Contexto da experiência1
O episódio ocorreu durante um evento científico de porte médio na capital de um país de fala castelhana, vizinho ao Brasil. É relativamente recente: menos de cinco anos atrás. O evento foi promovido por uma instituição universitária desse país em parceria com algumas instituições dos estados do sul do Brasil. Explicitamente incluía a perspectiva descolonial em sua proposta e ocupava-se da América Latina e da África. Também incluía participantes e convidados africanos, em menor número. Entre o público predominavam estudantes e professores de pós-graduação, majoritariamente brasileiros. Entre os palestrantes, a maioria era de fala castelhana. De modo geral, as pessoas mais maduras presentes no evento, os palestrantes e outros participantes procuraram manifestar-se em “portunhol”, e quase sempre se desculpavam por não falar a língua do outro. Isto parecia ser uma carência ou defeito, no sentimento de quem tomava a palavra.
A experiência de descolonização subjetiva e seus efeitos de autoperplexidade e transformação
Eu integrava uma mesa de debates e devia pronunciar-me. A mesa era a última do evento. Eu era a segunda ou terceira, entre quatro, a falar. O que fez com que, quando me tocou tomar a palavra, eu já tivesse escutado a maioria dos palestrantes convidados e também acompanhado o clima dos debates, as intervenções e o interesse dos participantes. Sendo eu perfeitamente bilíngue, entre o português e o espanhol, a ponto de não ser possível identificar meu país de origem, ao aproximar-se meu momento de expor eu me perguntava em que língua deveria falar. Hesitava verdadeiramente. O que seria melhor? O que caberia? A dúvida se manteve até o último momento. Como não conseguia decidir o que era mais adequado, deixei fluir, e escutei-me começar minha fala em português - acredito que assim agi porque a maioria dos presentes era brasileira e eram estudantes de pós-graduação, alguns talvez com certa dificuldade de compreender plenamente as palestras na língua dos hermanos.
Eu, como disse antes, perfeitamente bilíngue, ao ouvir as declarações iniciais dos companheiros de evento, pedindo desculpas por não serem capazes de falar na língua do outro, experimentava, cá com meus botões, um sentimento, talvez vaidoso, de superioridade. Eu conseguiria expressar-me perfeitamente nas duas línguas, podendo lançar mão desta habilidade construída por circunstâncias pessoais de vida. Eu não precisaria pedir desculpas. Sentia-me confortável em um evento bilíngue. No fundo pensava que seria desejável que todos pudessem agir como eu. Eu era um exemplo. Um bom modelo a seguir!
Ao longo de minha vida, senti orgulho por essa capacidade bilíngue e divertia-me o fato dos interlocutores dificilmente conseguirem identificar minha procedência. Sempre ficavam curiosos. O que me obrigava, quando estava em situações que envolviam pessoas que falavam ambas as línguas, a explicar de onde eu vinha; e também a justificar porque eu as falava tão perfeitamente. Os interlocutores sempre ficavam admirados e surpresos, o que constituía uma carícia para meu ego.
É fato que poucas vezes encontrei sujeitos capazes dessa ‘proeza’ (talvez uns três); é possível que a dificuldade esteja no fato de se tratar de duas línguas muito próximas, o que faz com que muitos permaneçam numa espécie de limbo, a meio caminho entre as duas, misturando-as. Inclusive, é muitíssimo frequente que nativos de fala castelhana residindo há décadas no Brasil não cheguem a dominar o português e, mais do que isso, tenham ‘esquecido’ sua língua de origem, ficando justamente nesse interstício híbrido que conhecemos como “portunhol”. Tenho consciência de que a maneira como narro esta minha peculiaridade tem um ar pretensioso, antipático, como externei ao utilizar acima o termo superioridade.
Já não sou tão jovem, de modo que essa posição de diferença ‘para mais’, esse sinal de distinção tem me acompanhado ao longo de muitos anos. É companheiro de vida, marca identitária, logo, profundamente incorporada (BOURDIEU, 2007). Não entrarei em detalhes sobre como me tornei perfeitamente bilíngue para evitar identificar-me.
O fato é que à medida que se aproximava meu momento de assumir a palavra, eu comecei a experimentar uma sensação estranha. Em algum momento que não sei precisar, mas bem próximo da minha exposição, essa sensação sofreu uma inflexão, ganhou contornos de uma espécie de vergonha, por perceber que eu seria incapaz de falar “portunhol”, como a maioria dos presentes. O “portunhol” era, afinal de contas, a língua oficial daquele evento. Se escolhesse uma delas eu estaria dirigindo a palavra à metade da audiência, o mesmo acontecendo se escolhesse a outra língua.
Confesso que sempre tive certo desprezo pelo “portunhol”, encarando-o como um defeito, uma falta de esforço, um desleixo, algo a ser banido por uma boa educação. Os pedidos de desculpas dos presentes ao iniciar suas respectivas falas confirmavam minha percepção. Espanhol e Português são duas línguas oficiais da América Latina, seria fundamental rumarmos para um bilinguismo (costumava pensar), a fim de favorecer uma integração entre os diferentes países, uma ampla mobilidade e/ou para facilitar uma internacionalização continental, por Nuestra América, como dizia José Martí (2011). Seria uma obrigação, praticamente!
Esse sentimento inédito, de vergonha por ser incapaz de me sentir irmanada naquele contexto, lado a lado com todos e cada um, isto é, incapaz de igualar-me aos demais, falando “portunhol” acarretou, naquele instante, um surpreendente sentimento de inferioridade, de exclusão daquele grupo. Parecia que eu também tinha que pedir desculpas, não porque não falasse português ou espanhol, mas porque eu não era capaz de me exprimir na língua da hora: o “portunhol”! Nunca antes tinha experimentado tal sentimento. Ele era exatamente o oposto ao orgulho e superioridade que me acompanhara ao longo da vida.
A situação causou-me profundo estranhamento e isso foi se processando, como disse antes, à medida que transcorria o evento e as vozes enchiam o ambiente com um “portunhol” simpático e amigável, que fui reconfigurando mentalmente, mas de maneira ainda confusa, como um esforço de chegar perto do outro, do diferente. Algo digno de nota, que ficou sublinhado em negrito em meus arquivos mentais. Esforço que admirava e me era estranho, pois, para mim, não havia nenhum esforço, eu me sentia perto desses outros hispano hablantes. Eu era o outro, não havia diferença… nesse aspecto linguístico. Ou, ao menos, não parecia haver diferença ou distância. Eu era um deles, tanto de um lado como de outro, e sem tropeços2.
Quando percebi, a minha fala inicial (saiu em português) foi confessando estes meus sentimentos que experimentava pela primeira vez na vida, e fui construindo ao vivo, graças àquele público de fala castelhana e brasileira, minha surpresa, meu desconforto. E fui processando, assim, uma transformação importante, subjetiva, e profunda, que considero de teor descolonizador. Do desprezo com relação ao “portunhol”, começou a construir-se um sentimento de valorização.
Descortinou-se meu preconceito, alimentado por décadas, com muito zelo e como um valor precioso. É preciso dizer que este meu valioso preconceito obteve farta aprovação e reconhecimento social. E nunca recebeu qualquer crítica!
Terminada a confissão inicial, cujo teor é semelhante ao que narrei acima, mas muito mais breve e com muito menos detalhes e comentários, os quais fui elaborando a posteriori, a fim de construir este texto, impôs-se continuar minha ponencia em espanhol. Também justifiquei essa escolha na ocasião, dizendo que ela obedecia ao respeito aos anfitriões e ao seu lugar que nos acolhia: um país de fala hispânica.
Afirmei que os brasileiros presentes tinham se deslocado a um país estrangeiro para ter uma vivência diferente da participação em um evento em território nacional. Esperavam deparar-se com nativos que falam outra língua. E o esforço de escuta e compreensão da língua do outro era previsto ao inscrever-se no evento. Isto foi dito ainda em português. Antes de passar a falar espanhol, ainda manifestei, dirigindo-me especialmente ao público brasileiro, que reconhecia a dificuldade de muitos deles para compreender a totalidade das falas. E que contava com sua atenção redobrada doravante. Também declarei que o esforço para entender o espanhol que eu falaria seria, de qualquer maneira, muitíssimo inferior ao esforço que todos nós precisaríamos e precisaremos fazer para descolonizar nosso ser, subjetividade, instituições etc. na América Latina. Desse instante em diante, passei a comunicar minhas ideias em espanhol. Durante e depois de minha exposição tive a sensação de ter feito o que deveria ter feito. O que era eticamente cabível naquele contexto.
Bastante perplexa pelo que acompanhava estar acontecendo comigo internamente naquela oportunidade, por aquelas novidades tantas que mexiam com minhas emoções e pareciam revirar-me as entranhas, também tinha um sentimento de satisfação. Percebia que algo importante tinha ocorrido ali naquele evento, que mudaria para sempre minha postura diante do mundo e de outrem. Não sabia ao claro o quê. É evidente que, muito do que estou relatando está já reconstruído e por isso muito mais claro. No momento, certamente havia um turbilhão confuso e perturbador em curso. Mas os fatos narrados correspondem ao que fiz, embora as explicações dadas e o detalhamento e os comentários sejam posteriores e envolvam reflexões.
Refletindo sobre o episódio
Para interpretar em um sentido mais amplo este episódio, preciso recuperar um choque (Cultural?
Emocional? Cognitivo? Subjetivo3? Todos eles?) que experimentei provavelmente uns dois anos antes de viver a situação que é objeto de análise neste texto e narrei na seção anterior. Mantinha com colegas e estudantes de pós-graduação, graduação e egressos de pós um grupo de estudos semanal sobre as teorias descoloniais. Estávamos iniciando esses estudos, lendo a obra El Giro Decolonial: Reflexiones para uma diversidad epistêmica más allá del capitalismo global (MIGNOLO, 2007). Os textos eram densos. Líamos em voz alta e juntos, parando e discutindo cada parágrafo, que quase sempre era surpreendente e trazia ideias novas e muito instigantes aos participantes. Em um desses encontros ocorreu o mencionado choque, causado por uma ideia lida no capítulo de Walter Mignolo (2007): ele falava das seis línguas imperiais, que seriam inglês, francês, alemão, italiano, espanhol e português. Topar com essa ideia teve em mim o efeito imediato de um soco, um verdadeiro knock out, como aquele golpe do boxe.
Por que teve em mim tão forte impacto essa ideia? Desde criança atravessei fronteiras, geográficas e linguísticas. As quatro línguas que domino (com graus diferentes de apropriação, evidentemente), estão nessa lista. Naquele momento, meu orgulho por ser quase poliglota encolheu-se ao dar-me conta que todas elas pertencem a povos colonizadores ou invasores de Nossa América ou de outros continentes. Essa sensação imediata fez com que registrasse essa ideia com letras grifadas e a evocasse com alguma frequência, compartilhando a descoberta em ocasiões em que parecia oportuno.
Meu entusiasmo de ter uma vocação para poliglota mirrou bastante com aquela descoberta. Passei a pensar que se quisesse levar a sério o estudo dessas teorias descoloniais, eu deveria considerar seriamente a possibilidade de estudar uma língua autóctone. Guarani? Quéchua? Entre quais outras poderia escolher? Esse plano ficou anotado, mas ainda não foi posto em prática, embora alguns movimentos caminhem nesse sentido, como o foco de estudos voltado para intelectuais dos continentes vítimas de colonização.
A guinada nos estudos se relaciona com um postulado das teorias decoloniais. Para os pensadores dessa vertente, seus fundadores são nomes até então desconhecidos: Wuaman Poma de Ayala e Ottobah Cugoano4. Ambos são considerados, para o pensamento descolonial, referências correspondentes aos gregos e aos romanos para os europeus e o mundo ocidental que configuraram, exploraram e dominaram.
No grupo de estudos, continuamos lendo os textos, promovendo interlocuções, difundindo esse ideário. Assumir a necessidade desse aprofundamento, vê-lo como o caminho coerente para fortalecer uma identidade latino-americana e trabalhar por uma educação que de fato possa ser emancipadora levou a priorizar esses estudos e deixar de lado os autores clássicos, ícones do norte, Inclusive os mais críticos e identificados com os povos dominados e explorados. Esses foram por alguns de nós empurrados para a penumbra, como secundários ou pouco relevantes para as causas que nos envolvem em nosso Brasil e no continente da América do Sul, como pouco importantes para as lutas necessárias do lado dos feridos pela colonização. Mignolo (2007) fala da ‘ferida colonial’5 a partir da qual precisamos nos reconstruir, ferida que é negada pela retórica da modernidade.
Retomemos o problema das seis línguas imperiais. Ao tomar contato com a caracterização feita por Mignolo, o tamanho do desafio que os habitantes do Sul da Terra, no caso aqui, os latino-americanos e, mais especificamente, nós brasileiros, agigantou-se. Considerando que a língua é constitutiva de um povo, de sua visão de mundo, de sua forma de pensar, sentir e agir e está profundamente enraizada na subjetividade dos indivíduos e coletividades, como já considerava Humboldt (2000) - um linguista europeu (prussiano) não eurocêntrico -, como sair desse marco constitutivo? Como mudar algo tão profundo? Seria possível? Como desalienar o pensamento, o corpo e o ser, as instituições e a versão da história, se a colonização foi tão profunda, política, econômica, social, epistêmica e subjetiva? Missão impossível? Sentimento de impotência? Com que armas poderíamos lutar?
Vale aqui mencionar, mesmo que de maneira minimalista, o peso do sentimento de alguns colegas do mencionado grupo de estudos - descendentes de imigrantes europeus, com formação em humanidades solidamente assentada no pensamento grego e latino. Participando das leituras, inúmeras vezes veio à tona neles certo horror!!! Apreciavam as novas ideias que descobriam. Mas, ficavam aterrorizados com o fato que parecia imperioso: questionar, suspender ou até deixar de lado os clássicos que forjaram seu pensamento, diante das evidências do comprometimento das teorias com a manutenção da colonialidade do saber e do poder, com a manutenção do subjugamento de tantos povos do mundo, classificados como sub-humanos, subdesenvolvidos, inferiores. Uma breve pitada que compõe o texto que estudávamos esclarece o susto dos leitores:
Como tantos otros ilustrados del siglo XVIII (Kant entre ellos), Rousseau condenó la esclavitud, pero tal condena no se derivaba de que se aceptara sin más la igualdad de los europeos y los esclavos africanos. La “desigualdad natural” es un principio racional suficiente para distinguir en el mismo plumazo lo injusto de la esclavitud, pero también la inferioridad de los negros africanos. (MIGNOLO, 2007, p. 43)
Como pensar fora da lógica eurocêntrica, essa matriz de poder e saber colonial (QUIJANO, 1992) que praticamente tudo continua a dominar, que criou a ciência moderna, que estabeleceu o campo da filosofia e que espalhou, na sua autoimposta e bem propagandeada ‘missão civilizatória’, uma visão de mundo supostamente universal, superior e única? As respostas são difíceis de construir e a inquietação de quem se aproxima das teorias descoloniais crescente.
Uma passagem de Quijano (1992, p. 20, grifo nosso) a esse respeito é extremamente esclarecedora e vale a pena registrá-la, pois em poucas linhas desmascara a falácia em que o mundo embarcou, acreditando no mito eurocêntrico. A propósito, afirma:
Pues nada menos racional, finalmente, que la pretensión de que la especifica cosmovisi6n de una etnia particular sea impuesta como la racionalidad universal, aunque tal etnia se llame Europa Occidental. Porque eso, en verdad, es pretender para un provincianismo el título de universalidad.
Um ponto esclarecedor trazido por Choquehuanca6 é que esta visão de mundo único ordena todos os povos e nações em uma linha, que obriga a situá-los em série: um antes, outro depois, um mais avançado, outro mais atrasado. A coexistência no tempo é, dessa forma, abolida. Trata-se de uma ordem mundial em que cada povo ocupa seu posto no ranking do desenvolvimento. Tomando consciência dessa interpretação das relações presentes no mundo globalizado parece ficar facilitado encarar a tarefa rumo a um processo descolonizador.
‘Penso onde sou’ é uma máxima de Mignolo (2010). Como poderíamos passar a pensar desde onde somos, quando estamos formados para pensar desde uma realidade e teorias predominantemente europeias que reproduzimos nas universidades, instituições milenares também gestadas na Europa7? Como deixar de pensar como pseudo europeus, se estamos mergulhados em um caldo de linguagem, cultura e instituições eurocentrado?
É no contexto dessas reflexões que posso dizer que a experiência do “portunhol” foi revolucionária para mim. E nela reverberou aquele knock out que referi ao tomar contato com a ideia das seis línguas imperiais lidas no texto de Mignolo, anos antes. Essa ideia completou seu ciclo de sentido, exercendo uma transformação importante e profunda em mim, que caracterizei neste trabalho como atingindo não só a dimensão profunda do saber mas também do ser. É como se a experiência, tendo recuperado, dos meus arquivos mentais, aquela ideia que ficara esperando uma oportunidade para promover uma mudança radical em mim, me pegasse em flagrante delito!!! Encurralada, baixei as armas do preconceito e, subitamente, ele se rendeu, caiu por terra, vencido!!! Nunca mais eu seria a mesma!!!
Aquela distância ou clivagem que costumamos manter entre a teoria e a prática, herdeira da tradição europeia, naquele momento, se desfez8. Os fios do conceito e da vivência se cruzaram, fios eletrizados, produzindo um curto circuito com efeito transformador não apenas em nível cognitivo, mas também afetivo-emocional-corporal. Um soco nas entranhas!
Mais algumas razões para que cada um se aventure a identificar e compartilhar experiências de desprendimento da retórica da modernidade, suas pequenas guinadas descoloniais
Autores próximos, mas críticos à vertente teórica descolonial, como Cusicanqui (2012), por exemplo, entre outros, têm considerado que os debates desta vertente teórica permanecerem em um nível muito abstrato, com escassas implicações na realidade, na prática. Algumas observações referem-se ao que poderia ser considerado como incoerências entre o ideário disseminado em obras, artigos e conferências, e atitudes ou posturas concretas dos autores na sua vida e profissão. As críticas não são facilmente rejeitáveis uma vez que chama a atenção dos leitores o fato de muitos desses autores residirem e trabalharem em universidades do chamado norte hegemônico, sobretudo nos Estados Unidos.
Caberia aqui pensar no contexto da chamada fuga de cérebros? A valorização encontrada no exterior, confrontada com precárias condições de pesquisa em seus respectivos países? De qualquer maneira, algumas possíveis incoerências geram desconforto para muitos adeptos dessa importante corrente de pensamento que teve uma produção significativa durante pelo menos uma década, que pode ser mais ou menos situada em torno da virada do século XX ao XXI. As produções continuam com novas gerações de autores e mesmo com os pioneiros, mas há indícios que seu momento mais fértil tenha passado. Sua difusão, entretanto, está muito ativa.
Foram, sobretudo, autoras do movimento feminista as que primeiro detectaram essa perspectiva e começaram a disseminá-la em eventos e publicações no Brasil. Também a área do direito foi pioneira. E, mais recentemente, os educadores começam a explorar a literatura disponível que, na data em que escrevo este trabalho, já é bastante volumosa. Observa-se, entretanto, que uma boa parte dos artigos publicados procuram apropriar-se dos conceitos e explicá-los, ou replicá-los. À medida que vamos tendo contato com mais textos, constatamos que eles se tornam repetitivos e revelam um caráter bastante escolar, de reprodução e disseminação.
Como quem está lendo este texto terá percebido, não trazemos muitos conceitos para socializar os principais elementos das complexas teorias descoloniais. Deliberadamente não nos somamos ao que consideramos repetitivo na produção acadêmico-científica brasileira. Abrimos, contudo um microparênteses neste momento próximo do final do texto para compartilhar uma síntese apresentada por Mignolo (2007, p. 25), com intuito de iscar o interesse daqueles que ainda não tenham se aventurado nesse tipo de leitura. O trecho revela a visão de mundo desde a perspectiva descolonial:
Mi tesis es la siguiente: el pensamiento decolonial emergió en la fundación misma de la modernidad/colonialidad como su contrapartida. Y eso ocurrió en las Américas, en el pensamiento indígena y en el pensamiento afro-cari-beño; continuó luego en Asia y África, no relacionados con el pensamiento decolonial en las Américas, pero sí como contrapartida de la reorganización de la modernidad/colonialidad del imperio británico y el colonialismo francés. Un tercer momento ocurrió en la intersección de los movimientos de descolonización en Asia y África, concurrentes con la guerra fría y el liderazgo ascendente de Estados Unidos. Desde el fin de la guerra fría entre Estados Unidos y la Unión Soviética, el pensamiento decolonial comienza a trazar su propia genealogia.
Mais auspiciosos que os trabalhos que tentam difundir a bateria conceitual do movimento, são as pesquisas que vem utilizando o referencial para interpretar dados de campo empírico, o que parece bastante interessante. Identificamos muitos trabalhos no contexto das pesquisas sobre diversidade cultural, no campo dos estudos das culturas negra e indígena, populações que estiveram no cerne da ferida colonial.
O desconforto com relação à carência de elementos que possam desencadear mudanças a partir da teoria se manteve também em nosso grupo de estudos enquanto as leituras avançavam. E levou algum tempo para identificarmos autores que experimentavam mal-estar semelhante. Em todo caso, esses limites estão longe de anular ou invalidar o esforço de pensamento e a fertilidade das ideias formuladas por esse grupo que chegou tardiamente ao Brasil, mas vem conquistando muitos adeptos.
Parecem faltar, entretanto, estratégias para por em marcha o desprendimento do qual fala Mignolo (2007) com relação à lógica da modernidade e seus discursos imperiais, em nível epistêmico e, especialmente, do ser. Identificar em si próprio e em sua coletividade os pontos em que essa energia insurgente se manifesta é importante para liberar-nos das complexas teias que nos amarram e paralisam em uma ‘servidão voluntária’ - para utilizar a expressão do jovem Éthienne de La Bóetie (1986), do século XVI - é relevante e talvez urgente. A lógica da
[…] colonialidad, escondida bajo la retórica de la modernidad, genera necesariamente la energía irreductible de seres humanos humillados, vilipendiados, olvidados y marginados. La decolonialidad es, entonces, la energía que no se deja manejar por la lógica de la colonialidad, ni se cree los cuentos de hadas de la retórica de la modernidad. (MIGNOLO, 2007, p. 24)
O que aconteceu em minha experiência poderia ser interpretado a partir dessa passagem. Deixei de acreditar no “conto de fadas”, que me fazia crer superior por dominar várias línguas, duas sem qualquer sotaque. Na situação narrada, deu-se uma inversão. Aqueles que eu, de alguma maneira considerava seres de segunda categoria por falar “portunhol”, logo humilhados, marginados (humilhados também por mim, mesmo que de maneira velada), foram deslocados para posição inversa. Fui eu a experimentar a humilhação naquele contexto em que a maioria era “portunhol”. Passei a valorizar a condição daqueles falantes e encarar minha diferença de outra maneira. A circunstância, somada às leituras, gerou essa energia de desprendimento expressa pelo autor, provocando ‘um giro decolonial’ ou, como eu prefiro traduzir para o português, uma guinada descolonial.
[…] el pensamiento decolonial es, entonces, el pensamiento que se desprende y se abre (de ahí “desprendimiento y apertura” en el título de este trabajo), encubierto por la racionalidad moderna, montado y encerrado en las categorías del griego y del latín y de las seis lenguas imperiales europeas modernas. (op. cit., p. 25)
E assim continua páginas adiante:
El giro decolonial es la apertura y la libertad del pensamiento y de formas de vida-otras (economías-otras, teorías políticas-otras); la limpieza de la colonialidad del ser y del saber; el desprendimiento de la retórica de la modernidad y de su imaginario imperial. (op. cit., p. 27, grifo nosso)
Essa limpeza da colonialidade do ser e do saber precisa ser intensificada. O aspecto menos tratado nessa literatura é provavelmente o que se refere a como promover esse desprendimento e essa limpeza que multiplique processos de descolonização nos diferentes espaços sociais e, sobretudo, nas pessoas. Não é raro que topemos com adeptos dessas teorias, cujas práticas não são condizentes com elas, continuando a reproduzir os padrões coloniais de poder em suas esferas de ação. Sabemos que é um desafio grandioso, já que fomos forjados pela matriz europeia e estamos cativos desse imaginário da colonialidade. Embora estejam ainda presentes na sociedade culturas autóctones que fazem parte de nossa identidade, como os povos indígenas e a presença negra resultante do comércio de seres humanos trazidos da África, nossos discursos e concepções sobre eles (sobre nós, pois eles são nós) ainda são discriminatórios, segregadores e requerem que nos desprendamos dos discursos e atitudes no quotidiano.
Profundamente ancorados no corpo, incorporados, como traduz o conceito de Pierre Bourdieu (2007), por isso extremamente difícil de transformar, sobretudo se contarmos apenas com a dimensão cognitiva para tal. É nesse sentido que há necessidade de identificar microprocessos de descolonização subjetiva à medida que vão sendo vivenciados. E dá-los a conhecer. É por isso que testemunhos do tipo que aqui compartilhamos podem ser importantes para a incorporação das novas ideias e do que poderíamos chamar de exorcismo das ideias que colonizaram nossas mentes. A expectativa é que a superação das incoerências seja viável por essa via, uma das possíveis, não a única. Um processo lento que passa por transformações subjetivas e que precisa ser debatido, fertilizando o movimento nas suas dimensões de ação e interação.
Últimas palavras
Eu fui surpreendida, golpeada mesmo por uma tomada de consciência que me deixou perplexa e penso que ela pode contribuir para estimular o(a) leitor(a) sensibilizado(a) pelas teorias descoloniais a rastrear, entre suas experiências, momentos marcantes que tenham operado choques epistêmicos e subjetivos equivalentes em poder transformador a este que narrei.
O esforço em descrever, compartilhar, publicar experiências subjetivas de interesse coletivo, como penso ser esta que vivenciei, parece-me importante. Sobretudo para aqueles envolvidos no campo da Educação, da formação humana, que mantêm uma luta contínua entre os objetivos de conservar, preservar e transmitir tradições e valores e, ao mesmo tempo, acolher, reconhecer e produzir o novo, o disruptivo, o insurgente, o diferente: transformar! Está feito o convite e esperamos interlocução com relação ao texto exposto, com o qual me aventuro e sinto em risco.