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Ensino em Re-Vista

versão On-line ISSN 1983-1730

Ensino em Re-Vista vol.29  Uberlândia  2022  Epub 08-Jun-2023

https://doi.org/10.14393/er-v29a2022-46 

DOSSIÊ 3 - A ESCOLA NOS DIAS ATUAIS: E AGORA?

Entrevista - Marcos Garcia Neira. A escola nos dias atuais

Ivan Fortunato1 
http://orcid.org/0000-0002-1870-7528

Osmar Hélio Alves Araújo2 
http://orcid.org/0000-0003-3396-8205

1Doutor em Desenvolimento Humano e Tecnologias e Doutor em Geografia. Instituto Federal de São Paulo, Itapetininga, Brasil. E-mail: ivanfrt@yahoo.com.br.

2Doutor em Educação. Universidade Federal da Paraíba. Mamanguape, Paraíba, Brasil. E-mail: osmarhelio@hotmail.com.


Breve currículo do professor Marcos Garcia Neira:

Licenciado em Educação Física e Pedagogia com Mestrado e Doutorado em Educação, Pós-doutorado em Currículo e Educação Física e Livre-Docência em Metodologia do Ensino de Educação Física. Professor Titular da Universidade de São Paulo, onde exerce a função de Pró-Reitor Adjunto de Graduação (2022-2023). Leciona nos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Educação, orienta pesquisas em nível de iniciação científica, mestrado e doutorado; supervisiona pesquisas de pós-doutorado e coordena o Grupo de Pesquisas em Educação Física escolar (www.gpef.fe.usp.br). Investiga a prática pedagógica da Educação Física com apoio da FAPESP e do CNPq, do qual é Bolsista de Produtividade em Pesquisa. Tem experiência com os seguintes temas: Educação Física escolar, Currículo, Formação de professores e Teorias pós-críticas.

01 - Professor, consideramos que a pandemia impôs uma série de mudanças na vida em sociedade. Junto com o medo do vírus (ainda pouco conhecido), com o afastamento social e o isolamento, veio também uma onda de descobertas. A própria ideia de reinventar as relações sociais com o intuito de garantir o convívio social foi, também, exercitada no contexto escolar. A partir dessa proposta de reinvenção do cotidiano, seria possível afirmar que há um novo normal suscitado também nas escolas?

Marcos Garcia Neira: Embora usual, no meu entender, a expressão “novo normal” não é a mais adequada para referir-se ao que vem ocorrendo neste momento de retomada presencial das atividades escolares. Exceção feita à utilização das máscaras (por enquanto), praticamente não se percebem os protocolos sanitários largamente divulgados durante a pandemia. Para quem esperava um maior e melhor emprego das ferramentas virtuais, isso tampouco vem acontecendo. Principalmente os professores, professoras, gestores e gestoras ficaram extenuados após longos meses às frentes das telas. Esgotaram as possibilidades ao seu alcance e, agora, procuram recuperar as aprendizagens não alcançadas, recorrendo, principalmente, aos meios e métodos conhecidos e inviáveis durante o isolamento: livros, cadernos, lousa ou quadro branco, aulas dialogadas, debates, trabalhos em grupo etc. Isso não significa, em absoluto, o banimento dos equipamentos de informática. É certo que muitos profissionais se apropriaram, não só das ferramentas virtuais, mas também de formas alternativas de desenvolvimento das atividades pedagógicas. O uso de repositórios digitais, vídeos, mecanismos de pesquisa etc. chegou para ficar, desde que a infraestrutura adequada esteja disponível. Na contramão do que parece ter acontecido em outras práticas sociais, cujas transformações durante o período de isolamento social perduram nos primeiros meses de 2022, tudo indica que a experiência remota na educação escolar não deixou saudades.

2 - Sabemos que o uso de tecnologias demanda que os estudantes fiquem por um tempo prolongado na frente de “telas”. Sabe-se que, em excesso, essa exposição pode gerar prejuízos no desenvolvimento dos estudantes. Como pensar numa reorganização curricular diante dessas necessidades?

Marcos Garcia Neira: As primeiras semanas de trabalho presencial têm preocupado bastante os gestores e gestoras, menos pelos conteúdos não aprendidos e mais pela perda das habilidades requisitadas durante a convivência institucional. Nesses quase dois anos de permanência em domicílio, estudantes e docentes desaprenderam a dialogar em busca de soluções coletivas para os problemas que se apresentam, tornando-se mais individualistas e ensimesmados. O fenômeno é mais comum do que se imagina. São inúmeros os casos documentados dos efeitos nocivos da ausência de interação com pessoas para além do grupo familiar por períodos prolongados. O isolamento a que fomos submetidos inviabilizou uma das aprendizagens mais caras à escola: lidar com quem pensa de modo diferente. Aquelas situações em que as divergências afloram e que estudantes e professores se vêm obrigados a negociar entre si e com seus pares praticamente têm um enorme potencial pedagógico para aprender os códigos e procedimentos que caracterizam a vida social, sobretudo naqueles contextos em que se preza a democracia. Logo, espera-se que a reorganização curricular para retomada das atividades presenciais leve em consideração a necessidade desse tipo de conhecimento, sem reduzir a importância daqueles, cujas lacunas serão facilmente percebidas no início do ano letivo.

3 - No Brasil, percebemos que, com o advento da pandemia, os ideais neoliberais estão cada vez mais presentes com voracidade no contexto educacional. Poderíamos dizer que esse movimento poderá impulsionar uma espécie de privatização da educação em todos os níveis?

Marcos Garcia Neira: Entendo ser preciso tratarmos separadamente a Educação Básica e o Ensino Superior quando se coloca a questão da privatização da educação. Não há dúvidas que a privatização do Ensino Superior no Brasil vem sendo impulsionada com apoio das agências multilaterais como o Banco Mundial e OCDE, e da regulamentação liberalizante na política educacional que propiciou a abertura ao empresariamento e aos investimentos estrangeiros. As megacorporações educacionais avançaram sobre as Instituições de Ensino Superior impactando profundamente a cultura organizacional. A pandemia favoreceu as mudanças, também, na cultura acadêmica. Na medida em que as aulas migraram para o modo remoto, professores e professoras foram sumariamente demitidos, não sem antes gravar centenas de horas de videoaulas e preparar atividades nas plataformas virtuais. A Educação Básica também foi alvo dessa voracidade. Entretanto, se por um lado as empresas aproveitaram o momento para comercializar sua parafernália tecnológica voltada à educação, por outro, as famílias logo se deram conta da impossibilidade de substituir professores e professoras, inviabilizando por completo o homeschooling. Para piorar o quadro, o empobrecimento da população nesse período causou a migração de milhares de crianças e jovens da rede privada de ensino para a rede pública.

4 - Ainda sobre o contexto da pandemia da Covid-19, é possível mensurar os efeitos que a pandemia do Corona vírus trouxe para o processo de ensino e aprendizagem dos estudantes da Educação Básica? Quais as principais fragilidades desse período? Que ações podem ser realizadas para minimizar os impactos desse processo?

Marcos Garcia Neira: Do ponto de vista pedagógico seria injusto estabelecer como parâmetros os objetivos de aprendizagem estabelecidos nos anos anteriores à pandemia. Tomemos como exemplo o Ensino Fundamental. É uma obviedade afirmar que as crianças ingressantes no primeiro ano praticamente não puderam exercer o seu direito a frequentar Educação Infantil, enquanto as crianças do terceiro sequer se recordam da sala de aula, pois nela permaneceram por duas semanas apenas. Diante disso, como pensar em defasagem ou mensuração das aprendizagens. O importante agora é reocupar as escolas sem descuidar dos protocolos sanitários. Com todas e todos vacinados, cabe ao corpo docente dar-se conta dessa realidade e programar-se a partir dela. Há estudantes que vivenciaram o isolamento social com muitas dificuldades de todos os tipos, outros, um pouco menos, mas nem por isso podem prescindir de cuidados e atenção. Aprender e ensinar requerem calma, tranquilidade, organização, compreensão e empenho de todas as partes. É nosso dever como adultos e profissionais assumir a responsabilidade e fazer o melhor possível para ajudar as crianças e jovens a se reencontrarem e se redescobrirem na escola. Nenhum professor ou professora viveu esse processo, os estudantes e suas famílias tampouco. Então, todos terão que aprender a fazê-lo. Será mais fácil se caminharem juntos. Não há uma regra geral, cada comunidade percorrerá o seu caminho.

5 - É possível pensar numa escola diferente no período pós-pandemia? A partir de quais aspectos?

Marcos Garcia Neira: Pensar numa escola diferente, mais do que possível, é desejável. Não só pensar, como fazer. A pandemia explicitou o que todos sabíamos: a absurda e vergonhosa desigualdade educacional que nos assola. Mal ou bem, a rede privada buscou por seus próprios meios alternativas para garantir uma interação mínima com o alunado. Acontece que estamos falando da minoria da população. A imensa maioria permaneceu alijada de uma experiência formativa sistematizada pelo tempo de duração do isolamento social. Em que pesem os esforços de muitos docentes, grande parte das redes municipais e estaduais tardou a providenciar o suporte necessário, independente do formato. O resultado só poderia ser o absenteísmo e a evasão. Diante desse quadro, a sociedade não pode repetir os equívocos educacionais pré-pandêmicos. É nossa obrigação prover as escolas e seus profissionais dos recursos para um trabalho pedagógico que corresponda às demandas contemporâneas. Não podemos aceitar a carência de vagas, os baixos salários, as péssimas condições de trabalho, a inoperância das atividades meio, a desatenção do poder público e, principalmente, o abandono das crianças e suas famílias à própria sorte. Em muitos casos foi exatamente isso o que aconteceu durante a pandemia. A alegria demonstrada pelos estudantes e profissionais da educação no retorno às atividades presenciais precisa ser correspondida com afeto e competência. O acolhimento que todos merecemos e desejamos extrapola os sorrisos, a estrutura e a qualificação docente. A educação na pós-pandemia deve ser colocada entre as prioridades de Estado. Isso significa fazer convergir esforços para subsidiar as escolas com pessoal bem qualificado e bem remunerado, boa infraestrutura e currículos sintonizados com a construção de uma sociedade menos desigual.

Recebido: 01 de Agosto de 2021; Aceito: 01 de Fevereiro de 2022

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