1 Introdução
Neste trabalho procuro analisar, à luz do pensamento de Antonio Gramsci, o problema da dicotomia frequentemente estabelecida entre liberdade e disciplina no ensino. Para tanto, tomo como referência uma carta de 1930, escrita ao irmão Carlo; dois pequenos textos jornalísticos de 1917, publicados no jornal La città futura; e algumas notas dos Cadernos do Cárcere. Por meio desses escritos, busco fundamentar a crítica ao espontaneísmo pedagógico, demonstrando: a influência das fontes extraescolares na formação dos educandos; a indissociação entre formação e educação; o estudo como trabalho; o valor pedagógico da coação e da disciplina, exercidas de modo afetivo e amoroso, para a conquista da autonomia do educando.
2 A influência do ambiente - o materialismo dialético como pressuposto teórico
Em carta de 25 de agosto de 1930, Gramsci aconselha o irmão Carlo quanto à educação da sobrinha Mea. Aparentemente, o pai da menina receava exercer sobre ela uma atitude demasiadamente diretiva, imaginando que seria preferível confiar no potencial formativo do ambiente supostamente saudável em que ela vivia. Em sua resposta, o tio lembra que “[…] toda a nossa vida é uma luta para nos adaptarmos ao ambiente, mas também, e especialmente, para dominá-lo e não nos deixarmos esmagar por ele […]” (GRAMSCI, 2005, p. 439) Ora, faziam parte do ambiente de Mea: seus pais, familiares, amigos, vizinhos, a escola etc. Pergunta, então, ao irmão: “[…] de quais partes deste ambiente Mea vai receber os estímulos para formar seus hábitos, seus modos de pensar, seus juízos morais?” Em seguida, adverte:
Se vocês renunciarem a intervir e a guiá-la, usando a “autoridade que vem do afeto” e da convivência familiar, “fazendo pressão sobre ela de modo afetuoso e amoroso, mas inflexivelmente rígido e firme”, acontecerá, sem dúvida nenhuma, que a formação espiritual de Mea vai ser o resultado mecânico da influência casual de todos os estímulos deste ambiente. (GRAMSCI, 2005, p. 439, grifos meus)
Notamos que o exercício da autoridade pelo adulto, para Gramsci, não exclui a afetividade e o amor, mas, ao contrário, os pressupõe e neles se fundamenta. É do afeto que vem a autoridade! Esclarece, também, que a ação diretiva dos pais - e dos educadores - deve ocorrer sobretudo na primeira infância, quando a personalidade ainda não se formou, pois nessa fase “[…] é mais fácil guiar sua vida e fazê-la adquirir determinados hábitos de ordem, de disciplina, de trabalho.” Porém, quando chega a puberdade, “[…] toda intervenção alheia se torna odiosa, tirânica, insuportável […]” e, por conseguinte, produz pouco resultado. Até os 14 anos, porém, “[…] o hábito de ficar sentado de cinco a oito horas por dia[…]” pode ser adquirido “sem sofrimento’.” E conclui, convidando o irmão a refletir sobre a necessidade de “educar os educadores!” (GRAMSCI, 2005, p. 439-440)
Essa última afirmação parece aludir à terceira tese de Marx sobre Feuerbach que, em sua primeira parte, diz: “A doutrina materialista sobre a alteração das circunstâncias e da educação esquece que as circunstâncias são alteradas pelos homens e que o próprio educador deve ser educado.” (MARX, 1991, p. 12) Ora, se é razoável presumir essa alusão, podemos inferir que a questão do espontaneísmo versus diretividade na educação, para Gramsci, situa-se no âmbito do debate sobre idealismo e materialismo vulgar, o qual constitui o pano de fundo da mencionada tese marxiana. A esse debate ele responde, superando ambas as doutrinas com sua “filosofia da práxis”, que, na verdade, é sua forma própria de expressar o “materialismo dialético”.
De fato, o ambiente exerce uma ação determinante na formação de nossa personalidade, de nossa visão de mundo. Nesse sentido, somos por ele educados. Como diz Gramsci, as relações pedagógicas não se limitam ao âmbito escolar. Ocorrem na sociedade como um todo e envolvem todos os indivíduos nas relações que estabelecem uns com os outros: “[…] entre camadas intelectuais e não intelectuais, entre governantes e governados, entre elites e seguidores, entre dirigentes e dirigidos, entre vanguardas e corpos de exército”. E, na realidade, para ele: “Toda relação de ‘hegemonia’ é necessariamente uma relação pedagógica […]” (GRAMSCI, 2001, v. 1, C 10, §44, p. 399) Negar a ação educativa do meio em que vivemos é incorrer em idealismo. Por outro lado, imaginá-la ocorrendo de modo absoluto e mecânico é alinhar-se ao materialismo vulgar. Gramsci recusa ambas essas posições. Para ele, por mais ostensiva que seja a influência do ambiente sobre nós, não anula nossa possibilidade de reação, por exemplo, por meio de uma educação que busque nos preparar para dominar esse ambiente, modificá-lo, evitar que nos esmague. Ora, aí reside, justamente, nossa liberdade. E, se as circunstâncias também são alteradas pela ação humana, não podemos abrir mão de intervir na formação das novas gerações, se nosso objetivo é produzir uma outra hegemonia.
Além disso, como ele dirá mais tarde: “Se é exercida inconscientemente pelo ambiente e pelos indivíduos, e não por um poder central ou por uma força centralizadora, deixa por isso de ser coerção?” (GRAMSCI, 2002, v. 6, C 14, § 65, p. 250) Ora, se continua sendo coerção, a renúncia do professor a dirigir seus alunos resultará, não em libertá-los, mas em abandoná-los aos efeitos da ação coercitiva do ambiente.
3 O homem como “bloco histórico” de elementos subjetivos e objetivos
A posição dialética de Gramsci acerca da relação homem-ambiente ampara-se em sua concepção, também dialética, do homem como “conjunto das relações sociais”, a qual inclui a noção de “devir”, uma vez que o homem “[…] transforma-se continuamente com as transformações das relações sociais.” (GRAMSCI, 2001, v. 1, C 7, §35, p. 245) Em outros termos, o homem é, em grande parte, determinado pelas relações de que participa e pelas condições em que vive.
Mas isso não significa que sua dimensão individual e subjetiva, e também sua liberdade, sejam anuladas. As condições de vida indicam “aquilo que é possível fazer” em um determinado contexto histórico. E essa possibilidade também quer dizer “liberdade”. Uma coisa é não agir porque não podemos fazê-lo, isto é, por não termos os meios para tal; outra coisa é dispor desses meios e decidir não agir. Diz Gramsci (2001, v. 1, C 10, §48, p. 406): “Que existam as possibilidades objetivas de não se morrer de fome e que, mesmo assim, se morra de fome, é algo que, ao que parece, tem sua importância.” A liberdade, portanto, não pode ser excluída da definição do homem.
Mas a existência da liberdade, isto é, das condições objetivas para agir, ainda não é suficiente. É preciso, também, “conhecer” essas condições, “saber” utilizá-las e “querer” fazê-lo. Preserva-se, portanto, a dimensão da vontade humana - não em sentido abstrato ou arbitrário, mas como “ ‘vontade concreta’, isto é, aplicação efetiva do querer abstrato ou do impulso vital aos meios concretos que realizam esta vontade”. O homem, por conseguinte, não se reduz à objetividade nem à subjetividade; antes, constitui-se como um “[…] bloco histórico de elementos puramente subjetivos e individuais e de elementos de massa e objetivos ou materiais, com os quais o indivíduo está em relação ativa.” (GRAMSCI, 2001, v. 1, C 10, §48, p. 406)
Ora, se o homem “é” o conjunto das relações que vivencia, ao transformar essas relações, também “transforma a si mesmo, modifica-se”. Constrói sua personalidade na medida em que toma consciência dessas relações e modifica a primeira na medida em que altera essas últimas. Essa capacidade transformadora revela a natureza política do ser humano (GRAMSCI, 2001, v. 1, C 10, §54, p. 413). De fato, ele é “essencialmente ‘político’, já que a atividade para “transformar e dirigir conscientemente os outros homens” realiza a sua ‘humanidade’, a sua ‘natureza humana’.” (GRAMSCI, 2001, v. 1, C.10, p. 406-407, grifos meus)
No caso do educador, cuja função é especificamente intelectual, a forma própria - mediata - pela qual atua na modificação do ambiente é agindo diretamente na formação e na direção dos educandos. Ora, dessa perspectiva, o espontaneísmo pedagógico, ao negar o papel diretivo do educador, nega-lhe também sua natureza política e, em última instância, sua condição humana.
4 Crítica à “espontaneidade” da pedagogia moderna
As ressalvas de Gramsci ao espontaneísmo pedagógico aparecem explicitamente já no Caderno 1, no contexto de sua crítica à “pedagogia moderna”, isto é, à “escola ativa”, derivada da tradição rousseauniana, cujas características - “[…] a colaboração amigável entre professor e aluno; a escola ao ar livre: a necessidade de deixar livre, sob a vigilância mas não sob o controle evidente do professor, o desenvolvimento das faculdades espontâneas do estudante […]” - compõem “[…] uma forma confusa de filosofia ligada a uma série de regras empíricas […]” (Gramsci, 2001, v. 2, C 1, § 123, p. 62)
No caso de Rousseau, pondera, suas ideias foram “[…] uma violenta reação contra a escola e os métodos pedagógicos dos jesuítas […]”, razão pela qual, naquele contexto, representavam de fato um avanço. Mas posteriormente “[…] formou-se uma espécie de igreja, que paralisou os estudos pedagógicos e deu lugar a curiosas involuções […]” (GRAMSCI, 2001, v. 2, C 1, § 123, p. 62)
Uma dessas involuções foi justamente a forma como essa pedagogia concebeu a “espontaneidade”. Ele diz: “[…] quase se chega a imaginar que o cérebro do menino é um novelo que o professor ajuda a desenovelar […]” (GRAMSCI, 2001, v. 2, C 1, § 123, p. 62) No entanto, o que ocorre no processo educativo é algo bem diverso ou mesmo antagônico a essa espontaneidade: “Na realidade, toda geração educa a nova geração, isto é, forma-a; e ‘a educação é uma luta contra os instintos ligados às funções biológicas elementares, uma luta contra a natureza, a fim de dominá-la e de criar o homem [atual] à sua época’.” (GRAMSCI, 2001, v. 2, C 1, § 123, p. 62, grifos meus) Ora, se a educação é uma “luta” contra os instintos naturais, certamente não poderá ocorrer espontaneamente. Além disso, os adeptos da “espontaneidade” esquecem que “[…] a ‘escola’ (isto é, a atividade educativa direta) é somente uma fração da vida do aluno […]”, ao mesmo tempo em que desconsideram a importância das “fontes ‘extra-escolares’” (lembremos da carta a Carlo) que atuam em sua educação (GRAMSCI, 2001, v. 2, C 1, § 123, p. 62-63). E acrescenta:
Não se leva em conta que o menino, desde quando começa a “ver e a tocar”, talvez poucos dias depois do nascimento, acumula sensações e imagens, que se multiplicam e se tornam complexas com o aprendizado da linguagem. A “espontaneidade”, se analisada, torna-se cada vez mais problemática. De resto, a “escola” (isto é, a atividade educativa direta) é somente uma fração da vida do aluno, o qual entra em contato tanto com a sociedade humana quanto com a societas rerum, formando-se critérios a partir dessas fontes “extra-escolares” muito mais importantes do que habitualmente se crê. (id.ib., grifos no original).
Desse ponto de vista, a espontaneidade apregoada pela escola ativa é ilusória. Por isso, a escola proposta por Gramsci não abre mão do controle do professor: “A escola única, intelectual e manual, tem ainda esta vantagem: a de colocar o menino em contato, ao mesmo tempo, com a história humana e com a história das ‘coisas’, ‘sob o controle do professor’.” (GRAMSCI, 2001, v. 2, C 1, § 123, p. 63, grifos meus)
Vale lembrar que, para Gramsci, a direção do professor não se dá do mesmo modo e na mesma intensidade em todas as fases do processo educativo. Na realidade, como ele havia assinalado na carta a Carlo, ela deve ser mais intensa e dogmática no período anterior à puberdade, que corresponde à primeira etapa da escola unitária, similar ao Ensino Fundamental no Brasil. Esse é o momento em que as crianças precisam ser disciplinadas para se obter uma espécie de “[…]‘conformismo que pode ser chamado de dinâmico’”, necessário ao nivelamento dos estudantes quanto às suas condições para aprender.
Porém, na segunda fase da escola unitária - equivalente ao nosso Ensino Médio -, a coação do educador já pode ser abrandada ou mesmo abolida. É a fase da “escola criadora”, na qual, tendo sido atingida uma base coletiva, parte-se em busca de “expandir a personalidade” do aluno, tornando-a “[…] autônoma e responsável, mas com uma consciência moral e social sólida e homogênea […]” (GRAMSCI, 2006, C 12, §1, p. 39)
É nesse sentido que a “escola criadora é o coroamento da escola ativa”. Não se trata de uma “escola de ‘inventores e descobridores’”, que “obrigue à inovação a todo custo”, mas de “uma fase e um método de investigação e de conhecimento”. Nela, a aprendizagem se dá pelo “esforço espontâneo do discente”, e ao professor cabe “apenas a função de guia amigável.” Mas, sem a etapa anterior, mais diretiva e disciplinadora, o esforço do aluno não seria espontâneo e tampouco a função do professor poderia se limitar à de um guia amigável.
A passagem a seguir esclarece melhor o significado da atividade criadora que Gramsci tem em mente:
Descobrir por si mesmo uma verdade, sem sugestões e ajudas exteriores, é criação, mesmo que a verdade seja velha, e demonstra a posse do método; indica que, de qualquer modo, entrou-se na fase da maturidade intelectual, na qual se podem descobrir verdades novas […] (GRAMSCI, 2006, C 12, §1, p. 40)
Justifica-se, então, o recurso a seminários, bibliotecas, laboratórios e outros procedimentos didáticos que favoreçam a conquista da autonomia intelectual do aluno.
5 Indissociabilidade entre instrução e educação
Não é raro encontrar educadores que acreditam que sua função se reduz a instruir e que a tarefa de educar deve ser reservada à família e a outras instituições. Em geral, os que pensam assim entendem por instrução o ensino dos conteúdos escolares, e por educação algo mais amplo, associado à transmissão de uma determinada concepção do mundo.
Para Gramsci, porém, não é “[…] completamente exato que a instrução não seja também educação”. Em toda instrução há também alguma educação, pois o educando não é “mera passividade”, um “‘recipiente mecânico’ de noções abstratas” (GRAMSCI, 2006, v. 2, C12, §2, p. 43-44) que apenas recebe pacientemente os conteúdos transmitidos pelo professor. Concebê-lo dessa maneira seria “um absurdo”.
De fato, o saber ensinado pela escola como “certo” (instrução) se torna “verdadeiro” (educação) para a criança, em sua consciência. Mas essa consciência não é meramente individual; antes, “[…] é o reflexo da fração de sociedade civil da qual a criança participa, das relações sociais tais como se aninham na família, na vizinhança, na aldeia, etc.”. E, na “esmagadora maioria” dos casos, “[…] reflete relações civis e culturais ‘diversas e antagônicas’ às que são refletidas pelos programas escolares […]” (GRAMSCI, 2006, v. 2, C12, §2, p. 44, grifos meus) Em outros termos: quando entra na escola, a criança traz consigo uma bagagem cultural (valores, noções, concepções do mundo, padrões de comportamento) constituída em sua interação com o meio social e que, por vezes, choca-se com os saberes transmitidos pela escola.
Essa é a razão pela qual “[…] não existe unidade entre escola e vida […]”; e, por isso, também não pode haver “[…] unidade entre instrução e educação […]” (GRAMSCI, 2006, v. 2, C12, §2, p. 44), que, a rigor, só poderá ser proporcionada “[…] pelo trabalho vivo do professor […]”, “[…] na medida em que este estiver consciente não apenas do contraste entre o tipo de sociedade e de cultura que ele representa e o tipo de sociedade e de cultura representado pelos alunos […]”, mas também da tarefa que lhe cabe realizar: “[…] acelerar e disciplinar a formação da criança conforme o tipo superior em luta com o tipo inferior […]” O tipo superior, aqui, representa a cultura escolar - a ciência, a arte, a filosofia -, da qual os alunos precisam se apropriar. Como ressalta Snyders (1984, p. 27): “[…] a pedagogia é, antes de mais nada, interrogarmo-nos sobre a relação entre a cultura dos alunos e a cultura escolar e, depois, interrogarmo-nos sobre os meios que os hão de fazer passar de uma para a outra.” O professor tem, portanto, um papel diretivo fundamental, se o que se pretende é a elevação cultural dos educandos.
Se o nexo entre instrução e educação for abandonado, “[…] ter-se-á uma escola retórica, sem seriedade […]” (GRAMSCI, 2006, v. 2, C12, §2, p. 44) Isso ocorre, por exemplo, quando o ensino se dá por esquemas abstratos e se negligenciam as noções concretas, preferindo-se “encher a cabeça” do aluno com “[…] fórmulas e palavras que não têm para ele, na maioria dos casos, nenhum sentido, e que são logo esquecidas […]” (id.ib)
Como exemplo concreto de articulação entre instrução e educação, Gramsci cita o caso do latim. Este era um ensino “desinteressado”, no sentido de que as noções trabalhadas não visavam a uma “imediata finalidade prático-profissional”, mas sim ao “desenvolvimento interior da personalidade”, à “[…] formação do caráter através da absorção e da assimilação de todo o passado cultural da civilização europeia moderna.” (GRAMSCI, 2006, v. 2, C12, §2, 46) Na realidade, o estudo do latim e do grego era, para as crianças e os jovens italianos - pelo menos para aqueles que chegavam à escola - “uma forma de conhece-te a ti mesmo”, pois os ideais humanistas de Atenas e Roma eram difundidos em toda aquela sociedade e constituíam “[…] elemento essencial da vida e da cultura nacionais […]” (id.ib.) De fato:
Não se aprendia o latim e o grego para falá-los, para trabalhar como garçom, intérprete ou correspondente comercial. Aprendia-se para conhecer diretamente a civilização dos dois povos, pressuposto necessário da civilização moderna, isto é, para ser e conhecer conscientemente a si mesmo. (GRAMSCI, 2006, v. 2, C12, §2, 46)
O latim era ensinado também para que se atendessem determinadas exigências pedagógicas e psicológicas,
para que as crianças se habituem a estudar de determinada maneira, a analisar um corpo histórico que pode se tratado como um cadáver que continuamente volta à vida, para habituá-las a raciocinar, a abstrair esquematicamente (mesmo que sejam capazes de voltar da abstração à vida real imediata), a ver em cada fato ou dado o que há nele de geral e de particular, o conceito e o indivíduo. (GRAMSCI, 2006, v. 2, C12, §2, p. 47)
Além disso, não se estudavam apenas a gramática e o vocabulário, mas também “a história literária, dos livros escritos naquela língua, a história política, a gesta dos homens que falaram aquela língua”, e os alunos acabavam por desenvolver uma “intuição historicista do mundo e da vida”, que se tornava para eles uma “segunda natureza”, adquirida quase espontaneamente, sem que fosse “[…] pedantemente inculcada pela ‘vontade’ exteriormente educativa […]” (GRAMSCI, 2006, v. 2, C12, §2, p. 48)
Em suma, os ganhos pedagógicos e psíquicos proporcionados por esse ensino desinteressado eram muito maiores do que à primeira vista se poderia imaginar, dado que:
Esse estudo educava sem que tivesse a vontade expressamente declarada de fazê-lo, com uma mínima intervenção “educativa” do professor: educava porque instruía. Experiências lógicas, artísticas, psicológicas eram feitas sem que ‘se refletisse sobre’, sem olhar-se continuamente no espelho, e era feita principalmente uma grande experiência ‘sintética’, filosófica, de desenvolvimento histórico-real. (id.ib., grifos meus)
Não há, portanto, para Gramsci, dicotomia entre instrução e educação. A instrução educa, e a educação instrui. Mesmo que um professor desejasse apenas instruir, abstendo-se de educar, essa sua intenção resultaria inócua, pois até na mais mecânica instrução há sempre, necessariamente, elementos de educação. Mas reconhecer a inevitabilidade da função diretiva do professor não implica autorizá-lo a praticar o pedantismo, nem a inculcação autoritária dos saberes escolares ou de sua própria visão de mundo. Daí a importância de estabelecer o nexo entre educação e instrução, para que se criem as condições necessárias a uma mútua adaptação - da criança à escola e desta àquela -, sem a qual o trabalho pedagógico poderá se reduzir a fórmulas e palavras abstratas, desprovidas de sentido e sujeitas ao rápido esquecimento.
6 Coação e disciplina como meios para a autonomia
Em dois pequenos textos de 1917, publicados no jornal La città futura, Gramsci já esboçava uma noção particular da disciplina. Embora referentes ao contexto especificamente político, suas considerações também são fecundas para pensar a prática pedagógica.
Em La disciplina, distingue a disciplina burguesa da socialista. A primeira é “mecânica e autoritária”, como aquela típica da hierarquia militar: pressupõe obediência cega, que dispensa a compreensão e o sentimento dos motivos que supostamente a justifiquem. A segunda, por sua vez, é “autônoma e espontânea”, e quem a aceita “não obedece”, mas sim “[…] comanda a si mesmo, impõe uma regra de vida aos seus caprichos, às suas veleidades desenfreadas.” A obediência, nesse caso, consiste em agir “[…] segundo uma linha de conduta que nós mesmos contribuímos para traçar e manter rigidamente coerente […]” (GRAMSCI, 1958b, p. 81) Por isso, essa disciplina se caracteriza por ser a vida e o pensamento próprios de quem a pratica. É nesse sentido que “disciplinar-se é tornar-se independente e livre” - afinal, “A água é água pura e livre quando escorre entre as duas margens de um córrego ou de um rio, não quando é derramada caoticamente no solo, ou rarefeita e livre na atmosfera.” (GRAMSCI, 1958a, p. 82)
Assim, enquanto a disciplina burguesa transforma cidadãos em súditos que apenas ilusoriamente podem influir nos acontecimentos, a disciplina socialista converte súditos em cidadãos. Mas cidadãos rebeldes, porque conscientes de sua personalidade e do cerceamento que ela sofre; e, ao mesmo tempo, inconformados e dispostos a se disciplinar para se libertar.
Vemos, portanto, que já nesses textos de juventude, disciplina, para Gramsci, não é incompatível com liberdade, mas sim, ao contrário, condição para sua conquista. Como essa noção pode ser relacionada à educação?
Retornando ao Caderno 12 e ao tema das gramáticas grega e latina, Gramsci reconhece que esses estudos eram, de fato, mecânicos e áridos, sob diversos aspectos. Mas considera que há também “muita injustiça e impropriedade” nessa crítica. Afinal:
Lida-se com adolescentes, aos quais é preciso fazer com que adquiram certos hábitos de diligência, de exatidão, de compostura até mesmo física, de concentração psíquica em determinados assuntos, que só se podem adquirir mediante uma “repetição mecânica de atos disciplinados e metódicos”. Um estudioso de quarenta anos seria capaz de passar dezesseis horas seguidas numa mesa de trabalho se, desde menino, não tivesse assimilado, por meio da “coação mecânica”, os hábitos psicofísicos apropriados. (GRAMSCI, 2006, v. 2, C12, §2, p. 46, grifos meus)
O mesmo se aplica a matérias como filosofia, matemática, gramática e lógica formal que, muitas vezes, se apresentam como uma “abstração dogmática” que as torna desinteressantes. Mas ainda assim é preciso estudá-las, pois envolvem saberes e habilidades necessários que não são inatos, nem adquiridos espontaneamente, mas por meio de “trabalho” e “reflexão” (GRAMSCI, 2006, v. 2, C12, §2, p. 51). Daí a necessidade de certo dogmatismo - talvez fosse mais preciso dizer diretivismo - que, no entanto, poderá ser abolido gradativamente no decorrer do ciclo escolar. (GRAMSCI, 2006, v. 2, C12, §2, p. 50)
Cumpre, porém, salientar que, mesmo nesses casos em que o ensino é dogmático, a participação ativa e criadora do discente não é excluída, pois ele “não é um disco de vitrola, não é um recipiente passivamente mecânico.” Na realidade, “A relação de tais esquemas educativos com o espírito infantil é sempre ativa e criadora, como ativa e criadora é a relação entre o operário e seus utensílios de trabalho.” (GRAMSCI, 2006, v. 2, C12, §2, p. 51)
É verdade que a criança se cansa quando quebra a cabeça com exercícios de lógica. E não é preciso fazê-la cansar-se mais do que o necessário. Mas “[…] é sempre necessário que ela se canse […]”, em alguma medida, “[…] a fim de aprender a se auto-impor privações e limitações de movimento físico, a se submeter a um tirocínio psicofísico” - enfim, a se disciplinar. Isso porque o estudo é também “[…] um trabalho, e muito cansativo […]”, “[…] não só intelectual, mas também muscular-nervoso […]”; e habituar-se a ele exige “[…] esforço, aborrecimento e até mesmo sofrimento […]” (id.ib.) Não que se deva “[…] retornar aos métodos pedagógicos dos jesuítas […]” ou desprezar os “[…] subsídios científicos adequados […]” (GRAMSCI, 2006, v. 2, C12, §2, p. 46) ao planejamento pedagógico. Mas certo grau de coação - de direção - parece importante, ao menos em uma primeira etapa da formação intelectual e física do estudante, a fim de que adquira a maturidade e a disciplina exigidas para realizar por si mesmo, no futuro, as atividades necessárias. Ou seja, por paradoxal que pareça, coerção, disciplina e mecanização são aceitáveis apenas se postas a serviço da conquista da autonomia do estudante. Convém não esquecer, porém, que se trata de uma coação afetuosa e amorosa.
Como vimos, se é trabalho, o estudo exige também “disciplina”. No entanto, o ingresso das massas populares na escola trouxe uma tendência de afrouxamento da disciplina, em nome da facilitação da vida do aluno. Afinal, essas crianças enfrentam muito mais dificuldades para se adaptar às exigências da escola do que aquelas de famílias de intelectuais, habituadas à cultura escolar. Essa diferença leva muitas pessoas do povo a acreditar que a escola use contra elas uma espécie de “truque”, ou que elas sejam naturalmente menos inteligentes, pois as outras desenvolvem com facilidade e rapidez “[…] o trabalho que custa aos seus filhos lágrimas e sangue […]” (GRAMSCI, 2006, v. 2, C12, §2, p. 52) Mas não há nenhum truque; tampouco o desempenho escolar se explica por causas naturais. Antes, como bem lembrou Gramsci na citação anterior, trata-se de condições sociais e culturais muito diversas - as das crianças oriundas do povo comparativamente àquelas das famílias abastadas -, que impõem às primeiras enormes desvantagens para se adaptar às exigências da escola.
Assim, em lugar de subestimar o potencial cognitivo dessas crianças e de rebaixar o ensino a elas destinado, a pretexto de aplainar seu percurso educativo, cumpre encontrar os procedimentos pedagógicos apropriados, que lhes permitam adquirir as condições necessárias para progredir nos estudos. E uma dessas condições é justamente a disciplina, que, portanto, não pode ser afrouxada, mas sim ensinada, e com métodos adequados à realidade desses alunos.
Portanto, é preciso “[…] resistir à tendência a facilitar o que não pode sê-lo sob pena de ser desnaturado […]” (GRAMSCI, 2006, v. 2, C12, §2, p. 52) Um ensino facilitado torna-se desnaturado, isto é, perde sua natureza, sua essência, deixa de ser o que é, descaracteriza-se, desqualifica-se. E não é curioso que, justamente quando os filhos das classes subalternas chegam à escola, se passe a advogar o abrandamento da disciplina? Desqualificar o ensino oferecido a essas crianças e jovens é privá-los de uma educação com a mesma qualidade/quantidade daquela oferecida aos filhos das elites e da qual necessitam para se tornar cidadãos capazes de governar e/ou controlar quem governa. Ainda que para tanto seja necessário “superar enormes dificuldades”, esse é o caminho para “[…] criar uma nova camada de intelectuais […] ” (GRAMSCI, 2006, v. 2, C12, §2, p. 52)
7 Considerações finais
Muitos outros escritos de Gramsci, sobretudo notas dos Cadernos, poderiam complementar o estudo de sua crítica ao espontaneísmo pedagógico e do valor educativo que ele atribui à coação e à disciplina, no sentido aqui apresentado. Os limites deste texto, porém, impedem de examiná-los neste momento. Creio, contudo, que as passagens analisadas anteriormente são suficientes para problematizar o tema e apresentar sumariamente a posição do autor sobre ele.
Em um esforço de síntese provisória, podemos concluir que, segundo Gramsci, a noção de espontaneidade, apregoada pela pedagogia moderna, desconsidera a ação do ambiente, isto é, das “fontes extraescolares” na educação, ao mesmo tempo em que toma a interferência subjetiva do professor como uma ameaça à liberdade dos alunos. Na prática, porém, a renúncia, pelo educador, de seu papel diretivo, além de não salvaguardar essa liberdade, deixa-os à mercê da influência coercitiva do ambiente, incluindo a do próprio ambiente escolar. Além disso, considerando que as relações educativas não se limitam aos muros da escola, e que toda relação de hegemonia é uma relação pedagógica, tal renúncia implica abdicar também da possibilidade - e da liberdade - de lutar em favor de uma nova hegemonia.
Se o homem é um ser político, isto é, que transforma suas relações sociais, ao mesmo tempo em que é por elas transformado; e se a forma específica - mediata - pela qual o educador realiza essa tarefa é transformando intelectualmente os educandos, então, abrir mão de seu papel diretivo é, para ele, renunciar à sua natureza política e, em última instância, à sua condição humana. Por outro lado, assumir conscientemente esse papel é requisito para a realização de sua humanidade como educador.
É preciso desmistificar a crença bastante difundida na dicotomia entre instrução e educação, não raro utilizada para justificar uma pretensa neutralidade no ensino. Como vimos, a instrução também educa, e a educação também instrui. Mas a articulação entre ambas não se dá espontaneamente. Precisa ser estabelecida pelo professor, que é quem tem consciência do desencontro entre a cultura da criança e a da escola. Sem essa articulação, o ensino tenderá a se tornar retórico, abstrato, e a aprendizagem poderá ser comprometida. Portanto, também em relação a essa tarefa é necessário que o professor assuma seu papel ativo no processo pedagógico.
Finalmente, é preciso reconhecer, de uma vez por todas, que o estudo é também um trabalho e, por vezes, árido, sofrido e cansativo, mas precisa se tornar um hábito para o aluno. Por isso, exige dele esforço e disciplina e, do professor, por conseguinte, certa dose de coação. Sem suas beiras o rio não chega ao mar. Não se trata, porém, de disciplina e coação mecânicas e autoritárias, mas “racionais”, isto é, que respondam a um fim historicamente necessário. E o fim a que respondem é a autonomia do aluno. Daí poderem ser exercidas com afeto e amorosidade e, ao mesmo tempo, firmeza e rigidez. É nesse sentido que, para Gramsci, a educação “[…] é um processo que busca fazer com que os educandos passem da anomia para a autonomia pela mediação da heteronomia.” (SAVIANI, 2014, p. 157) Com efeito, a pedagogia proposta por Gramsci não busca disciplinar o aluno para que se torne um cidadão dócil, obediente, passivo, resignado, mas rebelde, crítico, consciente de sua condição na sociedade e no mundo da produção, e munido das ferramentas culturais exigidas para superar sua condição de subalterno. E isso é ainda mais importante para as crianças e os jovens oriundos das camadas populares, que, em geral, têm na escola pública sua principal, senão única, oportunidade para adquirir os hábitos de estudo necessários à consecução desse objetivo e para se formar como pessoas capazes de “[…] pensar, de estudar, de dirigir e de controlar quem dirige […]” (GRAMSCI, 2006, C 12, § 2, p. 49) Se cumprir esse desígnio, a escola será verdadeiramente democrática