se espantar diante dos fatos de sua vida profissional quotidiana, e o desejo de inquirir esses fatos e procurar obter deles uma resposta, aplicando-lhes a observação metódica e a experimentação (Claparède, 1956, p. 196-197).
A psicologia experimental teria por objetivo investigar o perfil psicológico do aluno, por meio da observação e da experimentação. Seriam observações para se conhecer o nível intelectual da criança, se ela apresentaria atraso mental ou escolar, problemas relacionados à afetividade, memória ou inteligência, que interfeririam na aprendizagem. Para Claparède (1956), essas questões eram vitais, e não se tratava somente de descobrir o nível de inteligência do aluno, e sim de se levantar quais eram seus pontos fracos e fortes, e em quais aspectos deveriam os educadores se apoiar para obter resultados em suas propostas pedagógicas, pautando-se por uma educação baseada na atividade e na iniciativa dos alunos, nos seus reais interesses.
Em sintonia com Claparède sobre os propósitos da psicologia experimental, Antipoff questiona: “Para que vão servir essas observações? - A conhecer as crianças, em primeiro lugar, e antes mesmo disso, esse treinamento vai nos ensinar a observar. A observação é o método mais fértil em psicologia. Que conseguiríamos saber, se nos limitássemos às experiências, somente ao teste? - Nada” (Antipoff, 1992a, p. 60-61). É a partir do questionamento de Antipoff sobre a avaliação das crianças somente pela ótica dos testes de inteligência que trataremos, no item a seguir, sobre o conceito de Experimentação Natural de Alexander Lazursky.
A Experimentação Natural: Método de Observação de Alexander Lazursky
Helena Antipoff, ao chegar a Minas Gerais, ficou encarregada de promover a investigação na área da medição da inteligência e de sua relação com a aprendizagem nos Grupos Escolares mineiros. Já diretora do Laboratório de Psicologia da Escola de Aperfeiçoamento de Belo Horizonte, e entusiasmada com o campo da psicologia, promoveu um variado programa de estudos sobre o desenvolvimento mental e ideais e interesses das crianças5, proposto como formação para as alunas com a finalidade do melhoramento pedagógico. Por meio de um questionário, investigou “Os ideais e os interesses das crianças mineiras”. Os resultados desse estudo conduziram a adaptações dos testes de inteligência nas escolas primárias e ao alargamento do processo de homogeneização das turmas (Antipoff, 1992a).
Antipoff propôs organizar as classes homogêneas separando as crianças segundo seu desenvolvimento mental, combinando com isso uma organização racional do trabalho sistematizado por uma equipe pedagógica adequada. Utilizando procedimentos experimentais, pretendia escolher a professora adequada a cada tipo de classe, assegurando assim mais êxito na organização e sucesso do trabalho educativo. A educadora já havia observado experiências bem sucedidas de homogeneização das classes nos países europeus. No entanto, mostrou-se cautelosa quanto aos resultados dessa organização na escola primária mineira, acompanhando de perto os resultados da experiência nas escolas de Belo Horizonte, investigando passo a passo os efeitos que iriam produzir, orientando as alunas da Escola de Aperfeiçoamento.
Para Antipoff, a classificação das crianças segundo o grau de seu desenvolvimento mental poderia trazer bons resultados, pois asseguraria aos alunos uma educação e instrução sob medida, se respeitada a personalidade de cada criança. Para intervir na educação seria necessário conhecer melhor os alunos, pois: “Toda pedagogia avançada se baseia teoricamente no conhecimento da criança em geral e da criança indivíduo. Sem esses conhecimentos não é possível a ‘escola sob medida’’’ (Antipoff, 1992a, p. 29).
A ‘escola sob medida’ seria uma escola adaptada e organizada segundo as aptidões e interesses dos alunos, de acordo com a proposta de Claparède (1956). Nessa obra, o autor conceitua interesse como uma relação de conveniência entre o sujeito e o objeto, como o sintoma de uma necessidade psicobiológica do sujeito, e a seguir explora suas diversas manifestações. Dentre elas, destaca-se a Lei do Interesse Momentâneo, que, segundo o teórico, estabelece duas premissas à ação humana: a cada momento, a ação consiste em alcançar a finalidade que importa naquele instante determinado, e é o interesse que causa a ativação de certas reações. Além disso, “a cada instante, o organismo age conforme a linha de seu maior interesse” (Claparède, 1959, p. 29; Ottavi, 2009).
A noção de interesse delineada por Claparède seria essencial para a aprendizagem. Segundo o psicólogo, nada se deveria ensinar antes de se haver suscitado a necessidade de saber, antes de se haver despertado uma necessidade de ação através do interesse da criança, pois é:
sobre os interesses, que o educador deve apoiar-se. Se são vivos, resta somente propor à criança as atividades que lhe interessem; se dormem ainda, é preciso dedicar-se em primeiro lugar, e fazê-los vibrar. [...] o sucesso da ação educativa, organizada, por hipótese, em função da criança e de seus interesses, depende praticamente da habilidade do educador, de seu saber, de sua engenhosidade, de seu amor (Claparède, 1959, p. 101-102).
Ao adaptar o método Binet-Simon e introduzir os testes de inteligência nas escolas mineiras, Helena Antipoff reconheceu a importância de ampliar instrumentos de coletas de dados para melhor conhecer as crianças. De acordo com suas constatações: “os testes de inteligência esclarecem apenas a respeito do conjunto de funções intelectuais” (Antipoff, 1992a, p. 129).
Embasada em teorias bem fundamentadas, Helena Antipoff questionava a artificialidade dos dados obtidos através dos testes psicológicos aplicados em situações controladas, similares a laboratórios, e aqueles obtidos através da observação intuitiva de professores. Assim, buscou no método de Experimentação Natural do psicólogo russo Alexander Lazursky um instrumento de observação mais sistemática, que pudesse superar as limitações dos testes ou das observações espontâneas. Para ela, mesmo que as escolas procurassem “conhecer o desenvolvimento mental de seus alunos através do método Binet-Simon”, ou mesmo ainda aplicando “outros testes para avaliar sua inteligência, [...]” estes estudos não conseguiriam “penetrar na personalidade inteira da criança, por ser esporádico e incompleto” (Antipoff, 1992a, p. 29).
Provavelmente, Helena Antipoff conheceu o método psicológico desenvolvido por Lazursky entre os anos 1916 e 1924, quando retornou para a Rússia para procurar seu pai desaparecido, que antes da Revolução, servia ao exército russo. Durante os anos de 1916 e 1917, enquanto cuidava do pai, ela testemunhou os efeitos devastadores da Grande Guerra (1914-1918), e também da crise política que resultou na Revolução Comunista de 1917. Em São Petersburgo6, apesar da insegurança que atravessava a cidade, a educadora conseguiu trabalho na direção de uma espécie de abrigo para crianças abandonadas (Antipoff, D., 1996; Antipoff, 1931). A tarefa da psicóloga era fazer o exame psicológico das crianças e planejar sua reeducação. Para a avaliação psicológica foram utilizados os testes que já lhe eram familiares e a técnica de estudo da personalidade de Lazursky, a Experimentação Natural.
Outra experiência de Antipoff relacionada ao método de Experimentação Natural foi realizada na Maison des Petits, escola infantil ligada ao Instituto Jean-Jacques Rousseau criada em 1913, onde a autora estagiou como professora, período em que foi estudante, e onde mais tarde realizou pesquisas com crianças de 7 e 8 anos, quando foi assistente de Claparède na Universidade de Genebra, entre 1926 e 1929. As crianças foram observadas metodicamente na realização de trabalhos manuais como tecelagem, marcenaria, modelagem, costura, bordados, desenhos no caderno, pinturas etc, utilizando o método Lazursky. A autora comenta que as observações “permitiram, por meio das atividades, traçar o perfil psicológico de cada uma delas” (Antipoff, 1992a, p. 40).
O próprio Lazursky apresentou seu método no Congresso Russo de Pedagogia Experimental de São Petersburgo em 1911. Na ocasião, o teórico expôs os princípios do método de Experimentação Natural: “Nós experimentamos, dizia ele, com as formas naturais do meio exterior. Nós estudamos o indivíduo pela vida mesma, e a criança pelos objetos do ensino escolar” (Lazursky apud Antipoff, 1992a, p. 40).
Pelo método de Lazursky, a observação da criança necessitaria ser realizada em seu ambiente natural, em atividades da vida cotidiana, o que evitaria a artificialidade das técnicas de laboratório. Esta observação deveria ser acompanhada de anotações contínuas sobre as condutas, que seriam classificadas e interpretadas em grandes categorias (movimentos, sentimentos, imaginação, percepção e memória, pensamento, vontade).
O próprio psicólogo russo trabalhou, junto com seus colaboradores, com algumas crianças de uma escola que foi posta a sua disposição, examinando-as e observando-as durante as lições de várias matérias, preparando exercícios para estudar a personalidade dessas crianças e suas características mentais. O objetivo das observações sistemáticas era descrever a personalidade da criança em seus aspectos psicomotores, afetivos, cognitivos e volitivos no ambiente escolar. O estudo dar-se-ia em todas as matérias escolares do curso primário: “aulas de Língua Pátria; Aritmética; História Natural; Ginástica e Jogos; Desenho e Trabalhos Manuais”. Para cada matéria seriam elaborados exercícios mais relevantes do ponto de vista da psicologia, exercícios esses que demonstrariam com segurança ao pesquisador a personalidade da criança (Antipoff, 1992b, p. 340).
Antipoff destacou que o método de observação da atividade das crianças e adolescentes em seu cotidiano, proposto por Lazursky, seria especialmente importante na pedagogia. Em seus textos, Antipoff lembra sempre ao professor o compromisso que este necessitaria ter com a educação funcional7, fundamentada e proposta por Claparède. E também a contribuição que o método de Lazursky poderia trazer para ampliar uma realização plena na educação. Com isso, Antipoff queria dizer que a utilização do método da Experimentação Natural traria subsídios importantes para formar o professor mais atento às necessidades e características psicológicas e psicossociais do educando, componente fundamental da educação funcional (Antipoff, 1992b; Assis e Bravo, 2017; Campos, 2010, 2012).
Conceito de Escolologia
Escolologia é um termo criado por Helena Antipoff para nomear o estudo da escola como um todo, incluindo as especificidades de cada uma das partes que a compõem. Os Estudos escolológicos foram feitos nas escolas primárias de Belo Horizonte, e seus resultados foram publicados na Revista do Ensino em1930, 1931 e 1932, em forma de monografias, conforme se observa a seguir:
Os trechos dos trabalhos que publicamos hoje fazem parte de um estudo psycho-pedagógico experimental, ao qual julgamos util dar o nome de Escolologia. Este neologismo mostra que o objeto de nosso estudo é a escola e tudo que com ela se relaciona: administração escolar, prédio, higiene escolar, material didático, regime escolar, organização das classes, característico do ensino, métodos didáticos, diversas instituições auxiliares, e, enfim, o escolar, seu meio econômico e social; seu estado físico, (saúde e desenvolvimento corporal); seu nível de desenvolvimento mental; seus interesses e aspirações; suas diversas aptidões físicas; e, enfim, seus conhecimentos e sua formação escolar (Antipoff,1930, p. 146).
Segundo Antipoff (1930), as alunas do curso de psicologia da Escola de Aperfeiçoamento de Professores de Belo Horizonte fizeram um estudo minucioso das classes primárias de seis escolas da capital, durante um semestre. Para isso, seguiram um plano elaborado previamente, estudando em detalhe a vida escolar das crianças dessas classes.
Os dados foram recolhidos por observações, pesquisas e testes, ao final do estágio de seis meses organizavam-se os resultados em forma de monografias. Em cada monografia eram observados: a dimensão da sala de aula, o mobiliário, a ornamentação e higiene; o número de crianças e frequência; a situação social e econômica de cada família; o desenvolvimento corporal e saúde, além do nível mental das crianças. Eram aplicados também testes para percepção da atenção, memória, observação e testemunho, entre outros que avaliavam conhecimentos escolares de leitura, escrita, ortografia, composição e cálculo. Observavam-se também a conduta profissional do professor e seu trabalho pedagógico. Ao final, avaliavam-se os resultados como positivos ou negativos, levando-se em conta o rendimento escolar e desenvolvimento social dos alunos.
As alunas, ao possuírem suficientes informações sobre as condições materiais da classe em estudo, sobre o trabalho pedagógico, conhecendo minunciosamente a origem social das crianças, seu estado psíquico e sua capacidade intelectual, como seu rendimento escolar, comporiam monografias que:
deviam fazer conhecer o grupo escolar em seu conjunto: perímetro da cidade servida por ele; o seu ambiente psíquico, social e econômico: a parte física do grupo, a construção, o espaço destinado aos estudos, ao recreio, jogos; a higiene escolar, o mobiliário, as carteiras em particular, material didático, sua qualidade e quantidade; regime escolar geral: organização das classes, instituições escolares (bibliotecas, caixas escolares, museus, clubes, associações etc.); o corpo de professores; o orçamento do grupo (custo da construção e do material e a despesa anual); os métodos pedagógicos empregados (Antipoff, 1992a, p. 113).
A proposta de Antipoff era fazer uma investigação sistemática, observar as condições e os fatos da vida escolar das crianças; os meios educativos e os resultados obtidos por elas; as relações frequentes de causa e efeito, enfim o que ela considerava serem “as leis da pedagogia real”. Para ela: “As pesquisas escolológicas que as alunas da Escola de Aperfeiçoamento efetuaram [...] tinham por fim, sobretudo, sua formação profissional, no sentido de treiná-las em considerar os fatos pedagógicos sob o ponto de vista da ciência [...]” (Antipoff, 1992a, p. 116).
As monografias escolológicas - a prática da pedagogia experimental
Alguns trechos de monografias escolológicas elaboradas pela equipe do Laboratório de Psicologia entre fevereiro e agosto de 1930 foram publicados na Revista do Ensino em dezembro de 1930. O periódico era editado pela Inspetoria Geral da Instrução do governo mineiro, na época subordinada à Secretaria de Estado do Interior.
A publicação dos trabalhos é precedida por uma “Apresentação”, na qual o leitor é informado de que se trata de divulgação de trabalhos da Escola de Aperfeiçoamento, que “dão uma ideia do admirável trabalho que ali vem se desenvolvendo”. Sobre as finalidades da Escola, o texto evidencia a perspectiva crítica em relação à situação do ensino brasileiro e a valorização da orientação técnica e científica em relação à educação:
A Escola de Aperfeiçoamento foi fundada com o propósito de formar técnicos de ensino. Sem técnicos, não há obra que se faça bem. É por não termos técnicos que nada temos direito em matéria de ensino no Brasil. Por isso, o Governo mineiro em boa hora resolveu começar a sua obra pela raiz, isto é, pela preparação daqueles que pudessem encabeçar, promover e orientar uma larga reforma do ensino (Apresentação, 1930, p. 1).
A principal finalidade da Escola era, pois, a formação de professores com conhecimentos atualizados, e preparados para a pesquisa nas áreas da psicologia e da metodologia do ensino, com ênfase no conhecimento sobre a criança brasileira, conforme documenta o trecho a seguir:
Todos os conhecimentos, afinal, que se nos afiguraram essenciais à formação de um bom professor ali se vem ministrando a professoras recrutadas de todos os setores do Estado, de acordo com um cuidadoso critério de seleção. [...] Ao lado das aulas propriamente ditas, em que se passa em revista, de forma viva e interessante, o que há de importante nas várias especialidades - há um fecundo trabalho de pesquisas no campo da psicologia e da metodologia, de que muito se espera, não só para a fixação de novos processos de ensino, como também para o conhecimento da criança brasileira, o que é fundamental em qualquer organização de ensino (Apresentação, 1930, p. 2).
Os artigos que fazem parte da publicação são trabalhos de alunas nas áreas da metodologia de ensino das diversas disciplinas escolares (língua pátria, geografia, história, ciências naturais, artes) e trechos das monografias escolológicas, estas últimas intituladas “Ensaios de Pedagogia Experimental”. Na introdução às monografias, a orientadora desses trabalhos, Helena Antipoff, explica que se trata de ensaios que fazem parte do estudo psico-pedagógico por ela denominado Escolologia (Antipoff, 1930). Ao apresentar as finalidades dos estudos escolológicos e suas relações com a teoria educacional, a autora assim se expressa:
Como os naturalistas, tivemos a intenção de estudar a escola tal qual ela é. As teorias mais belas e harmoniosas, quando formuladas por pensadores ou decretadas novamente por leis, uma vez aplicadas devem ser rigorosamente verificadas, não de um modo empírico, mediante comprovação “à vol d’oiseau”8, mas por uma pesquisa sistemática e pormenorizada, afim de ter conhecimento preciso de seu valor real (Antipoff, 1930, p. 146).
Bastante crítica em relação à pedagogia da época, a autora cita a afirmação de Alfred Binet, que a considerava uma pseudociência, “que afirma sempre sem nunca provar coisa alguma”. Na visão desse autor, que Antipoff ratifica, “a prática educativa, em parte por causa da dificuldade de verificação, preocupou-se pouco em verificar, por métodos objetivos, seu rendimento e a qualidade desse rendimento” (Antipoff, 1930, p. 146).
Na visão de Antipoff, os resultados do ensino, em especial o ensino público, dependeriam de um grande número de fatores, entre os quais os mais importantes seriam, nessa ordem: os métodos utilizados, o preparo dos professores, os meios materiais colocados à disposição do ensino e, finalmente, as capacidades dos próprios alunos, que refletiriam a hereditariedade e o meio social. O papel da pedagogia cientifica seria promover a investigação sistemática desse conjunto de fatores:
Acreditamos que a pedagogia ganhará enormemente com essas investigações sistemáticas, empreendidas no sentido de verdadeiras investigações e que terão por fim descobrir entre as condições e fatos da vida escolar, entre os meios educativos e os resultados por eles obtidos, relações constantes de causa e efeito, portanto, as leis da pedagogia real (Antipoff, 1930, p. 147).
Essas primeiras pesquisas escolológicas faziam parte do programa do segundo ano do curso de Psicologia Educacional da Escola de Aperfeiçoamento. Entre fevereiro e agosto de 1930, as alunas, organizadas em dupla, realizaram visitas semanais a seis instituições escolares de Belo Horizonte, num total de 32 classes, que somavam cerca de mil crianças, trabalho que resultou em 32 monografias (Antipoff, 1930). No ano de 1931 foram acrescentadas 16 novas monografias às realizadas no ano anterior, que forneceram ao Laboratório de Psicologia documentos escolológicos sobre 48 classes, perfazendo o estudo de cerca de 1500 crianças (Antipoff, 1932).
As monografias deveriam descrever cada Grupo Escolar em seu conjunto, focalizando os seguintes aspectos: 1) região da cidade onde se localiza, seu ambiente físico, social e econômico; 2) aspectos físicos: tipo de construção, locais para estudos, recreio e jogos, mobiliário, material didático; 3) regime escolar, organização das classes, instituições auxiliares (bibliotecas, caixas escolares, museus, clubes, ligas, etc.); 4) as professoras e os métodos pedagógicos empregados; 5) orçamento do Grupo Escolar; 6) dados físicos, psicológicos e sociais sobre as crianças atendidas, resultados obtidos no ensino (Antipoff, 1930).
As características das crianças eram descritas quanto ao meio social e condições econômicas, sociais e culturais da família (nacionalidade e profissão dos pais, número de crianças na família, meios econômicos, nível cultural, educação, ocupações e distrações); estado físico das crianças, compreendendo dados sobre seu desenvolvimento corporal e sua saúde; nível mental das crianças, medido através de testes de inteligência geral seguidos de observações sistemáticas, no intuito de validar os resultados quantitativos. Com base nesses dados eram elaborados os perfis pedológicos individuais e de cada classe. Os dados dos testes eram então agregados visando a construção dos baremas por idade e sexo relativos a essa população. As observações do trabalho pedagógico e das atividades das crianças em sala de aula visavam reunir informações sobre o tipo de disciplina imposta aos alunos (passiva ou ativa), as funções mentais mais trabalhadas (atenção, memória, iniciativa, responsabilidade). O conjunto dos resultados era então analisado visando verificar os resultados obtidos tanto em termos de rendimento escolar quanto de desenvolvimento social dos alunos (Antipoff, 1930).
Para justificar o trabalho realizado, Antipoff cita dois autores positivistas que defenderam fortemente a observação sistemática da realidade e a experimentação como fundamentos da ciência moderna: Auguste Comte e Francis Bacon. A ideia era promover a aplicação dos princípios do método científico definidos pelos dois autores na construção das ciências da educação. No dizer de Antipoff:
A ciência dá a possibilidade de fazer, sobre os fenômenos, por ela estudados, julgamentos mais exatos, precisos e independentes do sentimento pessoal. É o que importa grandemente para o proveito da educação, que peca justamente pelo contrário, pelo “mais ou menos” dos julgamentos e pelo subjetivismo de tudo o que se refere à pedagogia (Antipoff, 1930, p. 151).
Em seguida, a publicação apresenta alguns recortes dos estudos escolológicos realizados em 1930, elaborados por um grupo de professoras-alunas da Escola de Aperfeiçoamento cujos nomes foram registrados em conjunto, sem identificar a qual monografia se referiam. Também no intuito de preservar o sigilo profissional, os nomes das professoras e das crianças das classes observadas não foram revelados. Tratam-se de exemplos dos dados coletados, de sua organização e das inferências feitas sobre a qualidade do processo educativo a partir das informações obtidas.
Nas próximas seções apresentamos a análise do conteúdo dos trechos das monografias publicados em 1930, organizada a partir das variáveis identificadas e estudadas pelas próprias autoras.
Sobre o meio ambiente e origem social dos alunos
A primeira monografia citada apresenta um Grupo Escolar situado em um bairro central de Belo Horizonte, com características que o classificavam como industrial e comercial. Segundo o relatório, o bairro era cheio de vida, porém muito ruidoso por causa das usinas, fábricas e grande número de veículos que ali circulavam. Possuía muitas linhas de ônibus e bondes que o ligavam a pontos extremos da cidade. Em quase todas as casas encontravam-se profissionais que se dedicavam aos ofícios de sapateiro, seleiro, alfaiate, chapeleiro, dentre outros.
A população do bairro era constituída basicamente por operários, artífices e comerciantes de baixa renda. Observou-se grande parte das crianças descalças, brincando nas ruas após o horário das aulas. O bairro não oferecia lugar apropriado, como jardins ou parques, onde as crianças pudessem brincar. Os alunos e alunas do Grupo Escolar estudado residiam, na sua maioria, no bairro onde este estava situado, outras residiam em outros bairros e, até mesmo, em bairros muito distantes. Na instituição havia 603 crianças matriculadas, dois terços delas eram filhas de brasileiros e um terço, filhas de estrangeiros (italianos, portugueses, espanhóis, turcos, sírios e orientais). A tabela relativa às profissões dos pais dos alunos do Grupo apresenta os seguintes dados:
Operários (131 não qualificados, 121 qualificados) .............................. 252 (48,83%) |
Comerciantes........................................................................................... 134 (25,95%) |
Funcionários............................................................................................. 66 (13,80%) |
Industriais, proprietários.................................................................................. 31 (6%) |
Profissões liberais......................................................................................... 16 (3,1%) |
Soldados, guardas......................................................................................... 11 (2,1%) |
Outros............................................................................................................. 8 (1,1%) |
Fonte: Antipoff, 1930, p. 154.
Os dados do relatório demonstram que a maioria das crianças provem de famílias de operários, com nível de renda bastante modesto. No que diz respeito às outras profissões, observa que as categorias utilizadas pela escola para classificar as profissões não as diferenciam adequadamente por nível de renda. A categoria dos comerciantes, por exemplo, podia incluir tanto proprietários de lojas quanto vendedores ambulantes. O mesmo acontecia com a categoria “funcionários”, que podia incluir tanto o porteiro da escola quanto um alto funcionário do governo. Tendo em vista essas imprecisões, as autoras sugerem aprimorar o sistema de classificação das profissões, tornando-o o mais informativo no que diz respeito ao nível de recursos financeiros das famílias.
Ao final da descrição, uma questão é colocada: qual seria a relação entre a condição socioeconômica dos alunos e seu desenvolvimento geral, isto é, físico, intelectual e social? Esta seria uma das questões às quais os estudos escolológicos buscavam responder (Antipoff, 1930, p. 154). Trata-se de questão que aparece de forma recorrente na obra de Antipoff, desde o período vivido na Rússia soviética, no qual ela teve a oportunidade de observar crianças e adolescentes provenientes de famílias de diferentes níveis socioeconômicos e culturais e de iniciar pesquisas visando avaliar o impacto dessas condições no desenvolvimento mental e desempenho escolar desses indivíduos. Foi naquela época que Antipoff propôs o conceito de “inteligência civilizada” para descrever o conjunto de habilidades intelectuais medidas nos testes de inteligência, observando que não se trata de atributo “natural”, mas sim já polido pela ação da sociedade e da cultura. Com isso, a autora vinha incorporando o efeito civilizatório de melhores condições de vida no próprio conceito de inteligência. Essas reflexões vão aparecer com mais clareza no relatório de pesquisa sobre o desenvolvimento mental das crianças de Belo Horizonte, publicado em 1931 com base no conjunto de dados sobre o nível de inteligência dos escolares de Belo Horizonte obtidos nesses estudos escolológicos e complementados com estudos de estudantes da Escola Normal local (Antipoff, 1931; Campos, 2012; Masolikova e Sorokina, no prelo).
Em seguida são apresentados trechos da monografia de uma classe do terceiro ano, composta por 20 meninos e 21 meninas, com idades entre 8 e 12 anos, situada em grupo escolar de “meio social elevado”. Nessa classe foi aplicado o questionário sobre as características das crianças e suas famílias, e também o questionário sobre ideais e interesses infantis9, obtendo-se dados sobre:
- a relação idade/ano escolar (considerando-se regulares no 3º ano as crianças com 9-10 anos) - observou-se que dos 41 alunos e alunas somente 22 estavam na faixa etária regular, sendo 13 precoces e 6 retardados do ponto de vista escolar, 5 delas repetiram o primeiro ano;
- a origem étnica das famílias - maioria de brasileiros, com presença minoritária de estrangeiros (espanhóis, italianos, portugueses, franceses). Duas meninas “apresentam vestígios da raça preta”;
- a assiduidade: a frequência às aulas variou entre 71 e 100%. As faltas são causadas seja por doenças, seja por “exagerado zelo dos pais, que julgam excessivo o trabalho escolar e receiam prejudicar a saúde dos filhos”;
- o número de irmãos, posição da criança na família. Observa-se que “não há nenhum filho único, o que concorre para o desenvolvimento social da classe”;
- o meio social: considerado elevado, o relato afirma que os pais ocupam cargos de prestígio e de alto valor econômico, as crianças “estão em relação frequente com outras famílias, em contato frequente com a sociedade”. Observa-se que a cultura dos pais estimula os filhos a estudar e a buscar se preparar para seguir carreiras similares às dos adultos da família. Nessas famílias mais afluentes, os pais acompanham com interesse os trabalhos escolares dos filhos. Apenas três crianças na turma são consideradas pobres, duas delas recebem auxílio da Caixa Escolar (roupas e remédios);
- o lazer: o relato afirma que grande parte das crianças tinham feito viagens, inclusive marítimas, e frequentavam sessões cinematográficas, “experiências que contribuem para o seu desenvolvimento social e mesmo intelectual” (Antipoff, 1930, p. 181).
Sobre a organização das classes escolares e o desempenho das crianças
Os dados que exemplificam observações sobre a organização das classes e desempenho das crianças foram retirados de outra monografia, e se referem a Grupo Escolar também situado em Belo Horizonte. Nessa escola a matrícula foi de 688 crianças no início do ano letivo, sendo que em junho restavam 603 alunos, indicando que cerca de 85 crianças abandonaram os estudos ou se transferiram para outra escola. As crianças eram distribuídas em dois turnos: 420 estudavam pela manhã, e 183 à tarde, em 20 turmas, com a seguinte distribuição: dez classes de primeiro ano, com 292 crianças; quatro classes de segundo ano, com 128 crianças; três classes de terceiro ano, com 103 crianças; e por último, três quartos anos, com 74 crianças, num total de 597 crianças, somadas a partir das listas das professoras, dados estes que não coincidem com os registros de matrícula.
A monografia relata a percepção de um desequilíbrio na organização das classes e distribuição dos alunos em consequência da grande retenção dos estudantes no primeiro ano escolar, que diminuía gradativamente até se chegar ao quarto ano. Os dados apresentados em relação à organização das classes são os seguintes:
Série | Nº de classes | Nº de crianças | Percentual do total de alunos do Grupo Y por série | Percentual de alunos dos Grupos Escolares de Belo Horizonte por série |
---|---|---|---|---|
I | 10 | 292 | 49,0% | 39,1% |
II | 4 | 128 | 21,4% | 27,3% |
III | 3 | 103 | 17,2% | 19,9% |
IV | 3 | 74 | 12,4% | 13,7% |
TOTAL | 20 | 597 | 100,0% | 100,0% |
Fonte: Antipoff, 1930, p. 155-156.
Observa-se uma grande concentração de estudantes no primeiro ano, fato esse que condicionava a distribuição dos alunos para a formação das demais turmas nos níveis seguintes de escolaridade, e que se repetia nas outras escolas da cidade. Os alunos das dez classes de primeiro ano tinham idade entre 6 e 12 anos, muitas crianças ficavam retidas no primeiro ano, repetindo-o duas, três, quatro vezes. As autoras se questionavam sobre o motivo de tamanha desigualdade, seria por dificuldade de aprendizagem ou evasão escolar após o primeiro ano de instrução?
Ao consultarem as professoras de cada classe, apuraram as seguintes causas das repetições: transferência de uma escola para outra, doença, infrequência, insucesso em uma das matérias ou em todas as matérias, dificuldade de compreensão, retardamento no desenvolvimento mental, entre outras. Cogitou-se a possibilidade de terem existido outras causas para o fracasso escolar que as professoras poderiam ter omitido, talvez, por vergonha: infrequência das professoras, deixando a classe atrasada, e competência insuficiente para o desempenho da profissão (Antipoff, 1930).
Sobre as Condições Físicas, Psicológicas e Sociais das Crianças
A parte dos estudos escolológicos que trata das crianças é a mais completa. São abordados aspectos do desenvolvimento físico (alimentação, higiene, aparência, tônus muscular, postura, medidas antropométricas como altura, peso, relação altura/peso, perímetro cefálico e torácico, capacidade respiratória, força muscular, resistência física, audição e visão); desenvolvimento mental (inteligência, relação inteligência/meio social, atenção, memória, capacidade de julgamento, ideais e interesses); características da família (nacionalidade, nível educacional, profissão, religião dos pais, número de filhos, tipo de habitação, espaço físico de que dispõe a criança em casa), tipo de educação em casa (participação em trabalhos domésticos, castigos, punições, brinquedos, atividades de lazer, viagens), tipo de trabalho pedagógico realizado na sala de aula (atividades propostas pela professora, conduta das crianças durante as aulas, aspectos psicológicos e psicossociais associados a cada atividade). Para cada item observado, instrumentos de pesquisa específicos foram utilizados, alguns elaborados pela própria equipe do Laboratório de Psicologia da Escola de Aperfeiçoamento, outros já conhecidos e utilizados em outros países, que passamos a descrever.
Desenvolvimento físico e estado de saúde das crianças
Com relação às condições de vida das crianças em suas casas, as pesquisadoras mostram dados objetivos sobre a alimentação (presença de alimentos como carne e leite na composição das refeições), asseio pessoal e limpeza das roupas que usam, e o espaço que ocupam na habitação. Observam que em geral a alimentação é deficiente (cerca de 50% das crianças não consumiam carne diariamente, cerca de 30% nunca tomavam leite). Foram coletados dados sobre a frequência de mudanças de roupa (variando entre 25% que mudavam diariamente, e 15% não sabiam quando mudavam). Sobre a habitação, há dados sobre o número de cômodos das casas e o espaço que a criança ocupa, sua posição na família. Os dados parecem ter sido coletados em questionários respondidos pelas próprias crianças, ou em observações na sala de aula.
Relatos sobre uma das classes observadas dão conta de que a nutrição era deficiente na média da classe. Há informações sobre o número de crianças por família, indicando uma média de 6 filhos para cada casal. Além de pais e irmãos, costumavam morar parentes que ocupavam o mesmo quarto que as crianças, muitas disseram apanhar dos pais. Sobre os serviços domésticos relataram trabalhar em casa ou como aprendizes dos ofícios dos pais. A maioria dos pais eram alfabetizados e ajudavam nos deveres de casa dos filhos. Poucas crianças possuíam algum tipo de brinquedo, muitas informaram não sair de casa aos domingos. Os dados indicaram que algumas crianças frequentavam cinema, circo e jogos de futebol e que muitas nunca tinham saído de Belo Horizonte. Todas disseram ser de família católica, uns frequentavam mais a igreja aos domingos que outros.
Uma das turmas apresentou média inferior às demais quanto ao meio social e familiar, os dados descritos foram: crianças com aparência débil e com falta de tônus muscular. Foi registrado que tais indícios poderiam indicar nível de desenvolvimento mental inferior desses alunos, que foram medidos e pesados. Ao compararem os resultados obtidos com os de outras classes, concluiu-se que as crianças estavam com o peso abaixo do ideal. Foi medida a força muscular das crianças por meio do dinamômetro de Collin10 . Para conhecer a resistência física dos alunos foi realizada a experiência da estátua, em que as crianças ficavam de pé com os braços abertos e imóveis, durante o máximo de tempo que conseguissem. A média das crianças resistiu durante três minutos.
Foi relatado não ter sido possível realizar exame minucioso da audição das crianças por causa das condições ambientais, muito barulho vindo das outras salas, da rua, da escada, do recreio. Pela experiência de atenção auditiva, que consiste em bater ligeiramente certo número de vezes com o lápis em cima da mesa e pedir que as crianças anotassem os resultados em uma folha de papel, verificou-se que nenhum aluno possuía defeito grave de audição. Constatou-se que as crianças possuíam boa visão, com exceção de uma aluna míope, que chamou a atenção das pesquisadoras pelo modo de ler e escrever. Constatou-se que a professora não havia observado a deficiência da criança, que, levada ao médico escolar, obteve a prescrição para o uso de óculos. A maior parte da infrequência das crianças às aulas era causada por enfermidades como gripe, sarampo, dor de dente, dor de cabeça (Antipoff, 1930).
Foram feitas também medidas antropométricas objetivas (altura, peso, perímetro cefálico e torácico) para cada criança. A relação entre a altura e peso foi calculada pelo índice de Quetelet (Peso/Tamanho). Os índices de cada escolar foram somados, e calculada a média da classe, que por sua vez foi comparada à média obtida por outras classes do mesmo ano de escolarização. Também foram calculadas as médias dos perímetros cefálico e torácico para todas as crianças das classes estudadas. Os índices cefálico e torácico, individualmente, foram utilizados para detectar possíveis anomalias no desenvolvimento. Também foram coletadas medidas individuais da capacidade respiratória, utilizando-se um aparelho denominado ‘espirômetro seco de Barnès’. Os procedimentos de medida são descritos minuciosamente, as médias das classes calculadas e comparadas às de outras. Ao final é apresentado um Perfil Antropométrico Médio da Classe, com os dados agregados relativos à altura, peso, perímetros cefálico e torácico, índices de capacidade vital (medida com o espirômetro) e de força muscular.
Todas essas medidas minuciosamente tomadas tinham por objetivos tanto detectar possíveis anomalias quanto identificar a necessidade de melhorias da saúde física das crianças, visando mais eficiência no trabalho escolar. Era também objetivo desses estudos a elaboração dos baremas relativos ao desenvolvimento físico da população escolar da cidade. Esses baremas iriam ser utilizados em estudos comparados, e na identificação dos grupos escolares onde as condições de saúde física das crianças evidenciassem a necessidade de intervenções mais direcionadas por parte da escola (Antipoff, 1930).
Desenvolvimento mental e socio-moral das crianças
Com relação ao desenvolvimento mental das crianças, o principal aspecto estudado foi o nível de inteligência, definido como as capacidades de “compreensão, julgamento, e a facilidade de concepções de que a nossa classe era dotada”, conforme relato de observação de uma das classes. As autoras confirmam no texto sua curiosidade: “Entrando em uma classe, vem-nos uma interrogação tão rápida quanto ansiosa: é esta uma classe inteligente ou não?” Ao mesmo tempo, preocupam-se com as relações entre o ensino e o desenvolvimento mental das crianças: “desejávamos conhecer qual o trabalho da professora no desenvolvimento da inteligência daquelas crianças e qual a reação da classe recebendo tais conhecimentos” (Antipoff, 1930, p. 168). Essa afirmação evidencia que consideram a inteligência uma capacidade passível de ser modificada a partir da atuação do educador, descartando, portanto, a perspectiva inatista sobre as capacidades intelectuais. Trata-se de posição bastante avançada na época, contrária às tendências do darwinismo social, então bastante disseminadas no Brasil (Schwarcz, 1993).
As autoras relatam que a avaliação do nível de inteligência das crianças era feita de maneira espontânea e impressionística, logo no primeiro contato com a classe, evidenciando os critérios usuais na comunidade para o julgamento da inteligência - brilhantismo, coordenação no trabalho, originalidade:
Desde os primeiros dias de convivência com uma classe, começamos a formular: hoje é X mais inteligente por uma resposta brilhante; amanhã é Z por um trabalho bem coordenado; depois A por manifestação de ideias originais, e assim vamos progredindo e concluindo, nunca chegando algumas vezes a conhecer a verdade (Antipoff, 1930, p. 169).
Logo a seguir, no entanto, afirmam que era preciso utilizar métodos mais confiáveis na avaliação: observação e testes, “que poderiam nos dar uma ideia, senão perfeita, pelo menos aproximativa da inteligência geral de uma criança”. Os testes então utilizados foram o teste coletivo de Dearborn, o Goodenough e o teste das 100 questões de Ballard, nomeados a partir de seus autores, os psicólogos Walter Fenno Dearborn e Florence Goodenough (norte-americanos) e Philip B. Ballard (inglês). O teste Dearborn é descrito como constando de 17 questões, “contendo apenas aquilo que toda criança é capaz de perceber, observar e compreender, nenhuma experiência acima das que pode uma criança, por mais pobre que seja”. O teste de Ballard é visto como mais complexo, exigindo das crianças “perspicácia, memória, atenção, escrita e conhecimentos gerais”. Foi avaliado como cansativo. A pesquisadora comentou, a propósito:
Acostumadas como estão nossas crianças a receber conhecimentos que visam mais encher o reservatório da memória do que desenvolver o julgamento e observação, achei que principalmente para o 2º ano este teste estava um pouquinho difícil (Antipoff, 1930, p. 169).
O terceiro teste utilizado, o Goodenough, consiste no desenho da figura humana pelo examinando. A classificação é feita por idade, considerando-se o número de elementos e detalhes do corpo humano e das vestimentas presentes no desenho11. As autoras comentam, a propósito desse teste:
À primeira vista parece impossível ter-se ideia da inteligência pelo desenho de uma figura humana. Mas, pensando bem, podemos nos convencer de que, até certo ponto, é medida muito interessante. O que faz ali a criança é representar a imagem interna que tem dentro de seu cérebro. É então muito curioso notar quais os pontos que a criança é capaz de distinguir e reproduzir do conjunto humano (Antipoff, 1930, p. 169-170).
Os resultados da aplicação dos três testes são então apresentados em uma tabela, mostrando que os melhores resultados foram obtidos com o teste Dearborn, seguidos pelo Goodenough. No Ballard os alunos obtiveram os piores resultados. A seguir, a congruência entre os resultados dos testes e as observações feitas pela professora da classe e pelas pesquisadoras foram comparados. Nas observações foram focalizadas características das crianças, como “clareza de ideias, justeza dos pequeninos argumentos, palestras com os colegas, saídas nas dificuldades, trabalhos diários em classe” (Antipoff, 1930, p. 170), evidenciando o cuidado na definição dos critérios de julgamento, provavelmente utilizando o método Lazursky. Verificou-se que o Teste Dearborn foi o que mais se aproximou dos resultados das observações, e que as observações da professora coincidiram na maioria das vezes com as das pesquisadoras. Em seguida foram apresentadas análises mais finas e detalhadas sobre os resultados de algumas crianças que se destacaram seja por resultados superiores ou inferiores à média. Nessas descrições aparecem também características de personalidade. Uma criança com resultados superiores é descrita como “sempre calma, mas de respostas prontas e claras, com ótima leitura, facilidade de compreensão e atenção bem regular”. Outra criança bem avaliada é descrita como “sempre calada, criticando muitas vezes as ações e ideias dos outros, só pela expressão do olhar”. Outras crianças demonstram “perspicácia e muito desenvolvimento social”. A classe como um todo é considerada como formada em sua maioria por “espíritos curiosos, vivos e muito acessíveis”, alguns poucos alunos são vistos como “moles e indecisos”. Algumas aptidões especiais são notadas a partir das observações, como habilidades para o desenho, escrita literária e matemática.
Em resumo, a aplicação dos testes e as observações parecem ter sido bastante apreciados pelas autoras das monografias. A análise feita é muito minuciosa e respeitosa para com as crianças, e algumas das reações infantis parecem diverti-las. Os comentários mostram também a utilidade desses procedimentos para a orientação geral da classe e para a identificação de problemas ou aptidões especiais que exigem alguma intervenção dos educadores. O ideal rousseauniano - conhecer a criança para melhor educá-la - parecia estar sendo seguido com muita diligência pelas alunas do Laboratório de Psicologia da Escola de Aperfeiçoamento, conforme indica o relatório.
Relação entre inteligência e meio social
Em uma outra monografia aparece uma interessante análise da correlação entre inteligência e meio social. O método seguido para calcular a correlação incluiu a comparação entre os extremos. Foram comparadas crianças consideradas muito inteligentes, com percentis acima de 75% nos testes Dearborn e Goodenough, e crianças avaliadas como com “inteligência fraca” ou “muito fraca” (percentis abaixo de 25%), sendo esses resultados congruentes com as observações da professora e das pesquisadoras. Os resultados são apresentados em um quadro, correlacionando as avaliações e o meio social de onde provem as crianças:
Inteligência | Meio social superior | Meio social inferior |
---|---|---|
Muito boa | 9 (a) | 1 (b) |
Muito fraca | 1 (c) | 5 (d) |
Fonte: Antipoff, 1930, p. 173.
Após encontrar o coeficiente de associação entre os dois fatores (inteligência e meio social) da ordem de 95%12, as autoras comentam que a relação entre inteligência e meio social é muito alta, quase alcançando uma correlação perfeita.
A monografia não apresenta explicação para essa alta correlação. Antipoff, no entanto, em outra publicação da época, apresenta sua hipótese para explicar porque as crianças dos bairros populares apresentavam médias menores nos testes de inteligência, relação que se repete quando os dados das várias monografias escolológicas são agregados. Em relatório de pesquisa sobre o desenvolvimento mental das crianças de Belo Horizonte, publicado em 1931, e que reúne os resultados obtidos para o conjunto das crianças de Belo Horizonte, a psicóloga define a inteligência medida pelos testes não como uma disposição natural, determinada pelas condições hereditárias e pela idade, mas como a resultante de um conjunto de fatores:
(A inteligência) é um produto mais complexo, que se forma em função de diversos agentes, entre os quais distinguimos, ao lado das disposições intelectuais inatas e do crescimento biológico, também o conjunto do caráter e o meio social, com suas condições de vida e sua cultura, na qual a criança se desenvolve, e, finalmente, a ação pedagógica, a educação e a instrução, à qual a criança se sujeita tanto em casa quanto na escola (Antipoff, 2002, p. 85)
Assim, argumenta que os resultados obtidos nos testes seriam o resultado de uma “inteligência civilizada, mostrando, assim, que os testes se dirigem à natureza mental do indivíduo, polido pela ação da sociedade em que vive e desenvolvendo-se em função da experiência que adquire com o tempo” (Antipoff, 2002, p. 85). Esse conceito de “inteligência civilizada”, utilizado para interpretar os resultados dos testes, foi uma contribuição relevante e original de Helena Antipoff ao debate da época sobre as questões da origem e desenvolvimento das capacidades intelectuais na criança. Em carta a Claparède datada de 9 de julho de 1930, comentando os resultados obtidos com as monografias escolológicas, a psicóloga observa o peso das variáveis sociológicas nos processos educativos em sala de aula: “O domínio psicológico estudado nessas condições de vida social perde cada vez mais seu caráter independente e intrínseco para se ver incorporado e englobado no domínio social” (Ruchat, 2010, p. 92).
Essas reflexões irão acompanhar também a parte das monografias escolológicas que trata das relações entre o trabalho pedagógico em sala de aula e o desenvolvimento psicológico e psicossocial das crianças, como veremos a seguir.
Relação entre o trabalho pedagógico e o desenvolvimento psicológico das crianças
Um foco importante das pesquisas escolológicas refere-se à relação entre o trabalho pedagógico realizado pelas professoras nas salas de aula e o desenvolvimento psicológico das crianças. Para estabelecer essa relação foram levantados dados relativos a:
1) Frequência de atividades didáticas propostas, a partir das anotações do “caderno de lições” da professora. No exemplo retirado de uma das monografias, observam-se os percentuais das atividades realizadas nas áreas da linguagem (composição escrita, redação de cartas, ditado, correção de erros de composição no quadro negro, explicações de gramática, jogos diversos); aritmética (jogos, problemas exposições); geografia (explicações no mapa, cartografia, jogos; higiene (explicações através de histórias).
2) Observações da conduta das crianças em cada atividade: para cada aula observada registram-se com detalhes as ações das crianças e suas reações às propostas e instruções da professora. Por exemplo: as crianças observadas durante uma atividade de redação são descritas como “obedecendo à professora com uma certa lentidão, escrevem, de vez em quando dirigindo-lhe uma pergunta ou outra”; em uma aula de “contar histórias”, dada por um assistente técnico, as crianças, ao serem autorizadas a mudar as carteiras de lugar, “depressa e rindo muito, alegres, espalham as carteiras em círculo, sentam-se e olham para o professor”; Para cada aula específica (aritmética, ciências naturais, geografia, geometria, etc.) observações similares são relatadas.
3) Análise funcional e caracterológica da conduta durante as aulas. Essa análise, que parece inspirada no método Lazursky, aparece em um quadro que apresenta o aspecto psicológico observado (por exemplo, o interesse positivo), a atividade que o desencadeou (um jogo na aula de aritmética) e a reação observada, que permitiu a inferência descrita (“a criança esfrega as mãos e sorri contente”). Os aspectos psicológicos observados incluem tipos de interesses (positivos, negativos, competitivos); hábitos e automatismos observados; reações que expressam disciplina, dependência, obediência, passividade, iniciativa, solidariedade, impaciência, prazer ou aversão ao trabalho, atenção (espontânea, dividida), memória, curiosidade, etc. As reações relacionadas a cada aspecto observado são minuciosamente descritas. A conduta que expressa o interesse negativo, por exemplo, é descrita como “quando a professora manda fazer um exercício, uma criança exclama aborrecida: - ih!”. A fadiga diante de uma arguição longa no quadro negro é expressa quando “as crianças se mexem, olham para os lados, passam a mão no rosto, bocejam”. A obediência é vista quando “mandada pela professora, a criança vai para perto do quadro para ficar de castigo, de pé”. A atenção espontânea é observada quando “ouvindo uma história, a criança fita imóvel a professora, abre a boca e assim permanece” (Antipoff, 1930, p. 177-179).
Síntese das observações escolológicas
Ao final do artigo são apresentados os resumos das observações realizadas em classes localizadas em três diferentes Grupos Escolares, com a síntese dos dados obtidos em relação ao número de meninos e meninas, idade, meio social, nível de desenvolvimento mental, perfil e ações da professora, tipo de disciplina da classe, trabalho pedagógico realizado e resultados obtidos em termos de rendimento escolar e de aspectos psicológicos enfatizados.
O perfil geral da classe é apresentado em um gráfico que inclui os resultados obtidos pela classe nas medidas antropométricas, testes de atenção, memória e inteligência, e nas avaliações escolares. Além do perfil geral das classes são apresentados exemplos de perfis pedológicos de algumas crianças, com uma síntese quantitativa e qualitativa dos resultados das medidas e testes, seguida de uma avaliação densa e aprofundada das características físicas, psicológicas, psicossociais, interesses e ideais, personalidade e resultados escolares das crianças.
O perfil evidencia os resultados das crianças nas medidas antropométricas, nos testes de atenção, memória e inteligência, e nos exames escolares. A classe T aparece com resultados acima da média na antropometria, e resultados superiores nos testes de inteligência. Após a apresentação do perfil, são listados os principais fatores positivos e negativos considerados como determinantes dos resultados do trabalho escolar. Entre os fatores positivos são mencionados o nível mental das crianças, seu desenvolvimento físico, o meio social e econômico das famílias, a experiência já adquirida pelas crianças através da leitura, frequência ao cinema, viagens, conversas e excursões, a colaboração dos pais, a assistência médica e dentária disponível, o entendimento entre professores e diretora. Entre os negativos, destacam-se sobretudo defeitos atribuídos à professora (falta de compreensão das necessidades dos alunos, métodos repetitivos, excesso de preocupação com o preparo dos alunos para os exames, falta de sutileza nas críticas, parcialidade). O perfil de uma das classes pesquisadas, a classe T, cujos dados mencionamos anteriormente, pode ser observado na reprodução do gráfico a seguir:
Dados de outra monografia são apresentados para mostrar como foi calculado o “quociente de eficácia” do trabalho escolar realizado, medido através de uma fórmula proposta pelo educador norte-americano Elwood Cubberley. O quociente de eficácia se obtém pela divisão do “quociente escolar” (a idade escolar dividida pela idade real das crianças) pelo quociente intelectual (a idade mental obtida nos testes de inteligência dividida pela idade real).
Quando os quocientes escolares são superiores aos quocientes intelectuais e o quociente de eficácia é maior que a unidade, significa que o trabalho educativo foi eficaz. Caso contrário, se o quociente escolar for menor que o intelectual, significa que a educação foi deficiente. A conclusão é que as medidas feitas no trabalho escolológico são úteis para se avaliar a qualidade do ensino ministrado às crianças. Segundo a autora da monografia: “O trabalho da pedagogia científica chega assim à possibilidade de emitir, a respeito do trabalho escolar, juízos objetivos, precisos, independente dos sentimentos pessoais e das apreciações aproximativas” (Antipoff, 1930, p. 213).
A autora observa, no final do artigo, que os estudos apresentados foram um primeiro ensaio que teve o objetivo de fazer com que as alunas iniciantes como pesquisadoras compreendessem o interesse da investigação escolológica, mostrando como formular claramente os problemas de pesquisa, elaborar métodos apropriados para encontrar respostas às questões formuladas. Antipoff destacou ainda que, durante o processo de desenvolvimento das pesquisas, foi possível perceber como alguns métodos adotados se mostraram imperfeitos e defeituosos e que seria preciso concentrar esforços para aperfeiçoá-los no ano seguinte, quando o trabalho fosse retomado pelas novas alunas da Escola de Aperfeiçoamento, promovendo assim a continuidade na busca de conhecimentos sobre o sistema de ensino estudado.
Considerações conclusivas
Neste artigo focalizamos uma das estratégias de formação de professores promovida pela psicóloga e educadora Helena Antipoff nos primeiros anos da década de 1930 na Escola de Aperfeiçoamento de Professores de Belo Horizonte. Consideramos relevante trazer à cena as contribuições da Escolologia, uma inovação na análise científica da escola elaborada por Antipoff sob a inspiração de sua formação na Europa, principalmente na Pedagogia Experimental, proposta por Édouard Claparède, e na Experimentação Natural, do psicólogo russo Alexander Lazursky. Seria a Escolologia uma combinação dessas duas perspectivas sobre a educação e a observação das características da subjetividade da criança em diálogo com a psicologia? Esta é talvez uma das muitas possíveis leituras para essa nova área de conhecimento introduzida por Antipoff. A ideia era que a escola seria uma instituição de grande complexidade, merecendo, portanto, uma ciência a ela dedicada.
A Escolologia tinha como meta combinar ciência e educação, construindo assim uma proposta científica para a pedagogia. O fenômeno educativo, os resultados da ação da escola são considerados como a síntese de múltiplos aspectos do processo escolar. Somente a partir da observação e análise minuciosa desses diversos aspectos é que seria possível propor intervenções consistentes. Nesse sentido, a formação de alunos e alunas através das pesquisas ditas escolológicas era considerada essencial.
A análise dos documentos indicou serem a Experimentação Natural e a Pedagogia Experimental as principais inspirações para os estudos escolológicos. Os resultados obtidos demonstraram como os Estudos Escolológicos foram sistematizados e como os elementos que compõem a instituição escolar foram estudados pelos alunos da Escola de Aperfeiçoamento, em sua maioria professoras, normalistas já atuantes no ensino primário na época. Os dados indicaram que Antipoff pensava a formação das professoras/alunas da Escola de Aperfeiçoamento a partir da pesquisa psicológica e pedagógica, buscando compreender os problemas educacionais pela observação sistemática dos alunos e pelo estudo do campo de trabalho, que era a escola, integrando os aspectos da organização escolar, os professores que nela atuavam, bem como do meio social do qual provinham estes alunos, as suas origens e costumes familiares.
Com esses estudos as autoras das monografias podiam ampliar sua percepção sobre os fatores positivos e negativos que atuavam na escola, produzindo (ou não) resultados satisfatórios na promoção do desenvolvimento físico, intelectual, emocional e social dos alunos. Puderam, também, ampliar a visão sobre os resultados dos testes de inteligência que tinham o objetivo de conhecer melhor as capacidades intelectuais das crianças, contribuindo no processo de organização das classes. Era importante igualmente também escutar os ideais e interesses infantis e observar as aptidões e características da personalidade das crianças para levá-los em consideração na organização das atividades escolares. O diálogo com as propostas claparedianas da educação funcional e da escola sob medida está presente na pesquisa escolológica.
Na época, dentre os fatores negativos observados nas escolas de Belo Horizonte, as monografias escolológicas chamaram a atenção para o fato de haver uma grande retenção de alunos no primeiro ano de escolarização. Os dados indicaram alguns fatores que poderiam ter influenciado no processo de retenção dos alunos, como a desnutrição e os métodos pedagógicos, muitas vezes considerados alheios ao contexto social e cultural das crianças. Nos relatórios escolológicos observa-se grande ênfase na ação dos fatores socioculturais no desenvolvimento das crianças, tanto do ponto de vista da saúde física quanto nos aspectos psicológicos e psicossociais, contrariando tendências inatistas presentes no pensamento educacional da época.
Não seria a Escolologia, a arte de estudar a escola, um bom modelo de perceber os problemas educacionais também na atualidade? O contato com as fontes analisadas e o diálogo sobre essas fontes com nossos alunos e alunas levou-nos a refletir sobre como a formação docente na atualidade prescinde de oportunidades de contato com a escola. O estágio supervisionado nos cursos de formação de professores poderia se inspirar em abordagem similar à combinação de ciência e educação proposta por Antipoff na Escola de Aperfeiçoamento, fortalecendo assim a prática da pesquisa no processo de formação de professores. À observação do trabalho docente na educação infantil e anos iniciais da educação básica, realizada em estágios dos cursos de Pedagogia, poderiam ser acrescentadas práticas de pesquisa para se propor futuras intervenções, num diálogo mais proveitoso entre Academia e Escola. Experiências recentes de réplica e atualização dos procedimentos de pesquisa escolológica sugeridos por Helena Antipoff tem-se revelado promissores no planejamento educacional atual (Duarte, Cassemiro e Almeida, 2017). Esperamos que o conhecimento sobre as primeiras pesquisas escolológicas realizadas em Belo Horizonte, em 1930, possa contribuir para inspirar novos estudos sobre o tema, valorizando experiências inovadoras como as de Helena Antipoff e suas alunas-pesquisadoras, realizadas em território brasileiro.