INTRODUÇÃO
É, sem dúvida, muito bem vinda a iniciativa da Ensaio de exercitar a abertura do processo de revisão às cegas pelos pares (open peer review). Tal ação, inserida no contexto mais amplo do paradigma Ciência Aberta recomendado pela Scielo e exposto em Editorial por Mendonça e Franco (2021), permite que se estabeleça um diálogo mais direto e profícuo em torno de certas temáticas abordadas nos pareceres. Além disso, suspeito que trará - retroativamente - importantes contribuições à própria prática de elaboração de pareceres e avaliação de manuscritos originais.
Contribuindo nessa direção, apresento, nesse trabalho, reflexões surgidas a partir da avaliação do artigo intitulado Escola de Física do CERN: uma análise do discurso à luz da Epistemologia de Ludwik Fleck, de Denardin, Guimarães, & Harres (2022). O trabalho avaliado busca interpretar o curso de curta duração denominado “Escola de Física do CERN”, destinado a professores de física do ensino médio, à luz da epistemologia de Ludwik Fleck (1896-1961). Faz uso dos conceitos fleckianos de estilo de pensamento (EP), coletivo de pensamento (CP), círculos esotérico e exotérico, circulação intracoletiva de ideias, ciência dos periódicos e ciência dos manuais, para interpretar as interações e a socialização do conhecimento entre cientistas do CERN e os professores brasileiros participantes do curso. Metodologicamente, os autores adotam a Análise do Discurso na linha francesa (AD).
O artigo de Denardin et al. (2022) articula elementos teóricos e metodológicos de campos diversos, a saber, a epistemologia de Fleck e a AD, buscando aproximações que permitam interpretar dados no terreno da formação continuada de professores. Esse esforço, bastante louvável, é o cerne do trabalho em questão e aponta para o primeiro aspecto das reflexões que trago neste texto: o potencial e a abertura da obra de Ludwik Fleck para o tratamento de temáticas da área de pesquisa em ensino de ciências. A próxima seção será dedicada a esse ponto.
Ao apresentar e discutir certos conceitos fleckianos, Denardin et al. (2022) contribuem para a propagação e disseminação da epistemologia desse autor em nossa área. Mas toda apresentação dessa natureza carrega em si uma interpretação desse referencial, carregada por escolhas e compreensões particulares. Que conceitos selecionar? O que entender por eles? É a esse respeito (algo mais implícito do que explícito no manuscrito avaliado) que procurarei tecer alguns comentários em uma seção posterior. Veremos que o texto de Denardin et al. (2022) contém elementos muito significativos para ilustrar essa questão.
FLECK NA PESQUISA EM ENSINO DE CIÊNCIAS: UM PROGRAMA DE PESQUISA PROGRESSIVO?2
A epistemologia fleckiana tem sido objeto de atenção na área de pesquisa em ensino de ciências há algumas décadas, e sua utilização como referencial teórico tem crescido nos últimos anos, como evidenciam as revisões da literatura que têm como base teses e dissertações (Lorenzetti et al., 2018), trabalhos em eventos (Chicóra et al., 2018) e artigos em periódicos (Souza & Martins, 2021).
Tal movimento reflete a redescoberta e valorização da obra de Fleck em nível mundial. É bastante conhecido o fato de a principal obra desse autor, Gênese e desenvolvimento de um fato científico (Fleck, 2010), publicada originalmente em 1935, ter permanecido amplamente ignorada por um longo tempo. Sua citação no prefácio de A estrutura das revoluções científicas, de Thomas S. Kuhn, bem como o posterior resgate por meio dos trabalhos de W. Baldamus e T. Schnelle, nas décadas de 1960 e 1970, fizeram com que o pensamento de Fleck progressivamente ganhasse os holofotes em certos nichos, impactando também a produção nacional.
Quem sabe as ideias de Fleck tivessem mesmo que esperar um momento histórico propício para germinar, o que ocorreu com a “virada historiográfica” das análises sobre a ciência, a partir de Kuhn, e com a ascensão da sociologia da ciência e o Programa Forte, já nas décadas de 1960 e 1970 (Ávila, 2013; Maia, 2013). A própria aceitação, nesse período, desse estilo de pensamento epistemológico, calcado no caráter histórico e social de qualquer conhecimento, reforça o ponto de vista fleckiano, no sentido da existência de uma “atmosfera” propícia às suas ideias. Como nos diz o próprio Fleck, para ver é preciso primeiro conhecer.3
O que me parece relevante de ser apontado é a enorme plasticidade e o imenso potencial da epistemologia de Fleck na análise e interpretação de objetos de pesquisa, tanto pelas questões que traz quanto pelas que deixa em aberto (focalizo esse ponto em trabalho anterior: Martins, 2020a). Evidentemente que isso se deve à própria natureza desse referencial, seus conceitos e sua estrutura argumentativa.
Fleck foi muito ousado na criação de uma epistemologia que adquire um caráter bastante geral na análise do conhecimento humano, muito embora, em sua obra magna, tal epistemologia tenha sido elaborada a partir de um caso bem específico da área médica: a história do conceito de sífilis. No entanto, suas principais conclusões não deixam dúvidas quanto à “aplicação” de suas ideias de modo muito mais amplo. A essa empreitada se prestam os conceitos de estilo e de coletivo de pensamento, circulação de ideias, círculos esotérico e exotérico, harmonia das ilusões, dentre outros (notemos que outros referenciais - como o do próprio Kuhn ou de Lakatos, por exemplo - se adéquam melhor a análises exclusivamente da ciência ou, mais restritivamente ainda, a determinados subcampos dela).
Dessa forma, podemos pensar tanto em desdobramentos e aprofundamentos teóricos quanto empíricos (esse último terreno envolvendo aspectos metodológicos bastante relevantes) quando avaliamos o potencial do referencial fleckiano. Assim é que, já na Parte III de Cognition and Fact, de 1986 (Cohen & Schnelle, 1986, p. 159-442), a obra de Fleck é esmiuçada na busca de seus precursores, suas influências e suas características determinantes, e aproximações são realizadas com os campos da história e da sociologia da ciência por nomes como, dentre outros, Steven Shapin e David Bloor.4
Com Karl Mannheim - a quem se atribui a criação do termo “estilo de pensamento” na língua alemã - e Thomas Kuhn as relações e aproximações, quem sabe, sejam mais “óbvias”, embora nem sempre exploradas a fundo e de modo exaustivo. Certamente há espaço para aprofundamentos (p.ex., aqueles presentes em Condé, 2003; e Maia, 2012; 2013). Considerando outros autores e referenciais, vemos, por exemplo, análises que buscam relacionar e aproximar o pensamento de Fleck com Wittgenstein (Condé, 2012a) e W. Benjamim (Otte, 2012), bem como coletâneas que versam sobre o pensamento de Fleck em geral (Condé, 2012b; Transversal, 2016).5
Chamei a atenção, em outro trabalho (Martins, 2020a), para as possibilidades de articulação - para usar aqui um termo kuhniano - da epistemologia de Fleck quanto a alguns aspectos teóricos, tais como aquele envolvendo os conceitos de acoplamentos ativos e passivos em sua relação com o debate realismo-antirrealismo e com os papéis de sujeitos e objetos na construção do conhecimento. Certamente que, nesse terreno, aproximações com diversos autores e perspectivas teóricas são viáveis e profícuas.
Alguns campos onde reside um grande potencial de abertura da obra de Fleck seriam, justamente, a educação e a iniciação dos novatos em um estilo de pensamento, bem como o terreno da divulgação e da popularização do conhecimento.6 Pesquisas em tais campos poderiam se beneficiar da epistemologia fleckiana e de seus conceitos, tomados como categorias teóricas de análise e interpretação. Em particular, a importância da linguagem no pensamento de Fleck sinaliza uma porta de entrada para desdobramentos e estabelecimento de relações.
Do ponto de vista de estudos empíricos, as revisões de literatura previamente citadas (Lorenzetti et al., 2018; Souza & Martins, 2021) indicam a multiplicidade de temas e abordagens. Tais estudos, em geral, adotam a epistemologia de Fleck como referencial teórico, utilizando-a para analisar e interpretar um objeto de pesquisa selecionado. Nesse terreno há um grande número de trabalhos e não pretendemos, aqui, cobrir essa vastidão. Apenas para citar uns poucos exemplos, existem estudos no campo da formação de professores e da prática docente (Gonçalves et al., 2007; Muenchen, 2010; Niezwida, 2012; Brandão, 2013; Macedo, 2015; Oliveira, 2017; Parreiras, 2018; Vieira et al., 2020) - grupo no qual se insere o artigo foco desse trabalho, de Denardin et al. (2022) -, relativos a temas na interface com a área da saúde (Heidrich & Delizoicov, 2009; Maeyama, 2015), sobre desenvolvimento sustentável (Mourthé Junior, 2017) e relacionados à era da pós-verdade e o negacionismo científico (Saito, 2019; Martins, 2020b; Costa, 2022). Uma boa parte desses trabalhos busca caracterizar EPs e CPs em suas dinâmicas próprias.
Uma das contribuições importantes do artigo de Denardin et al. (2022) talvez venha, justamente, do viés metodológico adotado no estudo e da aproximação dessa perspectiva com o referencial fleckiano.7 O trabalho, nesse aspecto, reflete exatamente aquilo que estou defendendo aqui, no sentido do potencial e da abertura da epistemologia de Fleck em sua articulação com outras vertentes teóricas e metodológicas.
Os autores trazem a Análise do Discurso (AD) da linha francesa, informando-nos que sua base epistemológica é o “tripé Linguística, Materialismo Histórico e Psicanálise” (Denardin et al., 2022, p. 6), e que serão mobilizados na análise de determinados conceitos da AD, a saber: condições de produção, formação discursiva, forma-sujeito, posição-sujeito, formação imaginária e formação ideológica (Denardin et al., 2022, p. 6).
Em que medida o tripé epistemológico da AD pode se chocar com a epistemologia fleckiana? Ou essa seria uma aproximação plena? E o que dizer dos conceitos da AD mobilizados no trabalho? Acomodam-se à perspectiva fleckiana? Dialogam positivamente com ela? Para citar um exemplo, foi objeto de atenção durante o processo de arbitragem se uma formação discursiva (FD) envolvia ou não um conjunto de práticas (o que vale para um EP, segundo Fleck), em função da afirmação contida no trabalho: “Logo, o EP fleckiano pode ser entendido, à luz da AD, como uma FD” (Denardin et al., 2022, p. 7).
Mais à frente, já na análise dos dados, certos trechos indicam com clareza a tentativa de articulação entre a epistemologia de Fleck e a AD. Por exemplo:
É a formação discursiva que indica se um indivíduo pode pertencer, ou não, ao coletivo de pensamento, que à luz da AD, se configura como uma forma-sujeito. Nesse caso, a forma-sujeito corresponde ao CP ao qual cientistas e professores, no contexto da EF-CERN, pertencem (Denardin et al., 2022, p. 8, grifos nossos).
Estes aspectos reforçam a FD de que professores e pesquisadores, no contexto da EF-CERN, pertencem a um mesmo CP, sendo a circulação de ideias de ordem intracoletiva, envolvendo majoritariamente conhecimentos científicos da física de partículas (Denardin et al., p. 10, grifos nossos).
Dada a importância da linguagem na epistemologia de Fleck e a relevância da AD na área de pesquisa em ensino de ciências, fica evidente a contribuição trazida por Denardin et al. (2022) ao aproximar esses dois campos.
Novos estudos poderão articular ainda mais esses campos e aprofundar as aproximações entre eles. Da mesma maneira, trabalhos futuros em nossa área poderão transformar a potência da epistemologia fleckiana em ato, aplicando-a a variados objetos de investigação e aprofundando-a do ponto de vista teórico e metodológico.
Cabe, no entanto, sinalizar que não se trata de pensar esse referencial de modo estático e totalizante, ou seja, “a” epistemologia de Fleck. Se, por um lado, ela se desdobra em novos caminhos, entendimentos e aplicações, por outro, cada estudo em particular tem o seu olhar sobre a obra de Fleck, destacando certos conceitos e elementos (e não outros). Além disso, o próprio Fleck se refere aos chamados desvios de significado que inevitavelmente ocorrem nas circulações de ideias. Tais desvios são maiores na circulação intercoletiva, mas não estão isentos de ocorrer também na troca intracoletiva de pensamentos. Como coloca Fleck:
Os pensamentos circulam de indivíduo a indivíduo, sempre com alguma modificação, pois outros indivíduos fazem outras associações. A rigor, o receptor nunca entende um pensamento da maneira como o emissor quer que seja entendido. Após uma série dessas peregrinações, não sobra praticamente nada do conteúdo original. De quem é o pensamento que continua circulando? Nada mais é do que um pensamento coletivo, um pensamento que não pertence a nenhum indivíduo. Não importa se os conhecimentos são verdadeiros ou errôneos do ponto de vista individual, se parecem ser entendidos corretamente ou não - peregrinam no interior da comunidade, são lapidados, modificados, reforçados ou suavizados, influenciam outros conhecimentos, opiniões e hábitos de pensar (Fleck, 2010, p. 85-86).
Obviamente que isso vale para a própria epistemologia de Fleck!
Sobre tais questões apresento algumas reflexões na seção a seguir.
CONVERGÊNCIAS E DIVERGÊNCIAS NO USO DA EPISTEMOLOGIA DE FLECK
Com a crescente apropriação da epistemologia de Fleck nas pesquisas da área de educação em ciências, torna-se relevante perguntar que conceitos vêm sendo mais utilizados nos diversos estudos e que entendimento se faz deles. Embora este trabalho não possa e nem tenha a intenção de oferecer dados sistemáticos a respeito dessas questões, as revisões da literatura previamente citadas fornecem indicativos importantes.
Lorenzetti et al. (2018) analisaram teses e dissertações do período compreendido entre 1995 e 2015, apontando a predominância da presença dos conceitos de estilo de pensamento, coletivo de pensamento, circulação intracoletiva e circulação intercoletiva (e, em menor grau, os de círculo esotérico, círculo exotérico e complicações). Já Chicóra et al. (2018), que investigaram as atas do Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências (ENPEC) de 1997 a 2015, apontaram o predomínio no uso dos mesmos conceitos fleckianos: estilo de pensamento, coletivo de pensamento, circulação intra e intercoletiva (com menor incidência de: fato científico, círculo esotérico, círculo exotérico, proto-ideias, conexões ativas e conexões passiva).8
Souza e Martins (2021) analisaram artigos em periódicos nacionais no período de 2001 a 2020, encontrando resultado semelhante às outras revisões citadas anteriormente quanto aos principais conceitos da epistemologia de Fleck utilizados nas pesquisas: estilo de pensamento, coletivo de pensamento, círculo esotérico, círculo exotérico, circulação intercoletiva, circulação intracoletiva9 e, com menor frequência, conexões ativas e passivas. Mas esse trabalho procurou ir além e distinguir entre aqueles conceitos apenas mencionados e aqueles descritos nos vários estudos, buscando captar entendimentos diversos. Para além de questões relacionadas a diferenças de terminologia - conexões em vez de acoplamentos, circulação em vez de tráfego -, a divergência mais relevante apontada por Souza e Martins (2021) diz respeito ao uso dos conceitos de circulação intra e intercoletiva. Voltarei em breve a esse ponto.
Cabe apontar que não devemos desprezar os efeitos de diferenças terminológicas e de tradução na compreensão e disseminação da obra de Fleck. Questões dessa natureza já foram amplamente discutidas na literatura especializada, com referência, por exemplo, ao próprio conceito de EP na língua inglesa (thought style, style of thought, thinking style...) e a dificuldades de tradução de termos utilizados ou criados por Fleck (ver, p.ex., Cohen & Schnelle, 1986, p. xiv-xvi; Jarnicki, 2016). A tradução de Gênese e desenvolvimento de um fato científico para o português também foi objeto de importantes considerações desse tipo (ver Junghans, 2011). Que imagens mentais diferenciadas criamos e associamos, por exemplo, ao uso de conexões ou acoplamentos, circulação ou tráfego? Que metáforas e entendimentos somos levados a construir sobre a epistemologia fleckiana em função disso? Em que medida tais entendimentos nos aproximam ou nos afastam das intenções originais de Fleck?10
Um aspecto secundário, mas não menos importante, diz respeito às apresentações do pensamento de Fleck em diversos trabalhos da literatura. O que está em Fleck e o que já é uma interpretação de seus escritos? (caso essa distinção possa ser feita!) Nem sempre essa diferença está absolutamente clara e isso contribui, sem dúvidas, à ampliação dos - inevitáveis - desvios de significados. Citações indiretas também podem, eventualmente, gerar ou propagar tais desvios.
Há várias passagens da obra de Fleck que podem parecer simples à primeira vista, mas que, na prática, não o são, podendo levar a diferentes interpretações. Se, por um lado, algumas dessas passagens representem, muitas vezes, pontos de abertura em sua obra, também podem gerar divergências interpretativas. Tomemos um exemplo corriqueiro: a caracterização feita por Fleck dos círculos esotérico e exotérico:
(...) em torno de qualquer formação do pensamento, seja um dogma religioso, uma ideia científica ou um pensamento artístico, forma-se um pequeno círculo esotérico e um círculo exotérico maior de participantes do coletivo de pensamento. Um coletivo de pensamento consiste em muitos desses círculos que se sobrepõem, e um indivíduo pertence a vários círculos exotéricos e a poucos círculos esotéricos (Fleck, 2010, p. 157).
A primeira parte desse trecho sugere a existência de dois círculos, eso e exo. Mas a oração seguinte deixa claro que há “muitos desses círculos que se sobrepõem”, dando a ideia da existência de camadas, como em uma cebola. Ora, não é incomum encontrarmos trabalhos que mencionem os dois círculos - eso e exo - sem esclarecer esse outro aspecto (das camadas), contribuindo, eventualmente, para uma ideia imprecisa da noção de círculos em Fleck. O trabalho ora em tela, de Denardin et al. (2022), contribui positivamente ao destacar as camadas: “Para Fleck (2010), os CPs não são homogêneos, mas formados pelos círculos esotérico e exotérico, sendo, cada um deles constituído por diversas camadas” (Denardin et al., 2022, p. 3), tendo sido essa questão objeto de diálogo durante o processo de arbitragem.
Mas, sem dúvida, os conceitos fleckianos que mais claramente se prestam a divergências de interpretação são, conforme apontado em Souza e Martins (2021), os de circulação intracoletiva e intercoletiva de ideias. Embora grande parte dos trabalhos compreenda a circulação intercoletiva como aquela que ocorre entre coletivos distintos, há estudos que a compreendem, também, como envolvendo a troca de pensamentos entre os círculos eso e exo de um mesmo coletivo (para citações explícitas de trabalhos que possuem essa compreensão, ver Souza e Martins, 2021, p. 96-97). Uma vez que um mesmo indivíduo pertence, geralmente, a vários círculos exotéricos e a poucos círculos esotéricos, como afirma Fleck, essa questão pode eventualmente se tornar confusa.
Entretanto, determinados trechos da obra de Fleck parecem sustentar o entendimento de que a circulação de ideias entre os círculos eso e exo de um mesmo coletivo (assim como a circulação eso-eso e exo-exo desse CP) se trata de uma circulação intracoletiva. Citemos o seguinte trecho do Gênese..., onde Fleck se refere a um “estilo de pensamento da moda”:
Os adeptos mais fiéis da moda se encontram amplamente no círculo exotérico. Não têm contato imediato com os ditadores poderosos do círculo esotérico. Apenas, por assim dizer, as “criações” específicas chegam até eles, pelas vias oficiais do tráfego intracoletivo, de maneira despersonalizada e mais coercitiva (Fleck, 2010, p. 159-160, grifos nossos).
Vale a pena expor, ainda, outro trecho de Fleck, também citado em Souza e Martins, (2021, p. 101), e quem sabe menos conhecido por não ser de sua obra principal. Em To look, to see, to know (Fleck, 1986, p. 129-151), artigo que se encontra em Cognition and Fact (Cohen & Schnelle, 1986), Fleck discute a relação da elite com a massa de um mesmo coletivo, deixando claro se tratar de circulação intracoletiva. O trecho:
Cada coletivo de pensamento compreende duas classes distintas de membros: a elite e a massa. (...) A massa olha para a elite com uma confiança específica, a elite depende da massa que é portadora da avassaladora “opinião do público em geral”. Cada migração intracoletiva do pensamento o fortalece: o leigo aceita a opinião dos especialistas como uma revelação que não deve ser questionada, portanto, a natureza apodítica do enunciado aumenta. Quando o especialista ouve o leigo usar seu pensamento, o do especialista, ele o aceita como uma confirmação, uma vox Dei. Da mesma forma, os leigos entre si ou os especialistas entre si são reconhecidos no estilo de pensamento se descobrem que “meu colega é da mesma opinião”. Assim, na migração intracoletiva cada pensamento se fortalece ipso sociologico facto. (Fleck, 1986, p. 150, tradução nossa, grifos nossos - exceto termos em latim).
O artigo de Denardin et al. (2022) concorda com esse entendimento e apresenta claramente essa compreensão acerca da circulação intracoletiva, conceito fundamental para a interpretação que é feita da circulação de ideias no CP analisado, entre cientistas do CERN e professores brasileiros da educação básica atendentes do curso de curta duração. Alguns trechos indicativos desse entendimento:
A circulação intracoletiva de ideias do círculo esotérico para o exotérico visa a legitimar os processos e conhecimentos produzidos pelos especialistas frente à população em geral (Denardin et al., 2022, p. 4, grifos nossos).
Estes aspectos reforçam a FD de que professores e pesquisadores, no contexto da EF-CERN, pertencem a um mesmo CP, sendo a circulação de ideias de ordem intracoletiva, envolvendo majoritariamente conhecimentos científicos da física de partículas (Denardin et al., 2022, p. 10, grifos nossos).11
Os autores também trabalham com as noções de tráfego intraesotérico e tráfego intraexotérico, de Oliveira (2012), analisando as circulações eso-eso e exo-exo para o coletivo em questão. Nesse sentido, fica clara a contribuição do trabalho de Denardin et al. (2022) tanto no que diz respeito à utilização da obra de Fleck quanto à sua articulação.
À GUISA DE CONCLUSÃO
Procurei, neste breve artigo, partir do parecer emitido no processo de avaliação do trabalho Escola de Física do CERN: uma análise do discurso à luz da Epistemologia de Ludwik Fleck para com ele dialogar, focalizando o referencial teórico utilizado pelos autores da pesquisa.
Apontei, em uma primeira seção, o potencial e a abertura da epistemologia de Fleck para a área de pesquisa em educação em ciências, tanto do ponto de vista teórico-metodológico quanto empírico. Trata-se, a meu ver, de um “programa de pesquisa” em crescimento na área.
Em uma segunda seção, tratei do uso e do entendimento diferenciado dos conceitos fleckianos na literatura. Mesmo não se tratando de uma análise exaustiva, mas baseada em outras revisões da literatura, é evidente a presença de interpretações variadas e enfoques diversos, bem como a existência de possíveis desvios de significado. Nesse sentido, é interessante que a própria perspectiva fleckiana seja usada para percebermos como se dá a disseminação de seu pensamento.
Sempre que retorno a Fleck encontro aspectos novos a explorar e me surpreendo com a percepção de trechos e ideias que agora me chamam a atenção, mas que não o haviam feito em um primeiro momento. Esse fato também remete à necessidade de não tomar o meu entendimento de sua obra como algo “dado”: é preciso sempre rever, retomar, reinterpretar.
Também me parece oportuno salientar que devemos ser críticos em relação à adoção desse referencial. Há riscos de simplificação e banalização da epistemologia fleckiana, de se considerar qualquer grupo como um CP e quaisquer ideias como constituindo um EP estável (não no sentido de CPs e EPs temporários, como coloca Fleck). Se “tudo é EP”, esse conceito pode perder parte de seu sentido e de sua força. Além disso, não podemos perder de vista que a obra de Fleck data das décadas de 1930 e 1940 e precisa ser avaliada em seu contexto histórico, considerando todo o desenvolvimento posterior da filosofia e da sociologia da ciência. Somente assim podemos apreciar devidamente seu valor e suas limitações.