Introdução
A forte e acelerada expansão da educação superior que se produziu, no mundo, após a Segunda Guerra Mundial se deu em meio às orientações que buscavam a construção de uma nova ordem mundial, econômica e política. Capitaneada pelos países centrais do sistema de acumulação, elas vinham demarcadas pelos objetivos de constituição de mercados de consumo e produção subordinados à lógica do livre fluxo (entre mercados sistemicamente consolidados, é claro, e mercados a consolidar, no caso de interesse político-econômico na sua incorporação ao sistema) e premidas pelas disputas geopolíticas configuradas no eixo Leste-Oeste; na América Latina, homologamente, pela condição de subdesenvolvimento (programado) das economias do “subcontinente”, pela guerra fria e pela atuação das agências multilaterais no financiamento a parques industriais em países de capitalismo subdesenvolvido.
Paralelamente aos movimentos na economia e na política mundiais e na busca de inserção na ordem internacional de pós-guerras, a América Latina viveu as tensões de uma região vista como espaço de influência e reprodução da cultura ocidental e, em contraponto, pela incessante busca de construção de identidade cultural regional - de que dá conta a própria adjetivação “latina” aposta ao nome “subcontinental”1 -, dado o progressivo e persistente homicídio e exclusão das várias etnias que formaram suas sociedades, consideradas atrasadas2, e dos privilégios de acesso a bens materiais e culturais que geralmente apenas alcançavam as elites patrimoniais brancas. Em equação político-ideológica, talvez demasiadamente esquemática, tratava-se do embate recorrente entre modernidade/atraso e progresso/subdesenvolvimento, sempre no registro seletivo da “civilização” capitalista e da ordem mundial hegemônica.
Percorridos esses processos, que avassalaram a região durante a colonização, boa parte do século das independências e no início da tardia industrialização e urbanização do século passado, a segunda metade do século XX é marcada pela reconversão produtiva de Europa, Estados Unidos e Japão do modelo fordista (foco na industrialização extensiva, na estrita divisão técnica do trabalho e no uso intensivo de trabalho vivo) para, no uso do termo de Harvey (2008), o de acumulação flexível (ênfase em serviços, capital humano, economia do conhecimento e intensificação tecnológica), nesse passo reorganizando a ordem econômica e política mundial com a constituição, entre outros mecanismos, de blocos de integração econômica3.
Foram expressivos os impactos no campo educativo, especialmente no superior, tanto em termos de regulação e modelagem institucional quanto em fluxo de capitais e investimentos para criação de um mercado universitário, notadamente a partir das “recomendações” das agências multilaterais (HADDAD, 2008). Nesse contexto, os números da expansão da educação superior são expressivos e denotam a importância da formação terciária para a reordenação geoeconômica e geopolítica (e geocultural) que vai se firmando: de 13 milhões, em 1960, o número de estudantes nesse grau de ensino saltou para 82 milhões em 1995, para, então, quase dobrar em pouco mais de dez anos para 150 milhões (GARCÍA GUADILLA, 2013). A América Latina acompanhou a onda de crescimento das matrículas no terciário, que subiram de 276.000 em 1950 para alcançar, cinquenta anos depois, quase 15 milhões (FERNÁNDEZ LAMARRA, 2010). No Brasil, o movimento foi de mesma ordem: em período mais recente, que corresponde à busca de padrões de internacionalização, as matrículas de graduação cresceram de cerca de 1,5 milhão no ano de 1980 para mais de 7,8 milhões em 2014 (BRASIL, 2014), verificando-se um aumento total, no período, de mais de cinco vezes, contabilizando-se um incremento percentual de 95,7% entre 1980 e 2000 e de notáveis 190,3% entre 2000 e 2014.
Na maior parte das nações latino-americanas tal expansão se fez com base em pelo menos quatro processos conjugados: a) privatização, sob o argumento de que os Estados nacionais, além de burocratizados e ineficientes, não teriam os recursos necessários para ampliar oferta e estrutura e de que seria mais produtivo, como política pública para o setor educacional, focar investimentos na educação básica, deixando a superior ao sabor do mercado; b) diversificação, vista, principalmente, como o esforço de “modernização” institucional e curricular e de atualização na oferta de cursos de diferentes tipos, que permitisse garantir a formação profissional para mercados de trabalho cada vez mais mutantes, e não para os mundos do trabalho4; c) avaliação, organizada como forma de verificar funcionamento e resultados de sistemas e de políticas, muitas vezes tomada como processo indutor de um caminho predefinido de mudanças e geralmente a cargo do ente estatal, prisioneiro do sistema de acumulação e sugestivamente alcunhado, por Neave (2012), de Estado-avaliador; d) regulação, focada na positivação burocrático-legal das políticas e dos sistemas de educação superior por meio do reconhecimento e da negociação permanente com as demandas de diferentes atores e interessados nos resultados das atividades acadêmicas, nomeados stakeholders, sejam as constituídas no interior dos próprios países sejam as propostas pelas agências multilaterais. (TEODORO, 2011)
Esse processo ganhou mais contundência e celeridade a partir dos anos de 1980, dados os imperativos da globalização da economia, devidamente impulsionados pelas perspectivas teórico-políticas do neoliberalismo, que aqui consideramos a cultura própria das corporações econômicas e de seus acólitos no âmbito da forma política estatal (MASCARO, 2013), ecoando a dinâmica do capitalismo global/globalizado. Tal processo denota o prestígio das políticas de ajuste macroeconômico mundial e, em correspondência, fortalece o ataque à presença do Estado na economia, direcionando os países da região a procedimentos de abertura econômica e desestatização, equilíbrio fiscal e privatização de ativos públicos, competitividade aberta e superávit primário etc., com perda de investimentos em políticas sociais, as educativas entre elas. No caso da educação superior, legitima-se o processo de privatização e ganham força sistêmica as legislações regulatórias nacionais sob influência das “recomendações” das agências multilaterais, com especial presença das oriundas do Banco Mundial, da OMC, do FMI e da OCDE (TOMMASI; WARDE, HADDAD, 2000; ROBERTSON, 2012; PEREIRA, 2014), consolidando-se, nesse movimento, o modelo das world class universities e as injunções sociopolíticas dos rankings (para o Brasil, ver COSTA JÚNIOR; SANTOS; TEODORO, 2016), bem como recomendações mais enfáticas na direção da incorporação de processos de internacionalização/transnacionalização5.
Na situação aqui descrita, uma das postulações mais contundentes em favor de processos de internacionalização/transnacionalização da educação superior se dá pela via da competição. Esse viés se apresenta, em tempos e ambientes de globalização, na abordagem do conhecimento como um bem transacionável em mercado aberto, o que põe no centro da disputa comercial tanto as instituições mais prestigiosas de produção intelectual, as universidades, quanto a educação/formação que se dá nesse tipo de instituição social. E isso ocorre dada a progressiva mudança (simbólica e material) da educação de um produto pleno de valor de uso (formação do humano/do cidadão, patrimônio cultural da humanidade) para um produto reconvertido, essencial e quase exclusivamente, ao seu potencial valor de troca (formação para os mercados, conhecimento-mercadoria). Tal mudança vem alinhada ao papel que se delega aos estados nacionais de garantidores da estabilidade metabólica da ordem político-econômica e jurídica (MASCARO, 2013) do sistema de acumulação - agora em escala global, mas que obviamente passa pela mediação nacional -, atribuindo-se a eles papel meramente compensatório das desigualdades sociais e fortemente regulatório no que se refere a um conjunto de políticas públicas anteriormente estatais, caso da educação, o que se faz por meio de expedientes de governação e regulação6.
Impactados por essa situação sociopolítica, os países dessa porção subcontinental da América realizaram amplas reformas em suas políticas e sistemas de educação superior, buscando adequação aos desideratos da ordem geoeconômica de um capitalismo revigorado em suas bases materiais (economia de serviços e do conhecimento) e culturais (radicalização liberal, interatividade e modernização tecnológica), reproduzindo uma geopolítica do conhecimento que mantém a desigualdade entre as regiões do planeta, assim como no interior de cada região e, muitas vezes, de cada país, de que o Brasil representa caso paradigmático. De todo modo, o que se põe permanentemente em pauta, para políticas e sistemas de educação superior nacionais dos países da América Latina, é a pertinência da educação superior (e da universidade), neste século XXI (SANTOS; ALMEIDA FILHO, 2008), em meio aos processos de inter/transnacionalização e de hegemonia política, econômica e cultural (ROMÃO; LOSS, 2016; SEABRA SANTOS; ALMEIDA FILHO, 2012). Ao analisar sentidos e fundamentos político-teóricos da Pertinência da Educação Superior (PES) nos documentos do Banco Mundial e da Unesco, Monfredini, Cruz e Souza Neto (2012, p. 216) avaliam que
[…] la manera dominante de delimitar a la PES, además de condensar disputas sociales, construye lo social y, por tanto, los horizontes posibles […] lo sentido legítimo que asume la categoria en cuestión es parte de la demarcación de acciones permitidas (por ejemplo, leyes, demandas, etc.) y no permitidas (etiquetadas como “fuera de lugar”, “antiestatutarias”… En suma, “impertinentes” e “irrelevantes”).
No entanto, mesmo que as respostas desses países tenham sido, no geral, tributárias do processo de globalização hegemônica e se justifiquem pela necessidade de inserção no sistema mundial de acumulação comandado pelas potências, elas não deixaram de ser tensionadas pelo embate (eventualmente, diálogo) entre perspectivas locais e globais, entre especificidades nacionais e implicações globalistas (IANNI, 1996), dessa forma também produzindo reformas universitárias que:
têm buscado a inclusão de populações, territórios e culturas nacionais historicamente alijados da universidade (para o caso brasileiro, Santos e Tavares (2016) e o livro organizado por Mafra, Romão e Santos (2013) sobre as universidades populares no Brasil);
procuram construir matrizes, tanto institucionais quanto epistemológicas, alternativas aos padrões acadêmicos tradicionais (e/ou clássicos) (para as universidade populares na América Latina, vide Morris (2016), além de vários trabalhos de Boaventura de Souza Santos e colaboradores sobre as universidades populares dos movimentos sociais), por esse modo percorrendo um caminho de afirmação de uma ciência verdadeiramente pública e gestada em ambiente acadêmico e institucional de democracia cognitiva omnilateral. (ROMÃO; LOSS, 2013)
intentam redefinir, do modo mais soberano possível, os critérios de rankeamento universitário e a geopolítica do conhecimento, para tanto construindo matrizes institucionais que se apresentam como alternativas aos modelos clássicos que edificaram os sistemas de educação superior na América Latina;
têm apostado numa internacionalização que passa pela integração regional, conformando institucionalidades que representem as que se constituem com a criação dos blocos econômicos e que se apresentam, por assim dizer, como braços acadêmicos da política externa brasileira para a região.
Tendo em vista tal situação em territórios latino-americanos, este texto procura escrutinar as características gerais da matriz institucional da Universidade da Integração Latino-Americana (Unila), criada formalmente em 2007, para fins de apontar o potencial que apresenta essa instituição quanto aos propósitos da integração internacional e da constituição de um espaço unificado, ou comum, de educação superior na região (FERNÁNDEZ LAMARRA, 2010) que enfatiza e se serve do expediente da integração regional (GARCÍA GUADILLA, 2013), nesse passo indicando suas relações estratégicas com a política externa brasileira para a América Latina, com foco inicial nos países abrangidos pelo Mercosul.
Antes, porém, o artigo propõe uma breve revisão do debate sobre as concepções e modalidades de internacionalização recomendadas aos e/ou mais utilizadas nos sistemas e políticas nacionais, especificamente em Nossa América (como nos nominava o prócer da revolução cubana, José Martí, lamentavelmente excluindo o Brasil dessa nomenclatura), vis-à-vis com os processos de integração internacional para a região, para fins de contextualizar o ambiente político-cultural em que se põem as políticas de educação superior.
Internacionalização da educação superior na América Latina: concepções e modalidades
Esclareça-se, desde logo, que a concepção internacionalista não representa novidade para a instituição universitária, se tivermos em conta que a universidade ocidental7 apresenta, desde seus primórdios, no fim do século XI, tendências e práticas internacionalizadas de ensino e de pesquisa. Antes de se tornar hegemônica a forma política do Estado-Nação, tanto mestres quanto estudantes circulavam na Europa para se valer de um intercâmbio de conhecimentos que, àquela altura, se faziam “novos”, como resultado das investigações/especulações que buscavam confrontar (também neste caso, não se trata, necessariamente, de se opor) as explicações caudatárias da visão de mundo religiosa, correspondentemente, de conhecimento, saber e poder. É assim que Bouvier (2011, p. 175, grifos do autor) assevera que: “A pesquisa é internacional. Por essência, ela foi em todos os tempos ‘mundializada’ bem antes que a ‘mundialização’ se tornasse um motivo condutor […]”, sem deixar de propor o seguinte reparo político-antropológico: “Contudo, o ensino superior de um país tem missões que lhe são atribuídas pelo Estado. Por conseguinte, elas são específicas e locais.” Em outras palavras, é recorrente a tensão entre a produção intelectual realizada sob o influxo permanente do intercâmbio de saberes originários de distintas fontes, culturas e territórios e os fundamentos culturais do espaço-tempo dessa produção.
Cabe ainda, no entanto, para esse período, a observação de que, se “[…] la dimensión internacional es insoslayable a primera vista, sin embargo, se debe tener en cuenta que, stricto sensu, la caracterización pertinente para describir dichas dinâmicas es la de interterritorialidad” (PERROTTA, 2012, p. 154), exatamente pelo fato de que tal dimensão se punha em territórios não delimitados por estruturas nacionais de poder. Além disso, a universidade de que aqui nos ocupamos nasceu sob a ideia de universalidade da visão de mundo e dos saberes tipicamente ocidentais que se nutriam, em larga medida, das “verdades” canônicas da Igreja cristã, que não à toa se autodenominava católica, termo de origem grega que implica a ideia de universal/universalidade. A emergência da dupla revolução do século XVIII, com as demandas econômicas da industrialização e as teorizações antropológicas do Iluminismo, demarcarão decisivamente o futuro dos sistemas universitários e seu “aprisionamento” às prerrogativas de governos e culturas nacionais. Nesse contexto, as demandas de internacionalização, dado seu caráter paradigmático, retornarão nos tempos atuais cumprindo o mesmo roteiro de ocidentalização do conhecimento, apoiadas, nos territórios colonizados, no fenômeno já muito estudado e criticado do neocolonialismo. (p.e., em MIGNOLO, 2003)
E é especialmente na entrada do século XXI que se apresenta, segundo García Guadilla (2013), a tendência que marcaria uma quarta etapa dos processos tendentes à internacionalização universitária, por ela denominada etapa convergente internacional e transnacional. Essa etapa condensaria e ampliaria tendências apresentadas na etapa anterior (da Segunda Guerra Mundial ao século XXI): a volta ao universalismo, ademais do internacionalismo. Trata-se de uma volta porque se define pela ampliação da mobilidade de estudantes e professores, características que marcaram as origens da universidade medieval europeia que, reformulada pelas concepções e reformas “modernizantes” do século XIX, serviria de modelo aos países do continente americano8. São essas as concepções que foram atualizando os próprios sistemas de educação superior latino-americanos e redefinindo as políticas para o setor, constituindo, assim, a modalidade mais clássica de internacionalização da educação superior - a mobilidade de docentes e discentes num trânsito em busca do que lhes representasse uma melhor formação.
Essa tendência é representada nas pesquisas e documentos dos distintos organismos multilaterais, que passaram a disputar a precedência da construção simbólica em torno da temática da internacionalização. Para aqueles organismos mais vinculados às perspectivas das grandes organizações econômicas transnacionais tem-se um bom exemplo no caso da OECD (2004, p. 21), que em seu documento Internationalisation And Trade In Higher Education: Opportunities And Challenges vai definir a internacionalização - tomada como necessária - nos seguintes termos:
Depending on who or what crosses the border, cross-border education can take three different forms (Knight, 2003b): • A person can go abroad for educational purposes (people mobility). • An educational programme can go abroad (programme mobility). • An institution or provider can go or invest abroad for educational purposes (institution mobility). (OECD, 2004, p. 21)9
Para esse organismo, que reúne os países mais ricos do globo, trata-se de reconfigurar sistemas e políticas de educação superior a partir de uma equação que ajusta a mobilidade em termos de oferta e demanda educativas, da qual decorrerá uma segunda equação, tipicamente mercadológica, de meios disponíveis (sistemas qualificados) ajustados a fins (econômicos) desejados.
De todo modo, a recomendação incita à mobilidade, seja ela advinda de instituições, programas ou pessoas. Os números desse processo de internacionalização, no contemporâneo, para o caso da América Latina, evidenciam o vetor Sul-Norte dos processos de mobilidade, tanto para estudantes quanto para docentes, conforme dados compilados na tese de doutorado de Santos (2014, p. 104) para alguns países da região. (Vide Tabela 1)
PAÍSES DE ORIGEM | TOTAL | PAÍSES DE ACOLHIMENTO | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
1º destino | 2° destino | 3º destino | 4ºdestino | 5º destino | ||
Brasil | 23.410 | E.U.A (7.586) | França (2.941) | Portugal (2.204) | Alemanha (1.878) | Espanha (1.337) |
Colômbia | 18 082 | E.U.A (6.669) | Espanha (3.014) | França (2.281) | Alemanha (1.074) | Austrália (740) |
México | 25.444 | E.U.A (14.853) | Espanha (2.103) | França (1.751) | Reino Unido (1.303) | Alemanha (1.299) |
Peru | 14.719 | E.U.A (3.676) | Espanha (2.861) | Chile (1.523) | Cuba (1.422) | Itália (1.243) |
Venezuela | 12.428 | E.U.A (4.451) | Cuba (3.520) | Espanha (1.517) | França (492) | Portugal (452) |
Fonte: Compéndio Mundial de la Educación (UNESCO, 2010 apud SANTOS, 2014, p. 104).
Quando está em destaque o aspecto da mobilidade acadêmica (estudantes e docentes), as formas de que se revestem as políticas, por exemplo, de trânsito estudantil na América Latina, permanecem seguindo o padrão tradicional de procura de instituições estadunidenses e europeias. Enquanto Estados Unidos, Grã-Bretanha, Espanha, França e Alemanha registravam, no período 2002-2003, 140.000 estudantes internacionais matriculados nas universidades desses países, apenas 19.785 jovens se matricularam, em 2006, em países da região.
O mesmo autor procura explicar os motivos do que ele define como tradição de baixa modalidade acadêmica dos países sul-americanos, nesse passo estabelecendo a distinção dessa tradição em relação ao processo de internacionalização que constituiu um espaço unificado europeu de educação superior a partir do Tratado de Bologna:
[…] a internacionalização da Educação Superior na Europa é uma consequência da necessidade dos países europeus em constituir um espaço único. Em nosso caso, até o momento, o processo de internacionalização tem atendido à necessidade de formar quadros de excelência para conduzir pesquisas nas instituições de Ensino Superior, desenvolver estudos, competências e habilidades que possam colaborar, nas mais diversas áreas do conhecimento e no desenvolvimento técnico-científico. (SANTOS, 2014, p. 104)
Já o documento de orientação da Conferência Mundial da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), Mudança e Desenvolvimento do Ensino Superior, vindo de organismo cujas áreas de intervenção representam o centro do debate simbólico atravessado pelas concepções de Direitos Humanos, proclama que:
[…] continuará a fazer da promoção da cooperação internacional seu principal objetivo e seu modo de ação preferencial no campo do ensino superior. Deverá favorecer a cooperação em escala mundial, buscando os meios mais eficazes de contribuir para o fortalecimento do ensino superior e da pesquisa nos países em desenvolvimento. (UNESCO, 2012)
Assim, no caso desse organismo, o papel das universidades passa a ser de fundamental importância em razão de sua tarefa de incentivar a cooperação internacional, promovendo processos de intercâmbio entre as IES. E é por força de tal configuração que Sena et al. (2014, p. 4-5) se animam a dizer que
A cooperação internacional desde então é uma tendência crescente na busca pelo conhecimento gerado entre os países. Desde o final do século XX, este processo vem se intensificando muito rapidamente, pois traz novos desafios para as universidades devido a vários fatores importantes exigidos pelo mundo contemporâneo tais como a crescente importância do conhecimento, valorização do capital humano e cultural dos indivíduos, informatização, comunicação e no entendimento entre os povos que podem promover a solidariedade entre as diferentes nações.
Dispõem-se, aqui, duas perspectivas de promoção da internacionalização, que têm seus termos sintetizados no texto de Perrotta (2012, p. 156):
[…] la diferenciación entre estos dos modelos de internacionalización se enmarcan en un processo más amplio, enraizado en el apogeo del neoliberalismo como sostén del modelo de acumulación financiera consolidado en la década de los años noventa y las respuestas alternativas surgidas por actores y movimientos sociales y políticos en pos de una globalización contra hegemónica.
Acompanhando a prescrição temporal de García Guadilla apontada anteriormente, temos, no atual período histórico, contemporâneo da globalização e da mundialização, e tendo em vista os dilemas postos aos países da América Latina quanto à pertinência de suas políticas e sistemas de educação superior, a tarefa de “[…] pensar la regionalización como una estratégia - entre otras - orientada a legitimar instancias que favorezcan el desarrollo de articulaciones, alianzas y convênios, que beneficien una internacionalización con cooperación […]” (GARCÍA GUADILLA, 2013, p. 61)
Tal entendimento converge com a avaliação de Santos e Almeida (2012), pelo qual o atual cenário global propicia o retorno à ampla mobilidade docente e discente que se verificou desde as origens ocidentais da universidade e leva as IES, em particular as de Nossa América, a pensarem em estruturas universitárias internas que cuidem de planejar e executar políticas mais abertas e estratégicas de internacionalização. Isso se traduziria no agregar a dimensão internacional organicamente ao princípio da indissociabilidade entre ensino-pesquisa-extensão tão cultivado em nossas universidades.
Em trabalho mais recente, que escrutinou as perspectivas de internacionalização que se apontavam para a educação superior no âmbito dos países do Mercosul, Griboski e Funghetto (2016, p. 258) apontam que “O conceito mais utilizado nos processos de avaliação define internacionalização como atividades internacionais, mobilidade acadêmica, trocas de experiências e investigações científicas entre países.”
Passos importantes têm sido dados, há algum tempo, nessa direção com a constituição de organismos voltados à cooperação regional universitária envolvendo países e instituições da América Latina, Central e Caribe, bastando reler a listagem apresentada por Fernández-Lamarra (2010, p. 144):
[…] la UNESCO, a través de la IESALC; la OEI, la Organización Universitaria Interamericana (OUI), en especial a través del Instituto de Gestión y Liderazgo Universitario (IGLU); la Comisón Europea, especialmente a través de los proyectos ALFA y ALBAN; los organismos de cooperación de países como España, Francia, Estados Unidos y Canadá; Columbus; etc.
También se organizaron redes interuniversitárias o interagenciales que han coadyuado a estos propósitos de convergência: el Grupo Montevideo, la UDUAL, el CSUCA, el CINDA, la Red Latinoamericana de Cooperación Universitaria, la Asociación de Universidades de América Latina y el Caribe para la Integración (AUALCPI), la Asociasión ORION, la UNAMAZ, la Red Iberoamericana para la Acreditación de la Calidad de la Educación Superior (RIACES), entre otras.
As diversas concepções e modalidades de internacionalização universitária, aqui palidamente apresentadas, têm orientado as políticas mais atuais de nossos sistemas de educação superior. Elas se fazem premidas pela constituição de blocos de natureza econômica nessa porção do mundo, como forma de enfrentamento dos desafios gerados pela globalização de mercados e como mecanismo de trato com a mundialização cultural, que, ademais, envolve a produção de ciência, tecnologia e conhecimento. Tais modalidades de internacionalização, embutidas na definição dada por Perrotta e García Guadilla, entre outros, nos autorizam a reconhecer, na prática internacionalista que animou a criação da Unila, a concepção de internacionalização cooperativa e solidária, vazada na integração regional, nesse movimento acompanhando o desenvolvimento do Mercosul na busca de conquistar escala econômica e política para uma inserção mais soberana nas mudanças da economia, da política e da cultura globais.
Unila e a integração internacional regional
Antecedentes de processos de integração regional na América Latina, na área da educação, surgem na primeira metade do século XX com a proposta de criação da Universidad de la Cultura Americana, de 1930, advinda de Montevideo; a de instauração da Universidade Latinoamericana de Postgrado, de 1950, na Guatemala, durante o Primeiro Congresso de Universidades de América Latina (GARCÍA GUADILLA, 2013). No entanto, nenhuma dessas propostas prosperou, em boa medida porque os países da região se viam às voltas com a construção político-territorial, institucional e cultural de seus Estados nacionais e de suas nacionalidades; reorganizavam suas economias para vencer a grande depressão de 1929 e se inserir na modernidade capitalista tal e qual, para tanto apostando na industrialização (baseada na política econômica cepalina de substituição de importações, naquele período) e na urbanização (gerando o fenômeno do êxodo rural); mantinham-se em posição dúbia - de apoio ou resistência - em relação à liderança do grande irmão do Norte e das antigas metrópoles coloniais europeias. Nesse esforço de atualização institucional e inserção econômica e política dos países latino-americanos, na segunda metade do século “[…] la internacionalización se comienza a expresar vivamente en el contexto del paradigma del Desarrollo […] a través fundamentalmente de las diretrices emanadas de la CEPAL” (GARCÍA GUADILLA, 2013, p. 55), especialmente por meio de mobilidade de estudantes desses países aos países avançados, num movimento do Sul para o Norte.
Na esteira dos debates e disputas ideopolíticas sobre a relevância e pertinência da educação superior no concerto internacional contemporâneo, a opção do governo federal do Brasil foi de criar algumas universidades estatais cujas matrizes institucionais dispusessem, desde logo, em seus documentos de fundação e planos de desenvolvimento institucional, uma politica de internacionalização universitária. São os casos de três instituições federais criadas em 2010, a saber: a Universidade Federal de Integração da Amazônia (sucedâneo institucional da Universidade Federal do Oeste do Pará - UFOPA)10; a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab)11, e a instituição em que se ancora este texto, a Universidade da Integração Latino-Americana (Unila). Essa política busca responder a uma abordagem clara de política externa no espaço subcontinental, pondo foco na integração regional. Iniciativa nacional de tal tipo teria de ser estruturada na relação com a globalização hegemônica, implicando estratégias de governança (ou governação, como é mais corrente em Portugal) da educação cuja dialética local/global pode ser sintetizada nos termos de Dale e Teodoro. (revisite-se Nota 6)
A Universidade da Integração Latino-Americana (Unila) foi gestada no âmbito do Mercado Comum do Sul (Mercosul), bloco de fins econômicos criado para se pôr como alternativa (de início, sul-americana, e, tentativa e estrategicamente, latino-americana12) às iniciativas de constituição de uma zona americana de livre comércio, esta vista como uma forma de subordinar as economias nacionais da América Central, do Sul e caribenha ao peso político-econômico estadunidense. Dessa percepção dá conta a fala do ex-ministro das relações exteriores Celso Amorim13 (2011, p. 112):
Quanto mais o Mercosul se fortalece […] resolve os problemas de assimetrias e os de coordenação macroeconômica […] mais ele se torna a vértebra e a referência da integração sul-americana. […] Chegamos aqui e se falava em Alca, não havia integração sul-americana. Para muitos, o Mercosul existia e se justificava ontologicamente, somente como uma peça na construção da Alca. Mesmo aqueles que, durante muito tempo, aceitaram ou até defenderam o Mercosul, tinham essa concepção. Era fazer do Mercosul um elemento de integração, sob a égide da Alca. (AMORIM, 2011, p. 112)
Cedo se teve a percepção de que, nos quadros da integração regional, seria necessário ir para além de uma integração econômica, instaurando-se áreas específicas para cuidar de processos de integração cultural e educacional. No caso da educação superior, o projeto da Unila foi gestado no âmbito do Mercosul Educacional, que se organizava como um “[…] espaço de coordenação das políticas educacionais que reúne países membros e associados ao MERCOSUL, desde dezembro de 1991, quando o Conselho do Mercado Comum (CMC) criou, através da Decisão 07/91, a Reunião de Ministros de Educação do MERCOSUL (RME)”.14 Nesse espaço institucional para a educação, adotavam-se subsídios estratégicos do Instituto Mercosul de Estudos Avançados (IMEA), órgão hoje vinculado à reitoria da Unila, “[…] no qual a pluralidade de ideias e o estímulo à reflexão sobre a integração regional pelo conhecimento compartilhado nas áreas das Ciências Naturais, Engenharias, Humanidades, Letras, Artes, Ciências Sociais e Aplicadas, são constantemente fomentados.”15 O IMEA era e é formado, principalmente, por pesquisadores sêniores versados nos temas da integração e da formação histórica da economia e da política latino-americanas.
É de se constatar que, assim como o Mercosul, na condição de um bloco de países de natureza e objetivos fundamentalmente econômicos, persegue a estratégia de política externa (e de política econômica) de integração regional para fins de inserção na economia globalizada, a criação da Unila responde à busca de enfrentamento conjunto, desse coletivo de nações, ao processo de inserção de países latino-americanos na (pretensa/emergente) Sociedade do Conhecimento. E ainda, em correspondência com essa visão estratégica, procura interferir na direção de buscar outra configuração para uma geopolítica do conhecimento regional historicamente desigual.
Importa lembrar, no entanto, as dificuldades que se apresentavam a esse processo de integração regional advindas de lideranças da própria região. Em pesquisa com especialistas em internacionalização das várias regiões do globo (Ásia, África, América do Norte), a integração intrarregional assume posição de primeira prioridade em todas elas, enquanto “[…] para el caso de los países latino-americanos la cooperación intraregional quedó en el 10º. lugar, sobre 14 respuestas.” (GARCÍA GUADILLA, 2013, p. 57) A conclusão dessa autora corrobora o entendimento de pesquisadores da internacionalização e da geopolítica do conhecimento quando se deparam com a realidade de um debate que, na América Latina, via de regra, se opõe à ação e, no mais das vezes, se orienta para uma internacionalização passiva, por oposição e em vez de ativa, no âmbito da ordem internacional. (LIMA; CONTEL, 2012)
Uma das questões enfrentadas à época pelo ministro das relações exteriores, do alto de sua vasta experiência de condução da política externa brasileira ao longo de todo o governo Lula, assim se punha:
Como é possível ter uma Secretaria para a Ibero-América e não ter uma para a América do Sul? Esse conceito de Ibero-América é extremamente vago […] esse processo nunca será mais que esquema de cooperação interessante. […] Não poderá gerar nenhuma integração verdadeira, nem econômica, nem política, nem em nenhum outro aspecto. Pode, no máximo - e já seria muito -, servir de ponte entre dois processos de integração separados: o europeu e o sul-americano.
Na Comunidade Sul-americana, além desses elementos econômicos importantes, há, porém, certa predominância do elemento político, enquanto, no Mercosul, o elemento econômico é, historicamente, mais forte, ainda que o impulso inicial tenha sido político. (AMORIM, 2011, p. 91-92)
A conjugação entre a visão e os interesses da política externa brasileira na relação com os países latino-americanos, da América Central e do Caribe, e a estratégia de integração regional pela via da educação superior desenvolvida pelo Ministério da Educação resultaram no compromisso formal-institucional da Unila com os temas e desafios da região: “[…] formar recursos humanos aptos a contribuir com a integração latino-americana, com o desenvolvimento regional e com o intercâmbio cultural, científico e educacional da América Latina, especialmente no Mercado Comum do Sul (Mercosul)”, assim como sua vocação de promover o “[…] intercâmbio acadêmico e a cooperação solidária com países integrantes do Mercosul e com os demais países da América Latina.”16
Essa perspectiva de internacionalização, vazada na integração regional e em acordo com a política externa em desenvolvimento ao longo dos governos Lula da Silva e do primeiro mandato de Dilma Rousseff, é referendada nos discursos dos gestores acadêmicos que participaram (ou ainda participam) do processo de transição do mundo das ideias ao das práticas de implantação. É assim que, para a pró-reitora de assuntos institucionais e internacionais,
[…] quando assume a Dilma, ela também tem esta mesma perspectiva […] ela vai dizer que a UNILA é o braço acadêmico da CELAC. Porque a lei da criação da UNILA fala em MERCOSUL, em integração […]. Há uma mudança de trajetória, então, quando percebemos que o próprio Celso Amorim chama o reitor à época e fala, não, UNILA também tem que entrar na América Central e no Caribe e chegar ao México. E quando Dilma assume, então, ela vai dizer que nós devemos ser um braço acadêmico da CELAC. Nosso desafio é, portanto, todo o continente latino americano, inclusive o Caribe.17
Assim, a integração regional permanece como estratégia válida, porque necessária, para fomentar processos de internacionalização e, dessa forma, participar com algum protagonismo da reordenação da geopolítica mundial do conhecimento a partir da integração no campo educativo.
Coerentemente com essa definição político-institucional que aposta na internacionalização a partir da constituição de uma universidade de integração internacional (no caso, com acento regional), a Unila estabelece um quantum de vagas que se divide à razão de 50% para estudantes nacionais e outros 50% para os internacionais. Para além disso, e também em correspondência com o propósito de abranger as regiões da América do Sul, da América Central e do Caribe e propor consonância com o propósito de política externa de integração continental seletiva (integração regional), a instituição federal oferece suas vagas internacionais aos estudantes de todo esse conjunto territorial, e não só para os países que formam oficialmente o Mercosul.
Essa definição político-institucional não poderia deixar de ter desdobramentos epistemológicos, na medida em que a matriz que organiza os currículos prioriza, nos projetos de curso, conteúdos que lhe correspondam:
A gente tem a disciplina Fundamentos de América Latina, todos os estudantes vão estudar sobre a América Latina, essa coisa da diversidade cultural, da diversidade de línguas, enfim, e tudo que se trata de América Latina. Temos os estudos das línguas: português para os estrangeiros e espanhol para os brasileiros. E temos uma disciplina de metodologia, que é mais uma parte, na verdade, de Filosofia que trata da epistemologia, mais voltada para essa área. Então todos os alunos eles têm disciplinas do ciclo comum, é obrigatório. Independente da área que eles sejam, eles têm que passar por esse ciclo comum de estudos.18
Ainda no campo dos impactos epistemológicos, tem-se firmado uma prática que não se afina com o monolinguismo que tem constrangido a produção acadêmica - que se reduz à proeminência e ao uso do inglês como língua da ciência - e pela qual se busca validar o foco na interdisciplinaridade, conforme declaram todos os gestores entrevistados, a exemplo da Coordenadora de Relações Institucionais:
A nossa universidade é bilíngue, então nós temos ensino em português e espanhol, e a interdisciplinaridade. Então, todas as áreas, todos os cursos, eles têm um fundo interdisciplinar. Eles estão dentro de centros interdisciplinares. Esse centros estão dentro dos institutos. Nós temos quatro institutos latino-americanos dentro da universidade: o Instituto Latino-Americano de Ciências da Vida e da Natureza, o Instituto Latino-Americano de Economia, Política e Sociedade e o Instituto Latino-Americano de Tecnologia, Infra-Estrutura e Território. E dentro desses institutos, nós temos dois centros interdisciplinares. E é dentro dos centros, que estão os cursos. E esses centros na verdade, apesar deles pertencerem ao instituto, eles têm uma conversa com outros institutos, uma espécie de interdisciplinaridade, uma integração entre eles.
Esses aspectos ressaltam, no projeto político-institucional da Unila, a opção pela inclusão: da diversidade cultural trazidas por estudantes das escolas públicas (a instituição usa desde o início o Enem em seu processo seletivo e a maioria expressiva de seus estudantes vem do ensino público, por reserva de vagas) e dos outros países da região, num regime de seleção que parece primar pelo respeito às especificidades desses países: “[…] a UNILA é uma universidade da inclusão, também. Porque não tem vestibular, então… O processo seletivo dos estrangeiros também é feito no próprio país, então eles, baseados nas nossas regras, fazem a seleção.”19
Para o enfrentamento dos desafios dos diversos aspectos da inclusão, no âmbito de uma universidade para a América Latina, essa dialética nacional/internacional representa um desafio, aqui explicitado pela pró-reitora de extensão:
[…] geralmente as universidades são pensadas dentro de uma perspectiva nacional, seus rompimentos das fronteiras são relativamente recentes em alguns aspectos. Mas trabalhar uma perspectiva de uma Universidade de Integração, ela nos traz ainda mais desafios, principalmente dentro da América Latina, é diferente pensar um modelo similar na Europa, mesmo a partir do Estados Unidos ou de outros países […] mesmo enquanto formação acadêmica, porque enquanto pensar um país como o Brasil, que é um país que tem dimensões gigantescas, mas que tem essa formação sempre voltada para Europa e para os Estados Unidos, é só observar as nossas formações. Mas o quanto desconhecemos dessas produções do conhecimento dentro desse contexto latino-americano e de contextos africanos, então essas duas universidades (refere-se à Unilab, outra universidade federal de integração internacional) principalmente, elas desconstroem e ao mesmo tempo repensam esses modelos, elas são um convite para um embate frutífero, um embate instigante mesmo, um embate de repensar esses modelos, e essas matrizes […].
A pró-reitora está ciente dos desafios que se impõem a tal projeto institucional, acentuando questões que dizem respeito à formação dos professores em padrões tradicionais e ao desconhecimento recíproco entre os países da região, que, embora dividam uma mesma história colonial, constituem formações sociais diferentes entre si e possuem características econômicas, políticas, demográficas e geográficas que as diferenciam.
Esses variados aspectos, que a nosso ver distinguem essa e outras novas universidades federais recém-criadas em relação ao padrão universitário clássico, constituem o diferencial dessa instituição. O pró-reitor de assistência estudantil20 nos traz uma síntese desses aspectos:
Tem dois elementos que são fundamentais [no projeto da Unila): primeiro a vocação internacionalista da universidade, que se fez presente no PDI, na lei de criação da universidade e no PDI. Acho que esse é o elemento fundamental, tanto do ponto de vista administrativo na aquisição dos servidores docentes quanto nas características dos alunos, que embora não esteja garantida em lei na forma como muitos pensam, é a manutenção de 50% do quadro docente, componentes do Brasil e dos demais países da América Latina, assim como do quadro discente. Acho que esses dois pilares são fundamentais e a ideia e a proposta de construir pela via da educação, como está publicado nos dois livros que a UNILA publicou para falar de si […] a ideia, por essa via da educação, se construir uma universidade democrática, popular, latino-americana e laica.
E no que se refere à internacionalidade do projeto, o mesmo gestor nos ajuda a ressaltar os elementos essenciais do projeto, que se encontram, segundo ele, em pleno desenvolvimento, mesmo que enfrentando dificuldades de implantação de novas ideias acadêmicas no âmbito de um sistema estruturado em projetos políticos e pautas epistêmicas assentadas nos paradigmas da tradição universitária brasileira: “[…] garantir esses elementos fundamentais, a característica da internacionalização, a vocação internacional da UNILA, no PDI, esta dimensão latino-americana e caribenha que ela tem […] foram fundamentais, em que pese todos esses conflitos entre alunos de distintas nacionalidades.” Refere-se o entrevistado aos conflitos prosaicos - futebol, culinária, diferenças de formação cultural e escolar. O pró-reitor, acostumado a tratar de assuntos estudantis, parece acreditar que, mesmo diante de dificuldades várias que afetam uma instituição de novo tipo como a Unila, trata-se de um caminho alvissareiro para a integração latino-americana.
Entretanto, alerta ele para um risco ao projeto de integração latino-americana diante de uma possível leitura, dos estudantes estrangeiros e de seus governos nacionais, de a Unila ser vista como parte de um projeto imperialista, dado o fato de ser uma instituição internacional e de integração, mas criada por iniciativa do governo brasileiro e, portanto, gerida também sob o império das leis e eventuais interesses nacionais. E recomenda que, para que ela seja reconhecida como uma instituição internacional, precisa ser reconhecida como de integração, uma universidade que procure reequacionar historicamente “[…] o processo de integração fora do âmbito econômico […] e até político […] e aí opta pela via da educação […] ela pode, diante dos projetos políticos que venham a se assentar, constituir um projeto de dominação da América Latina pela via da educação […] Pelo Brasil, obviamente.”
Sobre essa questão, os três pró-reitores entrevistados (de relações institucionais e internacionais, de extensão e de assuntos estudantis) são unânimes na avaliação de que o próprio projeto político da instituição, assim como o reconhecimento desse projeto como importante e necessário para as regiões que procura representar, envolvem
[…] também uma imersão nesse universo latino-americano [que] não se dá no âmbito da graduação, ela vai se dar no âmbito da pesquisa, muito fortemente da pesquisa, muito fortemente da extensão […] com grupos de pesquisa de […] demais universidades da América Latina e do Caribe.21
Todos os entrevistados apostam na consolidação do projeto da Unila com a instituição da pós-graduação, pois nesse espaço, que se qualifica pela pesquisa científica, será possível estabelecer investigações mais profundas sobre a América Latina que possam refletir numa visão compartilhada de seus desafios e de suas especificidades. Isto é, a pós-graduação e seus cursos de mestrado e doutorado é que vão estabelecer, na prática da pesquisa acadêmica, uma efetiva integração da região e, dessa forma, consolidar o projeto inovador.
Considerações finais
Com base na análise dos dados das entrevistas realizadas na Universidade da Integração Latino-Americana e da análise de seus documentos públicos, em especial de seu Projeto de Desenvolvimento Institucional (PDI), é possível apontar para algumas considerações acerca dos objetos do debate proposto, a saber: Quais os nexos que articulam a política de internacionalização da educação superior recomendada pelos organismos multilaterais e o projeto político-institucional adotado por essa novíssima instituição de educação superior criada pelo governo federal brasileiro? Em que medida tal projeto pode contribuir para a reconfiguração da geopolítica do conhecimento contemporânea?
A Unila foi concebida como uma universidade da e para a América Latina, com a tarefa de constituir um espaço de formação de quadros voltados à criação de massa crítica e de profissionais sobre questões seminais da integração latino-americana, buscando soluções próprias para seus problemas próprios. Orientada por esse desiderato, apresenta potencial expressivo para contribuir com a reconfiguração das relações desiguais que afetam a produção, circulação e consumo de conhecimento, portanto, para interferir, de modo mais favorável a essa porção étnico-cultural do continente, na geopolítica desigual do conhecimento que se foi reproduzindo nas estruturas de educação superior que aqui consideramos tradicionais, ou clássicas.
Tratando-se de instituição de implantação muito recente, a Unila ainda tem longo caminho a percorrer; por constituir um projeto em implantação, a passagem do campo das ideias ao das práticas se põe como desafio que cabe enfrentar com tenacidade e persistência, além de boa dose de inovação. Tais inovações estão em processo e se materializam na inclusão de estudantes que historicamente se viram apartados da educação superior, tanto os do Brasil quanto os de outros países de Nossa América; no trato acadêmico com a diversidade cultural, entendendo que a região não é uniforme, mas diversa, e o é nos mais variados aspectos; na redefinição de matrizes curriculares que incorporem tais especificidades; na produção de inteligência criativa que busque soluções novas para velhos problemas que persistem no subcontinente; na promoção de uma modalidade de internacionalização que ajude a requalificar a atual geopolítica do conhecimento