Corpos leitores: infância e escola
El verbo leer, como el verbo amar y el verbo soñar, no soporta "el modo imperativo". Yo siempre les aconsejé a mis estudiantes que si un libro los aburre lo dejen; que no lo lean porque es famoso, que no lean un libro porque es moderno, que no lean un libro porque es antiguo. La lectura debe ser una de las formas de la felicidad y no se puede obligar a nadie a ser feliz.
Jorge Luis Borges
Nesta escrita propomos abordar a literatura em sua integração às artes - que, para Nancy (2014)2 constituem os distintos nomes dados à poesia e seus relatos - para juntas pensarmos a poética da palavra como palavra viva e como podemos acolher e compreender o acontecimento de sua presença nos processos de escolarização das crianças. Uma presença literária que, se podemos considerar não anunciada nos currículos escolares, esquecida como intenção pedagógica em tempos de competitividade econômica, não implica desconsiderar a "energia poética" (ZUMTHOR, 2007) que pulsa na voz e na escuta de palavras que são a "'rítmica' respiratória" (JEAN, 1996, p. 192) de um corpo por elas possuído.
Se a literatura na escola permanece insistentemente à margem, fragilmente ligada ao ensino das línguas, raramente atrelada às demais artes, sejam elas a dança, a música, o teatro, o cinema ou as artes visuais, as crianças ainda brincam e jogam com qualquer coisa e, se divertindo muito, aprendem "no corpo, na sensibilidade, na inteligência bem como na imaginação, que a liberdade da linguagem se conquista" (JEAN, 1996, p. 14). Apesar da leitura literária ser geralmente instrumentalizada como pressuposto para tarefas escolares, apesar da ampla tendência de considerar a literatura como mero meio para vencer currículos e alcançar objetivos pedagógicos, ainda assim permanece a interrogação: o que seria de nós sem as histórias?
As histórias e os relatos3 são responsáveis por nos tornarmos quem somos. Como afirma Manguel (2017, p. 13), "até onde sabemos, somos a única espécie para a qual o mundo parece ser feito de histórias". Tal qual o Arlequim, de Michel Serres (1993, p. 3), que nunca acaba de se desfolhar ou de escamar suas capas cambiantes, carregamos conosco as múltiplas camadas das histórias que nos compõem. Bachelard (1988, p. 93) diria que "somente pela narração dos outros é que conhecemos a nossa unidade. No fio de nossa história contada pelos outros, acabamos, ano após ano, por parecer-nos com nós mesmos". Fios de histórias antecedem histórias, narrativas tecem e fazem advir sentidos, impulsionam e pulsam sentidos que não se reduzem aos fatos nem os supõem, pois aí o que é impulsionado e o que pulsa é mundo.
O mundo é um mundo de relatos, de recitações de relatos. A começar por todos esses relatos do mundo que todas as culturas sempre recitaram e das quais a nossa 'literatura' é em suma ela mesma, por sua vez, o relato: ela se esforça em contar onde e como estamos, não somente com esse fato do mundo e de nosso estar-no-mundo, mas o modo como nos reportamos aos nossos próprios relatos do mundo, à sua antiguidade e à sua perda, ao que nos parece por isso com ilusões ingênuas ou promessas frustradas (NANCY, 2016, p. 77).
Contamos histórias porque as vidas humanas têm necessidade de serem relatadas e merecerem ser contadas (RICOEUR, 1994, p. 116). A única maneira de dizermos quem somos é narrando a nós mesmos. Narramos para perpetuar nossas experiências, para compartilhar o vivido, para diminuir nossa angústia e para deixar como herança para nossos filhos, netos e amigos a história pela qual gostaríamos de ser lembrados. Narramos por uma necessidade intrínseca de que o outro conheça a nossa versão do que nos sucede, do que nos constitui e do que fizemos. Narramos para amenizar nossos equívocos e para exaltar nossas vitórias. Narramos para não esquecer quem somos, para nos situarmos na existência e para não nos perdermos de nós mesmos.
As narrativas nos constituem desde nossos começos, desde a infância. Uma pergunta complexa como "quem é você?", destinada a uma criança, provavelmente receberá uma resposta simples e direta: o seu nome. Porém, se tivermos um pouco de tempo e a disponibilidade de realmente escutá-la, é muito provável que ela nos conte uma história (GHIRARDELLO, 2015). Uma história verídica, uma história inventada, uma história que foi tantas vezes repetida para ela ou sobre ela, que talvez tenha se tornado verdade, uma história de outrem, que ela gostaria que fosse a sua. Histórias.
Para Benjamin (1996, p. 198), narrar é intercambiar experiências e elas se perdem quando as histórias não são mais conservadas. Se perde porque ninguém mais fia sonhos ou tece ideias enquanto ouve a história. No ensaio Experiência e Pobreza (2011), o autor refere-se à Primeira Guerra Mundial como uma destas situações em que o homem moderno perde a capacidade de intercambiar experiências, uma guerra de trincheiras onde uma "geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos viu-se abandonada, sem teto, numa paisagem diferente de tudo, exceto nas nuvens, e em cujo centro, num campo de forças de correntes e explosões destruidoras, estava o frágil e minúsculo corpo humano" (BENJAMIN, 1996, p. 115). A geração que sobreviveu a todas as atrocidades da guerra retorna emudecida, incapaz de narrar suas próprias experiências.
A experiência não é abstrata. Ela tem voz, mas também emudece. Pode ser narrada ou pode tornar-se indizível. A experiência é histórica e faz história. É nossa história e nos historiciza. Traz sofrimento e, às vezes, acolhe. Machuca e alivia. Tem um corpo. É corpo e por ser corpo é vivo, atuante, diz respeito ao gesto, ao mover-se, à expressão e ao simbólico. Todo corpo é um conjunto de histórias. Cada marca, cada ruga, constitui nossas narrativas corpóreas. Cada uma conta, imageticamente, quem somos.
Um corpo pode ficar onde está, imóvel, descansado ou pode decidir mudar de rumo, seguir em outra direção, explorar novos caminhos. Pode também dar-se conta de que nunca podemos ignorar nosso próprio corpo, já que ele sorri, sente medo, frio, sono, fome, dor. Um corpo toca, imagina, sente, segura, solta, lê, fala, escuta, sonha, escreve, brinca, cansa, sofre, relaxa, corre. Há algo que possamos fazer fora do corpo, sem o nosso corpo ou esquecendo que temos um corpo?
O corpo aqui não é apenas o corpo biológico, mas o da experiência existencial, corpo fenomenológico. O enfoque enactivo de Francisco Varela (1997), inspirado em Merleau-Ponty, afirma a cognição como ação corporizada na qual o corpo é concebido simultaneamente como estrutura física e como estrutura vivida e experiencial, isto é, tanto biológico como fenomenológico. Um corpo que pode ter vontade e voz ou que pode ter aprendido a calar, pode ter sido domesticado, tolhido, silenciado. Para Zumthor (2007, p.23), também leitor de Merleau-Ponty, "corpo é a materialização daquilo que me é próprio, realidade vivida e que determina minha relação com o mundo. Dotado de uma significação incomparável, ele existe à imagem de meu ser: é ele que eu vivo, possuo e sou".
Por mais que saibamos que ser humano é ser um corpo, há que fazer uma distinção entre o corpo adulto e o corpo criança. O corpo adulto, possivelmente, já passou por muitas salas de aula, aprendeu a aquietar-se, a silenciar, a controlar-se. É um corpo que gesticula menos, que passa muito tempo sentado, que dorme menos, que ocupa mais espaço. O corpo criança costuma ser agitado, fala com as mãos, muda de voz, é vigoroso, precisa de espaço, tem muita energia, corre, senta, levanta, dorme mais horas, é pequeno, ainda não aprendeu a silenciar. Por que ainda? Porque corpos são domesticáveis e, uma vez que esse corpo tenha aprendido a calar, não poderá jamais ser totalmente recuperado (ZUMTHOR, 2007, p. 79).
Como afirma o texto Pensar la Educación desde la Experiencia, dos autores Bárcena, Larrosa e Melich (2006, p. 234), "comprendemos a partir de nuestros cuerpos, a través de las relaciones que establecemos con los demás y de las formas a través de las cuales nos ponemos en contacto con los objetos del mundo". A corporeidade, portanto, é indissociável de qualquer processo de aprendizagem ou inserção no mundo, pois nos situa diante do vivido (MERLEAU-PONTY, 2011).
A experiência de leitura nasce da relação entre silêncio e escuta, dessas vozes externas do texto, da voz de quem lê para a criança; das vozes que falam com a experiência de existir dessa criança, vozes distantes do vocabulário coloquial, da pressa e da simples transmissão de informação. Este é o momento em que outras possibilidades no campo da literatura se abrem, pois, se graças a escola muitos tiveram a aproximação com a leitura literária, essa abordagem se vivencia de forma diferente da experiência, a qual é vivida de maneira desigual em cada uma, pois ainda que as crianças vivenciem a literatura de maneira semelhante, a experienciam de diferentes formas.
Para ir ao sentido de um discurso, sentido cuja intenção suponho naquele que me fala, era preciso atravessar as palavras; mas que as palavras resistem, elas têm uma espessura, sua existência densa exige, para que elas sejam compreendidas, uma intervenção corporal, sob forma de uma operação vocal: seja aquela da voz percebida, pronunciada ou ouvida de uma voz inaudível, de uma articulação interiorizada. É nesse sentido que se diz, de maneira paradoxal, que se pensa sempre com o corpo: o discurso que alguém me faz sobre o mundo (qualquer que seja o aspecto do mundo de que me fala) constitui para mim um corpo-a-corpo com o mundo. O mundo me toca e sou tocado por ele; ação dupla, reversível, igualmente válida nos dois sentidos (ZUMTHOR, 2007, p.75).
Corpos tão curiosos e inquietos como os das crianças são o oposto de todas as máximas que conhecemos sobre bons leitores: solitários, calados, tranquilos, silenciosos. Uma criança leitora ainda não foi plenamente educada, ainda conserva toda a liberdade de poder e toda a potência imaginativa que, muitas vezes, não sobrevive ao mundo adulto. Lê com o corpo todo, ouve com o corpo todo, narra com o corpo todo, pelo simples fato de que ela é inteira, é uma só, é integra, não foi fatiada e é plenamente capaz de pensar e sentir com todo o vigor de seu corpo, o que faz dela não uma ouvinte ou uma leitora, mas uma intérprete de suas leituras de palavra e de mundo.
Mas, existe um leitor padrão? Ou um modelo ideal de leitor? Ricardo Piglia (2006), escritor argentino, traz em seu livro O último leitor, ensaios sobre diferentes leitores: Che Guevara que, mesmo durante as batalhas e em longas caminhadas, jamais abandonava sua bolsa com vários livros; Borges que, mesmo cego, não abandonou o amor à palavra escrita e contratava leitores para que lessem para ele, até Dom Quixote, que amava tanto as palavras que permitiu-se enlouquecer por elas. Leitores de corpo e alma. E haveria outra maneira de ser realmente um leitor que não essa união de corpo e alma? O autor parte do princípio de que uma obra literária só existe plenamente quando algum leitor abre suas páginas e lhe dá vida - caso contrário, trata-se de uma letra morta (PIGLIA, 2006). A ficção, portanto, não depende apenas de quem a constrói, mas também de quem a lê.
O ato de ler pode ser interpretado de diferentes maneiras. Para uns ler é decodificar códigos, ir de uma página a outra, ser capaz de orientar-se em sua própria cidade, através de placas de trânsito e nomes de ruas; já para a sociedade da informação, um "leitor competente" é aquele que se apropria de diferentes tipos de texto, de modo pontual, acelerado, com uma finalidade ou aplicabilidade imediata. Larrosa (2004) adverte a respeito do sentido usual atribuído à leitura:
Cada dia lemos, às vezes falamos de nossas leituras e das leituras dos outros, todos nós sabemos ler e, às vezes, ensinamos a outros a ler, habitualmente usamos com plena normalidade e competência a palavra ler..., mas talvez ainda não saibamos o que é ler e qual o lugar da leitura (LARROSA, 2004, p. 18)
Pensemos em crianças leitoras, sejam elas leitoras de palavras ou não, na sua relação com as histórias, em como experienciam as narrativas, sejam essas lidas por elas ou por um adulto para elas. Este leitor que se movimenta, que manuseia o livro, que ouve repetidas vezes a mesma história e, muitas vezes, também dialoga com as ilustrações; cansa-se da história, abandona-a antes do final, inquieta-se, pula páginas, mas, sobretudo, lê. Lê palavras, lê ilustrações, lê a euforia ou o desânimo na narrativa de seu interlocutor. É um leitor que vive a literatura ou, como afirma Vivian Paley (2016), um intérprete.
Si quiero adaptarme al ritmo de los cuentistas que publan mi aula, tendré que actuar en su escenario, ya que, de no hacerlo, serán pocas las ocasiones en que nos escuchemos unos a otros. Por supuesto, nunca podré ser como ellos, porque un narrador de historias de corta edad es un intérprete (PALEY, 2016, p. 23).
Para pensar a relação das crianças com a dimensão educativa da leitura, como pode ser vivida/experienciada, para adentrar e explorar a relação entre infância e experiência de linguagem, aproximamos filosofia e literatura (artes) em uma abordagem encarnada de "ler com o corpo todo". Filosofia e infância configuram campos de luta permanente contra a tendência à acomodação do pensamento, contra a prioridade dada às respostas definidoras, contra o conforto das certezas. Walter Kohan (2015, p. 217) permite conceber a relação entre filosofia e infância como possíveis ao afirmar que "a filosofia e o filosofar são também escuta atenta dos possíveis no pensamento, e a infância é, justamente, pelo menos num sentido, o reino das possibilidades e da ausência de determinação". Tanto para a dimensão filosófica quanto para a dimensão da infância, "'tudo pode ser de outra maneira'. Se não for, não há o que pensar" (KOHAN, 2015, p. 217).
Nessa compreensão, a filosofia antes de resolver problemas os engendra, instiga interrogações. Assim, é aqui compreendida com Merleau-Ponty (2011) e Kohan (2015) como um modo de pensar, como um modo de reaprender a ver e a escutar o mundo. Na fenomenologia merleau-pontyana, reaprender a ver o mundo não é elaborar outras imagens do mundo, mas reaprender a colocar-se em outro lugar - deslocar o movimento do corpo, o qual implica deslocar o pensamento (GARCÈS, 2017). Podemos então ultrapassar a generalizada concepção escolar de leitura como decifrar códigos para aprender conteúdos previamente definidos e afirmar a literatura como leitura de corpo e alma, na qual todo leitor é um corpo vivo atento aos possíveis do pensamento.
Por dizer respeito às artes, a literatura faz nos relacionarmos uns com os outros na suspensão das relações de forças, de interesses e de crenças de um momento cultural. Apesar das artes estarem profundamente vinculadas, ou em estreita dependência, aos dispositivos materiais, simbólicos e afetivos que a constituem culturalmente, o que podem fazer na existência comum "no consiste en organizarla, ni en modelar su destino, ni en darle ninguna especie de razón primera o última" (NANCY, 2014, p. 57). O que nos relaciona uns com os outros, é o sentido - ao mesmo tempo inteligibilidade, sensibilidade, sensualidade (NANCY, 2016, p. 19), ou seja, partição e partilha4 existencial do mundo que corresponde "muy precisamente al hecho de que esta existencia es en común, que ella es esencialmente 'ser/estar-con' ["être-avec"] o esencialmente com-partición [partage]" (NANCY, 2014, p. 57). Partição e partilha das vozes, dos signos, dos gestos, das formas, do sentido e senciente da palavra, aquela que me significa ao me situar no mundo.
O mundo sensível é comum aos corpos sensíveis. E não se trata de uma analogia: é o mesmo mundo que contém nossos corpos e nossos espíritos, desde que se entenda por mundo não apenas a soma das coisas que caem ou poderiam cair sob nossos olhos, mas também o lugar de sua compossibilidade, o estilo invariável que observa, que unifica nossas perspectivas, permite a transição de uma a outra e nos dá o sentimento - (...) - de sermos duas testemunhas (...). (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 24)
Leitura e infâncias. Infâncias leitoras. A leitura escolarizada das infâncias. Mas o que significa infância? Para o Dicionário Aurélio (2010), infância é a etapa da vida humana que vai do nascimento até a puberdade. São as crianças. O primeiro período de existência de uma instituição. Entendemos, entretanto, a infância não como sinônimo de criança ou tempo cronológico de vida, mas como acontecimento e experiência, um começo no já começado, ou um começar-se, um sentir-se, uma revolução e um ato de resistência. Pensar a infância como devir amplia seus sentidos de inúmeras maneiras, pois ao lado de uma educação da infância é possível refletir também acerca de uma infância da educação (KOHAN, 2015). Uma educação menos rígida em previsões, menos controladora, disposta a abrir-se à vida e ao sentido do mundo, à singularidade plural do novo, ao que cada criança tem de único e singular no mundo comum.
Mas educação escolar tem a ver com horários, cronogramas, disciplina, método, objetivos a alcançar. Como situar o tempo das crianças, o tempo próprio, o tempo de aprender, o tempo de brincar, o tempo de experienciar? Os antigos gregos possuíam três palavras para definir o termo tempo: chrónos é o tempo sucessivo, o tempo do relógio, kairós subentende medida, proporção e aión significa intensidade do tempo da vida humana. Chronos é limite, aión é duração (KOHAN, 2004). Se a escola trata do tempo cronológico (chronos), às infâncias pertencem o tempo aiónico. Uma potência, o tempo próprio, da intensidade, do viver.
Histórias de ir e vir
Quando falo, não entrego nada. Deixo mesmamente despido quem tem frio e não encho a barriga dos que têm fome. Quando falo, o que faço é perto de não fazer nada e, no entanto, cria-nos a sensação de fazer tanto. Como se falando pudéssemos fazer tudo. O que digo é só bom porque pode ser dito, mas não se põe de parede para casa ou de barco para a fuga. Não podemos navegar numa palavra. Não podemos ir embora. Falar é ficar. Se falo é porque ainda não fui. Ainda aqui estou. Preciso de me calar, pai. Preciso aprender a calar-me.
(MÃE, 2017 p. 48).
Encarar a leitura como experiência, como distintos modos de encarnar a palavra, seja ela lida ou escutada, exige detenção para repensarmos como a educação se coloca frente às infâncias. Essa detenção implica considerar o potencial que a leitura literária pode guardar como experiência afetiva nas infâncias e de que forma uma prática fundamentalmente intelectual como a leitura pode afetar nossos sentidos e ressoar em nossos corpos, além de aguçar e provocar o pensamento. Quando relacionamos leitura à lentidão e ao silêncio, como definir o tempo experienciado pela vocalidade e pela escuta? Quando relacionamos leitura à lentidão e ao silêncio, o que fazemos com a dinâmica de corpos tão potentes quanto os corpos infantis? Se ler é também sentir, como esquecer nesse processo a sensibilidade do corpo - que simultaneamente sente se sentindo (MERLEAU-PONTY, 2011) - na experiência estésica fundamental de se-sentir?
Deter-se e pensar nas possibilidades educativas da estesia da literatura, ou seja, das artes, remete à importância de problematizar a concepção de educação escolar, principalmente na educação das infâncias e na escola das crianças nos primeiros anos do Ensino Fundamental. Nas escolas, continua-se a "ensinar" literatura - e esta continua a serviço de um currículo tarefeiro, pautado em datas comemorativas e/ou ensino previamente definido, porém, a leitura literária é a responsável por disparar em nosso inconsciente, aqui compreendido com Serres (2004) como corpo, um número interminável de imagens, que provocam reações corpóreas que tanto podem nos aproximar quanto nos afastar do mundo e dos outros. Para Merleau-Ponty (2011, p. 317):
Meu corpo não é apenas um objeto entre todos os outros objetos, um complexo de qualidades entre outros, ele é um objeto sensível a todos os outros, que ressoa para todos os sons, vibra para todas as cores, e que fornece às palavras a sua significação primordial através da maneira pela qual ele as acolhe.
Bárcena (2012), ao discorrer sobre leitura, relaciona-a ao silêncio, finitude e ausência. Em tempos tão ágeis e virtualmente conectados como os que vivemos, talvez esses não sejam valores esperados, porém, o que pode um livro? Ou o que podem as palavras, sejam elas lidas ou escutadas? O romance Fahrenheit 451, do escritor americano Ray Bradbury, foi lançado em 1953 e reputado como a grande obra do autor. A narrativa apresenta uma sociedade distópica na qual os livros são proibidos, cabendo aos bombeiros a tarefa de incendiar livros e bibliotecas. O personagem principal de Fahrenheit 451 é Montag, um bombeiro que executa o seu trabalho sem nenhum estranhamento ou questionamento. Um tarefeiro. Vive passivamente de casa para o trabalho, "lendo" uma revista em quadrinhos sem qualquer texto.
Em determinada ocasião, uma jovem puxa conversa com ele no metrô, e a partir desse curto diálogo sua vida muda para sempre. Clarissa pergunta se ele nunca sentiu curiosidade de ler algum livro que incendiou e Montag responde que jamais pensara a respeito. A partir desse dia, porém, o rapaz pensa incessantemente na conversa que teve com a moça e, em um momento de inocência ou descuido, ele decide poupar um livro, o leva para casa e passa a noite inteira lendo. Naquele exato instante, o homem que não fazia perguntas, não questionava ordens, nem se dava conta do vazio da sua existência, decide poupar um livro a cada novo incêndio.
Quando sua biblioteca particular é descoberta, o bombeiro precisa fugir para não ser sacrificado e então recorda que lhe contaram que na floresta havia milhares de leitores, pessoas que não suportaram uma vida sem narrativas e acabaram por afastar-se do mundo real. O bombeiro parte rumo a esse mundo desconhecido e é prontamente acolhido pelos moradores. Lá cada pessoa tinha o nome de um livro, pois a despeito de já não haver livros impressos, cada um, com sua memória, fazia às vezes de livro, e assim as histórias não se perdiam.
- Quantos de vocês existem? - Milhares nas estradas, nos trilhos abandonados, hoje à noite, vagabundos por fora, bibliotecas por dentro. A princípio, nada foi planejado. Cada homem tinha um livro de que desejava se lembrar e se lembrou. Depois, durante um período de cerca de vinte anos, fomos nos encontrando, em viagens, e passamos a estreitar a rede frouxa e a definir um plano. A coisa mais importante que tínhamos de incutir em nós mesmos foi que não éramos importantes, não devíamos ser pedantes, não devíamos nos sentir superiores a ninguém mais no mundo. Não somos nada além de capas empoeiradas (BRADBURY, 2012, p. 188).
A partir desse dia, Montag torna-se Eclesiastes, a única história da qual ele realmente recordava. E, sendo Eclesiastes e não mais bombeiro, já não precisava queimar livros. Transformou-se. Liberou-se de uma vida para adentrar em outra, na qual não necessitava mais provar aos outros a sua importância, libertou-se das páginas sem texto, da sensação melancólica de não ter com quem trocar algumas poucas palavras, pela mais absoluta falta de assunto.
A proibição de certos livros não é uma situação vivenciada apenas nas narrativas literárias. Percursos históricos do ocidente nos apresentam vários episódios em que houve a destruição ou censura de livros desde a Idade Média. Quando o nazismo e o fascismo assumiram o poder em alguns países da Europa, a literatura nestes países foi controlada e censurada. Quando o Brasil viveu a ditadura, não apenas livros e músicas foram proibidos, como artistas foram exilados, presos, torturados, proibidos de exercer seu ofício.
Em todos os regimes nos quais a liberdade de expressão foi tolhida, queimaram-se livros, censuraram-se autores, excluíram títulos literários de catálogos editoriais. Mas, o que podem as palavras, que imenso poder exercem páginas escritas a ponto de ser tão explícito que uma vida sem narrativas, sem histórias, sem a palavra escrita é também uma vida sem liberdade?
Montag, o bombeiro que vivia uma existência confortável, sem perguntas, sem grandes agitações ou imprevistos, nos faz pensar na contramão de todas as máximas que sempre ouvimos a respeito da literatura, na direção oposta à literatura como imaginação, criatividade, deleite. Reler Fahrenheit 451 nos faz pensar na leitura literária como conexão com o mundo. Uma conexão que vem carregada de emoções, uma conexão afetiva e que, mesmo sem ser palpável, é física, corpórea, pois vibra, emociona, transborda. Zumthor (2007), para destacar a inseparabilidade entre corpo e leitura, afirma que
É ele que eu sinto reagir, ao contato saboroso dos textos que amo; ele que vibra em mim, uma presença que chega à opressão. O corpo é o peso sentido na experiência que faço dos textos. Meu corpo é a materialização daquilo que me é próprio, realidade vivida e que determina minha relação com o mundo. Dotado de uma significação incomparável, ele existe à imagem de meu ser: é ele que eu vivo, possuo e sou, para o melhor e para o pior (ZUMTHOR, 2007, p. 23).
Talvez Montag precisasse da estesia da literatura para ter a sensação de sentir-se vivo em um corpo que vibra e estremece porque "o mundo vem nela para formar-se nela: forma formans" (MICHAUD, 2016, p. 20), aquela que apanha - ou saúda - "a vinda de um mundo em processo de nascer em uma forma ainda não dada, não ainda fixada: uma forma que 'joga de novo e relança o ex-nihilo que é [a] partilha' do mundo" (MICHAUD, 2016, p. 20). Talvez precisasse da literatura para sentir-se sentindo reconhecer-se, para viver sensações que uma vida sem as palavras não poderia lhe ofertar. Tornar-se um leitor, escolher o seu livro, apossar-se das palavras ao sentir ser por elas possuído, lhe permitiu a opção da escolha, algo que, anteriormente, era-lhe inconcebível.
Não é difícil constatar que não precisamos de livros, que ninguém efetivamente precisa ler para viver. Necessitamos comer, respirar, precisamos dormir, precisamos nos movimentar, mas a leitura da palavra não é uma necessidade básica. O que nos faz desconfiar dos discursos acalorados que defendem com veemência a "necessidade escolar" de "formar leitores". Esse discurso escolar de formar leitores não trata apenas da alfabetização, vai além, quer formar leitores "críticos", não projeta ou espera uma forma formans (infinita pela dinâmica de abertura à formação) mas fixa e im-põe uma forma prévia, coloca o ato de ler, vocalizar e escutar, em uma fôrma, homogeneíza. Porém, a literatura ou as artes não têm nem utilidade nem função. Com Nancy (2014; 2016), podemos considerar que as artes dizem respeito à ação de trocar, partilhar, implicam passagem e transformação sem prévia definição. Se há alguma especificidade nas artes essa poderia ser condensada na formulação de Nancy de que a arte não faz sentido, ela faz sentir e isso ele denomina como sensação (aisthesis), a primeira feição do sentido (MICHAUD, 2016).
Dom Quixote, o Louco dos Livros, tão obcecado pelas palavras que lia até pedaços de papel que encontrava pela rua, permite pensarmos nos diferentes leitores ao nos mostrar que não há fôrma, nem a necessidade de formar com prévias expectativas. Com ele, e sua experiência de leitor, o verbo formar torna-se pequeno, limitado, simplório. Com ele podemos pensar em todas as coisas que não cabem em uma forma, em tudo o que ela exclui pela total incapacidade de acolher o que não é formatável, o que não se deixa pré-ver, o que não se apequena para caber em si. O que Dom Quixote nos lembra é que há coisas que não podem ser ensinadas, podem apenas ser compartilhadas, vividas, conversadas, vistas, escutadas, sentidas e encarnadas, mas nunca ensinadas, nunca formatadas pelo desejo de outro. Jamais seremos capazes de ensinar nosso amor pelos livros, jamais ensinaremos toda a gratidão que temos pela potência da palavra em nós, mas podemos sim, e assim fazemos, compartilhar as coisas que amamos, dividir nossas experiências, dialogar com e sobre elas, oferecê-las ao outro. Transmitir e educar escolhas a serem transformadas.
As artes e, entre elas, a literatura, nessa experiência educativa de transmissão e transformação imprevisível, configuram o acontecimento da dimensão estética privilegiada de um corpo irredutivelmente diverso em seus acessos sensíveis - sensorial, sentimental, sensual, sensato. A presença de "cada arte é assim única e heterogênea, isolada e exposta, forma que divide e mescla ao mesmo tempo qualidades distintas (visuais, sonoras, tácteis, etc.) e as faz se comunicarem, pondo-as em contato e afetando-as, localidade infinitamente divisível, em extensão" (MICHAUD, 2016, p. 19). Talvez, o exercício da leitura literária na infância seja menos um exercício de escolarizar sensibilidades, de padronizar modos de ler e escutar a palavra viva que nos situa no mundo, e muito mais de acolher a estesia da alteridade na experiência de sentir sentidos de mundo.