CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O campo científico-tecnológico das biotecnologias está em crescimento acelerado nas últimas décadas (GILDING e PICKERING, 2011) e tem trazido impacto à vida da população mundial em diversos setores: alimentos, medicamentos, produção de energia, indústria química, etc. Essas interferências são marcadas por diversas controvérsias, sejam de natureza social, científica e tecnológica. Entretanto, a população parece não se apropriar dos conhecimentos sistematizados, sejam eles os conhecimentos teóricos das ciências Naturais (LEGEY, JURBERG e COUTINHO, 2009; REIS, 2007) ou os conhecimentos metacientíficos, que discutem os valores e os condicionantes sociais atuantes na própria construção do conhecimento (SJÖSTRÖM, 2013), dificultando sua tomada de posição frente a esses dilemas, o que nos faz refletir mais especificamente sobre o papel da escola e do ensino de química nesse cenário.
No Mato Grosso do Sul (MS), contexto de origem e de formação em química de um dos autores, a presença da biotecnologia é muito marcante. O estado é uma importante região agrícola e grande produtor de soja (EMBRAPA, 2004), sendo que 65% da área plantada de soja na safra 2011/2012 em MS é de origem transgênica (CONAB, 2012). Desde a fundação do MS, na década de 1970, a produção do grão no estado cresceu 880% e, em 2012, o mesmo foi considerado o quinto maior produtor do grão no país (IBGE, 2012). Ademais, em 2010 o Brasil já tinha o segundo maior plantio de alimentos geneticamente modificados do planeta.
Em 2012 a multinacional Monsanto apresentou à Federação de Agricultura e Pecuária de MS uma nova variedade transgênica de soja, a Intacta RR2 PRO. Entretanto, os produtores que participaram dos testes da nova variedade foram cautelosos quanto às vantagens do produto, revelando o papel de legitimação atribuído pela sociedade à ciência: “É preciso dados científicos. Eu sou mais conservador, tenho receio de tecnologias não comprovadas”, afirmou um deles (PRODUTORES..., 2012).
Longe de haver certezas, há muitas controvérsias sobre esses temas, de modo que essas (bio)tecnologias se mostram um campo de batalha de interesses econômicos, políticos, científicos e sociais distintos. As biotecnologias se configuram como um assunto que se mostra demasiadamente complexo para ser decidido apenas por alguns grupos de pessoas, em determinadas posições de poder, devendo ser submetido ao debate social amplo, em sentido democrático. É por isso que Bazzo, Linsingen e Pereira (2003) defendem a regulação social da ciência e tecnologia, por critérios: normativos - democracia significa a participação ampla da sociedade; substantivos - pois os grupos sociais têm percepções, anseios e conhecimentos diferentes sobre um problema, enriquecendo o debate e; instrumentais - a participação ajuda a validar a decisão, chegando a melhores decisões.
Tal perspectiva se encontra no centro do movimento Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS) que se baseia fundamentalmente na crítica à neutralidade científica e na defesa de seu sentido de instituição social, que, portanto, é feita e regulada por fatores sociais. Essa maneira crítica e responsável de ver a atividade científica tem influências crescentes na educação científica, aproximando-se da Alfabetização Científica Ampliada e dos ideais educacionais de Paulo Freire - a educação dialógica-problematizadora (AULER e DELIZOICOV, 2006).
Embora estejam presentes no contexto nacional e diretamente relacionados à vida da população, os temas biotecnológicos são pouco conhecidos, como demonstra pesquisas do Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (IBOPE, 2001; 2003) sobre o pouco conhecimento do povo brasileiro sobre alimentos provenientes de organismos transgênicos. Também os cursos de formação de professores (DARCIN e TÜRKMEN, 2006), a pesquisa em ensino de ciências (SLONGO e DELIZOICOV, 2010) e os livros didáticos não têm abordado o assunto em profundidade e extensão, decorrendo pouco impacto na educação em biotecnologia (HARMS, 2002; PEDRANCINI et al., 2008). As pesquisas acimas são resultado do momento de discussão da regulação dos transgênicos do país, sendo que trabalhos mais recentes sobre o tema são escassos, conforme apontam as pesquisas de Marcelino e Marques (2017), o que reforça a necessidade de fomentar a discussão dos temas biotecnológicos. Convém ressaltar que a não apropriação dos conhecimentos sistematizados (conceitos científicos, seus princípios, valores e interesses que os embasam) para compreender e explicar a realidade revela que o ensino de ciências está descolado da realidade e que o conhecimento “transmitido” é alienado do indivíduo histórico-social (ZANETIC, 1989). Algo, portanto, que merece ainda muita atenção e estudos.
Nesse sentido, esse artigo investiga compreensões de professores sul mato-grossenses sobre os riscos e controvérsias das biotecnologias. As análises são realizadas sob a ótica dos estudos CTS e da educação dialógica-problematizadora de Freire. Partimos da reflexão sobre os valores e imagem da ciência e tecnologia (CT) que subjazem a essas compreensões, ressaltando e explorando possíveis controvérsias, para, então, discutir implicações e desafios para o ensino de ciências, especialmente a formação de professores.
Fazemos a seguir uma explanação das controvérsias sobre plantações geneticamente modificadas (GM), indicando a gênese destas por elementos da sociologia e filosofia da ciência, embasando assim nossas análises. Trataremos então dos valores, mitos e paradigmas que embasam determinadas abordagens científicas, para apontar seu caráter tecnocrático ou democrático. Em seguida, apresentamos o caminho metodológico da pesquisa, antes de descrever e analisar as compreensões dos professores relativos aos riscos e a tomada de posição frente a organismos geneticamente modificados (OGM).
1. CONTROVÉRSIAS DOS TRANSGÊNICOS
Longe de imaginar as biotecnologias como uma ferramenta que toma forma (boa ou má) na mão de quem a usa, Kennedy (1993) a considera como de dupla face: ao mesmo tempo em que traz muitos avanços, introduz uma série de malefícios. Portanto, quaisquer discussões sobre a viabilidade das novas tecnologias em resolver problemas devem ser feitas dentro do contexto, da situação real, em que ocorrem, perguntando: quem cria, controla e acessa essas novas tecnologias; e qual o contexto econômico em que elas acontecem.
Em 2016, a National Academy of Sciences, Engineering and Medicine (NAS) dos Estados Unidos da América divulgou um relatório de análises de produções científicas sobre os riscos e vantagens das plantações (crops) geneticamente modificadas (genetically engineered), a exemplo dos transgênicos. Foi uma investigação intensiva e ampla da produção acadêmica sobre o tema, ouvindo-se também a opinião de 80 pessoas com expertise em vários assuntos relacionados ao tema e mais de 700 comentários do público em geral para analisar as alegações de efeitos benéficos e maléficos das plantações geneticamente modificadas. Por fim, a Academia avaliou as (novas) tecnologias da área, sua eficácia e seus impactos sobre a sua segurança (NAS, 2016). Trazemos a seguir alguns resultados do Relatório.
Esse Relatório repercutiu no Brasil por meio da grande mídia em manchetes sensacionalistas, guiadas, possivelmente, por interesses ou despreparo para a comunicação científica: “Alimentos transgênicos não fazem mal à saúde, diz academia dos EUA” (ALIMENTOS..., 2016), demonstrando um olhar enviesado ao Relatório e descartando uma série de ressalvas que nele são feitas. Longe de colocar um fim nas discussões sobre vantagens e desvantagens das plantações geneticamente modificadas, os relatores são categóricos em afirmar que esta não é a palavra final sobre o tema, tanto pelas dificuldades metodológicas inerentes a uma pesquisa que se disponha a eliminar essas dúvidas, quanto pela finalidade de tal resposta:
O comitê evitou afirmações completas e generalizadas sobre os efeitos adversos ou benéficos das plantações GM [geneticamente modificadas]. [...] Finalmente, afirmações completas são problemáticas porque a formação de políticas para plantações GM envolve não só avaliação de riscos técnicos, mas também questões legais, incentivos econômicos, instituições e estruturas sociais e valores culturais e pessoais diversos (NAS, 2016, p. 4, tradução nossa).
O Relatório também não encontra nas produções científicas que analisa, um parecer conclusivo sobre os potenciais efeitos adversos ou benéficos das plantações GM aos animais, concluindo que “O design e análise de muitos estudos com alimentação de animais não foi ótimo, mas o grande número de experimentos proveu evidências razoáveis de que animais não foram afetados pelo consumo de alimentos derivados de plantações GM” (NAS, 2016, p. xvii, tradução nossa). Ressaltam-se ainda problemas metodológicos das pesquisas realizadas e a importância de mais pesquisas com financiamento público, como visto no trecho a seguir:
“Há uma necessidade urgente de pesquisas financiadas publicamente em novas abordagens para testar futuros produtos da engenharia genética para que métodos de teste acurados estejam disponíveis quando novos produtos estejam prontos para comercialização” (NAS, 2016, p. 11, tradução nossa).
O mesmo parecer cauteloso é dado sobre efeitos agronômicos, ambientais, sociais e econômico, afirmando que as pesquisas são escassas, díspares e inconclusivas. A partir disso, as recomendações do Relatório são, mais uma vez, de que mais pesquisas sejam realizadas, não só pelos proponentes dos OGM, mas também e especialmente com financiamento público.
Os processos de tomada de decisão também foram avaliados pelo comitê da NAS, que encontrou dificuldades em achar padrões de decisão, pois “os processos de regulação nacionais para plantações GM variam grandemente, porque eles refletem grandes diferenças sociais, políticas, legais e culturais entre os países” (NAS, 2016, p. xviii, tradução nossa). As metodologias de avaliação sobre produtos alimentícios, conforme aponta o Relatório, deveriam ser implementadas sobre qualquer inovação. Ou seja, não só os cultivares GM, mas toda inovação alimentícia deveria ser submetida à avaliação de riscos e benefícios, em suas diferentes dimensões. Essa avaliação representa uma questão de governança da tecnologia que deveria ser abordada por “fazedores de políticas, o setor privado e o público, de forma a considerar interesses que os competem” (NAS, 2016, p. 16, tradução nossa).
Essa é uma reflexão importante, pois as regulações atuais sobre derivados de OGM, como o Protocolo de Cartagena (BRASIL, 2006), prevê que o ônus da prova da segurança dos produtos é de responsabilidade de quem o criou (ônus reverso), alinhando-se a abordagens próximas ao princípio da precaução (THORNTON, 2000). O Relatório, embora não negue o ônus reverso, aconselha que também sejam feitas pesquisas por outros atores, além do proponente de uma inovação tecnológica.
Como pôde ser notado, o Relatório enfatiza a necessidade de pesquisas em diversas áreas, desde avaliação de risco à saúde, até questões sociais e culturais. Longe de estabelecer um fim para a questão, o Relatório sinaliza para a urgência em democratizar o processo de tomada de decisão sobre o tema e de abrir os critérios que determinam a agenda científica. A NAS, explicando sua abordagem metodológica, ressalta que um relatório que seja puramente uma avaliação técnica de risco “poderia resultar em uma análise que acuradamente responde às questões erradas, sendo de pouco uso para os tomadores de decisão” (NAS, 2016, p. 10, tradução nossa). Eles defendem uma avaliação que contrabalance deliberação e análise, objetivando uma participação abrangente e diversificada, contribuindo para que as “questões certas possam ser formuladas e o melhor: evidências mais apropriadas para abordá-las possam ser adquiridas” (NAS, 2016, p. 10, tradução nossa).
Portanto, as biotecnologias representam um campo controverso, em que se disputam visões de ciência, de tecnologia e de sociedade. Não obstante, não há conhecimento ou pesquisas sistemáticas e amplas, até o momento, que sejam capazes de mitigar essas dúvidas, culminando num ambiente de incerteza científica (LACEY, 2006b; LEWGOY, 2000; NAS, 2016). Essa incerteza “não pode ser descrita como uma deficiência objetiva de conhecimento. Antes, a incerteza percebida é função (inter)subjetiva da complexidade social e fatores culturais” (WYNNE, 1992 apudLEVIDOW, 2001, p. 845). Os argumentos em favor ou contrários se baseiam em valores e pressupostos que parecem corretos aos seus grupos; ela, a controvérsia, não é mais um simples motivo de desentendimento, mas um argumento social estratégico. Não se trata, portanto, de simplesmente promover mais pesquisas, mas deve-se questionar os valores, objetivos e pressupostos (científicos ou não) desse empreendimento. Como o próprio Relatório argumenta, não se trata só de promover pesquisa, mas de quem faz essas pesquisas e com qual objetivo. Nesse entendido, Lacey (2008) argumenta que é necessário expandir a prática científica para além de pesquisas que planejam o domínio da natureza e a geração de tecnologias, possibilitando novas formas de existir e o respeito às diferentes culturas. É sobre isso que estamos argumentando no presente trabalho, isto é, o papel educativo da abordagem das controvérsias sobre o tema dos transgênicos e das biotecnologias.
Com isso não se está desqualificando as pesquisas científicas, mas sim reconhecendo e desvelando a existência das controvérsias. Acreditamos que a realidade seja, em si mesmo, controversa, pois a ação humana está baseada em valores e interesses que são contraditórios aos interesses e valores individuais e/ou de determinados grupos. Decorrente desta premissa ressalta-se que o conhecimento científico também é guiado por valores e princípios de determinados grupos sociais, representando por vezes interesses contraditórios na sociedade. É o que Fleck (2010) chama de conexões ativas na produção do conhecimento - os elementos a priori do conhecimento, socialmente compartilhados e produzidos historicamente, que direcionam o olhar e ação do pesquisador para determinadas características do objeto cognoscível. Isso não significa, no entanto, ignorar a realidade em si mesma, as qualidades intrínsecas do objeto, o que Fleck (2010) chama de conexões passivas - aquelas que são possíveis de serem acessadas, mas não em sua totalidade, pois sempre “aparecem” de forma fragmentada e delimitadas pela cultura.
2. PARADIGMAS E VALORES DOS TRANSGÊNICOS
De acordo com Lacey (2008), a ciência atual está altamente vinculada com os valores do crescimento econômico, assumindo uma tendência de pesquisa chamada de tecnociência. A tecnociência é baseada na abordagem descontextualizada da metodologia científica que mantém o seu objetivo na geração de inovações ou de resultados científicos que expliquem e corroborem para a sua eficácia. Adotar a abordagem descontextualizada tem relações com um conjunto de valores sociais sobre a dominação de objetos naturais, que Lacey (2008) chama de valores do progresso tecnológico:
Atribuir alto valor ético para a capacidade humana de controlar os objetos naturais, principalmente quando se envolve inovações tecnológicas;
Alto valor ético para inovações que permitam a expansão das tecnologias para cada setor da vida cotidiana;
Alto valor para a definição de problemas em termos de soluções tecnocientíficas, isto é, de geração de tecnologias;
Princípio da pressuposição da legitimidade da inovação - não subordinar o valor da dominação dos objetos a quaisquer outros valores éticos ou sociais, mas pressupor a legitimidade das inovações tecnocientíficas, permitindo até mesmo um grau de desordem social e ambiental para sua implantação.
O princípio da pressuposição da legitimidade considera que é legítimo programar uma inovação tecnocientífica sem demora, desde que sejam eficazes, podendo até tolerar certo grau de perturbação social e ambiental. Assim, podem ser aceitas inovações tecnológicas que causem impactos ambientais, se a emissão for pouca, controlada, e meios de remediação forem propostos. Esses são os mesmos valores que subjazem ao Paradigma do Risco (THORNTON, 2000) sobre o controle e tratamento de produtos químicos.
O foco excessivo no papel do especialista (cientistas e tecnólogos) e nas suas ferramentas técnicas (estatística, “método científico”, etc.) corrobora para a visão de ciência e tecnologias neutras, absolutas e salvacionistas- mitos da CT (AULER e DELIZOICOV, 2001). Neutras, pois induz a ideia de seus praticantes não terem interesses em seus estudos e por não considerar que estes estão inseridos em um contexto histórico-cultural que orienta o olhar para determinados problemas e soluções. Absolutas, uma vez que passam a imagem de serem as únicas capazes de emitir um juízo adequado para o fato, desconsiderando o papel de outros agentes sociais, e omitindo os valores, princípios e ideologias que estão em jogo. Decorre disso o seu salvacionismo: a crença de que podem resolver todos os problemas (seja da natureza física, química ou biológica, ou da esfera social). São o que Auler e Delizoicov (2001) chamam de mitos a serem superados pela educação.
No entanto, a pressuposição da legitimidade se opõe ao princípio da precaução (PP), que prevê a suspensão temporária da atividade para que ocorram investigações sobre alternativas viáveis e sobre o conjunto completo de riscos ecológicos e sociais em longo prazo, “levando em conta as condições socioeconômicas das implementações planejadas, e a não ser que sejam conduzidas pesquisas adequadas pertinentes para a avaliação do valor social geral (benefícios) das implementações” (LACEY, 2008, p. 122, grifo do autor).
O PP permite o pluralismo metodológico científico, que parte do espaço de alternativas (conjunto de todas as alternativas disponíveis para uma situação socialmente relevante), utilizando diversas metodologias, inclusive a descontextualizada, para fazer investigações sistemáticas empíricas das diferentes opções (LACEY, 2008). Enquanto a tecnociência desonera o cientista da responsabilidade pela aplicação e distribuição dos conhecimentos científicos que desenvolveu, devendo apenas fornecer conhecimentos objetivos para boas práticas neutras de valores, o pluralismo metodológico vai além. Atribui ao cientista a responsabilidade em perceber condições socioeconômicas da produção de conhecimento e do espaço de alternativas, garantindo investigações sistemáticas das diversas opções. Assim, mudam-se os valores da ciência, que passam a ser os valores da participação popular (LACEY, 2008).
Por possibilitar o pluralismo metodológico, o PP abre a definição da agenda científica para a discussão ampla, envolvendo diversos grupos sociais. Assim, possibilita-se a participação democrática e plural (por meio de movimentos populares, sindicatos, escolas e comunidades) na definição das prioridades científicas, bem como dos critérios pelos quais as pesquisas serão desenvolvidas.
Os transgênicos, por exemplo, não surgiram de uma investigação ampla e de abordagens plurais de pesquisa, mas sim da procura em aumentar os lucros, adequando o uso para processos “humanitários” posteriormente. Não obstante, também não foi questionado se os transgênicos oferecem melhores respostas às questões de produtividade, nutrição e adaptabilidade ao ambiente do que as alternativas não analisadas. Segundo Lacey (2008) a defesa de uma maior inserção dos transgênicos na agricultura não é legítima. Ela pode até ser eficaz, mas não é legítima, pois não considerou uma avaliação completa dos riscos, nem vislumbrou (de fato, desconsiderou) os desdobramentos sociais de sua implantação (LACEY, 2008, p. 6). Portanto, os transgênicos são produtos de uma ciência e de uma política tecnocrática, por não considerarem critérios debatidos com a população, nem avaliar as alternativas.
Ao considerar tais aspectos, Lacey (2006a; 2008) defende a agroecologia, por exemplo, porque as suas estratégias multi- e interdisciplinares possibilitam investigar riscos indiretos e incertezas de longo prazo, tanto de sua produção, quanto dos transgênicos como componentes de sistemas agroecológicos (sistemas sociais e ecológicos em que ocorrem a produção e distribuição agrícola) (LACEY, 2008). A agroecologia deveria ser considerada dentro do espaço de alternativas, a partir do qual pesquisas seriam desenvolvidas no intuito de avaliar a opção legítima para um determinado contexto agrícola e social.
3. PERCURSO METODOLÓGICO
Esta pesquisa foi de caráter qualitativo e exploratório (ESTEBAN, 2012), baseando-se na estratégia de estudo de caso múltiplo (ou comparativo). Para essa pesquisa, em um primeiro momento, foram convidados 10 professores de duas escolas, uma urbana e outra rural. Todavia, contamos com adesão de apenas três: dois da escola urbana e uma da escola rural. Interpretamos a baixa adesão como um desconforto em falar de um tema complexo, recente e que está fortemente ligado à trama social de MS - à base da economia, aos grandes latifúndios e ao lobby que sustenta este sistema.
A escola urbana tem localização central, ofertando o nível médio e também o segundo ciclo da educação fundamental. É uma das maiores escolas em número de matrículas e recebe alunos provenientes de vários bairros do município, Campo Grande. Possui salas de informática, laboratório de ciências, biblioteca, sala de leitura e quadra coberta e também curso de logística, pela educação profissional, conforme divulgado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP, 2012).
A escola agrícola implantou o ensino médio integrado à educação profissional com habilitação para agronomia e pecuária desde 2006, devido ao anseio da população rural atendida pelo prosseguimento dos estudos. Entretanto, os anos iniciais (1º ao 5º ano) também contam com ensino integral e voltado às atividades desenvolvidas no campo. A escola também possui cozinha experimental, lago de piscicultura, sete bovinos para atividades didáticas, laboratório de ciências, laboratório de informática, biblioteca e quadra coberta (INEP, 2012).
O instrumento de coleta de dados foi a entrevista semiestruturada, gravada em áudio e integralmente transcrita. Forneceu-se aos professores um texto chamado “Falas de Cientistas sobre o Tema Biotecnologias” (Apêndice A, no arquivo de Suplemento deste artigo), produzido para esta pesquisa e que reúne excertos de textos científicos e materiais de divulgação científica que apresentam posições contraditórias sobre os riscos e aceitação dos processos biotecnológicos. O texto foi lido antes das perguntas, com intuito de fornecer informações básicas para os professores sobre os aspectos das biotecnologias que estavam sendo considerados na pesquisa, visto ser um assunto amplo.
Depois de integralmente transcritas, as falas dos professores compuseram o corpus da pesquisa, sobre o qual se aplicou o processo de análise textual discursiva (ATD) (MORAES e GALIAZZI, 2011). A primeira etapa desse processo é a leitura e significação, em que, a partir do processo de leitura, são focalizadas as unidades que constituem os textos, ou seja, as unidades de significado ou sentido que possibilitam a construção de categorias. Nessa etapa, as falas foram identificadas pelo código da pessoa que as proferiu (PR1: Prof. Rural 1; PU1: Prof. Urbano 1; PU2: Prof. Urbano 2; e ENT: Entrevistador) e pelo turno de fala dentro da entrevista. A essa unidade foram atribuídas palavras-chave, ou termos mais representativos, como aconselham Moraes e Galiazzi (2011), e também associada uma categoria prévia. As categorias podem ser definidas a priori, ou seja, com base nos referenciais teóricos e demais configurações da pesquisa, de forma consciente e planejada; bem como surgirem de uma auto-organização das unidades de sentido, com base em conhecimentos tácitos do pesquisador, de seus referenciais, de forma inconsciente (MORAES e GALIAZZI, 2011).
Tendo em vista esses princípios metodológicos e os objetivos da pesquisa, estabeleceram-se a priori algumas categorias de análise, das quais - neste trabalho - se analisa a categoria “Aspectos para Tomada de Decisão sobre Temas Biotecnológicos”.
4. COMPREENSÕES DE PROFESSORES PARA TOMADA DE DECISÃO SOBRE TEMAS BIOTECNOLÓGICOS
Antes de esmiuçar as respostas dos entrevistados, convém ressaltar que lhes foi disponibilizado um texto contendo falas de cientistas que apoiavam ou contradiziam a segurança dos transgênicos. Mesmo com a leitura desses textos, como veremos a seguir, os respondentes tiveram problemas em aceitar a controvérsia científica, ignorando-a ou recorrendo a argumentações diversas para atenuá-las. Apenas PU2 se atentou para a controvérsia, mas vislumbrou possibilidades na sua superação pela busca de maiores informações ou desenvolvimento de novas pesquisas. Nossa categoria a priori foi delineada conforme o objetivo da pesquisa e foi nomeada de Aspectos para a Tomada de Decisão sobre Temas Biotecnológicos. Conforme argumentaremos, essa categoria está fortemente relacionada ao mito do salvacionismo e da superioridade científica da tecnologia e seu argumento principal está fundado nas Certezas Científicas e Tecnocracia . Não obstante, essa certeza não é um mero argumento lógico, mas está eivada de Valores, Mitos e Progresso Tecnológico (conf. Figura 1).
O primeiro elemento a se ter em conta é que os transgênicos centralizaram os diálogos com os professores. Embora as perguntas e o texto de apoio (Apêndice A, em Arquivo Suplementar) fossem sobre assuntos biotecnológicos abrangentes, a transgenia (em especial da soja) foi o foco dos argumentos e também dessas análises. Justificamos essa recorrência da fala dos professores pela maior familiaridade do assunto, que aparece mais na mídia, e também da sua proximidade ao contexto agrícola, marcado pelo plantio de soja.
4.1- Certezas Científicas e Tecnocracia
A partir da fala dos sujeitos entrevistados, depreende-se a ideia de certeza científica quanto à segurança dos alimentos transgênicos. Os professores apoiam esse argumento na suposta existência de testes científicos que atestam a segurança pelo histórico de consumo que alegadamente não levou ao surgimento de problemas ambientais e de saúde e, também, pela pretensa comprovação dos benefícios obtidos pelas cultivares (variedade cultivada e definida de uma espécie) biotecnológicas, que também já estariam “comprovados”.
PR1-37: O Brasil só era proibido de produzir. Alimentação já tinha entrado no setor alimentar faz horas. Mas, enfim, eu acredito que eu não tenho muito conhecimento para dizer sobre segurança alimentar. Então testes provavelmente já foram feitos. E até o momento não surgiu nenhuma evidência concreta de que alimentos transgênicos pudessem causar uma ou outra interferência na saúde... Então, a gente tem que, como se diz, a gente tem que acreditar, tem que ser a favor, por enquanto (grifo nosso).
PU1-14: Então, eu... É que pelo que eu sei, até hoje só se sabe dos benefícios, né, dos transgênicos, né, que são resistentes à praga e tal, é... São, é..., mais produtivos e tal, só que ainda não se sabe ao certo quais são os malefícios, né. Então é por isso que existe essa, digamos,esse preconceito contra os transgênicos, por que não se sabe ao certo como é que é vai funcionar isso, né (grifo nosso).
Um último ponto em que se baseia a certeza científica é a própria incerteza quanto aos malefícios. Efeitos incertos não exigiriam uma revisão das ações a serem tomadas, pois os supostos malefícios ainda não estariam comprovados cientificamente, o que lhes tiraria a relevância e sua existência. As incertezas não são admitidas por esse modelo, que considera que elas podem ser simplesmente ignoradas, uma vez que não foram comprovadas cientificamente e não passariam de especulação.
ENT-21: E por que você compraria [um alimento derivado de OGM]?
PU1-22: Por que... Por que até hoje não existem nada que comprove que eles fazem mal. Não existe comprovação científica de que... Pelo menos até onde eu sei, não existe comprovação científica do malefício (grifo nosso).
Uma vez que não há espaços para a incerteza, não decorre a controvérsia. Em um ambiente social em que a certeza científica é padrão e a incerteza é silenciada ou negligenciada, o dissenso é visto como não científico e inválido, uma não ciência (LACEY, 2002). Uma vez que não há incertezas ou complexidades que não podem ser quantificadas pela ciência (nessa visão de mundo), o alcance de um parecer definitivo e comprobatório é mera questão de empenho e tempo. Daí surge a fala de um único professor (PR1), que parece ter reconhecido na existência das controvérsias o clamor por pesquisas científicas que resolvam essa questão.
ENT-15: Pensando agora neles [transgênicos], o que você acha da segurança deles? [...].
PR1-18: O que eu sei. Eu acho que ainda estão desenvolvendo muitos estudos. Ainda não tem 100% ou próximo de 100% de segurança. Eu acho que ainda muito estudo tem que ser feito, tem que ouvir e pesquisar muita coisa ainda. Eu acho que há necessidade dos centros de pesquisa fazerem este tipo de estudo porque envolve questões bastantes polêmicas. E se tem essa polêmica é porque tem alguma coisa que não está ainda satisfazendo todas as opiniões dos cientistas. Não está alcançando ainda os objetivos (grifo nosso).
ENT-21: Não? Por que você não tem problema [com o consumo de transgênico]?
PU2-22: Porque eu acho que, apesar de… Eu acredito que ainda faltam muitos estudos. Até onde a ciência avançou, eu acho que tem uma certa... Não precisa ter tantas restrições quanto ao uso. Eu usaria tranquilamente. Não tenho esse problema.
Nesse ponto, os professores reduzem a incerteza a uma mera questão técnica ou de protocolo científico, como se a adoção de uma metodologia ou abordagem científica rigorosa pudesse resolver a questão. Peterson (2000) considera que a percepção de risco é uma questão cultural e histórica, o que torna impossível determinar, em um exato momento, todos os riscos de uma atividade, considerando também que há tipos de riscos demasiadamente complexos para serem investigados e quantificados. Não obstante, pesquisas científicas tenderão a investigar riscos que sejam concebíveis dentro de sua visão de mundo e ignorar, ou até mesmo refutar, aqueles que fazem parte de perspectivas contrárias (LACEY, 2006a). Também o Relatório da NAS (2016) mostra a falta de pesquisas para avaliar a segurança e os riscos das plantações GM, o que corrobora a impossibilidade de estabelecer certezas sobre o assunto.
O professor PU2 (no fragmento PU2-22 acima) atribui à controvérsia a necessidade de mais estudos, mas não deixa de acreditar que os estudos já realizados sejam suficientes para atestar a segurança dos transgênicos. Em paráfrase, ele diz: faltam estudos para solucionar a controvérsia, mas até agora as pesquisas já atestam a segurança. Parece não lhe ocorrer que a incerteza científica tem fonte social no embasamento de abordagens científicas em diferentes valores éticos (LEVIDOW, 2001). Ele até concebe a existência de uma controvérsia, mas vislumbra sua resolução com pesquisas desenvolvidas nos moldes das investigações atuais. Nessa linha de pensamento mítico, que crê no poder salvador da CT e na sua decisão superior, a controvérsia é um estágio anterior ao entendimento completo da realidade, que ainda não foi solucionado por se basear em considerações não condizentes com a realidade ou por estar relacionadas a interesses escusos, sejam políticos ou econômicos.
PR1-2: Então, o que está acontecendo aí são visões de áreas diferentes. Todas as áreas têm suas competências, mas eu acredito que estaria por traz disso daí uma questão política, econômica: o capitalismo. É claro que a área da produção de defensivos vai defender o uso dos defensivos e a biotecnologia veio para desenvolvimento de transgênicos, aliás, o desenvolvimento de transgênicos, quem trabalha a favor dos transgênicos vai defender o seu peixe, como se diz, vai vender o seu peixe. É claro que é notória essa, na lavoura, essa questão do transgênico (grifo nosso).
O PR1 parece reconhecer a gênese social da controvérsia, mas acredita, ainda assim, que os transgênicos são o melhor produto para a agricultura, justamente pelo seu caráter científico. Assim, para esses professores a controvérsia científica pode ser resolvida pela crença na objetividade científica, no seu salvacionismo. A controvérsia social, ou seja, a gênese e justificativa para a controvérsia científica, também é diminuída ou obscurecida pela crença na neutralidade científica, que possibilitaria as soluções mais acertadas para os problemas. Nesse espaço de certeza científica, não há chance para qualquer incerteza; o mundo está perfeitamente descrito pela lógica, seja qual for a dimensão (social, ambiental, científica, etc.) em pauta.
A certeza científica exerce um importante papel na tomada de decisões. Como visão deturpada do processo científico e político, ela acaba por entregar o poder de decisão nas mãos de tecnocratas, os professores estão relegando aos especialistas o papel de decidir. Se CT fornecem certezas, nada melhor do que o técnico, o especialista para decidir. Assim, o endosso a esse modelo decisório parece evidenciar indicativos da concepção de neutralidade. O absoluto, as certezas, constituem-se de compreensões inclinadas para a tecnocracia não para a democracia. Certezas excluem decisões políticas, dificultam a participação democrática (AULER, 2002, p. 163).
Logo, o mito da certeza científica impede a participação social ampla nos processos decisórios, pois o próprio cidadão não só se sente incapacitado para participar, mas também crê que a ciência tem a capacidade de decidir sozinha. Portanto, o debate sobre os riscos dos transgênicos não é meramente sobre dados empíricos. Primeiro, porque esses dados são construídos com base em visões de mundo, ou valores éticos e sociais (FLECK, 2010). Segundo, porque esses dados inequívocos nem existem (LACEY, 2008; NAS, 2016), devido ao direcionamento da agenda científica, que atualmente se dá com base nos interesses do crescimento econômico e da geração de inovações, pela abordagem descontextualizada da metodologia científica.
4.2- Valores, Mitos e Progresso Tecnológico
Um segundo aspecto que permeia a compreensão dos professores é constituído por valores e princípios. A ênfase argumentativa em Valores, Mitos e Progresso Tecnológico tenta iluminar esses juízos éticos sobre as biotecnologias.
Em um plano geral, os professores apresentam compreensões acerca da natureza da ciência e suas relações tanto com a tecnologia quanto com a sociedade que destoam do fazer científico, aproximando-se de uma imagem de Ciência-Tecnologia-Sociedade (CTS) próxima dos mitos da CT (AULER, 2002). Os professores frequentemente recorrem à ciência para buscar ou justificar seus argumentos sobre as biotecnologias. Entretanto, isso não significa que se aportem em investigações empíricas, dado que seus argumentos se baseiam na imagem geral da ciência, em sua autoridade.
Há uma crença de que a CT são as mais capazes de tomar decisões - mito da superioridade das decisões tecnocráticas. Nesse sentido, os professores não só valorizam a capacidade cognoscente da ciência, mas também atribuem a ela valores de superioridade na vigilância e decisão sobre a vida, como visto a seguir:
PU1-10: Existe realmente uma precaução da comunidade científica quanto a isso [aos transgênicos], porque na verdade não se sabe exatamente quais são os malefícios disso, né...
PU2-29: O que tem a mais [nos transgênicos]... mais pesquisas, tem bastante pesquisa. Eu acredito muito nas pesquisas, nos estudo. E não colocaria, por exemplo, eu acredito que não chegaria ao mercado um produto, um alimento que não passasse por todo um rigor científico (grifo nosso).
ENT-36: Então, pensando nessa questão da falta de provas, o que você pensa da segurança deles [os transgênicos]?
PR1-37: Bom, a segurança alimentar, isso daí, foi a última coisa a ser pensada, porque, primeiro, nós consumimos, [...] depois nós fomos pensar na produção. [...] Mas, enfim, eu acredito que eu não tenho muito conhecimento para dizer sobre segurança alimentar. Então testes provavelmente já foram feitos. E até o momento não surgiu nenhuma evidência concreta de que alimentos transgênicos pudessem causar uma ou outra interferência na saúde. Então, a gente tem que, como se diz, a gente tem que acreditar, tem que ser a favor, por enquanto (grifo nosso).
Para esses professores, a segurança desses alimentos foi comprovada cientificamente, por isso não há por que questioná-la. Ainda que haja alguma dúvida, a Ciência lhes trará informações diferenciadas e inequívocas para se decidirem sobre eventuais dúvidas e tomarem a decisão, então é necessário crer na sua capacidade e entregar o destino público nas mãos de especialistas. Como diz PR1 “a gente tem que acreditar” (PR1-37). Esse é o chamado “mito da superioridade” da CT, que considera o cidadão “comum” destituído de conhecimento científico, portanto inadequado para participar da tomada de decisão, pois só acrescentaria incertezas e ambiguidades (AULER e DELIZOICOV, 2001).
Interessante notar a contradição nessa fala de PR1-37, que se apega nas “certezas” da ciência para atestar a segurança, mas também convoca um ato de fé para ignorar os indícios de riscos. Essa é uma argumentação ideológica e não científica, pois a ciência requereria uma investigação sistemática dos riscos potenciais e não os ignoraria pela crença cega naquilo que está “posto” (a pretensa segurança dos OGMs).
Essa posição de submissão não seria possível (ou tão efetiva) sem a crença na capacidade científica de melhorar as condições econômicas e sociais da população - mito do salvacionismo pela CT, como demonstrado abaixo:
PU2-33: [...] Vai ter que achar a solução pra resolver esses problemas. Não adianta querer achar que é culpa dos transgênicos, por exemplo. Por isso que existe e eu acredito que existem muitos centros de pesquisa trabalhando em cima disso, pra solucionar esse tipo de problema. Tanto quanto transgênico ou não transgênico, mas, eu acho que o transgênico, ele vai facilitar, vai ajudar bastante a economia. Isso que eu acredito. [...] (grifo nosso).
PU2-36: [...] Então você vai ter as opções adequadas. Porque, quanto mais forem desenvolvendo técnicas em relação a isso, mais opções você vai ter e economicamente eu acredito que vai ser melhor do que ficar só preso, por exemplo, num ou no outro (grifo nosso).
Como pode ser notado na percepção de risco dos professores (PU1-10, PU2-29 e PR1-37), eles consideram os benefícios como sendo atestados cientificamente, enquanto as opiniões contrárias são tidas como pseudocientíficas e não comprovadas. Mesmo com dados de pesquisadores que contestam a alegação dos transgênicos para a solução da fome no mundo, contidos no texto “Falas de Cientistas sobre o tema biotecnologias” (Apêndice A, em Arquivo Suplementar), os professores continuaram a argumentar que a solução de problemas sociais se dá pela via das biotecnologias.
PR1-71: Benefício seria suprir a necessidade alimentar, não só do Brasil, mas do mundo. A China em determinada época traz, como eu fiz uma pós-graduação em política estratégica e tudo mais, ela esperava uma produção X do Brasil, porque se não tivesse essa produção, a China correria... entraria em risco alimentar. Em risco de faltar alimento (grifo nosso).
Completando a tríade, notou-se uma posição de fatalidade na fala dos professores, como se a existência e expansão dos transgênicos fosse inevitável:
PU1-24: Ah... Ah... Necessário, não sei se seria... ah, necessário... Porque não existe outras formas de produzir, né. Isso é evolução, né, da ciência. Acho que ele é mais eficiente, né. (grifo nosso).
PR1-37: Então, a gente tem que, como se diz, a gente tem que acreditar, tem que ser a favor, por enquanto (grifo nosso).
Esse é o mito do determinismo científico e tecnológico, em que CT determinam a marcha da evolução e do progresso. Logo, questionar a inovação tecnocientífica é ficar estagnado, impedir o progresso. Sob o determinismo da CT, alternativas que não sejam derivadas da ciência e de inovações tecnológicas são inconcebíveis e, se surgem, são rechaçadas sob a alegação de falta de rigor científico ou validade no geral - vide a desqualificação feita à pesquisa de Séralini (2012) sobre os efeitos carcinogênicos do milho transgênico (GARCIA, 2012).
Essas construções são consideradas mitos, pois estão fora de uma análise crítica e são imagens pouco condizentes da atividade científica, sendo também consideradas antidemocráticas. Eles, mitos, são pilares da concepção de desenvolvimento linear, em que o avanço científico é visto como promotor de inovações tecnológicas, que possibilitam o crescimento econômico e o consequente bem-estar social. Sua gênese, o mito original, está na crença na neutralidade científica: a pretensa inexistência de juízos de valores na concepção de teorias e na distribuição equitativa das aplicações dos conhecimentos (AULER e DELIZOICOV, 2001; DELIZOICOV e AULER, 2011). Portanto, esses mitos são pilares e alimentadores da tecnocracia, pois, ao possibilitarem a subserviência do cidadão à CT, minam a democracia plena.
Em suas explicações sobre o conceito de biotecnologia transparece nitidamente a associação com os meios de produção e a valorização da capacidade das biotecnologias como artefato científico-tecnológico para transformar a natureza. Essa compreensão era até esperada, visto que as biotecnologias modernas, segundo Lacey (2006a), estão fundamentadas na genética, que se guia pela abordagem descontextualizada da metodologia científica, em estreita ligação com os valores do crescimento econômico. Nesse sentido, as falas dos professores parecem se alinhar com a atribuição de alto valor ético para a capacidade humana de controlar os objetos naturais, um dos valores do progresso tecnológico (LACEY, 2008)
Cabe ressaltar que os valores do progresso tecnológico são a visão predominante no meio científico e, nessa época em que a sociedade se entrelaça cada vez mais com a ciência, também está difundida na sociedade.
Recorrendo a uma imagem de ciência que se aproxima da tecnociência, os professores argumentam sobre a legitimidade dos transgênicos usando construções da abordagem descontextualizada. Surgem falas do tipo “até o momento não surgiu nenhuma evidência concreta de que alimentos transgênicos pudessem causar uma ou outra interferência na saúde... (PR1-37)” e “É que pelo que eu sei, até hoje só se sabe dos benefícios, né, dos transgênicos (PU1-14)”, que remetem às afirmações de “nenhum risco”, tão propagadas pelos proponentes da transgenia. Soma-se a asserção de “nenhuma alternativa”: “Por que não existe outras formas de produzir, né. Isso é evolução, né, da ciência (PU1-24)”. Se os transgênicos não são a solução, ainda surgirá uma opção tecnocientífica que finalizará a discussão: “E se tem essa polêmica é porque tem alguma coisa que não está ainda satisfazendo todas as opiniões dos cientistas. Não está alcançando ainda os objetivos (PR1-18)”.
Na abordagem descontextualizada só um tipo de metodologia é usada: aquela que é capaz de descrever o fenômeno por meio de seus componentes e estruturas, de forma geral e universal, com linguagem lógico-matemática. Decorre que só os problemas que podem ser descontextualizados (abstraídos, generalizados, representados pela matemática) são considerados nessa abordagem tecnocientífica. Daí que se argumenta que não há evidências de riscos, pois a abordagem descontextualizada não considera todos os riscos possíveis; só investiga aqueles que podem ser concebidos em sua visão de mundo. Quando se brada que não há “nenhuma alternativa”, é porque só considera as opções que se conformam como inovação tecnocientífica e ignoram-se todas as outras que não são geradas e avaliadas pela sua metodologia (LACEY, 2006).
Existem discrepâncias entre os valores que as pessoas adotam/consideram como seus e os que praticam, devido principalmente aos condicionantes sociais e materiais. Entretanto, sustentar seus valores éticos requer um comprometimento com seus valores, uma intencionalidade na ação e na comunicação, um querer ser mais e fazer mais (FREIRE, 1979; 1983). Mesmo que as condições sociais e materiais não estejam disponíveis, pode-se engajar em um movimento que represente seus ideais, mas sem a dimensão prática, de ação transformadora, a ética se resume a um discurso vazio, um discurso de recomendação e condenação; serve como “clube moral” para ressaltar os valores próprios e condenar os de outrem. Quando é reduzida ao que é largamente aceito e já é consenso, a ética se funde com a visão moral hegemônica e imobiliza qualquer ação transformadora (LACEY, 2006a). O fato de os professores apresentarem concordâncias com esses valores nada mais é do que o resultado dos condicionamentos culturais e materiais, não refletidos criticamente. Tais fatos só reforçam a necessidade de discussão axiológica nas escolas, já que os valores éticos podem ser discutidos, interpretados e argumentados (LACEY, 2006a).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As percepções de risco biotecnológico dos professores investigados tiveram pouca influência do contexto em que a escola está inserida, sendo que os sujeitos assumem a segurança dos alimentos transgênicos com base na certeza científica.
Não obstante, o mito da certeza científica unifica e perpassa todo o posicionamento pessoal e pedagógico dos professores com relação ao tema. Esse fato explica a pouca inserção das biotecnologias nos assuntos educacionais, particularmente na formação superior em cursos ligados às Ciências da Natureza, (AMORIM, 1998; SLONGO e DELIZOICOV, 2010; MARCELINO, 2014), pois a certeza, nesse caso, se junta com o contexto local de alta produção agrícola transgênica, para produzir condições de “silenciamento” dos sujeitos, sejam eles alunos ou professores.
Essa certeza científica e a não participação que ela motiva estruturam um ambiente altamente tecnocrático. Os sujeitos não veem sobre o que decidir e por que se envolver no processo de decisão, pois: 1) a decisão parece se pautar num jogo entre malefícios e benefícios dos transgênicos; e 2), para eles não há um problema (malefício), pois a ciência já o teria avaliado em todos os âmbitos e tempos possíveis. Não se discute sobre alternativas que poderiam ser desenvolvidas no lugar dos transgênicos, por exemplo, mas que são negadas pelo encaminhamento da agenda científica no sentido de gerar lucro. Assim, nessa visão de ciência certeira, a liberdade se torna individualismo, pois junto com a pretensa falta de alternativas se cria a ideia de que não há pelo que lutar, que não há opções que podem ser legítimas. Restaria, então, a aceitação e mera escolha entre o que já é posto.
Esses mitos podem influenciar também na ausência das biotecnologias nos cursos superiores e médios de química, bem como nas escassas pesquisas em ensino de ciência sobre o tema, o que significaria uma formação de professores que não enfatiza a inclusão da discussão das biotecnologias (MARCELINO, 2014). Assim, pode-se ter ideia de que as compreensões aqui levantadas são elementos que denunciam/repercutem uma atmosfera social e que precisam ser problematizadas. Entretanto, sua superação só se dará de forma coletiva e abrangente, englobando uma mudança conceitual e também social.
Mesmo com as dificuldades de extrapolação dos dados em pesquisas qualitativas e nas ciências sociais aplicadas, entende-se que os problemas aqui discutidos são significativos e pertinentes também a outros contextos, devido à expansão das biotecnologias e seus impactos na sociedade. Reiteramos que a baixa disposição de participação dos professores inicialmente convidados para nossa pesquisa pode decorrer da complexidade das biotecnologias, das controvérsias que elas suscitam e do receio de se expor em um estado altamente produtor e economicamente dependente das lavouras transgênicas, como é o caso de MS.
Alguns desafios, correlacionados entre si, que surgem e parecem importantes de serem inseridos na formação (inicial ou permanente) de professores, os quais podem contribuir na transformação do papel da escola e da realidade social em geral, nesse controverso tema:
Superação das visões míticas da CT, manifestada pela: 140.
Superação dos valores antidemocráticos, com os seguintes pressupostos: 143.
Ressignificação do conteúdo escolar, que não é mais entendido apenas como as teorias e os conceitos das Ciências Naturais, mas abrange a discussão da própria dinâmica de produção desses conhecimentos, ressaltando seus valores, seus princípios, seus interesses e suas repercussões sociais, apontando para alternativas de conhecer, produzir e existir.
Deste modo, esta pesquisa aponta para a necessidade de uma educação para a democratização dos processos de tomada de decisão. Defende-se a educação dialógica-problematizadora de Freire como meio de abordar os temas sociais relevantes, geralmente controversos, pelo desvelamento dos problemas sociais e as relações entre parte e todo, local e universal, indivíduo e coletivo. Esse referencial foi escolhido por ressaltar na educação o seu viés político e objetivar a autonomia e a transformação social. E, nessa concepção de educação, o diálogo sobre a realidade tem o intuito de se distanciar das situações, para analisá-las criticamente, a fim de transformá-las. Aqui, a concepção envolvendo diálogo, crítica à realidade e busca de alternativas para a autonomia humana, corrobora os ideais e valores da participação popular. Essa concepção de educação pode contribuir para superar essas visões míticas e de valores antidemocráticos da sociedade atual, ao possibilitar a visualização das relações entre eles e as estruturas sociais vigentes. Para tanto, não se pode restringir-se ao ensino-aprendizagem de conceitos, mas deve-se abranger para a discussão dos valores da sociedade e da atividade científica.