Introdução
Este artigo apresenta resultados de pesquisa na qual o objeto de investigação são os professores de ensino médio. O objetivo principal é identificar as especificidades desta categoria profissional quanto a sua formação e as condições de trabalho. Hoje, reconhece-se que a universalização do ensino superior e a necessidade de expansão dos níveis de escolarização da população, trouxeram ascensão ao ensino médio tanto no cenário nacional quanto internacional. Esse cenário de ampliação de acesso a escola secundária consolidou uma escola com grande heterogeneidade discente e contextual, além de uma necessidade crescente de recrutamento de novos professores especialistas2, marcados também pela heterogeneidade sociocultural e formativa. Em relação aos professores, essa escola de massa de ensino médio público passou a demandar por profissionais cada vez mais especializados e atualizados, a fim de que pudessem dar conta da profundidade dos conteúdos elencados pelas reorientações curriculares e atender as demandas de acesso à universidade, mas também lidar com a diversidade cultural dos jovens que chegam nessa escola com diferentes expectativas em relação ao trabalho e ao próprio projeto de vida.
No entanto, como afirmam Pinto et al (2011), a escola de ensino médio no Brasil expandiu-se a partir de uma massificação barata da rede pública, à custa do rebaixamento no financiamento por aluno, da redução da carga horária e da precária remuneração para os professores especialistas. Na verdade, o que se constata é a carência de docentes para diversas disciplinas associada a pouca atratividade para carreira marcada pela desvalorização da profissão. Além disto, os cursos de licenciatura parecem não dar conta de uma formação docente que atenda as novas demandas do ensino médio (GATTI e NUNES, 2009; KUENZER, 2011). Por outro lado, a questão da falta da identidade do ensino médio dificulta a orientação de políticas para formação deste novo profissional.
Diante desse cenário, este artigo procura refletir sobre as especificidades condições de trabalho e da formação dos professores de ensino médio, enquanto profissional responsável em formar jovens heterogêneos para um mundo plural e complexo. Os dados e as análises que serão apresentados são resultados de pesquisa qualitativa, desenvolvida em uma escola pública da rede estadual, exclusivamente de ensino médio, localizada em um município da periferia do Rio de Janeiro. Na escola, aplicou-se um questionário com 140 itens a 69 professores do ensino médio que lecionavam na unidade investigada, realizou-se entrevistas com cinco membros da equipe gestora e quatro professores, além de observações do cotidiano escolar, registradas em diário de campo. O objetivo era cruzar as informações entre o dito, o visto e o escrito.
É preciso salientar que a revisão de literatura, nos últimos dez anos, identificou o que pode-se chamar de silenciamento dos estudos que identificam o professor de ensino médio como uma categoria profissional. A maioria das pesquisas opta por investigar um grupo específico de professores de ensino médio a partir de suas áreas disciplinares de atuação, como os de física, química, biologia, letramento, sociologia, filosofia e educação física, com ênfase nas análises epistemológicas de cada campo ou das didáticas específicas do “ensino de”. Constata-se também que cresceram os estudos relacionados à juventude nas pesquisas com/sobre os professores de ensino médio, porém nesses casos o protagonismo é dos alunos e sua relação com os docentes e a escola. Outras pesquisas que adotam os professores de ensino médio como sujeitos, visam, na verdade, analisar o impacto de políticas recentes direcionadas para este segmento de, como o Ensino Médio Integrado, a Reforma do ensino médio, a Base Nacional curricular, Todas relevantes para compreensão do campo, porém poucas são as pesquisas envolvendo os professores de ensino médio como uma categoria profissional, capaz de reconhece-la por suas especificidades e própria. Por outro lado, esse conjunto de abordagens encontradas nos estudos sobre ensino médio evidenciam que o exercício da docência nesse segmento de ensino é um trabalho complexo, realizado sobre um sistema organizacional com características próprias, lógicas diversas, além de projetos e finalidades muitas vezes distintos.
Porém, foi possível identificar alguns interlocutores teóricos a partir de um grupo de pesquisadores nacionais e internacionais que adotam o ensino médio como campo de investigação e/ou a docência, contribuindo para as análises sobre as especificidades da formação e do trabalho dos professores que atuam nesse segmento. Para efeito desse texto, os principais referenciais são Oliveira e Costa (2011), Kuenzer (2011), (Gatti et al, 2009, 2010, 2019), Dubet (2002), Formosinho (2009) e Nóvoa (1991).
Para apresentação dos principiais resultados desta investigação, o texto se estrutura em três partes: Condições de trabalho - um quadro de intensificação; Relações de gênero e tempo de serviço - a “tensão” entre grupos heterogêneos; Formação dos professores - múltiplas influências e representações. Os professores da escola Einstein (nome fictício da escola investigada) são apresentados a partir da combinação dos dados construídos com os instrumentos já citados: questionários, entrevistas e diários de campo. A busca por interpretações é o desafio deste texto, a fim de superar a simples descrição linear dos dados.
No Brasil, de acordo com o MEC, em 2017, já se contabiliza cerca de 509.814 professores atuando no ensino médio, o que corresponde a cerca de 23% do total de professores da educação básica (Quadro 1).
O comparativo entre os dados do Censo dos últimos 15 anos sobre professores de ensino médio, evidencia que essa categoria profissional em âmbito nacional, apresentou um processo de expansão no início do milênio, mas que essa se estabilizou nos últimos 5 anos. A expansão inicial pode ser atribuída, ao aumento das matriculas nesse segmento, aos programas de incentivo à docênciae ampliação deacesso ao ensino superior (PIBID, PRO-Licenciatura, PARFOR, PROUNI) implantados nos últimos anos e ao acréscimo de algumas disciplinas3 à grade curricular deste segmento, que levou à necessidade de expandir o número de docentes.
Porém, quanto ao número de matrículas no ensino médio, é importante destacar que após franca expansão entre os anos de 1991- 2003, estas apresentaram uma fase de estabilização a partir de 2004, seguida por forte queda nos últimos 3 anos (Quadro 2). Mesmo com a determinação de ampliação da faixa de obrigatoriedade e gratuidade do ensino para de 4 aos 17 anos (BRASIL, 2009), na qual se esperava uma expansão no número de matrículas no ensino médio e uma demanda por mais professores, essa perspectiva não se efetivou. As análises do INEP (BRASIL, 2017c) apontam que a tendência de queda observada nos últimos anos das matrículas do ensino médio se deve tanto a uma redução da entrada proveniente do ensino fundamental (a matrícula do 9º ano teve queda de 14,2% de 2013 a 2017) quanto pela melhoria no fluxo no ensino médio (a taxa de aprovação do ensino médio subiu 2,8 de 2013 a 2017).
De qualquer forma, Costa e Oliveira (2011) e Costa (2013), constatam que a rápida expansão nos últimos 20 anos no número de professores para este segmento consolidou o desenvolvimento de uma categoria profissional fragmentada, heterogênea e diversificada. A fragmentação e isolamento do trabalho se caracterizam por lecionarem em diversas turmas, com carga horária semanal pequena em cada uma, mas com multiplicidade de tempos em diferentes escolas. Além disso, possuem salários abaixo da média de outros profissionais com mesmo nível de formação.
No que tange a formação, em 2017, a categoria de professores de ensino médio é a que apresenta os maiores índices de formação em nível superior, na qual 95% têm nível superior completo (7% sem licenciatura). Porém, desses, apenas 63% dos professores tem formação compatível com a disciplina que lecionam. O que se constata são professores lecionando disciplinas diferentes de suas habilitações, principalmente nas disciplinas com maior déficit de professores.
De acordo com o Indicador de Adequação da Formação Docente4 para a etapa de ensino em questão, o pior resultado é observado para a disciplina de Sociologia, nas quais apenas 27,1% dessas aulas são ministradas por professores com essa formação. As disciplinas como Física, Química, Filosofia e Literatura Estrangeira também possuem índices de adequação de formação docente em torno de 50%. Os melhores resultados do indicador de formação são observados para as disciplinas Biologia, Língua Portuguesa, Educação Física, Matemática e Geografia, com percentuais acima de 70%.
Parte desse quadro de improvisação nas estruturas das escolas de ensino médio parece se relacionar a baixa atratividade da carreira docente, principalmente, em algumas áreas disciplinar, provocando um cenário de escassez de professores especialistas, já apontado por Ibanez, et AL. desde 2007. Constata-se que o governo vem buscando ampliar o acesso aos cursos de formação inicial e incentivando também o acúmulo de uma segunda licenciatura junto aos professores já atuantes. Porém, a desatualização da maioria dos cursos de licenciatura vem sendo apontado por Gatti e Numes. (2009) como uma dificuldade na formação inicial e no preparo dos docentes para lidar com as demandas atuais dos jovens e da própria sociedade contemporânea. Como afirma Kuenzer (2011), não basta aumentar o incentivo a formação inicial é preciso maior estruturação da carreira docente, políticas salariais, dignidade e condições adequadas de trabalho.
É preciso reconhecer que a expansão dos cursos de formação de professores se deu de forma fragmentada e pouco orgânica emrelaçao ao perfil docente. Em todo o Pais, a expansão das matrículas nas licenciaturas acontece, sobretudo, por meio da rede privada, com significativo número na modalidade a distância_EaD5 (GATTI, al , 2019). Para as autoras, essa rápida expansão das licenciaturas EaD se deu pela "improvisação de seus projetos pedagógico, na maior parte das instituições, a precarização da infraestrutura de apoio e o insuficiente acompanhamento dos estudantes" (p 114). Os dados do censo de 2017 apontam que os cursos de licenciatura, sem considerar a Pedagogia6, registram, ainda, predomínio das matrículas na rede pública (55%).
Público | Privado | ||||
---|---|---|---|---|---|
Presencial | Distância | Total | Presencial | Distância | Total |
396.913 | 80.773 | 477.686 | 164.829 | 232.913 | 397.409 |
83% | 17% | 41% | 59% |
Fonte:MEC/Inep,2017
Souza e Sarti (2014) identificam o crescimento de um verdadeiro "mercado da formação docente" baseado nessa expansão dos cursos de formação inicial e continuada oferecidos pela rede privada e no consumo de pacotes educacionais de grandes empresas pelas redes públicas, como os sistemas apostilados de ensino. Para as autoras, o investimento neste "mercado de formação docente", tornou-se esperança de muitos na solução dos problemas crônicos das escolas brasileiras no que toca a qualidade dos serviços educacionais oferecidos, seja nas redes públicas ou mesmo nas redes privadas.
Para Gatti e Barreto já desde 2009, as pesquisas evidenciam uma desagregação no que se refere à formação de professores e sua fragmentação interna em termos de currículo, que parece corresponder a interesses institucionais diversos, como a existência de nichos institucionais cristalizados, ou a falta de perspectivas quanto ao perfil formador do profissional professor e a redução de custos.
Quanto aos professores de ensino médio em atuação no Brasil, são nas redes estaduais que se concentram a maioria desses professores, totalizando cerca de 80%, segundo o Censo de 2017. Assim, ao se buscar um olhar micro para essa realidade, justifica-se um estudo in locus com professores dessa rede. Ao se optar por uma escola exclusivamente de ensino médio da rede estadual do Rio de Janeiro, o que caracteriza e diferencia os professores do ensino médio que nela atuam da esfera nacional é o fato de estarem sujeitos a um sistema único de gestão por parte da SEEDUC (Secretaria Estadual Educação do Rio de Janeiro). Identifica-se paridade salarial entre os mesmos por hora/aula, unificação do plano de carreira, representação sindical coordenada pelo Sepe-RJ (Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do Rio de Janeiro), políticas de recrutamento similares e processo de escolha de escola de acordo com classificação em concurso público.
No entanto, é preciso esclarecer que dentro do próprio estado há multiplicidade de demandas regionais, tanto de público quanto de condições de trabalho, como as diferentes modalidades e tipos de escola média que coexistem na rede, o que acaba por criar subgrupos categóricos de profissionais atuando no ensino médio. O que poderá ser observado nos resultados do estudo de caso a ser apresentado a seguir.
Condições de trabalho - um quadro de intensificação
A escola investigada, nomeada de "escola Einstein" é uma unidade de grande porte, localizada na Baixada Fluminense, periferia da região metropolitana do Rio de Janeiro em atendimento aos alunos de classe popular. Trata-se de uma escola considerada de prestígio na região, pois a população local a reconhece como uma instituição com qualidade de ensino, apresenta boa estrutura infraestrutura e não sofre com problemas de violência local. Em 2015, ano da realização da pesquisa de campo, a escola tinha cerca de 2.600 alunos, distribuídos em 56 turmas de ensino médio, sendo 44 turmas no diurno, objeto desta investigação. Dentro da escola Einstein identificou-se em atuação 118 professores, dos quais 33 atuavam no ensino médio noturno e 85 no ensino médio regular diurno. Segundo a matriz curricular em vigor na Seeduc (DIÁRIO OFICIL, 2013), nesta modalidade de ensino médio deveriam ser oferecidas catorze disciplinas com diferentes números de aulas semanais, cujos professores da escola Einstein se distribuíam de acordo com suas cargas horárias de contratação e de suas áreas disciplinares de formação (Quadro 4).
Percebe-se um número maior de professores de Língua Portuguesa e Matemática, em virtude da maior carga semanal de aulas destas disciplinas, cerca de quatro a seis aulas semanais, além da introdução de duas disciplinas novas no currículo do ensino médio pela Seeduc (DIARIO OFICIAL, 2013), Resolução de Problemas Matemáticos e Produção Textual, ministradas também por professores de Matemática e Língua Portuguesa, respectivamente.
Códigos e linguagens | Ciências humanas | Ciências da natureza, Matemática | Parte diversificada | |||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Disciplina | Docentes | Disciplina | Docentes | Disciplina | Docentes | Disciplina | Docentes | |
Língua Portuguesa | 17 | História | 6 | Matemática | 14 | Ensino Religioso | 2 | |
Artes | 2 | Geografia | 7 | Química | 6 | |||
Educação Física | 4 | Filosofia | 2 | Física | 6 | |||
Inglês | 7 | Sociologia | 4 | Biologia | 6 | |||
Espanhol | 2 | |||||||
32 | TOTAL | 19 | TOTAL | 32 | TOTAL | 2 |
Fonte: Elaboração da autora
Gatti e Barreto (2009) debatem sobre o indicativo da presença diferenciada dos componentes curriculares na escola básica nacional e reconhecem que:
Ainda que se considerem as diferenças entre as regiões, é evidente que a Língua Portuguesa e a Matemática, que a segue de perto, constituem os componentes curriculares que mais empregam os professores, uma vez que são aqueles mais trabalhados ao longo de toda a escolaridade básica, embora se observe, em algumas regiões, uma distribuição mais equitativa entre o conjunto dos componentes curriculares. (GATTI E BARRETO, 2009,p.73)
Em contrapartida, referitiva matriz curricular determinava para as disciplinas Filosofia, Sociologia, Língua Estrangeira optativa (espanhol) e Ensino Religioso a carga horária de apenas um tempo de aula semanal, sendo essas duas últimas disciplinas facultativas para o aluno. Essa reduzida carga horária recebia fortes críticas dos professores destas quatro áreas disciplinares e do sindicato da categoria, Sepe-RJ, reivindicando que todas as disciplinas tivéssem, no mínimo, dois tempos semanais. Esse movimento gerou alterações na grade curricular, a partir de 2017, com ampliação dos tempos de Filosofia e Sociologia e extinção das disciplinas da Produção textual e Resolução de problemas. Porém, esse debate está sendo retomado em 2019 com as exigências de adequação dos currículos a Reforma do Ensino Médio (BRASIL,2017b), em processo de implantação na Rede.
Qual o objetivo de trazer esse cenário para o debate neste texto? Primeiro, para reconhecer as especificidades que a estrutura organizacional de uma escola de ensino médio traz para a atuação docente no cotidiano da escola. Segundo, para refletir sobre as relações entre os desafios trazidos pela formação inicial do professor para a sua área de atuação e suas condições de trabalho.
Pode-se a afirmar que na escola investigada, as condições de trabalho dos professores de ensino médio são marcadas por heterogeneidade quanto ao número de turmas que cada professor leciona, resultado das variações de carga horária dos componentes curriculares, mas também pela carga horária total de atuação dos professores que também é diversa, mesmo dentro da mesma rede.
Essa variação na carga horária total de atuação dos professores na escola Einstein pode ser explicada pela carga horária de ingresso na rede de cada professor, pelo número de matriculas7 que possui e pela lotação, integral ou parcial, na escola. Quanto à carga horária de ingresso, foi possível constatar que transitam entre os professores da escola cinco modalidades: Professor I de 16 horas semanais, ingresso por concurso para a disciplina específica de sua formação, leciona 12 horas/aula8 semanais; Professor I de 30 horas semanais, ingresso por concurso para a disciplina específica de sua formação, leciona 20 horas/aula semanais; Professor I de 40 horas semanais, ingresso por concurso para a disciplina específica de sua formação, leciona 30 horas/aula semanais; Professor II de 40 horas e de 22 horas semanais, ingresso por concurso para as séries inicias do ensino fundamental, porém devido à formação superior adquirida, entrou em regime de aproveitamento pela Seeduc e leciona no ensino médio com a carga, respectivamente, de 30 horas/aula semanais e de 12 horas/aula semanais.
Além dessa multiplicidade de cargas horárias de ingresso, encontra-se também na escola professores com "duas matrículas", podendo ser duas de 16 horas ou uma de 30 horas e outra de 16 horas. Há, ainda, professores que aderem ao regime de GLP (Gratificação Por Lotação Prioritária), que se compara a um sistema de horas-extras, permitindo a ampliação da sua jornada de trabalho, com limites de carga horária de acordo com a matrícula de ingresso. Nesses casos, tais modalidades trabalhistas permitem a ampliação da carga horária de trabalho do professor e o aumento dos ganhos salariais. O limite máximo permitido ao docente é alcançar de 48 a 54 horas/aulas semanais, efetivamente em sala de aula, segundo o manual9 de alocação de professores produzido pela Seeduc em 2014.
Em movimento contrário, encontram-se também professores com jornadas de trabalho parciais, isto é, fazendo o que chamam de complementação, uma vez que sua carga horária total de ingresso não pode ser completada em uma só escola. Assim, há professores com apenas dois tempos de complementação e outros com seis tempos, predominantemente no ensino médio noturno. Essa situação ocorre, principalmente, entre os professores que lecionam disciplinas com carga horária de 1 a 2 tempos semanais, pois a maioria das escolas não possuem o número de turmas que necessitam para completar a carga horária total do professor. Fazendo com que esses docentes precisem se deslocar por duas a quatro escolas por semana, principalmente os mais novos na rede.
Na escola Einstein, por se tratar de uma instituição de grande porte, todos esses casos podem ser observados (Quadro 5). Os dados evidenciam o predomínio de professores atuantes com carga horária de 12 horas/aulas na escola. Na prática, são 56 professores (cerca de 65%) que comparecem à escola duas vezes na semana, pois lecionam seis tempos de aula ou na parte da manhã, ou da tarde. Os professores de 24 tempos também têm seus horários organizados de modo a fazer o que chamam de “duas verticais” por semana, isto é, lecionar 12 tempos de aula no mesmo dia, sendo seis tempos de manhã e seis tempos à tarde. Esta organização, quando possível na montagem do quadro de horários das turmas, privilegia os professores mais antigos, sendo o tempo de serviço o principal instrumento de hierarquização entre os professores. Trata-se de uma lógica de trabalho que permite ao professor expandir sua carga horária em outras escolas, seja pública ou privada, gerando, no entanto, um quadro de sobrecarga de trabalho diário.
Carga horária semanal em sala de aula | Número de professores |
---|---|
06 tempos de aula | 3 |
12 tempos de aula | 56 |
20 tempos de aula | 6 |
24 tempos de aula | 13 |
30 tempos de aula | 7 |
Fonte: Elaboração da autora
Assim, são poucos os professores que comparecem à escola de três a cinco vezes por semana, como no modelo de dedicação exclusiva de algumas redes. Isso porque, prioritariamente, a carga horária dos professores de ensino médio é cumprida na escola, integralmente em sala de aula, lecionando. A chamada hora-atividade, destinada às atividades de planejamento e formação, é menor que o 1/3 determinado por lei (BRASIL, 2008), nas modalidades de contratação de 16h e 40h, e vem sendo cumprida pela maioria dos professores com correções de trabalhos, testes e provas, a fim de dar conta do grande número de turmas e alunos que atendem.
Além disso, quando os números de carga horária semanal são comparados com os dados dos questionários respondidos por 69 desses professores, constata-se que apenas 28 docentes, cerca de 40%, trabalham somente na escola investigada. Dos demais, 24 docentes acumulam o trabalho com outra instituição escolar e 17 chegam a lecionar em três ou mais escolas. Assim, sem restringir a sua carga horária na escola Einstein, obtém-se o dado de que 50 dos 69 professores pesquisados lecionam mais de 24 horas/aulas semanais, sendo que alguns docentes chegam a trabalhar 60 tempos em sala de aula por semana, configurando uma carga de trabalho intensa e exaustiva.
Sinceramente, nem faço essa conta de quantos tempos dou por semana, se eu fizer vou me aborrecer. Na escola particular eu trabalho todas as manhãs, 6 tempos por dia, igual a 30 horas. Aqui, eu tenho duas matriculas de 16h e faço algumas GLP (horas-extras), eu trabalho duas noites e todas as tardes aqui no estado. Então é isso mesmo, quase 60 tempos semanais. Eu trabalhava sábado à noite também, sendo que eu tirei o sábado este ano (Professor de Matemática).
Outra heterogeneidade entre os professores de ensino médio pesquisados é a multiplicidade de turmas/alunos que atendem em consonância com a carga horária de ingresso e a carga específica da disciplina que lecionam, constatando alguns extremos. Por exemplo, dentre os docentes com carga horária semanal de 12 tempos, que lecionam no 1º ano do ensino médio, os professores de Língua Portuguesa e Matemática ministram seis tempos de aula em cada turma, portanto, tem apenas duas turmas para lecionar e uma média de 80 alunos10. No entanto, o professor de Biologia, com a mesma carga horária semanal, tem seis turmas para atender, uma vez que a carga semanal da disciplina é de apenas dois tempos, ficando com uma média de 240 alunos. Ou, ainda, o professor de Filosofia, em que a grade determinava um tempo semanal da disciplina, lecionava para 12 turmas com uma média de atendimento a 480 alunos.
Ainda sobre essas diferenças de carga horária entre as disciplinas, na escola Einstein identifica-se que há um pequeno grupo de cinco professores que lecionam mais de uma disciplina, diferente de sua formação inicial específica11. Um quadro também identificado no cenário nacional, utilizado para suprir carência de professores em algumas áreas. Assim, associam-se a estes, além da variedade de turmas e séries, que os professores de ensino médio precisam conciliar, os diferentes conteúdos programáticos por disciplinas que lecionam.
Ao expressar essas características da jornada de trabalho dos professores pesquisados, como o variado número de alunos e turmas, os múltiplos conteúdos para planejar, a carga semanal intensa de aulas, as várias escolas com contextos diferentes pelas quais transitam semanalmente e a limitada carga horária disponível para planejamento, identifica-se uma série de especificidades que diferem este grupo profissional, tanto dos professores das séries iniciais, quanto dos docentes que atuam no nível superior.
Não é fácil, é uma carreira difícil, é desgastante, é insalubre em alguns momentos, porque você fica muito tempo em pé, gasta a voz, fica emocionalmente, às vezes, abalado, o aluno te agride, às vezes, com palavras, às vezes com gestos (Professor de Matemática).
Pode se reconhecer tratar-se de um quadro de trabalho de intensificação dentro da própria lógica organizacional do ensino médio regular e do estatuto profissional previsto. Para Olilveira (2010) a intensificação do trabalho deriva do ato de trabalhar, ou seja, o grau de dispêndio de energias realizado pelos trabalhadores na atividade concreta. A intensificação refere-se ao trabalhador individualizado ou ao coletivo. Deles é exigido um empenho maior, seja físico (corpo), intelectual (acuidade mente/saberes) ou psíquico (emocional/afetividade), ou uma combinação desses elementos.
Além disso, Costa e Oliveira (2011) mostram que a infraestrutura das escolas de ensino médio é precária para desenvolver um ensino com base na integração entre Ciência, Tecnologia e Trabalho, eixos norteadores dessa fase de ensino, pois o acesso a bibliotecas, laboratórios e internet é restrito. Os salários são baixos, comparados com o de outros profissionais com a mesma exigência de nível de instrução, além de um grupo estar submetido a contratos de trabalho temporários, com variações negativas de salários, de acordo com a unidade federativa onde trabalha. Os professores de ensino médio podem ser identificados por trabalharem em mais de uma escola, com carga horária superior de 30 horas, exclusivamente na sala de aula, com pouco tempo para formação e planejamento. Possuem ainda várias turmas, lidando com um número alto de alunos diversos, de tarefas, de orgnaizações e de avaliações.
Relações de gênero e tempo de serviço - a “tensão” entre grupos heterogêneos
Outra especificidade dos professores de ensino médio que os dados nacionais apontam refere-se às relações de gênero. Segundo o Censo de 2017, no ensino médio, 59,6% dos docentes são do sexo feminino e 40,4% são do sexo masculino. Assim, apesar dos docentes do sexo feminino ainda serem predominantes, a participação de docentes do sexo masculino é a maior entre os professores da educação básica.
A presença do sexo feminino que caracteriza quase que exclusivamente os professores das séries iniciais é motivo de estudos sobre as consequências que o processo de feminização do magistério trouxe para a própria profissionalização da docência. No entanto, a docência do ensino médio encontra-se na contramão desse processo. Para Gatti e Barreto (2009), a presença masculina em maiores proporções que nos demais segmentos pode ser explicada devido à migração de muitos bacharéis para o campo da licenciatura, em busca de empregabilidade. Expressando talvez não uma opção deliberada, mas uma "escolha do possível" na perspectiva de Bourdieu (1998 p.47), nas quais “as aspirações e as exigências são definidas, em sua forma e conteúdo, pelas condições objetivas que excluem a possibilidades de desejar o impossível”.
Porém, é importante salientar que essa diferença de sexo, no próprio ensino médio é marcada pelas disciplinas nas quais os professores atuam. Gatti el al (2019), já mostra em estudos sobre os perfil dos concluintes de licenciatura, segundo de ENADE 2014, diferenças bem significativas de como a área disciplinar direciona maior ou menor relação entre os gêneros. As licenciaturas de Filosofia e Matemática, por exemplo, chegam a ter 58, 5% e 50,2% respectivamente, de presença masculina entre os concluintes, enquanto letras tem 20,7% e Biologia 26,4%. As autoras ainda constatam que "a proporção de homens aumenta no computo geral das licenciaturas enquanto a de mulheres diminui nesse intervalo de tempo ( 2005-2014)" (Gatti el al, 2019, p.162).
Que implicações tais constatações podem ter sobre as especificidades desta categoria profissional? Poderiam as epistemologias de cada área disciplinar direcionar as lógicas de ação dos professores?
As diferenças de sexo entre os professores identificados no cenário nacional, também se efetivam no estudo micro. Constatou-se que docentes daescola Einstrein são, em sua maioria, professoras, porém o número de docentes do sexo masculino chega a 30% (21/69) do total, o que confere, aproximadamente, uma relação de gênero de aproximadamente dois para um (21/48). Porém, algumas particularidades podem ser problematizadas, pois as relações entre os gêneros no ensino médio na escola Einstein evidenciaram algumas diferenças.
Os dados dos 69 questionários apontaram que as professoras entraram na profissão primeiro que os homens, pois enquanto 37% (18/48) delas lecionam há mais de 20 anos, dentre os docentes de sexo masculino apenas 14% (3/21) chegam neste tempo de serviço. Porém, especificamente no ensino médio, a atuação das professoras com mais de 20 anos é mais recente, caindo para 8% (4/48). Confirma-se o movimento de migração das professoras mais antigas, que entraram na profissão lecionando nas séries iniciais, via curso normal de nível médio, mas que nos últimos dez anos, com a expansão do ensino médio, passaram a lecionar neste segmento. As professoras, por conta desta migração, são as que atuam há mais tempo na escola investigada, partilham da sua história e identificam-se mais com os movimentos de mudanças. Tais experiências divergentes podem justificar concepções diferentes em relação aos alunos, à escola e à educação em si, tanto em relação os professores do sexo masculino quanto às professoras de entrada mais recente na escola (MESQUITA, 2016).
Em relação aos professores do sexo masculino, esses são os mais novos de idade, apenas um (1/21) tem mais de 50 anos, enquanto entre as mulheres catorze (14/48) passaram dessa idade. A entrada no magistério é paralela à trajetória de professor do ensino médio para os homens. Eles lecionam em um número maior de escolas que as docentes do sexo feminino, o que lhes confere maior jornada de trabalho (Quadro 6). Mesmo com a relação de gênero de dois para um, entre mulheres e homens, constata-se que 12 professores do sexo masculino trabalham mais de 40h semanais, enquanto apenas 4 professoras têm a mesma carga horária de trabalho. Consequentemente, os homens possuem maior acúmulo de renda mensal, talvez relacionado ainda a ideia de provedores de suas famílias de modelo patriarcal.
Assim, pode-se afirmar que os professores de sexo masculino são os que possuem as maiores jornadas de trabalho, lecionam em duas ou mais escolas e possuem as carreiras mais curtas na área. As respostas dos questionários, analisadas com filtro de diferença entre os sexos, evidenciam que os homnes optaram pelo ensino médio para se distanciar da concepção de ensino ligada ao "cuidar" que, segundo os mesmos, é predominante no ensino fundamental. Esse grupo de professores parece relacionar os objetivos do ensino médio à necessidade de maior apropriação dos conteúdos em defesa da função propedêutica e da força do mérito individual dos alunos. Em sua maioria, dão pouca ênfase aos conhecimentos pedagógicos e às práticas inovadoras.
Em quantas escolas você trabalha? | Total | ||||
Apenas nesta escola | Em duas escolas | Em três escolas | Em quatro ou mais escolas | ||
Masculino | 5 | 4 | 7 | 5 | 21 |
Feminino | 23 | 20 | 3 | 2 | 48 |
Total | 28 | 24 | 10 | 7 | 69 |
Fonte: Elaboração da autora a partir dos dados dos questionários
Além das diferenças de gênero parecer influenciar na jornada de trabalho e em algumas concepções dos professores, o tempo de atuação de cada docente na escola Einstein e no próprio magistério também evidencia diferenças entre os professores. Identifica-se que a escola, desde o processo de transição para se constituir exclusivamente como uma escola de ensino médio regular, renovou seu quadro de professores em virtude da ampliação do número de matrículas e das novas disciplinas que se inseriram no currículo, o que levou à constituição de dois grupos de professores transitando na escola Einstein em relação ao tempo/experiência, nomeados nesta pesquisa de novatos e experientes.
Os novatos constituem um grupo de 33 professores (de um total de 69) que ingressaram há menos de cinco anos na escola Einstein. Destes, 12 podem ser considerados professores iniciantes12, pois lecionam há menos de cinco anos. Entre os demais professores incluídos neste grupo, parte já lecionava entre seis e dez anos (8 professores) e a maioria há mais de dez anos (13 professores). Assim, neste mesmo grupo, há professores que trazem também suas experiências docentes de outras escolas/redes/segmentos para a escola Einstein, mas não deixam de ser novatos na instituição. São professores que chegam influenciados pelas instituições anteriores por onde passaram, pela formação inicial e por suas experiências como alunos.
Os experientes compõem um grupo de 36 professores que trabalham na escola Einstein há mais de seis anos, porém a grande maioria (32) com experiência docente superior há dez anos. Neste grupo destaca-se também 16 professores próximos da aposentadoria, com mais de 20 anos de trabalho. São professores que fazem parte da história da escola e se constituíram influenciados pela mesma. Predomina o sentimento de pertencimento à instituição e até um pouco de saudosismo pelos modelos de ensino que a escola viveu no passado.
No convívio diário, os dois grupos dialogam sem conflitos, o clima é amigável, porém com pouco envolvimento pessoal e profissional entre eles. Em alguns eventos pontuais foi possível verificar que o grupo dos experientes rejeitam algumas dinâmicas valorizadas pelos novatos, como integração interdisciplinar para elaboração de projetos ou aproximação com os alunos através das redes sociais para atividades pedagógicas. No entanto, os professores experientes envolvem-se mais com os problemas da escola e da gestão, preocupam-se com a organização e o estabelecimento de normas.
Durante o período de planejamento anual, que poderia se consolidar como um momento de aproximação entre os grupos, constatam-se muitos desencontros, principalmente por conta das amplas jornadas de trabalho e da incompatibilidade de horários entre os docentes. Para contornar estes entraves, os professores se organizam por disciplinas e dividem entre si quem fará o planejamento de cada série de acordo com as turmas que lecionam, com pouca interação entre os pares e ausência de coletividade, principalmente entre novatos e experientes.
No entanto, de modo geral, observou-se que cada professor efetiva suas ações pedagógicas de forma individual e isolada, com poucas exceçõe. Com isso, tal isolamento das ações pedagógicas pode ser uma justificativa para a pouca aproximação entre os grupos, dificultando as trocas de experiências e o planejamento coletivo. Isto está relacionado ao próprio quadro de intensificação de trabalho e de ausência de espaço para formação continuada/planejamento que os dados sobre a jornada de trabalho evidenciaram.
Formação dos professores - múltiplas influências e representações
Na escola Einstein todos os professores em atuação no ensino médio possuem nível superior completo. Diferentemente da heterogeneidade observada na identificação do tempo de serviço, sexo, idade, carga horária e disciplinas, há uma similaridade expressiva entre as trajetórias acadêmicas desses professores.
A maioria dos docentes (42/69) desenvolveu seu percurso da educação básica em escolas públicas, no entanto migraram para o ensino superior privado. Observa-se que há predominância na rede de formação universitária, pública ou privada, de acordo com a área disciplinar do professor e a maior ou menor oferta de vagas na rede pública. Os professores de Física e Sociologia são em sua totalidade formados na esfera pública, porém os de Matemática e Língua Portuguesa cursaram, predominantemente, universidade privada. A necessidade de conciliar trabalho e formação superior também aparece para justificar a opção pela rede privada.
Essas trajetórias reforçam a ideia da ampliação do campo de recrutamento de novos professores e da variedade de sua origem social, principalmente quando associada à degradação da imagem social dos professores (FORMOSINHO, 2009). A maioria dos docentes são moradores da região da Baixada Fluminense ou adjacências, oriundos de famílias dos setores populares ou da classe média baixa. A profissão de professor parece-lhes assegurar ascensão social em relação a seus pais. Como afirma Penna (2008), exercer a docência significa para um grande grupo de novos docentes a elevação concreta do seu capital cultural e material ao se levar em consideração suas famílias de origem.
Quando eu acabei o ensino médio eu fiquei perdido, não sabia o que ia fazer, aí fiquei uns 3 anos ainda sem saber o que iria fazer, não tinha perspectiva de curso superior. Minha mãe, a família assim não tem grande grau de instrução, colocou que o ensino médio é o máximo e aí também por falta de entendimento, eu achava que estava no máximo (Professor Matemática).
Além disso, os 26 professores que cursaram universidades públicas se distribuem em sete instituições diferentes (relação de 3,7 professores para cada universidade). No entanto, os 42 que se formaram na rede privada o fizeram em 24 instituições (relação de 1,7 professores para cada universidade). Isso se justifica na opção por cursarem as faculdades privadas localizadas na região da Baixada Fluminense, onde reside a maioria dos docentes. No entanto, não deixa de tratar-se de uma multiplicidade de instituições privadas e públicas (total de 31), que adotam currículos bem distintos nos seus cursos de licenciatura, com concepções e abordagens até mesmo antagônicas dentro do campo pedagógico, como aponta Gatti ET all (2009) nos estudos sobre os currículos das licenciaturas.
Quando questionados sobre as contribuições e/ou lacunas de seus cursos de licenciatura para prática docente, as críticas apontadas pelos professores são direcionadas para a pouca articulção entre o que se aprende na faculdade e o como se ensina na prática. E, nesses casos, a experiência é apontada pelos professores e gestores entrevistados como principal elemento formativo enquanto a formação superior é criticada por não parece contribuir para o exercício efetivo da docência.
Didática é algo que você tem que adequar, didática da graduação não te prepara para nada. Eu vivi isso comparando a minha experiência com os meus alunos, eu desenvolvi didática sem ter tido aula de didática, porque eu comecei a dar aula antes de ir para a graduação. (...) E depois, as minhas aulas de didática na faculdade não me ensinaram a lidar com a sala. Você precisa antes de ter um material lindo para dar aula, você precisa ter a atenção do aluno. (Professora de Língua Portuguesa).
Observa-se que a interpretação da prática feita pelos próprios professores são resultados das experiências construídas, associadas com reflexão e busca por compreender a realidade dos alunos, mas também com as crenças, os valores e as vivências familiares, sociais e acadêmicas de cada um. Porém, é preciso ter cuidado para o excesso de valorização da prática e a desvalorização dos conhecimentos teóricos das ciências da educação, construídos também através de pesquisas e análises sociais.
Para Nóvoa (1991), o desenvolvimento profissional docente precisa ter como fundamentos, além da valorização do saber da experiência, a lógica da constante reflexividade, da participação dos docentes e da educação permanente com vistas também ao desenvolvimento organizacional. Com isso, reconhece que não é possível emergir uma nova cultura profissional dos professores sem modificar de forma articulada os contextos de trabalho e sem autonomia para as instituições e para o trabalho docente.
Na escola Einstein, constatou-se apesar das criticas, que a trajetória formativa/acadêmica é apontada como justificativa para uma série de ações dos docentes. Foi possível reconhecer dois grupos de professores especialistas atuantes na escola, delimitados por suas experiências formativas. São eles, os professores que entraram no ensino médio após migrarem das séries iniciais e os professores que tiveram no ensino médio sua primeira experiência no magistério.
A diferença está na própria formação, quem começa com as primeiras séries, principalmente, faz o curso normal, o que o torna diferente, a gente já percebe isso na própria faculdade. O professor tem uma bagagem muito maior do que o pessoal que entra logo como professor I,isto é, entra direto na faculdade e vem aqui para a sala de aula (Diretora adjunta).
Segundo os gestores entrevistados, o que difere nos professores que entraram no ensino médio, após migrarem das séries iniciais, é a trajetória formativa iniciada no curso normal13. Para os mesmos, identifica-se nos docentes que tiveram esta experiência uma maior ênfase pedagógica em suas ações, caracterizada pela busca constante de novas estratégias didáticas para melhorar os resultados do processo ensino-aprendizagem. São professores que, na maioria das vezes, aderiram ao magistério como primeira opção de escolha profissional. A influência da formação específica em uma área disciplinar posterior se construiu sobre a experiência de professor das séries iniciais e do curso normal.
Segundo Formosinho (2009), o modelo de formação inicial dos professores especialistas traz, majoritariamente, a influência do conhecimento da área disciplinar. Esta influência se efetiva pela natureza epistemológica dos conhecimentos, compreendida como um conjunto de saberes científicos e convicções que servem para estabelecer a validade dos mesmos, sendo capazes de nortear desde a produção de novos saberes da área até as formas de ensinar e aprender. Também, segundo Libâneo (2010), a epistemologia de cada saber específico marca a prática dos docentes em suas respectivas disciplinas de formação.
De acordo com os argumentos dos entrevistados na escola Einstein, na maioria das vezes, esses professores demonstram priorizar a ênfase no conhecimento científico específico da área que se sobrepõe à ênfase pedagógica, já colocada em um plano secundário durante o processo de formação inicial dos novos licenciados. Esses docentes concebem a aula como espaço, estritamente, de transmissão de conhecimento de forma diretiva e, muitas vezes, utilizam modelos pedagógicos rígidos, baseados em suas próprias experiências escolares.
A faculdade não ensina a ensinar. Ela não te dá base para dar aula. A faculdade te dá o conteúdo, que não é nem do ensino médio e nem do ensino fundamental, e o resto é com você (Professor de Matemática).
Gatti e Barreto (2009) apontam que os próprios cursos de licenciatura contribuem para esse afastamento dos conhecimentos pedagógico dos novos professores:
Verifica-se nas licenciaturas dos professores especialistas a prevalência da histórica ideia de oferecimento de formação na área disciplinar específica com alto peso em número de disciplinas e horas-aula, praticamente sem integração com as disciplinas pedagógicas. Estas ficam com parcela reduzida no total de horas-aula ou atividades (Ibid., p.48).
Formosinho (2009) também identifica em Portugal que a ampliação das escolas secundárias criou a necessidade de ampliação do recrutamento de novos professores, culminando, muitas vezes, no aligeiramento e precarização da formação inicial dos docentes. Na prática muitos professores se veem diante de uma precária formação pedagógica inicial e socorrem-se das suas vivências para 'sobreviver' na escola. No entanto, para o autor (op.cit) essa "pré-formação" da docência, apoiada nas experiências discentes, pode ser superada com o processo de desenvolvimento profissional, apoiado em formações contínuas integradas com a prática.
Porém, outros elementos também evidenciaram o distanciamento entre a formação acadêmica e o exercício da docência no ensino médio:
O professor que tenha feito só faculdade, a grande maioria não se encaixa nesse padrão, mais preocupado com o aluno, esse perfil de mais atento, de cuidar, porque a realidade é que muitos acabaram caindo na licenciatura por falta de opção e por falta de mercado a grande maioria acaba ficando no magistério mesmo. (Coordenadora Ana).
O depoimento acima chama atenção para a forma de entrada na profissão como uma falta de opção ou uma opção passageira, na qual a docência é vista apenas como um emprego. Gatti et al (2019) constata através de dados sobre os motivos da escolha para ser professor entre os licenciandos que pouquíssimos são os estudantes que consideram ser a docência uma boa carreira. A escolha da docência como uma segunda opção e uma espécie de “seguro desemprego”, ou seja, como uma alternativa no caso de não haver possibilidade de exercício de outra atividade, parece ser uma realidade entre os professores do ensino médio.
Na escola Einstein encontra-se professores, principalmente os recém-formados, que trilharam uma vida acadêmica longa, inclusive com pós-graduação stricto sensu, que se encaixam no perfil dos que aderiram ao magistério de ensino médio como forma de passagem, pois afirmam estar atuando como professor da educação básica apenas por um período temporário, enquanto investem na consolidação de suas profissões como bacharés (biólogos, químicos, físicos, sociólogos) ou na busca pelo ingresso na carreira universitária de professor/pesquisador. A maioria demonstra possuir pouca/nenhuma experiência com a educação básica, ausência de interação com os pares e pouca adesão aos conhecimentos da formação pedagógica. Reconhecem ainda que a desvalorização sistemática do estatuto da profissão docente e as más condições de trabalho marcam essa não adesão por ser professor do ensino médio como opção de carreira.
Por outro lado, não se pode evidenciar essa realidade como um padrão entre os especialistas, pois há professores que iniciaram suas carreiras após a graduação e que se destacam com atuações bem-sucedidas, marcadas por forte adesão aprofisão. Pode-se dizer que são professores que descobriram como agir na urgência e decidir na incerteza (PERRENOUD, 2001), pois esta parece ser a realidade das salas de aula de ensino médio na escola pública.
Gestores e equipe pedagógica da escola Einstein afirmam que é possível integrar estes dois grupos de professores, reconhecendo que ambos possuem contribuições diferentes, estabelecendo limites e ampliando ideias. Dentre os docentes especialistas evidenciam-se aqueles que trazem metodologias diferenciadas e formas novas de conceber determinadas ações, além de conhecerem melhor o contexto dos jovens. E, por outro lado, há professores com trajetórias iniciadas nas séries do ensino fundamental que ultrapassam os limites da concepção de 'cuidado' da educação, exagerando nas preocupações sociais e afetivas em detrimento das atividades de ensino. O ponto de equilíbrio pode se consolidar pelo enriquecimento dos dois grupos via trocas de experiências e projetos coletivos.
Por conseguinte, uma formação continuada densa e direcionada poderia ser um caminho de integrar o trabalho desses professores do ensino médio oriundos de processos formativos distintos, pois é possível reconhecer que, hoje, nos campos da didática e das demais ciências da educação, há elementos norteadores que, articulados com a prática, podem contribuir com o desenvolvimento da profissionalidade docente (CANDAU, 2012; LIBÂNEO, 2010; FORMOSINHO, 2009).
Por fim, como os professores investigados se posicionam em relação a esse aspecto, à formação continuada?
Inicialmente, a formação continuada não é uma realidade para a maioria destes professores. Eles justificam esse distanciamento pela questão da falta de tempo e pelo desgaste provocado pelo sobrecarga de trabalho. Por outro lado, também destacam que os modelos de formação oferecidos não se adéquam à realidade e às necessidades dos professores deste contexto. Os professores reconhecem que lhes faltam dois conjuntos de conhecimentos específicos, um referente à relação professor-aluno, com destaque para a condição juvenil, e outro voltado para os saberes didático-pedagógicos no que tange ao favorecimento da integração curricular e à transposição didática dos conhecimentos científicos.
Fica evidente a ausência de espaços de formação continuada no contexto de trabalho que possam ser reconhecidos e valorizadas pelos professores. Nenhum dos professores aponta ter participado desta modalidade de formação nos últimos dois anos. Além dos conflitos sobre o que consideram ou não formação continuada, outra justificativa para este Nóvoa (1991) alerta que não se constrói uma formação continuada sem capitalizar a participação dos docentes, elencando seus anseios pelo incentivo da reflexão sobre a prática, ou seja, valorizando as experiências inovadoras.
No cotidiano observado, o que se constatou foram professores com clareza e domínio sobre os conteúdos disciplinares e com grandes preocupações em relação à assimilação destes por parte dos alunos, porém com pouca argumentação de estratégias pedagógicas em relação ao processo de ensino e ausência de uma postura de corresponsabilização pela melhora dos resultados. Percebe- se a existência de um distanciamento entre ensino e aprendizagem que somente os multimensionalidade dos conhecimentos didáticos (CANDAU,2012) poderiam integrar, a partir formação continuada e do incentivo à prática reflexiva.
Segundo Dubet (2002), os professores vivem em um sistema marcado por contradições e oposições, entre a ênfase ao conteúdo e o reconhecimento da subjetivação de cada aluno; entre o trabalho pedagógico e o trabalho social. Para o autor há fortes tensões entre a educação de cada aluno e as metas gerais que precisam alcançar e, por isso, alguns docentes vivem a serviço da aprendizagem e acabam por esquecer do outro. Seria como uma obsessão pela aprendizagem que encerra os professores dentro de uma verdadeira bolha.
No entanto, afirma Dubet (op.cit.), diante das dificuldades de fazer o que acreditam ser o seu papel e não perder a crença no seu trabalho e na própria escola, os docentes podem lançar mão de "fábulas consolatórias". São como consolos psicológicos que evitam o sentimento de culpabilização pessoal diante do fracasso escolar dos alunos e lhe atribui às condições sociais e culturais das famílias, às condições de trabalho ou ao sistema escolar. Todos estes conflitos sem respostas caracterizam o trabalho docente como um ofício que desgasta e envolve um jogo de lógicas de ação e concepções constantes, principalmente com a queda da legitimidade da escola e o pouco prestígio da profissão docente.
Considerações finais
Estudar professor em qualquer segmento de ensino é sempre um desafio, principalmente devido à heterogeneidade de funções que são atribuídas à docência e à própria educação escolar na contemporaneidade. Da transmissão de conteúdos à formação integral dos indivíduos, do vocacionado ao profissional, do tecnicista ao integrador, do teórico ao contextualizador, o trabalho docente se reestrutura tanto a partir das novas políticas educacionais, quanto pelas mudanças da sociedade. Além disso, há as especificidades de cada segmento de ensino no qual o exercício da profissão se inscreve e do próprio território, trazendo variações de público e até de objetivos. São múltiplas e novas competências e novos saberes específicos que o contexto também exige da docência.
Esses saberes profissionais também são variados e heterogêneos, porque não formam um repertório de conhecimentos unificado, por exemplo, em torno de uma disciplina, de uma tecnologia ou de uma concepção do ensino. Um professor raramente tem uma teoria ou uma concepção unitária de sua prática; ao contrário, os professores utilizam muitas teorias, concepções e técnicas, conforme a necessidade, mesmo que pareçam contraditórias. Sua relação com os saberes não é de busca de coerência, mas de utilização integrada no trabalho, em função de vários objetivos que procuram atingir simultaneamente (TARDIF, 2005).
Os dados deste trabalho mostraram que a categoria profissional professor de ensino médio é numerosa na esfera nacional e com uma série de especificidade em torno de suas condições de trabalho e formação. Além disso, dispõe de uma heterogeneidade de contratos de trabalho, planos de carreira, jornadas e salários, uma vez que os diferentes estados e redes privadas adotam formas de regulamentação próprias em relação ao trabalho dos docentes,aos currículos e carga horárias.
Uma vez que os indicadores de resultados dos alunos em avaliações externas no âmbito do ensino médio e na própria avaliação interna dos professores e gestores da escola ainda precisam alcançar patamares mais elevados, é necessário reconhecer que outros fatores intra e extraescolares precisam ser considerados. O trabalho docente nas escolas públicas da Baixada Fluminense encontra muitos obstáculos a serem superados, a começar pelos baixos salários dos professores especialistas, muito inferiores aos de outras categorias profissionais com o mesmo nível de formação, obrigando estes docentes a lecionarem em várias escolas com carga horária, às vezes, superior a 40 horas semanais. Tal realidade gera um alargamento no número de alunos e turmas que o professor precisa atender, gerando sobrecarga de correções de trabalhos e avaliações, aulas distintas para preparar, alunos diversos para conhecer, se adequar e se envolver.
As escolas contam com poucos recursos, desde carência de material básico, como quadros adequados e em boas condições, passando pelo acesso limitado a material impresso e chegando até a carência de instalações específicas às áreas disciplinares, como laboratórios funcionais, quadra de esportes e bibliotecas modernizadas. Recaem ainda sobre o trabalho docente as formas naturalizadas da organização escolar, as lógicas temporais e burocráticas das redes de ensino, as grades curriculares e conteúdos programáticos impostos, até as atuais políticas de responsabilização das esferas governamentais. Somam-se também as influências externas da realidade da periferia, como as baixas condições socioeconômicas e os conflitos de objetivos entre os alunos e a escola.
Assim, o trabalho do professor de ensino médio mostra-se marcado pela complexidade que envolve diferentes aspectos da profissão, como a jornada de trabalho heterogênea, controle organizacional centralizado pelo sistema de ensino, múltiplos processos de formação inicial, fragmentação disciplinar, ausência de espaços formativos, novos contextos sociais e culturais dos alunos. No entanto, uma importante tese pode ser constatada ao concluir este artigo, faz-se necessário investir na pessoa, no professor, em sua formação contínua, que favoreça a reflexão crítica e a troca de experiências com os pares. Para tanto, as condições de trabalho dos professores de ensino médio precisam ser repensadas, para superar a intensificação do número de alunos/turmas, de carga horária e de aulas.
As verdadeiras alternativas de qualidade de ensino podem mostrar-se escondidas dentro da própria escola e no trabalho solitário de um grupo de bons professores reconhecido apenas por seus próprios alunos. O investimento em trabalho coletivo, prática reflexiva, coparticipação e envolvimento, associado a estratégias de acompanhamento do trabalho docente, podem ser estratégias para o desenvolvimento profissional dos professores e melhorias nos resultados dos alunos e no ensino.