Introdução
O direito à educação está previsto na Constituição da República Federativa do Brasil (CF/88) como direito social fundamental (art. 6º) e, como tal, requer a criação de políticas públicas para sua efetivação (DUARTE, 2004). A CF/88 prevê a obrigatoriedade de o Estado promover a Educação Infantil em creche e pré-escola (BRASIL, 1988). Trata-se de um direito das crianças de zero a cinco anos1 de idade, também previsto no art. 4º, II, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB 9.394/1996). É a primeira etapa da Educação Básica (BRASIL, 1996) e visa o desenvolvimento integral das crianças. Também é prevista como direito dos trabalhadores, conforme art. 7º, XXV, da CF/88. (BRASIL, 1988)
O reconhecimento do direito à educação enquanto um direito social humano e fundamental é fruto de um processo de lutas e conquistas. Apresenta-se como necessário para o exercício da cidadania, tendo nascido para a proteção do homem frente às ameaças que sofre com o desenvolvimento da sociedade (BOBBIO, 1992). Enquanto direito social, visa a redução das desigualdades, igualando o status dos indivíduos (MARSHAL, 1967; SADEK, 2013), configurando-se, ainda, como um fim social no ordenamento jurídico brasileiro, o que garante seu atendimento com a máxima prioridade (ZANETI JUNIOR. 2013; JACOB, 2013). A ausência de sua prestação pelo Poder Público ou sua prestação de forma desigual configura sua violação, sendo possível exigi-lo do Estado inclusive perante o Poder Judiciário (LOPES, 2002; ABRAMOVICH, 2005), o que implica em sua justiciabilidade - conceituada como a capacidade de se exigir sua garantia junto ao Poder Judiciário, quando não atendido adequadamente pelos poderes competentes (PANNUNZIO, 2009). “Este reconhecimento implica na obrigação do poder público de garantir a educação visando a igualdade das pessoas e, por outro lado, garante ao interessado o poder de buscar no judiciário a sua concretização.” (CURY; FERREIRA, 2010)
Esse estatuto de fundamentalidade dos direitos sociais e, em particular, do direito à educação, atribui-se também ao direito à Educação Infantil. Historicamente deixada ao encargo dos órgãos de assistência social, esse nível educacional apenas foi reconhecido como direito das crianças e dos trabalhadores na CF/88, após diversas lutas e reivindicações populares de diferentes atores sociais. A LDB integrou-a como etapa educacional, reafirmando a gratuidade prevista na Constituição (CURY, 1998). Essas previsões legais foram corroboradas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), reforçando-se que a educação infantil deve ser atendida com absoluta prioridade (SILVEIRA, 2014), e pelo Marco Legal da Primeira Infância, que prevê a Educação Infantil como uma das áreas prioritárias para a infância (BRASIL, 2016c).
Reconhecer a educação infantil enquanto um direito significa dizer que é dever do Estado garanti-la (RIZZI; XIMENES, 2010). Contudo, segundo dados de 2014 do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), 89,6% das crianças entre quatro e cinco anos frequentavam a pré-escola e 33,3% das crianças entre zero e três anos frequentavam a creche (BRASIL, 2016a), o que indica a necessidade de expansão dessa etapa da educação, dado o fato de que tal direito não tem sido efetivado para todos. Até o ano de 2005 haviam decisões judiciais indicando que a educação infantil não se tratava de um dever do Estado, estando o acesso limitado às vagas disponibilizadas, conforme demonstram, por exemplo, as pesquisas de Rizzi e Ximenes (2010), Silveira (2010), Graciano, Marinho e Fernandes (2006) e Marinho (2009).
No entanto, no ano de 2005, o Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento do Recurso Extraordinário nº 436.996, reconheceu o dever do Poder Público de ofertar vagas na Educação Infantil a todas as crianças de até seis anos de idade que assim necessitassem, sendo dever da Administração a disponibilização de vagas de acordo com a procura (BRASIL, 2005). Essa decisão serviu como precedente para as decisões proferidas em casos semelhantes a contar daquela data.
A justiciabilidade, portanto, do direito à Educação Infantil, aliada a outros fatores, acabou colocando em curso, em todo o Brasil, diversas ações visando justamente a obtenção de vagas na creche e na pré-escola (SILVEIRA, 2014). Dessa forma, diversas vagas foram e são abertas em virtude de decisões judiciais que assim determinam. Uma vez que o Estado concretiza os direitos sociais por meio da implantação de políticas públicas (DUARTE, 2004; DUARTE, 2006), descumprido esse dever estatal, é direito do cidadão requisitar seu cumprimento, quer individualmente quer coletivamente, perante o Poder Judiciário, inclusive no âmbito do direito à educação: “A ausência de política pública que garanta o processo educacional, realizada de forma sistemática pela escola, acaba por acarretar medidas judiciais que interferem no cotidiano educacional.” (CURY; FERREIRA, 2010, p. 101) Por vezes, esses questionamentos levados ao conhecimento do Poder Judiciário acabam gerando a interferência desse Poder nas políticas. Quando essa interferência de atores do sistema de justiça acaba modificando a política pública, ou deslocando as discussões a seu respeito para essa esfera, ocorre o fenômeno da judicialização. (TATE; VALLINDER, 1995; BARROSO, 2009; SILVEIRA, 2013; SOUSA SANTOS, 2011)
Dessa forma, apresentam-se como relevantes as pesquisas que se prestem a investigar esse fenômeno, como apontado por Machado e Oliveira (2001), Silveira (2008) e Feldman e Silveira (2017). Ainda Barreiro e Furtado (2015) esclarecem que se faz necessário um aprofundamento nos estudos que relacionam a judicialização com as políticas públicas, uma vez que o Poder Judiciário tem substituído os demais poderes na formulação de políticas públicas. Portanto, são necessárias e urgentes as pesquisas que aliem a análise da judicialização às políticas públicas. Nesse sentido, o presente ensaio objetiva analisar alguns conceitos e conteúdos que permeiam a questão da judicialização das políticas de Educação Infantil, visando auxiliar futuras pesquisas que possam contribuir empiricamente com a área.
A judicialização das políticas públicas
A judicialização é um fenômeno que vem ocorrendo em muitos países democráticos e, embora suas causas variem de país para país, é possível encontrar algumas determinantes gerais. Tate e Vallinder (1995) apresentam como condições necessárias à judicialização: a democracia, a separação dos poderes, os direitos políticos, o uso dos tribunais pelos grupos de interesse e pela oposição e a inefetividade das instituições majoritárias. Sousa Santos (2011), por sua vez, ressalta que uma das causas da interferência do Poder Judiciário reside na ausência da realização, pelo Poder Executivo das prestações sociais que compõem seu âmbito de dever legal.
Existe ainda um questionamento a respeito da possibilidade de decisões tomadas por políticos eleitos democraticamente serem substituídas por decisões vindas das cortes judiciais (TATE; VALLINDER, 1995). Isso porque a escolha de priorizar determinado direito ou buscar um fim constitucional específico nada mais é do que uma decisão política (VIOLIN, 2012). Mas a questão reside também em verificar se o Poder Executivo tem liberdade para realizar os fins constitucionais que necessitam de políticas públicas para seu atendimento, optando por uns em detrimento a outros.
A efetivação dos direitos sociais, mediante a realização de políticas públicas, depende de um conjunto de atos que são próprios aos poderes Executivo e Legislativo, tais como leis que prevejam o programa necessário à sua concretização, orçamento - para o qual são necessárias leis prevendo a despesa e sua execução pelo Poder Executivo -, além de todos os atos administrativos necessários à sua execução (LOPES, 2002). No entanto, uma decisão judicial de controle sobre determinada política pública não necessariamente invalida ou controla os atos que a compõem. (COMPARATO, 1998)
Há, assim, diversos argumentos contrários à judicialização da política e, especialmente, das políticas de Educação Infantil. Dentre os principais, encontram-se a afronta ao princípio da separação dos poderes, a discricionariedade administrativa e a teoria da reserva do possível, como apontados nas pesquisas de Silveira (2014), Corrêa (2014), Silveira (2015) e Scaff e Pinto (2016).
Afigura-se importante afirmar que a legitimidade democrática do Poder Judiciário reside na própria constituição e nas leis (VIOLIN, 2012; ZANETI JUNIOR, 2013). Todo o Poder é uno e “emana do povo“, conforme prevê o art. 1º, parágrafo único, da CF/88, “sendo apenas distribuídas as funções pelos diversos órgãos do Executivo, do Legislativo e do Judiciário.” (ZANETI JUNIOR, 2013, p. 50). Dessa forma, tem o Poder Judiciário força, na Constituição, para controlar questões que estão ao seu alcance nos termos do ordenamento jurídico brasileiro.
Sendo assim, serão analisados na sequência dois pontos apresentados como obstáculos, nos processos judiciais, ao controle judicial das políticas de Educação Infantil: o princípio da separação dos poderes, a partir do qual se discutirá a discricionariedade administrativa, e a teoria da reserva do possível, que como já apontado trata dos principais argumentos utilizados pela Administração para invocar a impossibilidade de interferência do Poder Judiciário nas políticas de Educação Infantil.
O princípio da separação dos poderes
Previsto na CF/88 em seu artigo 2º (BRASIL, 1988), disciplina que cada um dos três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) possui funções próprias a eles inerentes e que existem limites para o exercício de um Poder sobre o outro, havendo situações que não são passíveis de controle externo (JACOB, 2013). Em sua concepção clássica, esse princípio foi erigido em torno da lei: um Poder a faz, outro a aplica e o terceiro aplica contenciosamente (FERREIRA FILHO, 1994). Caberia ao Poder Judiciário o controle da correta aplicação da lei, sendo o juiz um personagem neutro a quem é conferida a função de “boca da lei” (SADEK, 2013, p. 11). Jacob (2013, p. 239) defende que “se faz imperiosa a delimitação dos controles a fim de evitar a intromissão de um no que se poderia chamar de núcleo essencial do outro.” Daí surgem as alegações de que o Poder Judiciário, ao efetuar o controle das políticas públicas, ofenderia ao princípio da separação dos poderes, mediante ingerência em atividade eminentemente administrativa.
Contudo, há uma interação e complementaridade no exercício das funções do Estado quando esse princípio é interpretado conjuntamente aos demais preceitos constitucionais. A Constituição prevê a proteção dos direitos fundamentais, inclusive conferindo-lhes o status de cláusula pétrea2; sendo assim, o princípio da separação dos poderes também está vinculado à proteção máxima desses direitos (ARAÚJO, 2013). É “mais apropriado se falar em noções de colaboração, harmonia e independência orgânica dos poderes” (VICTOR, 2011, p. 1), conforme a previsão inserta no art. 2º da CF/88 (BRASIL, 1988). “Logo, os três poderes devem harmonizar-se para que os objetivos fundamentais do Estado sejam alcançados.” (GRINOVER, 2013, p. 128)
Taylor (2007) esclarece que a forma como os Poderes estão disciplinados na CF/88 indica que há uma sobreposição de suas funções, conforme se verifica no Quadro 1.
Instituição | |||
---|---|---|---|
Função | Congresso | Executivo | Judiciário |
Legislativa | Faz leis. | Recomenda leis; veta leis; cria regulamentos e medidas provisórias com força de leis. | Revisa as leis para determinar ou julgar a intenção legislativa. |
Executiva | Derruba vetos presidenciais; veta medidas provisórias. | Aplica e implementa as leis. | Revisa os atos executivos; restringe as ações executivas por via de liminar. |
Judicial | Propõe e julga processos de impeachment; instaura Comissões Parlamentares de Inquérito. | Nomeia ministros (com subsequente aprovação legislativa). | Interpreta e julga a constitucionalidade das leis. |
Fonte: TAYLOR (2007, p. 250)
De acordo com a prescrição constitucional de funções para cada um dos três poderes, sobrepõem-se a todos funções legislativas, executivas e judiciais. Embora haja para cada Poder correlato a preponderância no exercício de uma dessas funções, não é possível dizer que as mesmas são exclusivas de apenas um deles. O próprio controle da constitucionalidade das leis previsto na Constituição já indica a possibilidade de controle, pelo Judiciário, dos atos dos demais poderes (WATANABE, 2013) que, conforme apontado por Vallinder (1995), também se trata de uma forma de judicialização. Isso não significa que o Judiciário irá atuar diretamente, ou usurpar as funções próprias dos demais Poderes. Mas, nesse aspecto, prevê que é dever do Judiciário exercer a função de proteger os direitos fundamentais mediante o controle dos atos exercidos tanto pelo Executivo quanto pelo Legislativo, caso esses atos se desviem dos fins constitucionais propostos, especialmente considerando que a Constituição é voltada à concretização de seus fins sociais, que em determinados casos só é possível por meio de políticas públicas eficazes. (ARAÚJO, 2013)
A própria CF/88 prevê que cabe ao Poder Judiciário o controle de qualquer ameaça ou lesão a direito (art. 5º, XXXV) (BRASIL, 1988). Portanto, todo e qualquer ato, quer seja comissivo quer seja omissivo, realizado por outros poderes que dificulte ou impeça o exercício pleno de um direito pelo particular pode ser objeto de controle judicial (VICTOR, 2011). Silveira (2013) ressalta que, nessa ótica, não se trata de ingerência do Poder Judiciário sobre outros poderes, mas sim de cumprimento de sua função constitucional. Não foge, portanto, da alçada do Poder Judiciário o controle das políticas públicas, uma vez que as mesmas são meios de efetivação de direitos fundamentais. Como consequência, havendo lesão a direito fundamental, cabe ao Judiciário a interferência nas políticas públicas. (CANELA JUNIOR, 2013)
É certo que há, nos demais poderes, um âmbito de discricionariedade próprio ao exercício de suas funções. Inclusive o campo das políticas públicas é justamente o “ambiente da discricionariedade administrativa.” (DANIEL, 2013, p. 113) A discricionariedade é o Poder que o administrador possui para atuar livremente, dentro dos limites legais: “[…] a lei deixa certa margem de decisão diante do caso concreto, de tal modo que a autoridade poderá optar por uma dentre várias soluções possíveis, todas válidas perante o direito.” (PIETRO, 2001, p. 196) O exercício dessa discricionariedade não pode impedir ou atrapalhar o exercício dos direitos fundamentais - sendo que, nesse caso, abre-se a possibilidade da interferência do Judiciário, como defendido até aqui (ZANETI JUNIOR, 2013). A discricionariedade não atribui total liberalidade para que o administrador realize as políticas públicas como bem desejar, ainda que seja ele quem melhor conheça a realidade administrativa e financeira do ente (DANIEL, 2013).
Nesses termos, a Educação Infantil, como política pública essencial ao atendimento das necessidades das crianças, deve ser entendida como de absoluta prioridade e, portanto, não se trata de discricionariedade, mas efetivo dever do Poder Público (SILVEIRA, 2014). Esse mesmo autor pontua que havia decisões exaradas pelo TJSP reconhecendo a discricionariedade do Poder Público na oferta da Educação Infantil. Essa situação foi modificada quando o STF se pronunciou no sentido de confirmar a interpretação de que a oferta da educação infantil constitui dever do Estado e não compõe o âmbito de discricionariedade administrativa, como visto sendo reconhecido como verdadeiro direito público subjetivo (BRASIL, 2005) O STF, aliás, reconheceu que a vinculação constitucional dos municípios à oferta da Educação Infantil representa um limitador de sua discricionariedade, por se tratar sua oferta de norma vinculante ao Poder Público. (BRASIL, 2006)
No entanto, isso não impede que se reconheça que há limites também ao Poder Judiciário (SILVEIRA, 2013), pelo entendimento de que há funções que são específicas de cada ente estatal. Nessa seara, “não é tarefa da alçada do Judiciário definir políticas públicas, tampouco substituir o administrador na escolha das prioridades orçamentárias” (DANIEL, 2013, p. 119), motivo pelo qual não é autorizado a esse Poder sobrepor-se aos demais sob a alegação de estar exercendo legítimo controle judicial.
Essa concepção foi adotada e aplicada ao direito à Educação Infantil pelo STF no julgamento do RE 436.996, ao esclarecer que, embora a elaboração e implementação de políticas públicas seja função própria dos poderes Executivo e Legislativo, cabe ao Judiciário tal incumbência quando a ação ou omissão daqueles poderes comprometerem a efetivação dos direitos dotados de envergadura constitucional. (BRASIL, 2005)
Realizada a discussão relativa ao princípio da separação dos Poderes, bem como sua aplicabilidade nos casos em que se discute judicialmente o direito à Educação Infantil, passa-se a abordar uma segunda limitação apresentada ao seu controle judicial: a teoria da reserva do possível.
A teoria da reserva do possível
Essa teoria tem sua origem na Alemanha, na década de 1970, preconizando que “a efetividade dos direitos fundamentais sociais dependeria da disponibilidade financeira do Estado.” (CANELA JUNIOR, 2013, p. 232) Nesses termos, não havendo previsão orçamentária, não poderia o Judiciário determinar a realização da política, em virtude da ausência de recursos a viabilizarem seu cumprimento, especialmente ante as limitações próprias dos orçamentos (SILVEIRA, 2013). A reserva do possível, portanto, constituiria limite fático e jurídico ao cumprimento dos direitos fundamentais (SARLET, 2008). Contudo, como ressalta Ximenes (2014, p. 156), essa impossibilidade deve ser demonstrada objetivamente, assumindo “o ônus probatório da ausência de condições materiais para implementação do direito em questão.”
Tendo em vista que a realização de políticas públicas como forma de satisfazer os direitos sociais exige a alocação de recursos por parte do Estado, a teoria da reserva do possível pode se constituir tanto como um limite fático - inexistindo recursos em caixa não é possível realizar qualquer investimento -, quanto jurídico - o recurso existe, mas na previsão orçamentária o legislador o destinou para a efetivação de algum outro direito. Com relação ao primeiro limitador, o STF sinalizou, em decisão monocrática proferida no ano de 2004, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 45, que poderia se constituir em um argumento válido quando, de fato, inexistem os recursos (BRASIL, 2004). No entanto, esse argumento tem sido utilizado de forma genérica para justificar o descumprimento dos direitos fundamentais sociais. (SARLET, 2008)
É necessário, portanto, problematizar a questão: se o recurso existe, mas foi destinado de forma diversa na previsão orçamentária, verifica-se uma decisão política em relação à alocação dos recursos que, caso não contemple como prioridade a efetivação dos direitos sociais, não realiza as metas insertas no texto constitucional (JACOB, 2013). Trata-se de opção política dos demais poderes que contraria a Constituição. Considerando isso, o reconhecimento da aplicabilidade da teoria da reserva do possível iria de encontro com a noção de que o orçamento público deve ser realizado visando a consecução dos fins sociais insertos no art. 3º da CF/88 (CANELA JUNIOR, 2013). Jacob (2013) ainda ressalta que os direitos sociais estão devidamente delineados como prioritários na Carta Magna, tendo o constituinte, inclusive, apontado os caminhos a serem seguidos e a disponibilidade orçamentária a eles vinculada, em diversos casos. Portanto, não se afigura razoável decisões de política orçamentária que não prevejam o cumprimento prioritário dos direitos sociais.
Nessa ótica, portanto, a reserva do possível não seria oponível ao direito à Educação Infantil quando os recursos existentes são destinados a rubricas diversas, uma vez que o próprio STF a reconheceu como objetivo constitucional, tratando-se de “um nítido programa a ser implementado mediante adoção de políticas públicas conseqüentes e responsáveis” (BRASIL, 2006, p. 1536-1537, grifos no original), devendo ser preservado enquanto mínimo existencial. A noção do mínimo existencial trata dos direitos fundamentais que compõem o núcleo básico para garantir a dignidade do cidadão (WATANABE, 2013; SARLET; SAAVEDRA, 2012), abaixo do qual haveria sua flagrante violação (HEUKO, 2012). Nesses casos, a reserva do possível não poderia se opor à imediata satisfação do direito. (GRINOVER, 2013)
Também de origem alemã e surgida no início da década de 1950, o mínimo existencial contempla a ideia de que “sem os recursos materiais para uma existência digna, a própria dignidade da pessoa humana ficaria sacrificada” (SARLET; SAAVEDRA, 2012, p. 73), não apenas como um instituto de defesa, mas também como um direito às prestações positivas necessárias à garantia da vida. Portanto, o mínimo existencial corresponderia às condições mínimas que deveriam ser atendidas pelo Estado para a garantia da existência digna do cidadão e para sua integração na sociedade (SARLET; FIGUEIREDO, 2013). Sarlet e Figueiredo (2013) esclarecem que o mínimo existencial não está vinculado apenas à superação do limite da pobreza absoluta, o que também é defendido por Sarlet e Saavedra (2012), sendo necessário assegurar a plena fruição dos direitos fundamentais e o pleno desenvolvimento da personalidade: “Não deixar alguém sucumbir à fome certamente é o primeiro passo em termos de garantia de um mínimo existencial, mas não é - e muitas vezes não o é sequer de longe - o suficiente.” (SARLET; FIGUEIREDO, 2013, p. 23)
A grande controvérsia reside em compreender o que integraria o chamado mínimo existencial. Não há uma concordância entre os estudiosos do tema, apenas o reconhecimento de sua vinculação à dignidade da pessoa humana (ARAÚJO, 2013). Sarlet e Figueiredo (2013) esclarecem que ele deve guardar relação com a compreensão constitucional do necessário para garantia da vida e da dignidade da pessoa humana, o que corresponde à garantia de uma “vida saudável” (SARLET; SAAVEDRA, 2012, p. 24). Indicando que o mínimo existencial deve ser identificado como o conteúdo essencial a ser protegido em determinado contexto, Ximenes (2014, p. 155, grifos no original) pondera:
Não há, nesse sentido, um conteúdo mínimo existencial absoluto do direito fundamental reconhecido na forma de princípio, mas tão somente um conteúdo essencial protegido em determinado contexto, situado em algum ponto do longo caminho entre o direito em si e o direito definitivo e sendo movido por estratégia de progressiva delimitação. Ou seja, a não ser que por mínimo existencial se entenda o mesmo que conteúdo essencial, no sentido ora proposto, não haveria diferença conceitual relevante entre esses conceitos.
Muitas vezes, os próprios direitos sociais indicam dimensões do mínimo existencial, embora não possam ser a ele reduzidos. Contudo, “tal constatação não afasta a circunstância de que, quando for o caso, este próprio conteúdo existencial (núcleo essencial = mínimo existencial) não é o mesmo em cada direito social […]” (SARLET; FIGUEIREDO, 2013, p. 26).
Em vista disso, surge o questionamento de qual conteúdo do direito à educação comporia o mínimo existencial. Segundo Duarte (2004) e Watanabe (2013), o mínimo existencial no caso do direito à educação estaria limitado à Educação Básica obrigatória, o que excluiria a creche desse âmbito de proteção. No entanto, como apontam Sarlet e Figueiredo (2013, p. 26-27),
[…] a impossibilidade de se estabelecer, de forma apriorística e acima de tudo de modo taxativo, um elenco dos elementos nucleares do mínimo existencial, no sentido de um rol fechado de posições subjetivas negativas e positivas correspondentes ao mínimo existencial. […] O que compõe o mínimo existencial reclama, portanto, uma análise (ou pelo menos a possibilidade de uma averiguação) à luz das necessidades de cada pessoa e de seu núcleo familiar, quando for o caso. Tudo isso, evidentemente, não afasta a possibilidade de se inventariar todo um conjunto de conquistas já sedimentadas e que, em princípio e sem excluírem outras possibilidades, servem como uma espécie de roteiro a guiar o intérprete e de modo geral os órgãos vinculados à concretização dessa garantia do mínimo existencial.
Assim, verifica-se que ainda há espaço para discussões no sentido do conteúdo do direito à educação que integra o mínimo existencial, sem, contudo, limitar seu âmbito de proteção a esse conceito, como bem pontua Ximenes (2014). Retoma-se, então, a ideia de que o mínimo existencial é mais um fundamento, mas não o único, para o afastamento da teoria da reserva do possível. Araújo (2013, p. 99) esclarece que “a proteção ao mínimo existencial no âmbito positivo decorre do status de fundamentalidade dos direitos sociais.” O núcleo de direitos que compõem o mínimo existencial, portanto, não pode ser atingido pelo Estado ou pela sociedade (SARLET; SAAVEDRA, 2012), motivo pelo qual não lhe é oponível a reserva do possível.
Ademais, o STF, ao reconhecer o direito à Educação Infantil, esclareceu que, tratando-se essa etapa da educação enquanto um dever do Estado, este só se desincumbe do ônus quando propicia o “acesso pleno ao sistema educacional” (BRASIL, 2006, p. 1.534) aos titulares desse direito, possibilitando a judicialização das políticas de Educação Infantil quando da sua não garantia.
As possibilidades de interferência do poder judiciário
Superada a questão relativa à possibilidade da judicialização das políticas, surge a questão: até que ponto pode o judiciário interferir?
Abramovich (2005) indica que, caso não tenha sido adotada nenhuma medida a fim de assegurar determinada política pública prevista constitucionalmente, cabe ao Judiciário dar ciência da omissão ao Poder competente para que elabore a medida cabível. No sistema de garantias brasileiro (art. 5º, LXXI da CF/88) há, inclusive, previsão do instrumento do mandado de injunção, que é a ação cabível “sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania.” (BRASIL, 1988). Contudo, nesse caso, a recente lei 13.300 de 2016, prevê que, não sendo suprimida a mora legislativa no prazo concedido pelo Poder Judiciário, poderá este estabelecer as condições necessárias ao exercício dos direitos, inclusive com efeitos erga omnes, ou seja, a todos que são prejudicados pela ausência da legislação, e não apenas às partes do processo. (BRASIL, 2016b)
Ao prever a necessária determinação do Judiciário para que o Poder competente implemente a política cabível, Abramovich (2005) ressalta que essa alternativa se justifica no diálogo que deve existir entre os poderes, entendendo que o Judiciário somente está autorizado a suprir a omissão diretamente nos casos de grave ofensa ou violação aos direitos fundamentais e quando ausente a colaboração dos demais poderes. O mesmo autor ainda pontua que, nos casos em que apenas há um descumprimento por parte da Administração de obrigações previamente fixadas em lei, não se está diante do controle da política, tratando-se apenas de um caso em que será determinada a aplicação da lei (ABRAMOVICH, 2005), o que também é defendido por Sousa Santos (2011). Nos casos em que o Judiciário estiver diante de atos praticados pelos demais poderes que não estão em conformidade com os fins constitucionais, a solução deveria compreender o reenvio do ato ao Poder competente para a reformulação da política, em virtude do claro sentido político presente nessas decisões. Ou, ao menos, “estabelecer mecanismos de comunicação, debate e diálogo que lembrem aos Poderes Públicos os compromissos assumidos, forçando-os a incorporar nas prioridades de governo medidas destinadas a cumprir suas obrigações.” (ABRAMOVICH, 2005, p. 209) O objetivo, pois, é alcançar com a máxima efetividade a satisfação dos direitos fundamentais sociais.
Contudo, em diversos casos o Judiciário, em lugar de proporcionar esse debate com os demais poderes, tem imposto tutelas específicas: determinações a serem cumpridas apontando a política pública a ser realizada (ZANETI JUNIOR, 2013). Embora haja espaço para essa opção, nem sempre ela é a mais viável. É necessário reconhecer que há limitações, especialmente vinculadas a detalhes técnicos, que não são do âmbito próprio de conhecimento dos magistrados (DANIEL, 2013; CORTEZ, 2013). Ao analisarem as decisões do STF em demandas relacionadas ao direito à educação, Scaff e Pinto (2016, p. 444) salientaram a falta de “aprofundamento teórico” e do necessário “diálogo com a área educacional” da corte para as decisões proferidas. Nesse contexto, embora as políticas públicas sejam passíveis de controle pelo Judiciário, cabe a este Poder reconhecer as limitações de sua ingerência frente ao caso concreto (SILVEIRA, 2013), não interferindo no âmbito de discricionariedade dos demais poderes caso essa prerrogativa não tenha sido exercida em afronta aos direitos fundamentais e aos fins constitucionais. O Poder Judiciário somente poderá intervir nas políticas públicas caso fique “demonstrada a irrazoabilidade do ato discricionário praticado pelo Poder Público, devendo o juiz pautar sua análise em atenção ao princípio da proporcionalidade.” (GRINOVER, 2013, p. 138) Nessa perspectiva, a judicialização da política não deve ser vista como o protagonismo indevido do Poder Judiciário; antes, deve ser analisada sob a ótica do cumprimento dos direitos fundamentais. (ZUFELATO, 2013)
No julgamento da ADPF nº 45, na qual se questionava o veto realizado pelo presidente da república à lei de diretrizes orçamentárias, o STF sinalizou seu papel de protetor dos direitos econômicos, sociais e culturais a fim de manter a ordem constitucional. Indicou que cabe ao Judiciário intervir nessas questões quando há ofensa aos direitos fundamentais previstos constitucionalmente, não obstante não seja sua função própria a formulação e a implementação de políticas públicas. Abordou ainda a questão da reserva do possível, confirmando a tese que não é dado ao Estado imiscuir-se do cumprimento das ordens constitucionais sob a alegação de ausência de recursos, exceto mediante motivo justo e comprovado, especialmente quando é a própria Administração que destina as verbas orçamentárias, como também considerando-se que o orçamento deve ser pensado justamente visando o atingimento dos fins sociais insertos na Constituição (BRASIL, 2004). Referida decisão tem servido de precedente para fundamentar diversas outras decisões proferidas nas mais variadas instâncias do Poder Judiciário no país.
Considerações finais
À guisa de conclusão, é possível afirmar que há casos nos quais é permitido ao Poder Judiciário julgar questões relacionadas às políticas educacionais, notadamente quando a Administração não tem dado efetividade ao direito à educação e, mais especificamente, o direito à Educação Infantil. Contudo, como apontado neste trabalho, há limitações que deverão ser observadas pelo Poder Judiciário para que não substitua a Administração Pública no exercício de sua função constitucional.
Sendo assim, aponta-se a necessidade de pesquisas que se destinem a investigar a interferência do Poder Judiciário na discricionariedade administrativa, investigando quais os limites de suas decisões, para que não haja ingerência indevida e ofensa ao princípio da separação dos poderes. Da mesma forma, pesquisas mais empíricas poderiam averiguar se, de fato, vem ocorrendo o fenômeno da judicialização nas demandas que exigem a consecução do direito à Educação Infantil perante o Poder Judiciário. Isso porque, como apontado neste trabalho, a judicialização é o deslocamento das decisões tomadas tradicionalmente pelos poderes eleitos para o sistema de justiça (TATE; VALLINDER, 1995; BARROSO, 2009; SILVEIRA, 2013), sendo que a aplicação das previsões legais, sem que haja deslocamento de decisões políticas para esse Poder, não se configuraria como judicialização (SOUSA SANTOS, 2011). Portanto, afigurar-se-ia relevante investigar em que medida as decisões do Poder Judiciário envolvendo o direito à Educação Infantil geram judicialização ou apenas a garantia de direitos nos termos previstos em lei.
Essas questões também abrem espaços para outras pesquisas que possam indicar em que medida a judicialização das políticas educacionais se configura como um fenômeno positivo ou negativo (VICTOR, 2011). É nessa seara que se faz necessário que a litigância do direito à Educação Infantil se dê de forma estratégica (RIZZI; XIMENES, 2012), tendo em vista a existência de casos nos quais as decisões do Poder Judiciário muitas vezes desconsideram as discussões que são realizadas no campo educacional