O livro “Formação docente, didática e projeto político-pedagógico - o legado de Ilma Passos Alencastro Veiga” é composto por capítulos escritos por diferentes autores que celebram a vida e a obra da referida docente. Nessa obra, o primeiro capítulo apresenta a trajetória e vida da educadora e pedagoga brasileira, que formulou um Projeto Político-Pedagógico (PPP) da escola como uma ação intencional direcionada à prática educativa e que assume um compromisso político com a transformação social. Nessa perspectiva, a educação é considerada uma atividade emancipadora que visa à formação de cidadãos críticos e conscientes, capazes de refletir sobre suas realidades e buscar alternativas concretas de libertação.
O primeiro capítulo elaborado por Viana e Silva (2022) trata da trajetória da educadora. Ilma Veiga nasceu em Goiás, se licenciou em Pedagogia e em Educação Física, assessorou a Secretaria de Estado da Educação de Goiás (SEDUC-GO), o Ministério de Educação (MEC) e o Centro Universitário de Brasília (UniCEUB), além de ter sido professora pesquisadora na Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e na Universidade de Brasília (UnB). A didática proposta pela autora busca estabelecer uma relação de coerência entre teoria e prática, com o intuito de educar segundo uma práxis transformadora e socialmente crítica, embasada no diálogo e na coletividade.
Nesse prisma, o PPP da autora tem um caráter democrático e resulta de um processo construtivo e coletivo, no qual os sujeitos participam e contribuem de maneira coletiva. Nesse sentido, ao compreender que os estudantes devem ser proativos e participativos, o educador precisa trabalhar como mediador, sem agir de forma autoritária. A escola aparece não como o espaço em que um superior dotado de conhecimento transmite informações a alunos que incorporam passivamente tais saberes, e sim como um campo de debate público e discussão coletiva.
O segundo capítulo do livro desenvolvido por Borges (2022) apresenta o discurso feito durante a outorga de título de professora emérita a Ilma Veiga na UnB, em que homenageia a docente e elogia seu trabalho, pesquisa e carreira. O texto destaca a generosidade da profissional e sua habilidade em agregar diferentes pessoas ao redor de si para construir um diálogo marcado pela interação coletiva e troca interdisciplinar. Ademais, salientam-se seu vigor intelectual, o fato de ela ter intermediado a inserção de vários pesquisadores no meio acadêmico e a preocupação com uma formação ampla, capaz de incidir no desenvolvimento científico, acadêmico, cultural e pessoal dos professores. O capítulo discorre também sobre o papel militante de Veiga, em virtude da luta contra a exploração, as opressões, o machismo e a exclusão.
Por seu turno, o terceiro capítulo de Araújo (2022) esboça as contribuições de Veiga para as áreas da didática, pedagogia e educação, ao demonstrar como os três eixos se articulam e são definidos: (i) didática como teoria do ensino; (ii) pedagogia como a condução do processo educativo; e (iii) educação como prática social superiormente elaborada. Segundo o pesquisador, para a docente, a educação tem a função de elucidar o papel sociopolítico da educação, da escola e do ensino; por conseguinte, a didática deve servir à construção de uma consciência crítica da realidade, isto é, compreende a proposta de uma pedagogia crítica.
Uma pedagogia crítica envolve, ainda, a unidade entre o ensino e a pesquisa, com vistas à construção de um saber que elabora entendimentos da realidade social. A didática precisa interpretar o contexto no qual a escola se encontra inserida e refletir sobre formas de ação, construção e transformação concreta das condições materiais de uma comunidade; portanto, a didática crítica se baseia em uma pedagogia socialmente comprometida. Veiga propõe um olhar contextualizado, no qual os estabelecimentos de ensino não são instituições separadas do horizonte maior da sociedade.
Consciente dessas problemáticas, Veiga organizou o livro “Repensando a Didática”, no qual ela reúne os seguintes temas: (i) didática: relações e pressupostos; (ii) retrospectiva histórica sobre a didática; (iii) planejamento do ensino sob a perspectiva crítica de educação; (iv) objetivos da educação; (v) a quem compete a seleção e organização dos conteúdos escolares; (vi) questão da metodologia de ensino na didática escolar; (vii) livro didático na dinâmica interna da sala de aula; (viii) avaliação da aprendizagem; e (ix) relação professor-aluno. Convém salientar que, apesar de a obra ter sido coordenada por Ilma Veiga, os capítulos foram escritos por diferentes autores.
Veiga também organizou coletâneas sobre técnica e ensino, nas quais discute a importância da responsabilidade do professor para superar uma visão mecanicista; considera as técnicas de ensino sob o caráter instrumental; discute acerca do tecnicismo pedagógico; trabalha a relação das técnicas de ensino com a perspectiva crítica na teorização pedagógica e debate sobre aqueles que isolam a técnica da condição humana. Desse modo, a autora considera criticamente a tendência pedagógica tecnicista, na qual se prioriza o modelo de ensino sujeito a atender às demandas da sociedade capitalista. Tal superação passaria pela formação de professores criativos e inovadores, preocupados com a formação de cidadãos críticos.
O quarto capítulo escrito por Fernandes (2022) aborda a contribuição de Veiga para o ensino superior. Para tanto, considera a perspectiva dialética em relação às seguintes dimensões: (i) epistemológica: questão do conhecimento e dos múltiplos campos disciplinares; (ii) pedagógica: modos e meios de produção relacionados ao processo de ensino-aprendizagem; (iii) política: escolha de um dado projeto de sociedade e universidade; (iv) ético-existencial: finalidades orientadoras em relação aos sentidos produzidos para o mundo do trabalho e da vida. Considera-se a importância de um viés interdisciplinar no que concerne à educação superior, bem como o entendimento de que não se pode isolar o ensino universitário dos contextos histórico, social, cultural, político e econômico.
Em certa medida, a perspectiva interdisciplinar auxilia a desconstruir a ênfase acadêmica focada na especialização, pois, nesse ambiente, os docentes geralmente se formam com foco em um tema bastante específico de pesquisa e sobre o qual lecionarão de fato. O problema ocorre quando a abordagem especializada pode levar ao isolamento do professor no tocante à produção de outras áreas. Como a sociedade não é uma realidade fragmentada composta por partes separadas, uma formação focada apenas na especialização pode levar à falta de compreensão do contexto macrossocial. O capítulo discute, ainda, a indissociabilidade entre os três eixos da atuação do professor universitário - ensino, pesquisa e extensão -, para mostrar como, na prática, a concretização desse ideal é ainda um desafio.
O quinto capítulo produzido por Castanho e Castanho (2022) propõe pensar a didática e suas contribuições ao longo do tempo. Ilma Veiga trabalhou a história da didática no Brasil desde o início da fase colonial até os dias atuais, em que considera dois grandes períodos: de 1549 a 1930 e de 1930 em diante. Para trabalhar os resgates históricos, a autora considera a didática no contexto macro dos problemas sociais e políticos mais amplos, ao adotar uma abordagem que pensa a constituição da didática nos atravessamentos das características econômicas que marcam cada época.
Em seu resgate histórico, Veiga considera que os jesuítas foram os principais educadores durante o período do Brasil Colônia, quando o país era majoritariamente agrário e cuja produção servia para o enriquecimento da metrópole portuguesa. Esse período foi marcado também por escravização e genocídio da população indígena e negra, em que a catequese católica desempenhou um papel fundamental para a instrução dos índios que passaram pelo processo de apagamento de sua cultura e saberes. Todavia, a elite recebeu outra forma de educação baseada nos princípios do humanismo europeu e da formação enciclopédica, em que não contemplava uma compreensão da realidade colonial brasileira para formar a elite apenas segundo os saberes eurocêntricos.
O segundo período destacado por Veiga e com início na década de 1930 é marcado pelo surgimento da didática como disciplina presente nos cursos que formam professores e pela revitalização da didática tradicional. É importante considerar a especificidade desse momento no contexto macroeconômico, pois, em 1929, o capitalismo foi abalado por uma grande crise que questionou o liberalismo com revoluções socialistas que haviam alcançado êxito e mostravam uma forma alternativa de construção de sociedade. O período era conturbado em termos de guerras mundiais, da emergência do nazifascismo no cenário mundial, bem como da crise dos ideais do progressismo liberal, do humanismo e do iluminismo, o que requeria uma renovação da didática para lidar com um novo mundo.
No Brasil, a década de 1930 marcava a transição da República Velha para a Nova República e, mais especificamente no campo da educação, o governo de Getúlio Vargas estabeleceu o Ministério da Educação e Saúde Pública. Ainda naquela época se sobressaiu o escolanovismo ou “movimento Escola Nova”, projeto educacional aliado da urbanização e industrialização. Com o fim do varguismo em 1945, iniciou-se um período democrático com a abertura do Brasil ao capital estrangeiro, especialmente durante o governo de Juscelino Kubitschek. Nesse contexto se insere o tecnicismo pedagógico, que incorpora a lógica em série da produção taylorista e fordista focada na especialização, padronização e produção em massa.
Veiga, em seu resgate histórico, considera ainda a situação da didática no período da ditadura empresarial militar iniciado com o golpe de 1964. Espalhou-se o medo de uma suposta ameaça comunista, em que “comunismo” se tornava rótulo para qualquer pensamento crítico ou ação socialmente engajada, a censura buscava calar o pensamento divergente e professores foram perseguidos, torturados e até mesmo mortos. Governos militares impuseram um projeto desenvolvimentista fundamentado no crescimento da produção industrial, em que se reforçou o caráter tecnicista da educação aliado à repressão do pensamento crítico.
Com o fim da ditadura na década de 1980 e o período de redemocratização, uma pedagogia crítica começou a ser constituída. Nesse sentido, avanços foram feitos de modo a pensar o papel da escola no contexto social e refletir sobre uma didática construída em consonância às condições materiais concretas dos estudantes. No entanto, vários avanços estiveram sujeitos a retrocessos, pelo fato de a referida época ter sido marcada pelo neoliberalismo, que leva à redução do Estado social e dos investimentos em educação; e o neotecnicismo, que enfatiza a eficiência e produtividade sob a lógica do modelo toyotista (just in time).
Esse resgate histórico feito por Veiga permite situar o lugar da pedagogia crítica e revela como a didática brasileira historicamente não esteve comprometida com a transformação social e a criticidade. Isso significa que a luta pela educação crítica é contra a tendência tradicional que remonta ao Brasil colônia e que está em conformidade com as forças reacionárias do país. Também indica que uma educação libertadora pode se manter com lutas, especialmente quando se consideram o desmantelamento das políticas educacionais e a precarização do ensino promovida por governos neoliberais.
O sexto capítulo do livro produzido por Amaral e Dalben (2022) enfatiza o caráter inovador do trabalho de Ilma Veiga, ao discutir a crítica da autora à dicotomia entre o professor como tecnólogo do ensino e o docente enquanto agente social. Mostra-se, assim, que a educação é necessariamente um processo político, cujos atravessamentos sociais são inerentes à formação educacional. Consideram-se as críticas da pensadora ao tecnicismo e as análises da educação à luz dos contextos econômicos da sociedade. O capítulo percorre tais temas elencados em alguns livros de Veiga, ao reforçar a proposta de uma didática crítica que pode ser compreendida enquanto pedagogia histórico-crítica.
Elaborado por Dias, Farias e Silva (2022), o sétimo capítulo considera a formação docente para a educação superior, ao salientar as conexões entre a didática crítica no processo formativo de pós-graduandos. Ilma Veiga produziu reflexões sobre a formação voltada ao ensino superior, conforme o desenvolvimento profissional dos professores, em que as relações dialéticas e dialógicas eram fundamentais no processo formativo, conforme as potencialidades extraídas de formação baseada no trabalho colaborativo e na construção de um pensamento crítico e inspirado na constituição de sujeitos autônomos. Com isso, Veiga critica as formações que não envolvem esse aspecto dialógico, ao tecer considerações sobre a gravidade da ausência de tal perspectiva dialética nos processos formativos.
O oitavo capítulo produzido por Fernandes (2022) dialoga com o PPP da escola básica, quando mostra a elaboração conjunta e colaborativa dessa proposta. Nesse documento estão incluídas propostas para construir uma educação baseada na autonomia, com certas diretrizes e metas para servir como instrumento na construção de uma educação participativa. O capítulo reforça como tal proposta pedagógica está em conformidade com a visão de Ilma Veiga para uma pedagogia socialmente comprometida, em que as instituições de ensino se apresentam como um espaço pedagógico coletivo onde se reflete sobre o desenvolvimento de uma gestão escolar colaborativa.
O nono capítulo, de Romanowski e Martins (2022), discute também as contribuições de Veiga para a formação dos professores, conforme as interações das autoras com o trabalho da referida docente. Nesse sentido, abordam-se as produções coletivas advindas dessas relações e como elas foram importantes para repensar a didática. O texto considera também as publicações de Veiga que refletem acerca das experiências vivenciadas na formação de professores. Considera-se como a ética é um eixo fundamental desses processos formativos, ao ressaltar qualidades morais a serem esperadas dos docentes, e que indicam o compromisso social do educador.
Produzido por Bravo, Sá Carneiro, Caliope Leitinho e Machado (2022), o 10º capítulo registra as experiências na Rede inter-regional Norte, Nordeste e Centro-Oeste sobre Formação Docente para a Educação Básica e Superior (RIDES), que reúne pesquisadores cujo tema de investigação consiste na formação de professores para a educação básica e superior e se propõe a democratizar o conhecimento, elaborar diretrizes para implementação de políticas voltadas à formação docente e socializar a produção científica concernente ao assunto. A partir disso, promovem-se eventos como o Encontro Inter-Regional Norte, Nordeste e Centro-Oeste sobre Formação Docente para a Educação Básica e Superior (ENFORSUP), que discute temas relacionados à pedagogia universitária, formação de professores, gestão pedagógica, desenvolvimento profissional docente, entre outros temas pertinentes.
Por fim, o 11º capítulo, de Reis e Souza (2022) considera o legado do trabalho de Ilma Veiga para mostrar os impactos de suas contribuições para as reflexões e os planejamentos dos educadores do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). O capítulo considera como o UniCEUB se tornou um espaço produtivo para discussões acadêmicas e profissionais, ao favorecer as trocas dialéticas, a formação consciente, o debate crítico e a elaboração de propostas educativas. Esse trabalho participativo permitiu o desenvolvimento de projetos pedagógicos e sua efetiva concretização, em que se acrescentam os trabalhos concernentes à gestão da sala de aula, às metodologias de ensino e à assessoria pedagógica.
Diante da trajetória de vida de Ilma Veiga, apreende-se a importância de uma pedagogia crítica, a qual requer uma compreensão da realidade social em que a escola se encontra inserida; logo, é preciso fazer uma análise crítica do contexto da sociedade, quando se visa a uma educação voltada à formação de cidadãos conscientes, o que inclui as especificidades do mundo contemporâneo. Vive-se em um contexto marcado pelo neoliberalismo, fase do capitalismo em que se diminui o Estado social com base em políticas de austeridade e reforço do empreendedorismo e do neotecnicismo.
Se for considerado o mundo atual a partir das reflexões de Veiga, destaca-se a didática que fica a serviço das exigências do mercado de trabalho, o que torna o ensino cada vez mais focado na aquisição de competências e habilidades úteis ao modo de produção capitalista. Como consequência, há o desmonte dos investimentos em formas de ensino que não trazem retorno direto ao mercado, o que leva à padronização do ensino baseado em um modelo que solicita eficiência, eficácia e produtividade e, por conseguinte, leva à exclusão social daqueles que não se inserem nesse padrão.
Portanto, uma educação crítica precisa se contrapor às tendências neoliberais e neotecnicistas do mundo contemporâneo, ao reafirmar o caráter libertador e emancipador da educação. Para tanto, a formação docente deve ser feita de modo a torná-los educadores conscientes da realidade social, e não meros transmissores de informações. Faz-se necessário enfatizar ainda uma educação para a autonomia, sem se contentar com a formação de pessoas detentoras de saberes para também atuar na formação de agentes transformadores de suas realidades sociais.
Os autores que se fazem presentes nesta publicação representam a comunidade intelectual e profissional que se beneficia da produção e da convivência com a homenageada. São porta-vozes de um coletivo epistêmico que muito aprende com o exemplo e o pensamento da professora e pesquisadora Ilma Veiga.
A homenagem que aqui se faz reafirma a relevância e o significado da obra, trazendo como temas a didática, o projeto político-pedagógico, a docência na educação básica e superior, entre outros, abordados pela educadora ao longo de sua carreira. Assim, o livro vem cobrir um vácuo no campo da didática, ao dar uma avançada leitura de seus elementos constituintes e tem grande impacto na arena acadêmica da formação de professores.