1 Introdução
A expansão e a abertura pelas quais passaram as universidades federais em função do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI) significaram aumento da participação no ensino superior e inclusão de grupos sociais.1 Apesar desses avanços, o acesso aos cursos segue socialmente determinado. Os fatores institucionais nota de corte e relação candidato/vaga favorecem uma segmentação interna entre os estudantes.
A Universidade Federal de Alfenas (Unifal-MG), de Minas Gerais, expandiu significativamente com sua adesão ao REUNI. Contraditoriamente, suas taxas de abandono também aumentaram, como a de 42,6% da coorte que ingressou em 2013 em seu campus-sede.
Tal situação nos levou às seguintes questões: Os fatores institucionais que influenciam no acesso às carreiras influem também no abandono? Há relação entre esses fatores e as baixas observadas nos cursos? Se sim, como se dá essa relação? Assim, os objetivos deste artigo foram i. testar a hipótese de que os mesmos fatores institucionais que influenciam na determinação social do acesso aos cursos também influenciam na decisão de abandono; confirmada tal hipótese, segue-se ii. explicar como esses fatores influenciam na interrupção dos estudos.
Em função desses objetivos, este trabalho conjugou métodos quantitativos e qualitativos, recorrendo aos microdados disponibilizados no site do INEP, aos registros acadêmicos disponibilizados pela Unifal-MG e à transcrição das entrevistas realizadas com evadidos da coorte 2013 do campus-sede desta instituição.
2 O REUNI: expansão, inclusão e determinação social do acesso
O ensino superior brasileiro é historicamente caracterizado pela restrição. Isto é, por uma ocupação majoritária pelas elites e classes médias nacionais, dadas a desigualdade de acesso e a limitação de vagas. Contudo, uma série de políticas públicas implantada na primeira década deste século pelo governo federal brasileiro contribuiu para alterar esse quadro de exclusão. Para o setor privado, instituiu-se em 2004 o PROUNI2 e intensificou-se o FIES3 em 2010; para as universidades públicas federais, instituiu-se em 2003 o REUNI, que consistiu numa série de investimentos destinados à expansão do acesso ao ensino superior gratuito, ao ingresso de estudantes de camadas populares, ao combate à evasão, à ocupação de vagas ociosas, à criação de cursos noturnos e à interiorização do ensino superior federal pelo país. (BRASIL, 2007)
Os efeitos do REUNI se fizeram sentir em pouco tempo. Os gráficos 1, 2 e 3 ilustram o crescimento que o programa proporcionou à rede federal. O número de cursos vinha apresentando um aumento tímido durante os anos 1990 e 2000. A partir do REUNI, implantado em 2007, esse número mais que dobra em 10 anos, indo de 2.450 cursos de graduação em 2004 para 5.879 em 2014, um crescimento de 140%.
O aumento do número de cursos significa aumento do número de vagas. A população universitária das federais cresceu 69% em apenas seis anos: se em 2008 havia 643.101 matriculados, em 2014 já somavam 1.083.586.
O resultado não poderia ser outro: aumento progressivo dos concluintes. A população de egressos do ensino superior tem aumentado no Brasil e sem indícios de estabilização.
O Programa proporcionou não só a ampliação do acesso, mas a diversificação dele, em função da chegada de grupos sociais até então excluídos do ensino superior: estudantes de origem popular, de mais idade e trabalhadores, com suas dificuldades escolares, financeiras, de mobilidade e de conciliação da vida acadêmica com o trabalho (HERINGER, 2015). São os “novos estudantes” (ERLICH, 2004) ou “estudantes de primeira geração” (EZCURRA, 2007, 2011, 2013), responsáveis pela transformação no perfil dos universitários, principalmente nas federais (HERINGER, 2015), e de processos de massificação do ensino. (EZCURRA, 2007, p. 18)
Se desdibujó el predominio del alumno tradicional, blanco, de tiempo completo, que no trabaja, vive en el campus y posee poca o ninguna responsabilidad familiar. Así, comenzó el ingreso de estudiantes de mayor edad, de menor estatus socioeconómico y preparación académica, ocupados y con tiempo de dedicación parcial al estudio, que viven en sus hogares, obligados por mayores compromisos familiares, que son universitarios de primera generación - ninguno de los padres logró más que un diploma de educación media - y miembros de minorías.
O REUNI - e demais políticas públicas para o ensino superior como as de ação afirmativa4 - consistiu, portanto, num esforço de democratização da universidade pública, contra seu caráter elitista, tornando-a mais acessível, ofertando cursos noturnos, em novos estabelecimentos e em um número maior de cidades (RAMOS, 2014). São avanços na redução das desigualdades educacionais e, espera-se, socioeconômicas. Tal ingresso num espaço historicamente reservado aos “herdeiros” no Brasil (ALMEIDA; ERNICA, 2015) teve como efeito um corpo discente mais compósito, diversificado.
Porém, o volume de ingressantes e a diversidade desse ingresso não significam democratização efetiva, pois o acesso é diferenciado e ainda marcado por desigualdades. A ocupação das vagas não é homogênea, proporcional ou igualitária. De um lado, classes médias escolarizadas monopolizam carreiras de prestígio e maior retorno financeiro, tornando-as socialmente impermeáveis (BARBOSA; SANTOS, 2011; BARBOSA, 2015). De outro, os novos estudantes relegam-se às carreiras de baixo prestígio e ingresso menos disputado (HONORATO, HERINGER, 2015; ZAGO, 2006; ALMEIDA, 2009). Portanto, apesar de todo ímpeto democratizante, a desigualdade se mantém por meio de uma segmentação interna persistente no ensino superior. (ALMEIDA; ÉRNICA, 2015; PEROSA; COSTA, 2015)
Por que essa segmentação acontece? Fatores institucionais como os níveis de procura e de seletividade contribuem para essa cisão da universidade, pois limitam o acesso. As universidades públicas brasileiras adotam o sistema fechado de acesso, isto é, as vagas ofertadas anualmente pelos cursos são preenchidas mediante provas de acesso.5 Com a nota obtida no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), os candidatos concorrem a uma vaga nas universidades federais por meio do Sistema de Seleção Unificado (SISU). Pode-se concorrer em até duas opções de curso em quaisquer instituições federais e mudá-las quantas vezes se quiser até o fechamento do sistema.
Dada a limitação das vagas, as carreiras se hierarquizam conforme a oferta e a procura por elas. Quanto mais promissoras profissionalmente, mais inacessíveis ficam, pois mais procuradas e seletivas se tornam. Os níveis de procura e de seletividade se impõem como barreira a alguns cursos. A relação candidato/vaga e a nota de corte6 são indicadores da procura e da seletividade, respectivamente. Os candidatos que não alcançarem a nota de corte do curso pretendido podem escolher outro no qual sejam admitidos - são os “rechaçados” (LATIESA, 1992); ou podem, conscientes de suas chances objetivas de ingresso, “escolher” cursos possíveis, de baixa concorrência, nos quais as chances de aprovação são maiores ( HONORATO, HERINGER, 2015; CARDOSO; VARGAS, 2015). Vamos chamá-los “realistas”. Candidatos de perfil universitário típico, isto é, recém-egressos do ensino médio, que não trabalham, que cursaram a educação básica em instituições escolares privadas e com pais ocupantes de cargos profissionais médios têm, probabilisticamente, mais chance de aprovação nas carreiras mais disputadas. Vamos designá-los, aqui, pelo termo clássico: os herdeiros. (BOURDIEU; PASSERON, 2014)
Os fatores descritos impõem limitações decisivas ao acesso, estratificando-o de acordo com a origem social dos estudantes. Cursos de maior prestígio são privilégio de uma pequena parcela (ZUCARELLI, 2015). Antecedentes sociais, econômicos, culturais e escolares agrupam acadêmicos cujos perfis socioeconômicos se assemelham. As diferenças se expressam na composição do corpo discente. (ZAGO, 2006)
3 Unifal-MG: a adesão ao REUNI e as taxas de abandono
A Escola de Farmácia e Odontologia de Alfenas (EFOA) foi convertida em universidade em 2005. A recém-criada Unifal-MG ainda experimentava a expansão relativa à sua transformação quando foi sensivelmente afetada por sua adesão ao REUNI, em 2007. A adesão resultou na construção de três novos campi, contratação de técnicos e criação de 14 novos cursos (oito já haviam sido criados na conversão em universidade). Um número significativo de vagas foi aberto, além da criação de mestrados e doutorados. (CORRÊA; AVELINO, 2014; EUGÊNIO, 2015)
Sua transformação em universidade e sua adesão ao REUNI foram decisivas para o aumento do número de cursos que, até então, estava estagnado em seis graduações.
Mais cursos, mais vagas. Ao contrário de sua antecessora EFOA, o contingente de matriculados da Unifal-MG cresce significativamente com a abertura de cursos e vagas.
Por fim, consolidadas as expansões relativas à conversão em universidade e ao REUNI, a instituição, que em 2008 formara 246 profissionais, mais que triplica esse número em seis anos, formando 847 graduados em 2014.
Porém, preocupantes taxas de abandono se contrapõem à realidade de abertura e inclusão. A Tabela 1 e o Gráfico 7 indicam que o crescimento da proporção de evadidos acompanha a expansão da Unifal-MG. É preciso destacar que a deserção aumenta não apenas em números absolutos, o que é óbvio, pois o contingente de ingressantes também aumentou; o que chama a atenção é que a proporção de desertores aumentou bastante, estabilizando-se em torno dos 43%. Isto é, uma parcela cada vez maior do corpo discente foi deixando seus estudos.
Coorte | Taxa de abandono (%) |
---|---|
2007 | 18,9 |
2008 | 9,6 |
2009 | 28,2 |
2010 | 42,2 |
2011 | 43,3 |
2012 | 43,9 |
2013 | 42,6 |
Total Unifal-MG | 38 |
Fonte: INEP (s/d) - Elaboração própria.
A coorte 2013 do campus-sede, particularmente, apresenta uma taxa de abandono de 42,6%. Significa quepouco menos da metade dos matriculados desistiu. A nota de corte e a relação candidato/vaga guardam alguma relação com o abandono na coorte 2013? Estes fatores institucionais ajudam a explicar o abandono? Se sim, como?
4 Influência dos fatores institucionais no abandono
Fatores institucionais como nota de corte e número de candidatos por vaga determinam o acesso aos cursos. Desejamos saber se determinam também o abandono. A Tabela 2 apresenta a classificação dos cursos, segundo suas taxas de abandono, entre os ingressantes de 2013 no campus-sede da Unifal-MG.
Curso | Taxa de abandono (%) |
---|---|
Odontologia - Bacharelado | 16,8 |
Pedagogia - Licenciatura | 19,5 |
Biotecnologia - Bacharelado | 20,0 |
Ciências Biológicas - Bacharelado | 26,8 |
Biomedicina - Bacharelado | 30,4 |
Letras - Licenciatura | 31,0 |
Enfermagem - Bacharelado | 39,0 |
Farmácia - Bacharelado | 39,8 |
Fisioterapia - Bacharelado | 40,7 |
Química - Bacharelado | 42,9 |
Nutrição - Bacharelado | 44,2 |
Ciência da Computação - Bacharelado | 46,3 |
Geografia - Licenciatura | 50,0 |
História - Licenciatura | 50,0 |
Ciências Biológicas - Licenciatura | 56,5 |
Geografia - Bacharelado | 58,7 |
Ciências Sociais - Bacharelado | 59,1 |
Ciências Sociais - Licenciatura | 61,9 |
Matemática - Licenciatura | 70,0 |
Física - Licenciatura | 72,5 |
Química - Licenciatura | 75,6 |
Total coorte 2013 | 42,6 |
Fonte: Sistema acadêmico da Unifal-MG - Elaboração própria.
As taxas de abandono esboçam um padrão: na metade superior da Tabela 2, onde estão os cursos de menor abandono, localizam-se os bacharelados em saúde e em ciência ou tecnologia; na metade inferior da tabela, onde se situam as carreiras mais abandonadas, concentram-se as licenciaturas e humanidades, com exceção de Pedagogia e Letras.
A nota de corte e a relação candidato/vaga ajudam a explicar essa variação da taxa. A nota de corte repete o padrão esboçado pelas taxas de abandono: os bacharelados em saúde e em ciência ou tecnologia predominam entre os mais seletivos, enquanto as licenciaturas e humanidades são os mais acessíveis, com notas de corte mais baixas. Exceções a essa distribuição são Biomedicina e Enfermagem, menos seletivos que seus pares, e Letras e Pedagogia, mais seletivos que os seus.
Para avaliar em que medida essas duas variáveis guardam alguma correlação7, recorremos ao coeficiente de correlação ‘r’ de Pearson, um índice situado ente -1,0 e 1.0 que fornece a força da correlação e sua direção. O ‘r’ de Pearson para as variáveis “Nota de corte” e “Taxa de evasão” é -0,570, indicando forte correlação entre ambas (uma correlação perfeita teria valor absoluto 1) e uma relação negativa, isto é, quanto maior a nota de corte, menor tende a ser a taxa de evasão de um determinado curso. O diagrama de dispersão (Gráfico 8) ilustra essa relação.
A relação candidato-vaga repete o padrão geral de classificação dos cursos: cursos de saúde predominam entre os mais concorridos e licenciaturas e humanidades como os menos procurados. Porém, quando se trata da procura pelo curso, esse padrão é menos nítido: algumas licenciaturas intercalam posições com cursos de saúde entre os mais procurados, enquanto cursos de formação científica ou tecnológica revezam com as licenciaturas e humanidades entre os menos concorridos.
O coeficiente ‘r’ de Pearson, que mede a correlação entre a variável “relação candidato/vaga” e “taxa de abandono”, é de -0,408, indicando uma relação negativa que, ainda que não tão forte como a que a seletividade mantém com o abandono, também é expressiva. Significa que quanto mais procurado um curso, menor a tendência a se abandoná-lo. O diagrama de dispersão (Gráfico 9) representa essa relação.
Nossa hipótese se confirma: há relação entre os dois fatores institucionais investigados e as baixas observadas nos cursos. Os fatores institucionais que determinam o acesso às carreiras, limitando, desfavorecendo, desencorajando e rechaçando estudantes de perfil universitário atípico, também influem no abandono deles: quanto menos seletivos e menos concorridos, mais abandonados.
Mas por que o fato de eles serem menos concorridos e menos seletivos faz com que apresentem as maiores taxas de abandono? Por que essa relação entre os níveis de procura e seletividade e o risco de abandono? Os mais procurados e seletivos geralmente o são porque oferecem clara especialização profissional, proporcionam mais inserção laboral e dão acesso a melhores salários. Nesse caso, os bacharelados em saúde ou ciência ou tecnologia. Por isso, tendem a ser monopolizados por estudantes de perfil universitário típico. As licenciaturas e as humanidades, por serem menos promissoras, são pouco seletivas, menos procuradas e apresentam maiores taxas de abandono. A taxa média de abandono das licenciaturas em relação à dos bacharelados não deixa dúvidas (Tabela 5).
Curso | Taxa de abandono (%) |
---|---|
Odontologia | 733,48 |
Biomedicina | 725,63 |
Biotecnologia | 710,2 |
Farmácia | 710,08 |
Ciência da Computação | 688,46 |
Ciências Biológicas-bacharelado | 681,17 |
Química-bacharelado | 676,89 |
Nutrição | 676,45 |
Enfermagem | 675,8 |
História-licenciatura | 675,68 |
Ciências Sociais-bacharelado | 673,73 |
Fisioterapia | 670,84 |
Letras-licenciatura | 654,47 |
Matemática-licenciatura | 653,89 |
Química-licenciatura | 652,99 |
Ciências Sociais-licenciatura | 652,69 |
Ciências Biológicas-licenciatura | 649,41 |
Física-licenciatura | 640,98 |
Pedagogia-licenciatura | 636,99 |
Geografia-bacharelado | 631,96 |
Geografia-licenciatura | 626,66 |
Fonte: Sistema acadêmico da Unifal-MG - Elaboração própria.
Curso | Relação candidato-vaga |
---|---|
Odontologia | 39,2 |
Biomedicina | 36,9 |
Farmácia | 36,6 |
Ciências Biológicas-licenciatura | 34,7 |
Pedagogia-licenciatura | 31,8 |
Fisioterapia | 30,5 |
Ciências Sociais-bacharelado | 23,7 |
Nutrição | 23,5 |
Ciências Biológicas-bacharelado | 21,9 |
Enfermagem | 21,2 |
História-licenciatura | 20,8 |
Ciências Sociais-licenciatura | 19 |
Matemática-licenciatura | 16,6 |
Geografia-licenciatura | 16,2 |
Química-bacharelado | 13,4 |
Biotecnologia | 13 |
Física-licenciatura | 12,7 |
Química-licenciatura | 11,4 |
Geografia-bacharelado | 10 |
Ciência da Computação | 9 |
Letras-licenciatura | 7,7 |
Fonte: Sistema acadêmico da Unifal-MG - Elaboração própria
Modalidade | Média | N | Desvio-padrão |
---|---|---|---|
Bacharelado | 38,7 | 12 | 13,4 |
Licenciatura | 54,1 | 9 | 19,0 |
Total | 45,3 | 21 | 17,4 |
Fonte: Sistema acadêmico da Unifal-MG - Elaboração própria.
E como se dá essa relação entre determinantes institucionais e abandono? A nota de corte e a relação candidato/vaga “condenam” certos perfis estudantis a uma gama restrita de cursos. Aqueles que não conseguem entrar na carreira desejada ingressam nos cursos nos quais são admitidos. Ponderam que é melhor entrar num curso indesejado do que não entrar em nenhum. Porém, a permanência em cursos acessíveis, quando não se quer estar neles, é extremamente improvável, se estendendo até pouco além da matrícula.
Minha nota deu pra Física. Fiquei duas semanas! Em 2014, a nota não deu. Veio 2015 e falei “vou fazer Medicina, agora”. Aí, você vê que sua nota dá pra uma série de cursos, dá vontade de entrar na faculdade, né? Coloquei Fisioterapia e entrei. Antes de completar um período, eu saí da Fisioterapia. Não queria. Era só pra entrar em alguma coisa. O plano era estudar pra Medicina. (evadido de Física e de Fisioterapia)
Minha nota foi baixa. Joguei em Física e deu. Já Farmácia achei interessante, só que, como eu sempre quis Odonto, não continuei. Não cheguei a frequentar as aulas porque não era o curso que eu queria. Queria ser dentista. (evadida de Física e de Farmácia)
Identificam-se duas estratégias pós-abandono entre os ex-estudantes. A primeira é a retirada definitiva da cena universitária, principalmente quando projetos ou oportunidades se oferecem paralelamente aos estudos.
Meu intuito? Medicina. Mas minha nota não deu. Tirei 600 pontos, pelo ENEM. Pra Medicina, infelizmente, não deu. Aí lancei a nota na Física, deu certo. Caí na Física. Vamo pra Física! Aí, um amigo meu falou “vamo montar uma padaria”. Aí eu tranquei, casei e a gente montou uma padaria. (evadido de Física)
A segunda estratégia pós-abandono identificada é o reingresso em cursos “paliativos” que se assemelhem ao curso pretendido, enquanto este não é alcançado. Nessa “escalada” por meio de cursos afins também não há garantia de permanência.
Pensei: “qualquer curso que eu entrar, eu vou”. Coloquei Sociais. Nem pesquisei. Mas eu queria Odonto, né? Só que eu jogava minha nota e não ia. Queria mudar. No quinto período, fui chamada pra Nutrição. Foi um alívio. Acho que eu vou formar na Nutrição, trabalhar e tentar Odonto. Odonto não deu certo até hoje. (evadida de Ciências Sociais)
Queria medicina. E não passava. Joguei minha nota na Nutrição. Entrei e fiz um ano pra eliminar algumas matérias se eu entrasse em Medicina ou Odonto. Hoje eu faço Odonto, só que na Unifenas. Mas ainda tenho vontade de fazer Medicina. (evadida de Nutrição)
Os determinantes do acesso, que ocasionam segmentação social na ocupação das vagas, provocam também a distribuição desigual do abandono, poisconduz um contingente considerável de estudantes a cursos aos quais não aspiravam. Naturalmente, se espera baixo engajamento, novas tentativas de acesso e busca de trabalho ou outras oportunidades fora da universidade. O abandono é quase inevitável. Não é simplesmente por não se conseguir acompanhar os estudos, ou por fracassar diante das provas - é por não querer estar ali mesmo.
5 A determinação social do abandono
A Unifal-MG repercute, em nível local, avanços gerais do desenvolvimento do ensino superior público federal brasileiro a partir da implantação do REUNI: aumento de matriculados e incorporação de perfis sociais até então ausentes, feitos inclusivos inegáveis. E se vê às voltas com os mesmos desafios da rede nacional: combater a desigualdade de acesso - em outras palavras: democratizá-lo.
O aumento da oferta tem uma dimensão democratizante, mas não significa democratização porque nem todas as categorias sociais se beneficiam da mesma forma e, além disso, a estrutura geral do sistema educacional tende a desenvolver meritocracias acadêmicas que contribuem para a reprodução de hierarquias sociais (DUBET, 2015). Mesmo massivas, aquelas conquistas não significam, efetivamente, democratização do ensino superior, pois a estrutura de ingresso na universidade reproduz desigualdades de acesso se mantêm inalteradas. O REUNI intervém no volume de ingressantes, sim, mas não na ocupação das vagas.
O resultado, vimos, é uma cisão na universidade visível até mesmo no transcorrer do dia no campus. De dia, se vê uma universidade seleta, concorrida, com bacharelados de tempo integral mais promissores profissionalmente e por isso com menores taxas de evasão, frequentados por estudantes que partilham o perfil universitário típico, dedicados exclusivamente aos estudos e que por essas razões passaram pelos filtros institucionais na seleção - uma verdadeira “aristocracia acadêmica”. À noite, uma universidade inclusiva, realista, de corpo discente heterogêneo, composta de estudantes de várias faixas etárias, trabalhadores e pais de família. Frequentam as licenciaturas, que por proporcionarem perspectivas profissionais incertas ou modestas, são menos concorridas, menos seletivas e com as maiores taxas de abandono. Foi o que se permitiu a esses estudantes alcançar.
A massificação do ensino superior, conduzida nesses moldes, se faz acompanhar do aumento significativo das taxas de evasão. E nesse processo grupos sociais historicamente excluídos, tão logo logram acessar a graduação, são os que proporcionalmente mais abandonam. (EZCURRA, 2007, 2011, 2013). O abandono, portanto, é uma consequência inevitável de políticas de abertura e inclusão levadas a cabo, acompanhadas da manutenção de mecanismos de seletividade. A porta que a massificação abre para as camadas populares é uma “porta giratória” (TINTO, 1987). Abrem-se chances de entrada, mas mediante opções limitadas de escolha, impedindo o ingresso desejado e direcionando para vagas indesejadas, desestimulando, assim, a conclusão dos estudos. Como esperar a permanência num curso no qual se ingressou apenas pela probabilidade de aprovação?
Até certo ponto, os apontamentos clássicos de Bourdieu e Passeron (2013, 2014) para a área são válidos: o acesso às posições mais privilegiadas do sistema de ensino - e às oportunidades socioeconômicas a que elas dão acesso - tende a se concentrar nas mãos dos herdeiros do capital cultural, ao passo que os “excluídos do interior”, escapando da eliminação, tendam a alcançar diplomas desvalorizados (BOURDIEU; CHAMPAGNE, 2015). Todavia, os dados não permitem inferir que eles sejam eliminados ao longo do curso pela incompreensão da mensagem pedagógica, dado seu baixo capital cultural e sua distância da cultura legítima nem que seu abandono contribua para que seu “futuro de classe” siga a “causalidade do provável”, até porque os estudantes evadem tão logo ingressam. O abandono é uma aposta, assim como foi entrar na universidade. E, no caso dos rechaçados e dos realistas, a universidade não os eliminou; eles a eliminaram!
6 Considerações finais
Buscou-se verificar, neste trabalho, se fatores institucionais influem ou não na deserção universitária e como o fazem. Afirmamos que fatores institucionais são causa da desistência, não que sejam “as” causas dela. Sabemos que o limitado conjunto das variáveis institucionais é insuficiente para uma explicação satisfatória do abandono. Nosso intuito foi evidenciar como elas contribuem parcialmente para explicá-lo. Há outros determinantes socioeconômicos, pessoais e escolares que precisam ser investigados, mas cujo exame transcende os objetivos deste trabalho.
Tampouco afirmamos que todos os abandonos se devem a uma desistência calculada diante de um curso que não vale a pena. Há outras motivações para a interrupção dos estudos (decepção com a área, reprovação nas disciplinas, incompatibilidade de horários etc.), cujas causas particulares cabe investigar. Apontamos aqui que os níveis de seletividade e concorrência, pela nota de corte e pela relação de candidatos por vaga, estimulam a renúncia porque, limitando o acesso, conduzem os estudantes realistas e rechaçados a vagas desencontradas das suas aspirações.
Destacamos também que, metodologicamente, não se pode examinar o abandono simplesmente pela mera comparação do desempenho acadêmico individual dos estudantes, independentemente do curso, como se o abandono fosse uma fatalidade mais provável entre os que “estudam menos” do que entre os “que estudam mais”. Abordagens assim ignoram as diferenças nas taxas de abandono entre os cursos e pressupõem que o acesso dos estudantes tenha se dado em condições de igualdade e, portanto, todos estariam nos cursos que gostariam, embora possam apresentar graus de dedicação variados - daí as razões do eventual infortúnio pessoal do abandono. Os fatores que regulam a entrada nos cursos devem constar na análise, pois, como vimos, são uma barreira que direciona uma massa considerável a cursos que não queriam - o curso é uma variável fundamental. Ingressos diferenciados significam graus de dedicação e interesse diferenciados e, logo, a taxas de abandono diferenciadas. Não se pode pensar o abandono fora do curso abandonado.
Assim, procurou-se demonstrar que o abandono guarda relações com a própria configuração institucional do acesso ao ensino superior público no Brasil, que embora haja incorporado grupos socialmente excluídos, segue infenso às condições de permanência deles. Os que acabaram de chegar predominam entre os que mais saem, e não por uma incapacidade incorrigível, mas por ponderar que uma vaga residual não corresponde às suas expectativas e desejos. Cremos que os próximos desafios para as políticas públicas, agora, devam ser nessa direção: desenvolver mecanismos institucionais diversos aos que hoje regulam o acesso às universidades federais, que reproduzem desigualdades e predispõem ao abandono. Contra essa estrutura de ingresso ainda elitista e excludente, cabe cuidar para que as universidades federais não sejam meras fornecedoras de oportunidades descartáveis