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Reflexão e Ação

versão On-line ISSN 1982-9949

Rev. Reflex vol.29 no.2 Santa Cruz do Sul maio/ago 2021  Epub 22-Set-2023

https://doi.org/10.17058/rea.v29i2.16086 

Dossiê Temático: Paulo Freire e Educação Popular: cultura, metodologias, lugares e sujeitos

DESAFIOS DE UMA EDUCAÇÃO INFANTIL PÚBLICA E POPULAR: DIÁLOGOS NECESSÁRIOS

PUBLIC AND POPULAR EARLY CHILDHOOD EDUCATION CHALLENGES: INDISPENSABLE DIALOGUESEDUCATION

DESAFÍOS DE UNA EDUCACIÓN INFANTIL PÚBLICA Y POPULAR: DIÁLOGOS NECESARIOS

Carolina Silva de Alencar1 
http://orcid.org/0000-0003-0239-494X

Nayara Alves Macedo2 
http://orcid.org/0000-0001-7700-2387

Fabiana Nery de Lima Pessanha3 
http://orcid.org/0000-0003-3523-4950

1 Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ - Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil.

2 Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ - Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil.

3 Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ - Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil.


RESUMO

O presente artigo aborda alguns desafios contemporâneos da Educação Infantil, na perspectiva da democratização de práticas dialógicas tecidas com crianças e famílias das classes populares. Nosso objetivo é trazer elementos que provoquem deslocamentos no campo conceitual, político e pedagógico da educação da pequena infância, que rompam com o caráter monocultural nos processos formativos - um projeto de educação popular como uma práxis em construção. Para tanto, trazemos o pensamento de Paulo Freire como fio condutor a um convite reflexivo que nos leve a reconhecer as tensões e os conflitos em disputa no acolhimento das infâncias e famílias das classes populares na Educação Infantil pública.

Palavras-chave: Práticas democráticas; Educação Infantil; Educação Popular; Diálogo

ABSTRACT

The present article addresses some contemporary challenges on early childhood education regarding democratization of the dialogical practice’s perspective with children and families from the popular classes. Our goal is to bring elements that cause conceptual displacements concerning the political and the pedagogical field on the early childhood, that disrupt with the monocultural character in the formative processes - a popular education project as a praxis under construction. We bring Paulo Freire’s thought as a guideline for a reflective invitation that leads us to recognize the conflicts in dispute in welcoming of the families and popular classes’ childhoods in a public early childhood education.

Keywords: Democratic practices; Early childhood education; Popular education; Dialogue

RESUMEN

El artículo aborda algunos desafíos contemporáneos de la Educación Infantil, en la perspectiva de la democratización de prácticas dialógicas concebidas con niños y familias de las clases populares. Nuestro objetivo es proponer elementos que provoquen dislocamientos en el campo conceptual, político y pedagógico, que permitan romper el carácter mono cultural de los procesos formativos - un proyecto de educación popular como praxis en construcción. Para ello, nos valemos del pensamiento freiriano como hilo conductor a una invitación a reflexionar que nos lleve a reconocer las tensiones y los conflictos en disputa presentes en el acogimiento de las infancias y familias de clases populares en la Educación Infantil pública.

Palabras clave: Prácticas democráticas; Educación Infantil; Educación Popular; Diálogo

INTRODUÇÃO

A dimensão da responsabilidade de problematizarmos os atuais desafios da educação pública brasileira nos provoca a escrever este artigo, que trata de discutir possibilidades de práticas dialógicas, democráticas e emancipatórias, no cotidiano da Educação Infantil (EI). Diante da atual conjuntura e do delicado momento político no qual vivemos, que envolve o sufocamento da democracia e a opressão autoritária aos modos mais plurais, justos e equânimes de práticas e relações sociais, urge assumirmos uma postura reflexiva e crítica diante dos dilemas e tensões nas relações sociais historicamente construídas na/entre a EI e os sujeitos das classes populares.

De acordo com Esteban e Tavares (2013), o segmento social denominado de classes populares pode ser compreendido como as camadas da população que vêm, historicamente, ocupando um lugar de subalternidade econômica e social, no país. Segundo as autoras, é possível reconhecer, na contemporaneidade, certa complexidade e heterogeneidade que envolve a categoria de classe popular, sendo possível identificá-la sob diferentes denominações, por exemplo, oprimidos, subalternos e pobres, atribuídas por diferentes autores. Em diálogo com as autoras, acreditamos que a categoria classe popular, grafada no plural, abarca a diversidade dos sujeitos e grupos que, nela, podem estar contemplados.

Nossa discussão parte da problematização do advento e da institucionalização da escolarização popular (VARELA; ALVAREZ-URIA, 1992) reconhecendo que esse processo foi originado no bojo de nossa sociedade historicamente classista e desigual e que, portanto, em suas raízes, reflete e refrata tensões de ordem econômica, política e social. Nesse contexto, dialogamos com o conceito de “forma escolar” (FREITAS, 2007) e sobre os desafios para uma efetiva “ socialização da cultura escolar” (RAMOS, 2018), tendo como horizonte a necessária democratização da escola para crianças pequenas e suas famílias, numa perspectiva de diálogo com princípios da Educação Popular (EP).

O percurso de nossa argumentação traz a educação da pequena infância como elemento de destaque, circunscrevendo o recente processo de conquista política do protagonismo das crianças pequenas enquanto categoria social e sujeitos de direito à educação. Esse inegável avanço no estatuto jurídico e político (ABRAMOWICZ, 2017) da pequena infância tem promovido e potencializado a presença contemporânea, cada vez mais expressiva e plural, das crianças pequenas nos espaços formais de educação. Entendemos que esses elementos nos convidam a refletir criticamente sobre a(s) função(ões) social(ais) da educação da pequena infância e sobre seus atuais desafios, tanto na perspectiva das crianças das classes populares, quanto na de suas famílias, no sentido de fortalecer relações mais democráticas no interior dos espaços da EI.

Em direção às crianças, objetivamos reiterar o debate sobre a necessidade de construção de epistemes que reafirmem a condição das crianças como produtoras de cultura e o necessário reconhecimento dessa condição na práxis cotidiana da EI. Para tanto, buscamos diálogo com o pensamento freireano que nos traz dispositivos fundamentais para pensar uma educação da pequena infância popular em uma perspectiva democrática e dialógica. Em direção às famílias, trazemos elementos para argumentar sobre a urgência da construção de novos paradigmas de diálogo entre a escola pública e os sujeitos das classes populares, no sentido de problematizar as reais expectativas e necessidades deste grupo social em relação à educação de seus filhos e filhas.

Com a intenção de problematizar o pensamento de Freire (1978, 1987, 1996, 2004), articulando suas ideias em defesa da EI - popular, democrática, aberta e plural - tecemos um exercício de pensamento que não postula meramente segui-lo, mas que propõe a reinvenção de seus percursos, estudos e militância com as questões que nos tocam e afetam em nossos percursos como professoras-pesquisadoras (GARCIA, 2003) da pequena infância, nas escolas e creches de favelas e periferias urbanas da região metropolitana fluminense. Dessa forma, fazemos um convite à construção de modos outros de relações entre escola e sociedade, no sentido de construir autonomias, conhecimento de mundo e transformação, no horizonte de uma educação popular dialógica e democrática.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Como posso dialogar, se alieno a ignorância, isto é, se a vejo sempre no outro, nunca em mim? Como posso dialogar se me admito como um homem diferente, virtuoso por herança, diante dos outros, meros “isto”, em quem não reconheço outros eu? Como posso dialogar, se me sinto participante de um gueto de homens puros, donos da verdade e do saber, para quem, todos os que estão fora são “essa gente”, ou são “nativos inferiores”? Como posso dialogar se parto de que a pronúncia do mundo é tarefa de homens seletos e que a presença das massas na história é sinal de sua deterioração que devo evitar? Como posso dialogar se me fecho à contribuição dos outros, que jamais reconheço, e até me sinto ofendido com ela? (FREIRE, 1987).

As contribuições de Freire (1987), trazidas nos questionamentos destacados na epígrafe acima, nos interrogam diante dos atuais desafios da educação escolar, sobretudo, no que se refere à abertura ao diálogo entre a escola e os sujeitos das classes populares. Compreendemos que a dimensão dialógica (FREIRE, 1987) se apresenta como um aspecto importante para pensarmos a democratização das relações construídas na escola, a partir de uma perspectiva reflexiva e crítica sobre qual(ais) tem/têm sido o(s) papel(eis) da educação pública brasileira.

Entendemos que a dimensão dialógica demanda uma perspectiva de horizontalidade, oposta, portanto, a uma postura antidialógica, autocrática e autoritária nas relações entre os sujeitos. Assim, acreditamos que estabelecer uma relação dialógica entre a escola e os sujeitos das classes populares é um desafio de todos os envolvidos no processo educacional, levando a uma inversão de paradigmas conservadores e tradicionais. A propósito, essa travessia nos conduz a uma postura necessária de estranhamento das contradições, dilemas e tensões no campo da educação popular. Nas palavras de Freire, “falar, por exemplo, em democracia e silenciar o povo [o outro] é uma farsa. Falar em humanismo e negar o homem [o outro] é uma mentira” (1987, p. 82).

Para a presente problematização, consideramos importante uma breve demarcação sobre o fato de que a institucionalização da escola, do pondo de vista histórico, não é uma condição natural, sem implicações, ou alheia a cumprir funções sociais na conjuntura econômica e política da sociedade. Segundo Varela e Alvarez-Uria, a escola nem sempre existiu, o que nos leva a tensionar as condições históricas, materiais e concretas do seu surgimento e da sua ampliação no interior da nossa formação social, bem como, sua constituição enquanto lócus de socialização privilegiada e “lugar de passagem obrigatória para as crianças [sujeitos] das classes populares” (1992, p. 1).

Para os autores, o advento da escola nacional, em princípios do século XX, é o resultado das condições sociais de aparecimento de um conjunto de instâncias fundamentais, produto das relações dos homens em sociedade e entre si. Dentre esse conjunto de instâncias, os autores mencionam: a definição de um estatuto de infância; a emergência de um espaço específico destinado à educação das crianças; o surgimento de um corpo de especialistas da infância dotados de tecnologias específicas e de ‘elaborados’ códigos teóricos; o desmonte de formas históricas e clássicas de educação, até a institucionalização, propriamente dita, da escola, no que se refere à moderna iniciação da obrigatoriedade escolar, decretada pelos poderes públicos e sancionada pelas leis.

Interessa-nos, particularmente, ressaltar que a escolarização, e seus processos de construção não são, em absoluto, processos homogêneos. Ao contrário, seu advento, no Brasil, se dá em um contexto de estratificação social ou, de uma “pirâmide social” (VARELA; ALVAREZ-URIA, 1992) historicamente conjuntural, marcada por um contexto de desigualdades econômicas, culturais, políticas e sociais. Nesse conjunto, problematizamos as características institucionais da escolarização obrigatória, as concepções teórico-metodológicas tradicionais, os currículos monológicos e o próprio saber escolar, muitas vezes, hegemonizado por um poder simbólico de uma cultura que se autodefine como superior, que busca atender aos interesses de uma classe dominante que insiste em querer legitimar seus saberes sobre os das classes populares.

Ramos (2018) nos ajuda a compreender a existência de uma especificidade institucional de práticas educativas, intensificada e ampliada com o longo e difícil processo de democratização da escola, nos permitindo refletir, de maneira crítica, sobre o papel da escolarização e sobre as implicações desta na vida dos sujeitos das classes populares e, ainda, sobre a própria relação entre educação e sociedade. Segundo o autor, os conflitos próprios de um espaço-tempo específico, que é o escolar, advêm de uma sociedade que, tardiamente, se desafiou a democratizar a educação, restando-lhe grandes desafios, menos de acesso, mas principalmente de qualidade. Assim, “o desafio da escola é saber dialogar com um público que apresenta diferentes caminhos de chegada à escola” (RAMOS, 2018, p. 18), com vistas a promover o reconhecimento e a participação dos sujeitos das classes populares enquanto parte integrante dos espaços e fazeres no cotidiano educacional.

Freitas (2007) problematiza o legado da “cultura escolar” como um aspecto que, rapidamente, ganhou contornos estruturais e estruturantes, no contexto histórico de construção da escolarização formal. O autor aponta a existência histórica da “forma escolar” que se manifesta através da presença institucionalizada da cultura escolar, de forma perene e, na maioria das vezes, antidialógica, levando-o a problematizar

[...] as regularidades que transformam o espaço escolar, o tempo escolar, a organização escolar, as práticas escolares em ingredientes singulares da sociedade que construímos, manifesto a cada vez que o fazer escolar é realizado independentemente das condições em que se materializa (FREITAS, 2007, p. 09).

As considerações tecidas pelo autor apontam que a instituição escolar manteve uma lógica interna que, independentemente das variáveis nas quais está inserida, faz com que as relações educativas se configurem como reiteração padronizada da “forma escolar”.

Em diálogo com os autores até aqui trazidos, em especial, Ramos (2018) e Freitas (2007), somos provocados/as à formulação de algumas interrogações, trazendo-as para o campo da EI: Como contribuir para tornar emancipatórios os projetos atuais de educação para as crianças das classes populares? Como tornar o processo de acolhimento das crianças na e pela EI em práticas dialógicas e coletivas de vida e produção de conhecimento?

Sabemos que, em uma perspectiva histórica, no Brasil, as crianças pequenas conquistaram, recentemente, seu protagonismo enquanto sujeitos sociais e de direito à educação. O estatuto jurídico da infância moderna (ABRAMOWICZ, 2017), que lhe garante direitos, dentre eles, o direito à educação, assegurado na Constituição Federal (CF) de 1988 e nas demais leis infraconstitucionais específicas do campo educacional, levou ao aumento do acesso das crianças pequenas aos sistemas educacionais. Nessa direção, podemos citar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) n. 9.394/96 (BRASIL, 1996), a Lei n. 11.494/07 (BRASL, 2007), a Lei n. 12.796/13 (BRASIL, 2013) e o Plano Nacional de Educação (PNE) Lei n. 13.005/14 (BRASIL, 2014), em sua meta 1, que atenderam às demandas populares (TAVARES, 2015) pelo direito à educação das crianças pequenas e impactaram, fortemente, a presença contemporânea desse grupo nos espaços formais de educação.

A propósito do inquestionável avanço na conquista política dos direitos educacionais para a pequena infância brasileira, alertamos para os debates sobre os riscos de uma escolarização e institucionalização precoce da pequena infância contemporânea, sobretudo, quando consideradas as problematizações sobre a institucionalidade e a historicidade da “forma escolar” (FREITAS, 2007) e sobre os desafios para uma efetiva “socialização da cultura escolar” (RAMOS, 2018), conforme destacamos, na perspectiva de democratização das relações com as crianças. Essas considerações nos convidam a refletir criticamente sobre a(s) função(ões) social(ais) da educação da pequena infância e sobre seus atuais desafios, tanto na perspectiva das crianças das classes populares, quanto na de suas famílias.

Nessa direção, prosseguimos com este artigo, e retomando nosso diálogo com Freire (1987), lembramos a dimensão dialógica tão necessária ao desafio de construção de novos paradigmas nas instituições educativas. Um diálogo com o legado de Paulo Freire nos instiga a problematizar e inquirir outra concepção de educação das infâncias, nos levando a converter os desafios históricos da educação em novas possibilidades de aprendizage(ns), nos reposicionando, a todos, enquanto sujeitos históricos, políticos e sociais que investigam e trabalham na educação e no cuidado das crianças pequenas. E é desse lugar que assumimos a nossa escrita comprometida com a defesa de um projeto de EI no qual crianças pequenas e adultos possam construir um projeto de alegria e aprendizagens.

EM DEFESA DA EDUCAÇÃO INFANTIL POPULAR: POR UMA RELAÇÃO DIALÓGICA E ABERTA ENTRE CRIANÇAS E ADULTOS

Comunicar é obrigação, dialogar é obrigação, é um dos princípios do bem-viver. Os povos de culturas milenares, da cultura à vida, mantemos nossas origens desde os primórdios da antiguidade. Nós, crianças, herdamos uma cultura milenar que entende que tudo é interligado, que nada é dividido, que tudo é dentro e nada é fora. Vamos juntos. Por isso nos dizem para caminharmos juntos, que possamos ir todos juntos, sem deixar ninguém para trás, que todos tenham tudo e nada falte a ninguém. (...) Nossa revolução é a revolução das ideias (David Choquehuanca)

Esse trecho do discurso de posse, do líder camponês e indígena que assumiu a vicepresidência do Estado Plurinacional da Bolívia, em novembro de 2020 , nos traz a reflexão sobre a necessidade da construção de um sujeito coletivo, num compromisso com um projeto de humanidade que supere os conflitos profundos que marcaram a naturalização da opressão de povos sobre outros povos. A construção coletiva e democrática como princípio e prática de um projeto humanístico, sobre a qual nos fala Choquehuanca, parece entrelaçar a perspectiva perseguida pelo educador e também revolucionário, Paulo Freire, tanto nos processos políticos e sociais, quanto educativos.

Se Choquehuanca, no seu emblemático discurso, traz o exercício vital da natureza dialógica como desafio a ser encarado num projeto de nação, Paulo Freire parece convicto da possibilidade de incidirmos dialogicamente no mundo, reinventando nossas práticas sociais, na construção de inéditos viáveis - a materialização histórica do sonho coletivo almejado. Sendo que, “sonhar não é apenas um ato político, mas também uma conotação da forma histórico-social de estar sendo. Faz parte da natureza humana, que dentro da história se acha em processo de tornar-se” (FREIRE; NOGUEIRA, 1993, p. 31).

A ética do dialogismo como condição das relações, parece ser um projeto de educação popular freireano como uma práxis em construção. No sentido de intervirmos com nossa ação criativa alicerçada na afirmação de diferentes leituras de mundo, em uma construção coletiva possível que reafirme os saberes e culturas das classes populares. “E é por isso também que é possível, em qualquer sociedade, fazer algo institucional e que contradiz a ideologia dominante. Isso é que eu chamo de uso dos espaços que a gente dispõe” (FREIRE, 2004, p.38).

Em diálogo com as autoras Esteban e Tavares (2013) compreendemos que a luta por uma educação popular vai além de garantir o direito à educação, pois apesar da entrada massiva das classes populares na escola, ainda é necessário romper com o caráter monocultural constituído na legitimação do conhecimento e da cultura, que promove a exclusão e subalternização dos grupos historicamente oprimidos.

Tratar como universais culturas particulares, como faz a escola, lega a todos os que delas não partilham um lugar de falta ou de impossibilidade. A desigualdade atravessa as práticas escolares e dificulta o diálogo e a participação, colocando em discussão suas possibilidades democráticas (ESTEBAN; TAVARES, 2013, p. 291).

Nesse sentido, discutir sobre a democratização da EI, tomando quantidade e qualidade como aspectos indissociáveis, evoca não só complexificar as contradições sociais que engendram as políticas públicas nacionais de acesso às crianças de zero a cinco anos de idade, mas, também, nos mobiliza a interrogar de que forma estamos acolhendo as diferentes infâncias, oriundas das classes populares, em instituições públicas de educação e cuidado. Este último ponto elegido como análise, vem sendo o horizonte de nossos estudos e pesquisas, que colocam em pauta a defesa da EI popular como prática de liberdade. Aspectos que têm nos colocado em um horizonte políticoepistêmico e metodológico de problematizar a perspectiva das crianças pequenas, subalternizadas por paradigmas colonizadores e de pedagogias que instauram processos formativos que disseminam desigualdades e desumanização.

Pensar em uma educação das infâncias popular, em uma direção democrática e dialógica, envolve a valorização das culturas infantis, seus saberes, narrativas, desejos e necessidades. Menos do que enfatizar um modelo de processo educativo, o que está em jogo é a lógica de poder tecida nas relações. A existência dessa tensão requer de nós um estado de alerta aos múltiplos discursos estruturados sobre as infâncias e a precarização das condições materiais, objetivas e subjetivas, nas quais essas diferentes infâncias concretamente se realizam.

Discussão que entendemos articulada à reflexão sobre os sentidos que adquire a defesa da qualidade da educação, pois o consenso que a sustenta oculta o amplo, inconcluso e tenso debate existente na definição de qualidade e dos processos sociais e escolares para produzila. Para nós, qualidade se compõe também pelos compromissos políticos e sociais que orientam as ações escolares, aos quais devem se vincular os procedimentos pedagógicos, pois a sociedade democrática demanda relações cotidianas democráticas (ESTEBAN; TAVARES, 2013, p. 295).

Esteban e Tavares (2013), ao trazerem luz a estas questões, discorrem sobre a necessidade de que as forças sociais travadas pela democratização da educação popular ocorram no cotidiano das escolas. Reafirmamos estes sentidos, sustentadas pelos caminhos que nos parece apontar Paulo Freire, no exercício da partilha democrática do conhecimento. Ressaltamos que na construção de uma EI popular, as instituições são pensadas como espaço de vida coletiva, nas quais, crianças, professores/as, famílias e demais sujeitos constroem suas histórias, produzem conhecimentos, numa relação de alteridade. Investidas transversais que podem contribuir para romper pedagogias escolarizantes, sustentadas por lógicas excludentes de negação do outro que subalternizam modos de pensar e agir das crianças e suas famílias, permitindo a produção de fissuras na estrutura do padrão de dominação, que desumanizam o outro, buscando colonizá-lo.

Paulo Freire (1987) denunciou as contradições nodais que nos atravessam, desvelando formas de opressão e subalternização das classes populares. E apesar de assumir as implicações e ambiguidades de uma sociedade marcadamente colonial, indicou caminhos para a libertação das amarras estruturais e históricas de processos sociais submetidos à legitimação de um pensamento monológico. O pensamento freireano nos convida a construir relações e práticas significativas, possibilitando um contexto em que as crianças sejam legitimadas em suas decisões coletivas, percebidas como sujeitos de direitos. Nesse sentido, não cabe “oferecer respostas prontas”, “ transmitir conhecimento”, numa perspectiva de educação bancária (FREIRE, 1996), na fixação de lugares de falta e de detenção do saber.

Uma pedagogia será tanto mais crítica e radical quanto mais ela for investigativa e menos certa de “certezas”. Quanto mais “inquieta” for uma pedagogia, mais crítica ela se tornará. Uma pedagogia preocupada com as incertezas que se radicam nas questões que discutimos é, pela própria natureza, uma pedagogia que exige investigação. Assim, essa pedagogia será muito mais uma pedagogia da pergunta do que uma pedagogia da resposta (FREIRE; MACEDO, 2015, p. 89).

Tais princípios de evocar a curiosidade dos sujeitos, escutar suas vozes dissonantes que movem o dissenso, nos inquietarmos com suas problematizações, cria possibilidades para uma articulação política e epistêmica de uma pedagogia da pergunta como prática de liberdade. “(...) No caso de uma escola de crianças, estimula-as a fazerem perguntas em torno da sua própria prática, e as respostas levariam, então, a refletir sobre a ação prática que provocou a pergunta. Agir, falar, conhecer, estariam juntos”. (FREIRE; FAUNDEZ, 1985, p. 26).

Pensar os desafios dos princípios de uma educação das infâncias dialógica e emancipadora envolve acolhimento, hospitalidade e abertura à existência do “outro criança”. Discutir as alternativas reais de criar contextos democráticos e participativos no currículo praticado na EI, reinventando e ressignificando saberes e fazeres, nesse território de disputa, é perceber-se para além das normas regulatórias que regem o sistema capitalista, apostando em experiências educativas emancipatórias, que possam ser portadoras de valores contra-hegemônicos.

Freire (1996) nos fala sobre a relevância das práticas democráticas na escola, um desafio ético e político para professores/as comprometidos com o projeto da educação popular. A pedagogia da pergunta freireana tem na dimensão da escuta, do diálogo, do exercício crítico, da curiosidade epistêmica e no estabelecimento de relações horizontalizadas, dispositivos fundamentais do processo de produção do conhecimento. Por isso, é necessário e urgente pensarmos num modo de fazer pedagógico que reivindique espaço para a participação das crianças, transformando o cotidiano da educação da pequena infância.

Desse modo, outras interrogações são mobilizadas: que perspectiva a educação das infâncias constrói ao assumirmos o direito de significação das crianças das classes populares no processo de produção de conhecimentos? Que possibilidades educativas e emancipatórias crianças e adultos podem construir a partir de uma perspectiva freireana? O que pode o pensamento de Paulo Freire na EI?

O projeto freireano de educação é radical, ontologicamente implicado com o ser mais, por isso traz a voz e a luta dos oprimidos, como possibilidade de transformação social. Pois, afinal, “a quem serve a percepção das crianças pequenininhas enquanto sujeitos não produtores de cultura? ” (MACEDO et al, 2016, p. 39). Paulo Freire (1996) nos mostra que educar é um ato político, que exige tomada de decisões, de intervenção e que a mudança é possível. Perseguir a transformação no plano das práticas sociais implica compromisso ético de transgredir o discurso dominante e o pensamento hegemônico. “O educador democrático não pode negar-se o dever de, na sua prática docente, reforçar a capacidade crítica do educando, sua curiosidade, sua insubmissão” (Idem, 1996, p. 27). Compreendendo a criança como sujeito potente, historicamente situado, a despeito da rede de dominação e colonização que a criança por um longo período histórico esteve sempre permeada, principalmente pelas concepções adultocêntricas (ROSEMBERG, 1976) de mundo e de organização do trabalho nas escolas da pequena infância. A articulação do pensamento de Freire com a educação das infâncias promove uma subversão do olhar, um giro político e epistemológico, onde a criança não será mais vista como mera receptora do conhecimento, mas que em suas formas de agir e de se relacionar com seus pares, mobilizam epistemes potentes em articular outras possibilidades de saberes. A pedagogia dialógica traz novos/outros horizontes, parece perseguir uma pedagogia da escuta, da pergunta, das relações.

Portanto, reivindicar a dimensão alteritária, ética, responsável e dialógica nas relações tecidas no contexto da EI nos permite pensar modos outros de escutar as infâncias populares e negociar com elas, possibilidades de conhecer o mundo e transformá-lo. Revigorar nossos quefazeres ao lado das crianças e suas famílias evoca ir além de rediscutir o papel político-social da educação da pequena infância nos espaços coletivos de educação e cuidado das crianças pequenas, nos traz o compromisso de nos mobilizar com elas frente a um reposicionamento nos modos de acolher os sujeitos infantis no mundo.

ESCOLA PÚBLICA DA PEQUENA INFÂNCIA E FAMÍLIA DAS CLASSES POPULARES: DIÁLOGOS E DESENCONTROS

Uma das questões nodais e que nos desafia à construção de um projeto pedagógico democrático e popular nas escolas de Educação Infantil, diz respeito às relações entre instituição escolar e as famílias das crianças pequenas. A propósito, os estudos sobre as relações entre a escola e a família têm permitido dar visibilidade às práticas de escolarização e ao valor social da educação institucionalizada em diferentes segmentos sociais. Assim, propor uma reflexão sobre a relação família-escola, traz a complexidade de relações culturais, sociais e ideológicas, traduzidas em relações de classe, de etnia, de gênero, etc. É nesse sentido que trazemos esta discussão, na perspectiva de visibilizar e dialogar com as diversas demandas das famílias das classes populares no contexto do atendimento ao direito à educação de seus filhos e filhas.

Torna-se necessário, para tanto, compreender as diferentes configurações de famílias que referenciamos para esta reflexão, a fim de apontar para questões que influenciam na sua relação com a escola pública. Pois, “As famílias, assim como a escola, não podem ser consideradas de forma abstrata, dissociadas de suas condições históricas e socioculturais” (NOGUEIRA; ROMANELLI; ZAGO, 2000, p. 10).

Sabemos que, ao longo dos anos, as influências de diferentes ordens, social, cultural e política no Brasil, fizeram com que a família sofresse mudanças, principalmente em sua estrutura. Numa definição clássica de família tradicional, o casamento entre homem e mulher acaba sendo definido como a forma mais comum de organização familiar em nossa sociedade. Porém, com as inúmeras transformações sociais, a família criou uma grande capacidade de reorganizar-se, dando origem a vários arranjos familiares. Quando nos referimos a estes arranjos, compreendemos as diferentes configurações familiares que emergem na sociedade, cujo vínculo afetivo é a sua principal característica.

Para tanto, é necessário também compreendermos os movimentos de transformação que as famílias das classes populares vêm sofrendo nas últimas décadas. Sarti afirma que “a primeira característica a ressaltar sobre as famílias pobres é sua configuração em rede, contrariando a ideia corrente de que esta se constitui em um núcleo” (2018, p. 42). Ainda segundo a autora citada, a noção de família para os pobres corresponde a uma rede de obrigações de uns com os outros. Essa noção de obrigação e de cuidado mútuo torna-se central à ideia de parentesco, sobrepondo-se aos laços consanguíneos. Sendo assim, a autora afirma: “... são da família aqueles com quem se pode contar, quer dizer, aqueles em quem se pode confiar.” (SARTI, 2018, p. 48).

Nesta perspectiva, segundo Fonseca (1989), a família popular cria uma dinâmica social própria. As condições de vida deste grupo social estão relacionadas com questões como a relação com o trabalho, a instabilidade conjugal, a necessidade da extensão do cuidado das crianças com vizinhos e amigos, por exemplo. Compreender os diferentes arranjos familiares existentes nos provoca a refletir sobre outros tipos de relações e dinâmicas familiares diferentes do que, por muito tempo, foi visto como uma única forma possível das famílias se organizarem. Esses fatores nos levam a pensar que a escola pública contemporânea, parece (ainda) desconhecer e negar esses elementos importantes sobre as identidades deste grupo social.

Para efeitos deste artigo, propomos tensionar os desencontros e desafios da escola pública em dialogar com essas famílias. Famílias que apresentam diferentes percursos e que foram, muitas vezes, socialmente e historicamente excluídas dos espaços escolares. Famílias emudecidas em diferentes contextos de sua história, que sofreram e ainda continuam sofrendo relações de opressão (FREIRE, 1987).

A fragmentação do processo educacional dessas famílias aparece como elemento importante ao considerarmos a relação das mesmas com a escola e a educação de suas crianças. As desigualdades no acesso e na permanência à escola, entre esse grupo socioeconomicamente desfavorecido, produz desencontros e insucessos em suas experiências educacionais, na perspectiva discutida por alguns autores. Estudos revelam que esse quadro atinge principalmente os sujeitos das classes populares (ESTEBAN; TAVARES, 2013), pois muitos não conseguem atingir as expectativas da escola, nem cumprir as exigências escolares construídas socialmente como saberes fundamentais e legítimos.

Neste sentido, o complexo processo educacional, vivido por essas famílias, atua como poderoso estruturante das práticas e dos diálogos que se dão na educação de seus filhos e filhas. Os desencontros com a escola pública acontecem desde muito cedo para esses sujeitos e muitos acabam se culpando pela reprodução deste processo, sem terem a oportunidade de compreender que o mesmo se inicia muito antes de sua entrada na escola. Tais questões estão intimamente implicadas com as relações históricas socialmente construídas entre dominantes e dominados, o que pode confirmar a complexidade anunciada deste processo.

Porém, apesar desses desencontros entre a escola pública e as famílias das classes populares, estudos como os de Nogueira; Romanelli; Zago (2000), Sarti (2018), Bourdieu (2008), nos mostram que essas famílias possuem expectativas sobre a educação de seus filhos e filhas. Muitas delas priorizam a presença de suas crianças na escola desde a pequena infância, já que este processo de escolarização parece ser o início para um sucesso escolar e uma das únicas possibilidades de uma vida melhor, do ponto de vista do acesso aos bens materiais e simbólicos produzidos socialmente.

As famílias das classes populares criam e recriam suas próprias práticas de favorecimento de acesso de suas crianças à escola. Segundo Bourdieu (2008), essas famílias possuem expectativas em relação à educação de suas crianças a partir de sua origem social e, neste sentido, denomina como ‘causalidade do provável’ a forma delas se comportarem e agirem em relação ao futuro:

Assim, sabe-se, a propensão a abandonar os estudos é tanto mais forte - permanecendo iguais todos os outros fatores (e, em particular, o êxito escolar) - quanto mais fracas forem, para a classe de origem, as chances objetivas de acesso aos níveis mais elevados do sistema de ensino; e os efeitos dessa “causalidade do provável” são observados para além das práticas e até nas representações subjetivas do futuro e na expressão declarada das esperanças (BOURDIEU, 2008, p. 89, grifos do autor).

Neste sentido, compreender o significado que a escola assume na vida dessas famílias torna-se crucial na relação entre família e escola. Pois, o que nos parece, é que o diálogo entre estas instâncias acaba se perdendo quando a escola não consegue (re)conhecer as formas de vida dessas famílias, suas dinâmicas, seus arranjos, etc. Sem conhecer efetivamente as motivações e dinâmicas das classes populares, a escola pública se afasta dos reais interesses e necessidades deste grupo social e, consequentemente, dos sentidos construídos por essas famílias sobre o direito à educação de suas crianças pequenas.

Diante dessas questões, nos perguntamos: Como fazer com que professores e professoras da escola pública da pequena infância se relacionem com crianças e famílias que parecem não responder às exigências e expectativas da escola? Precisamos reconhecer que a escola pública tem encontrado dificuldades no diálogo com crianças e famílias das classes populares, uma vez que muitas vezes as julga a partir da proximidade, ou distanciamento, do padrão dominante, tanto no que diz respeito ao modelo de família conjugal nuclear e de infância, quanto à cultura escolar tradicional, hierarquizada e monocultural.

A necessidade de se estabelecer um efetivo diálogo entre a escola e a família parece óbvia. Mas quando pensamos na dimensão da relação entre a escola pública e as famílias das classes populares, as condições parecem não serem tão óbvias assim.

Freire (1978) nos convida ao encontro com o outro na tentativa de se pensar na construção de uma escola pública que esteja vinculada a um projeto de educação popular. Em proposição semelhante, Esteban afirma que “a democratização da escola pressupõe o coletivo como espaço privilegiado para o estabelecimento de relações solidárias que contribuam para a ampliação do conhecimento de todos os envolvidos no processo” (2007, p. 16).

Nesse sentido, acreditamos que as relações tecidas na escola se dão por uma multiplicidade de aspectos, mas o que se pretendeu apresentar aqui, foi a ratificação da necessidade de uma escola pública que dialogue com as classes populares, vencendo os vínculos atribuídos historicamente pelos processos de subordinação social, cultural e econômica. À escola pública, portanto, urge aprender com as famílias das classes populares e pensar num projeto tecido junto a elas, por meio dos múltiplos diálogos com os diferentes segmentos sociais.

A escola pública amplia sua qualidade ao aprender com os movimentos de educação popular a incorporar, em seu cotidiano, o trabalho coletivo, as relações solidárias, os diferentes saberes e a participação das diferentes pessoas. O encontro da escola pública com a educação popular produz processos reflexivos e atuações que podem gerar práticas que ampliem a face democrática da escola e aprofundem seus vínculos com os históricos movimentos de emancipação humana (ESTEBAN, 2007, p.17).

Portanto, ampliar o conhecimento dos sujeitos envolvidos neste processo, favorece a orientação das práticas pedagógicas que criam bases para reflexão e diálogo entre a escola pública da pequena infância e as famílias das classes populares. E talvez, assim, consigamos construir mais espaços dialógicos para esses encontros.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que nos interpela, enquanto professoras-pesquisadoras (GARCIA, 2003), inseridas na cotidianidade dos espaços públicos de educação da pequena infância, ao propormos esta discussão sobre processos pedagógicos mais dialógicos e democráticos entre a escola e os sujeitos das classes populares? Iniciar essas considerações finais sob a forma de questionamento pode parecer paradoxal em relação ao que se espera quando nos lançamos a tecer elementos que, em tese, levariam às pretensas conclusões sobre o tema abordado.

Entretanto, tal questionamento reafirma o convite e a proposição central à qual nos mobilizamos, ao longo deste artigo, qual seja: a de compartilhar e provocar reflexões acerca das possibilidades de construção de processos educativos mais dialógicos e emancipatórios, a partir da democratização do acesso à escola aos sujeitos das classes populares, particularmente, na EI. Nessa compreensão, reiteramos a complexa ruptura com a colonialidade, o que nos exige um processo de reflexão coletiva e luta cotidiana para a materialização de inéditos viáveis nos cotidianos escolares, (re)afirmando a educação infantil popular como uma práxis em construção.

No cotidiano da EI, espaço duramente conquistado pelas famílias e suas crianças, por direito, acreditamos que um dos grandes desafios seja o de fomentar contextos potentes de “ pronúncias de mundo”, partindo da defesa da “presença das massas na história”, como tão bem nos ensina o Mestre Paulo Freire. Trata-se de discutir as possibilidades de pensar as infâncias a partir do seu lugar de fala, sem relegá-las um lugar cristalizado e menorizado no discurso político. Isso não significa destituir o adulto da sua centralidade, numa simples troca de lugares com crianças, mas exige a descentralização de ambas posições, a não fixação e reafirmação de lugares distintos e hierarquizados, onde adultos e crianças, historicamente, costumam se localizar.

Em direção às famílias, problematizar a efetivação (ou não) de um projeto políticopedagógico, em diálogo com perspectivas teóricas e metodológicas produzidas no campo da Educação Popular, nos leva a reconhecer os dilemas e os interesses em disputa no longo e sinuoso caminho percorrido pelos sujeitos das classes populares na escolarização pública. O que se coloca é o compromisso com uma postura política, ética e epistêmica de considerar a legitimidade das vozes desses sujeitos e reconhecê-las no campo educativo, particularmente, na educação da pequena infância.

Destacamos que trazer à memória (viva) os ensinamentos do intelectual e militante de tão grande importância para a educação brasileira, Paulo Freire, implica contribuir significativamente para estabelecermos novos horizontes em relação à educação das infâncias das classes populares. Freire não apenas se preocupou com os “oprimidos” de nossa história, mas também, em conhecer e dialogar com os saberes e as culturas populares. Essa dimensão descolonizadora postulada pelo educador, numa linha política e epistemológica de ação - reflexão-ação, torna-se crucial na defesa de uma educação emancipatória e libertadora.

Sob essa perspectiva, as reflexões trazidas neste estudo apontam para a necessidade de que crianças e famílias das classes populares sejam protagonistas de uma nova ordem educativa e de uma ordem social mais justa e democrática. Evidenciamos a urgência de um tempo de reconsideração e reconstrução das relações entre a escola e as famílias das classes populares, parcela da população historicamente excluída dos bens produzidos socialmente, com a qual, enquanto educadores e educadoras, vimos afirmando um profundo compromisso amoroso, ético e político.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 14 de Dezembro de 2020; Aceito: 27 de Abril de 2021

Carolina Silva de Alencar Mestre em Educação - Processos Formativos e Desigualdades Sociais - FFP/UERJ (2019). Especialização Lato Sensu em Psicopedagogia - Faculdades Integradas Maria Thereza - FAMATH (2015); Pedagoga - FFP/UERJ (2013); Professora de Educação Infantil na rede municipal de educação do Rio de Janeiro-SME; Professor I na rede municipal de educação de Niterói-FME; Mediadora presencial de disciplinas pedagógicas - UFRRJ, Consórcio CEDERJ; Orientadora colaboradora de TCC, no curso de Pedagogia EAD da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO, pelo Consórcio CEDERJ. Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas da(s) Infância(s), Formação de Professores(as) e Diversidade Cultural (GIFORDIC)

Nayara Alves Macedo Mestre em Educação pelo (PPGEDU) - Processos Formativos e Desigualdades Sociais, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) - Faculdade de Formação de Professores (FFP) - 2020. Possui graduação em Pedagogia pela Universidade Federal Fluminense - 2011. Pós graduada em Literatura Infantil (UFF) e em Psicopedagogia (FAMATH). Atualmente é professora ensino básico técnico e tecnológico - Colégio Pedro II. Como professora de educação infantil no Centro de Referência em Educação Infantil de Realengo (CREIR). E é integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas da(s) Infância(s), Formação de Professores (as) e Diversidade Cultural (GIFORDIC) na UERJ

Fabiana Nery de Lima Passanha Doutoranda em Educação (PPG-EDU) - Processos Formativos e Desigualdades Sociais (UERJ - FFP); Mestre em Educação (UERJ - FFP); Pedagoga (UFF). Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas da(s) Infância(s), Formação de Professores(as) e Diversidade Cultural (GIFORDIC). Pedagoga, em redes de Educação Básica (FME - Niterói) e (SEEDUC/RJ)

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