que as pessoas ouvem por fora?5
não há como fugir ao que tem de ser dito: escrevemos em busca da voz que mais nos fala por dentro.
Ondjaki, A bicicleta que tinha bigodes
Este texto começa com uma pergunta em vez de uma afirmação: a pergunta de uma criança e não a ideia de uma adulta. O título deste texto é uma pergunta que se deu como som, pensamento gutural de uma menina estudante numa escola pública em meio rural. Uma pergunta que se ausentou da esfera acústica tão depressa quanto foi dita. Não uma ideia maturada no corpus textual de um autor e que, por via da escrita, se tenha perpetuado nos textos de leitores e intérpretes. Uma pergunta cuja materialidade foi exclusivamente a de um corpo que a disse e a de outros corpos que a escutaram. Numa escola básica. Mas uma pergunta que não se perdeu porque foi dada no contexto de um encontro de vozes filosóficas de crianças e adultos. Uma pergunta com voz. Este texto é uma história - uma história possível - de uma pergunta, depois de essa pergunta ter deixado de ser som.
a história de uma pergunta com voz
O convite tinha sido feito no começo da atividade pela professora de filosofia da Lara (Gomes; Vieira, 2021): como de costume, depois de sentadas em círculo no chão no fundo da sala, as crianças poderiam começar a partilha das suas perguntas. Pareceu-nos que a Lara já trazia o braço no ar quando entrou. Uma meia hora antes, ao chegamos ao pátio da Escola, viera a correr na nossa direção para anunciar que tinha uma pergunta para a sessão de filosofia daquele dia. É possível que aquela pergunta já se de-morasse na Lara há algum tempo (e que se viesse a demorar em nós também). Era a sua pergunta ou então a Lara era dela. Não há maneira de sabermos. O que sabemos é que, já dentro da sala, a Lara tinha o braço levantado e aguardava pacientemente que o colega que geria a palavra naquela sessão lhe dissesse que era a sua vez de por a sua voz no centro da comunidade (Santos; Costa Carvalho, 2017).
Nos encontros de filosofia desta escola as crianças começam por partilhar oralmente as suas perguntas e só depois as transformam em escrita. Uma folha grande no chão, no centro do círculo, vai passando por entre quem já disse uma pergunta e é então convidado a escrevê-la. A turma era do 4.º ano do Ensino Básico, por isso foi com bastante à-vontade que as crianças foram pegando em canetas coloridas e desenhando no papel as palavras que compunham a versão escrita de cada pergunta.
Com o braço no ar, a Lara atualizava em gesto a inscrição da sua voz na comunidade. Enquanto aguardava para falar, olhava atenta para as outras colegas e para os outros colegas que se iam acomodando para iniciar a partilha das vozes e dos pensamentos. Reafirmar, com o seu braço no ar, a inscrição na comunidade não impedia a Lara de seguir os sons das outras vozes que se iam somando ao grupo. Assim como essas vozes também não a dissuadiam de constituir-se voz-pergunta na sonoridade respirada dos sons que, a partir da sua garganta, atravessariam o círculo da comunidade de investigação filosófica (Kennedy; Kennedy, 2012). Quando o colega indicou que era a vez de a Lara falar, a menina formulou a sua pergunta sem qualquer hesitação: será que a voz que ouvimos por dentro é a mesma que as pessoas ouvem por fora? .
Diferentes dinâmicas foram desencadeadas por quem recebeu a voz da Lara. Estávamos lá e fizemos parte das pessoas que acolheram a pergunta e lhe deram caminhos próprios. Ficamos com a pergunta a ressoar durante muito tempo e, à medida que o diálogo do grupo continuava, em torno de outras perguntas e ideias, fechamo-nos na nossa compreensão das palavras da Lara. O que tínhamos escutado? Se naquele momento tivéssemos podido pausar ou diminuir o ritmo a que decorriam as trocas de ideias, certamente diríamos que o que começamos por escutar na pergunta da Lara foi da ordem de uma certa comodidade hermenêutica. Interpretávamos a sua pergunta de acordo com determinadas conceções de voz e de escuta que se cristalizaram em nós. Só muito depois conseguimos desconstruir essa primeira leitura. O presente texto é também a história dessa desconstrução e de como a afetação que o processo nos provocou conduziu a uma reflexão sobre diferentes dispositivos da própria atividade filosófica tal como a apresentamos às crianças e adultos numa comunidade de investigação.
A pergunta da Lara instaurou uma experiência no sentido de se ter tornado um acontecimento de forças que revelou aspetos importantes no modo como nos subjetivamos enquanto pensadoras e pensadores (López, 2006) ou, até, enquanto adultos que acreditam ser importante levar a filosofia para dentro da Escola. Este texto é uma reflexão em torno do rasto deixado pela experiência de escutar uma certa pergunta. Uma pergunta infantil. E é também a tentativa de prolongar esse rasto e de, através dele, descobrir aspetos importantes sobre nós próprias: educadoras adultas numa região periférica do continente europeu.
Na organização do texto, resistimos a uma estrutura encadeada de partes, ainda que a forma da escrita ocidental imponha uma certa disposição gráfica (encadeamento vertical de direcionamento das palavras na folha, da esquerda para a direta, e cima para abaixo). Mesmo assim, não apresentamos um encadeamento sequencial de partes, mas antes três momentos ou três possíveis entradas para problemas revelados pela pergunta da Lara. Estas três entradas podem ser lidas separadamente ou noutra ordem que não a que graficamente apresentam. São três modos de entrar e sair da pergunta que dá título ao nosso texto - vozes, escuta e partilha - três possibilidades de nos cruzarmos com outras perguntas e de regressarmos continuamente aos ecos iniciais da interrogação da Lara. Três partituras a partir de um eco ou então três espaços de ressonância.
Entraremos na construção da voz enquanto conceito alinhado com um determinado paradigma ou modelo do pensamento ou do exercício do pensar (comumente designado como “a filosofia”). Entraremos nessoutro conceito de escuta enquanto constructo conceptual que recua às ditas origens da filosofia ocidental e que se tem perpetuado e tornado transversal. Entraremos na proposta de uma forma diferente de entender a voz e a escuta a partir da ideia de pensamento como espaço-entre de partilha, incidindo especificamente no âmbito de atividades de diálogo filosófico com crianças. Três possibilidades marcadas pelo ritmo de três perguntas, filhas da inquietação primeira da Lara: o que se escuta quando falamos da voz? o que se diz quando falamos da escuta? O que se pode pensar na partilha das vozes e das escutas?
Esperamos que a história de uma pergunta com voz possa ser também a voz de uma história com perguntas e que, assim, este texto ajude a (des)confiar no exercício de pensar filosoficamente com crianças enquanto prática que nos convoca e provoca. Convoca a escutar o problemático e provoca a pensar a perplexidade. Talvez a aproximação da filosofia e da infância seja apenas um convite à re-construção ou re-presentificação da própria filosofia enquanto “práxis comunitária, multivocal, dialógica, imediata, oral/aural e fundamentada na experiência vivida e no significado emergente” (Kennedy, p. 345). Ou talvez seja apenas um exercício de pensamento, como qualquer outro.
o que se escuta quando falamos da voz?
Há uma parte de você que está correndo ao encontro da voz desconhecida. Contagiado por seu prazer em fazer-se ouvir, gostaria que sua escuta fosse ouvida por ela, você também gostaria de ser uma voz, ouvida por ela como você a ouve.
Italo Calvino, “Sob o sol-jaguar”
O que pode ecoar quando pensamos filosoficamente sobre a voz? Que vozes têm sido escutadas nessa reflexão? O que se pode descobrir como tendo sido silenciado? A que imagem de filosofia tem servido um enfoque da voz como silêncio e não como materialidade sonora? E poderá a voz enquanto vibração sonora ser relevante para o pensamento?
Entramos na pergunta-inquietação da Lara movidos pela voz enquanto conceito muito presente, mas pouco discutido. Um conceito que, na filosofia e em semelhantes andanças do pensamento, parece ter assimilado um sentido mais próximo do silêncio do que do universo auditivo. Quando procuramos pensar sobre a palavra “voz” e os seus possíveis usos, parece que encontramos uma noção mais comummente entendida em sentido metafórico do que literal. Diz-se que cada pessoa tem a sua própria voz no sentido de ter um modo próprio de pensar, de ter o direito de inscrever no espaço público um conjunto de ideias e crenças que a expressam enquanto pessoa. Ou então fala-se na voz interior do escritor para falarmos do seu pensamento, da sua inspiração, ou na voz do artista para nos referirmos ao seu estilo ou perspetiva, a uma forma própria de ver e comunicar. De tal modo que se torna preciso acrescentar um adjetivo quando queremos sublinhar que um certo enunciado foi dito oralmente - “de viva voz” -, como se a voz, por si só, não fosse dotada de vida... pelo menos da vida biológica de um corpo. Também se usa o conceito de “voz” para referir a consciência íntima de cada pessoa. A voz da consciência ou voz da razão, ordem ou inquietação deliberativa que supostamente precede a tomada de certas decisões. Neste sentido, a voz adquiriu um sentido privilegiadamente moral e normativo, aliás bastante permeável e apelativo em certos contextos educativos e, também, espirituais.
Será que a voz que ouvimos por dentro é a mesma que as pessoas ouvem por fora?, ouvimos a Lara perguntar. E a primeira leitura que fizemos ficou refém dos usos do conceito de voz ligados a um plano mental e descorporizado. Muito seguras do que sabíamos, pensávamos que a Lara deveria estar a falar do estilo ou do caráter de cada um, da voz desenhada pelo pensamento íntimo, da voz de uma consciência que orienta a ação ou talvez até do testemunho de vida dado por determinadas decisões. E munidas do aparato racional lógico e abstrato com que nos habituamos a analisar o mundo, escrutinávamos a pergunta da Lara a partir de dois pressupostos: há uma voz que ouvimos por dentro e a voz que ouvimos por dentro pode ser também ouvida por fora. Neste exercício, o que escutávamos na pergunta da menina foi tudo menos o sentido literal e primeiro do conceito. Um filtro acústico de grande eficiência, interposto entre a boca de quem diz e o ouvido de quem escuta, não nos permitiu considerar a hipótese de a pergunta ser pura e simplesmente sobre a voz, a voz que é corpo, que se faz ar de dois pulmões e fonia de uma garganta, que sai através de uma boca e que é recebida por outros corpos através dos seus aparelhos auditivos. Som e sentido.
Mas se a voz possui, antes de tudo, uma realidade material, se ela diz respeito ao som produzido na laringe pelo ar que sai dos pulmões e da boca, se a voz é corpo, como surgiu a expropriação (filosófica) do conceito dos seus territórios primeiros? Se o corpo é a infância da voz, o sítio mesmo onde ela começa, o que impôs o esquecimento desse início de sentido? Por que motivos só no final do encontro com a Lara, já a turma se preparava para desfazer o círculo, nos tocou a perceber que a voz da pergunta dita era, afinal, diferente do que tínhamos escutado?
Os itinerários a que a pergunta da Lara nos conduziu serviram para expor uma certa relação que mantemos com a voz no âmbito do que se considera ser a sua relevância filosófica. A interpelação da menina levou-nos a pensar na companhia de outra mulher - Adriana Cavarero - especialmente no que respeita a algumas das suas inquietações a respeito da história da metafísica enquanto história da desvocalização do logos (2005, p. 40). Segundo Cavarero, “Esta voz metafórica da alma ou consciência, tão cara à filosofia, é uma figura retórica crucial em que a voz - através da sua identificação com a obra silenciosa do pensamento - se transforma numa negação da voz.” (2005, p. 173)6. A filósofa italiana refere-se ao deslocamento da voz da esfera acústica para o plano estritamente semântico em que o discurso, incidindo sobre o sentido, relega a dimensão vocal a uma remanescência ou excrescência do que verdadeiramente importa. E assim se desconsiderou filosoficamente a voz, isto é, a emissão sonora de uma singularidade corporal.
Ao longo do livro A più voci: per una filosofia dell’expressione vocale, Cavarero procura na filosofia e na literatura ocidentais rastos do esquecimento das raízes corporais da voz, assim como resistências ao apagamento da sonoridade do pensamento. Recuando à figura platónica instauradora do que ficaria reconhecido como “a metafísica”, Cavarero deteta na aspiração epistemológica à universalidade do conceito a causa de uma separação fraturante entre a fala e os falantes. O protagonismo concedido à semântica dos discursos em detrimento dos sons, a preocupação pelo conteúdo que é dito e pode ser generalizado e reproduzido por outras bocas, sobrepôs a categoria clássica de logos exclusivamente ao significado mental dos enunciados. Para a autora, este movimento conduziu à desconsideração da materialidade acústica do discurso como determinante desse mesmo discurso.
Na senda de Derrida (1991), Cavarero refere-se à incursão logocêntrica ocidental que subsumiu a voz no discurso e que, assim, retirou toda e qualquer sonoridade ao pensamento. Hoje, como desde então, os enunciados em discussão entendem-se de acordo com a “ideia geral da esfera verbal, em vez de indicarem uma articulação sonora contingente e contextual que emite da boca de alguém e que é destinada aos ouvidos de outro.” (2005, p. 14)7. Como consequência, aquele ou aquela que falam não passam para a fala as suas intrínsecas ou extrínsecas particularidades e procuram, a todo o custo, apagar daí o que seja da ordem do contexto e da contingência. Os falantes reconhecem-se como sujeitos modelares universais, modelo de pensador que a modernidade soube bem delinear no ideal da razão discursiva analítica e abstrata, tornando dispensável o que não seja extensível a todo o outro.
Mas mais do que a subjetivação de um certo modelo de pensador - já de si problemático porque reproduz como universalizável o perfil masculino, branco, heterossexual, europeu, citadino, falante de uma língua-padrão e, sobretudo, adulto (Deleuze, 1988) - é uma determinada imagem do pensamento que se reforça e implementa. Configurado como eterno e silencioso, o pensamento que se discute nas obras canonizadas dos filósofos resulta do exercício mental de sujeitos descorporizados para quem o tom, a intensidade ou o timbre das suas vozes pouco importa.
Para tanto terá certamente sido decisivo o ato inaugural com que Platão (2015), no seu Teeteto, distinguira o pensamento - “diálogo íntimo da alma consigo mesmo, que nasce sem voz” - do discurso - “um fluxo a partir da alma, indo através da boca com som” (263e). Apesar de serem o mesmo, continua Platão, o pensamento nasce em silêncio na alma. Corresponderia a um registro silencioso do qual a voz seria sempre derivada e para o qual se apresentaria como totalmente dispensável. Mas a desvalorização metafísica da voz é igualmente devedora de Aristóteles. Na Política, afirma que o ser humano se caracteriza precisamente pela palavra, destacando-se de outros animais que apenas possuem voz: “A natureza, conforme dizemos, não faz nada ao desbarato, e só o homem, de entre todos os seres vivos, possui a palavra. Assim, enquanto a voz indica prazer ou sofrimento, e nesse sentido é também atributo de outros animais (cuja natureza também atinge sensações de dor e de prazer e é capaz de as indicar) o discurso, por outro lado, serve para tornar claro o útil e o prejudicial e, por conseguinte, o justo e o injusto” (1253a8-17). Seria precisamente o discurso que instaurava a clivagem entre meros comportamentos gregários e a natureza eminentemente política do ser humano. No movimento de justificação política da natureza humana, uma outra dinâmica se consolidava: a desvalorização da voz enquanto simples registro biológico.
Retornemos ao começo, à pergunta da Lara: Será que a voz que ouvimos por dentro é a mesma que as pessoas ouvem por fora? Fomos levadas para a experiência des-construtiva sobre o que colocamos na semântica da noção de voz e de como, inconsideradamente, descartamos qualquer considerabilidade filosófica da materialidade acústica do discurso. Esta viagem revelou-nos mais sobre nós próprias, enquanto pensadoras, do que poderíamos imaginar. E mostrou-nos o imperialismo de uma imagem silenciosa do pensamento. Parece ser absurdo sequer colocar a hipótese de que a frequência, a intensidade ou o timbre de uma voz possa ter implicações para o pensamento de alguém. E mesmo quando movimentos de pendor ativista reclamam a revalorização da voz das crianças e a sua necessária consideração no espaço público, raramente se estão a referir à literalidade das suas vocalizações. Isso talvez se reserve para os ecos ensurdecedores dos corredores e recreios escolares ou então para diferentes ocupações secundárias da sua formação.
Dizer que a voz se destina ao discurso não deveria implicar o esquecimento da sua matéria sonora primeira, reforça Adriana Cavarero (2005, p. 210). Por isso, talvez importasse retornarmos à voz para procurarmos pensar sobre ela fora do registro estritamente semântico. Estamos conscientes de que este movimento sempre roçará a paradoxalidade porque, para o conseguirmos plenamente, precisaríamos de oferecer o presente texto também no registro sonoro da nossa própria voz. E até também a pergunta da Lara na voz que é dela. O máximo que conseguimos é pedir às leitoras e aos leitores que leiam oralmente estas palavras, que tornem este texto numa sonoridade vocálica, que se façam vozes da nossa voz.
Nessa sonoridade, recordem aquele rei que, sempre imóvel no trono, dedicava a sua ação exclusivamente em escutar os sons do reino. Foi na obra de Italo Calvino (1995) que lemos a história deste rei. Imerso na acústica de um palácio que era, ele próprio, um enorme pavilhão auditivo, o monarca tinha mandado erigir túneis subterrâneos imensos para que tudo o que fosse feito ou dito pelos súbditos ressoasse junto a si. E assim passava os dias e as noites decifrando, nos sons, as ameaças, as conspirações e os rumores, detetando as infidelidades e zelando, assim, pelo bem-estar do seu território. Um dia, este “rei à escuta” despertou do emaranhado de sons com que se ocupava precisamente porque, em vez de escutar significados, ouviu apenas uma voz. Uma voz que se dava em canto, simplesmente como voz. Em vez dos sons do espaço público sobre o qual reinava, pejados de sentidos imensos e intensos, nessa noite o que o soberano experimentou foi de outra ordem: da ordem da voz enquanto voz, daquilo que de mais oculto e verdadeiro existe em quem a proferia. E Calvino reforça: “uma voz significa isso: existe uma pessoa viva, garganta, tórax, sentimentos, que pressiona no ar essa voz diferente de todas as outras vozes. Uma voz põe em jogo a úvula, a saliva, a infância, a pátina da existência vivida, as intenções da mente, o prazer de dar uma forma própria às ondas sonoras.” (1995, pp. 87-888).
Uma voz é o que põe em jogo a infância, o recomeço, o início, a pergunta. A voz que ainda não é palavra traz um eco distintivo do vocalizador. A pergunta da Lara foi a de uma pergunta (com) voz que nos arrastou nesse caminho de regresso ao começo, à voz enquanto voz, à voz enquanto pulmão, laringe, garganta. E que ousou sugerir-nos que essa infância da voz tem relevância filosófica. Que vale a pena escutá-la.
o que se diz quando falamos da escuta?
[…] l’écoute, est-ce une affaire dont la philosophie soit capable? […] la philosophie n’a-t-elle pas d’avance et forcément superposé ou bien substitué à l’écoute quelque chose qui serait plutôt de l’ordre de l’entente? […] Le philosophe ne serait-il pas celui qui entend toujours (et qui entend tout) mais qui ne peut écouter, ou plus précisément qui neutralise en lui l’écoute, et pour pouvoir philosopher?
Jean-Luc Nancy, À l’écoute
É possível escutar filosoficamente a escuta? Enquanto temática, terá a escuta uma configuração sobre a qual importe pensar? Enquanto procedimento, estará a escuta comprometida com modos relevantes de experienciar o mundo? A escuta fala? Tem voz? O que escutamos nos discursos da escuta? Que relevância pode ter a escuta para um pensamento filosófico?
Entramos agora na pergunta-inquietação da Lara movidas pela escuta enquanto conceito muito presente, sobretudo em contextos de valorização da infância, mas pouco escutado por aquilo que exige. Será certamente difícil, sobretudo para filósofos e filósofas, escutar o diagnóstico traçado acima por Jean-Luc Nancy (2002). Para o autor, o entendimento ou foco na compreensão intelectual dos enunciados parece ter-se sobreposto à escuta, enquanto simples prestação do aparelho auditivo aos sons. Em francês, o fenómeno capta-se bem pelos sentidos presentes no verbo entendre, que pode significar escutar e compreender. O primeiro seria mais literal e corpóreo, o segundo figurativo e mental. Em português, talvez consigamos captar essa ambivalência no verbo auscultar, que pode significar simultaneamente o ato de escutar sons (internos, no caso), assim como a atividade de procurar conhecer melhor algum fenómeno ou o que alguém pensa. De uma forma ou de outra, tal como na voz, também na escuta encontramos a predominância da leitura mental ou espiritual do conceito sobre a sua significação corporal. Sobretudo em registros filosóficos.
Será que a voz que ouvimos por dentro é a mesma que as pessoas ouvem por fora? Regressamos à pergunta: não é apenas sobre a voz, mas sobre o modo como a voz carrega consigo a escuta. Sabemos que ouvimos coisas para além dos nossos limites corporais, mas também podemos escutar o nosso corpo. E se todo o corpo se presta à escuta, talvez em nenhuma outra parte isso se verifique como na voz, no pronunciamento de sons e de enunciados emitidos pela laringe a partir de ar que sai dos pulmões. Como se, na pergunta da menina, fosse óbvio que a voz (de uma pessoa) se destina aos ouvidos (da própria ou de outra). Esta é uma das afirmações presentes na pergunta, asserção que nem chega a ser questionada pela Lara. O que se põe em causa prende-se, antes, com formas diferentes como essa audição pode acontecer, colocando-se a hipótese de existirem dois registros de escuta da voz: um interior (ouvido por quem pronuncia a voz) e outro exterior (ouvido por quem recebe a voz dita). E a pergunta relaciona-se com a possibilidade de, nesses dois registros - o dos ouvidos de quem fala e o dos ouvidos de quem escuta -, se ter a mesma experiência. A voz é para ouvir, a voz é para ecoar, reverberar, ressoar.
Adriana Cavarero, no seu estudo sobre a voz (2005), recorda como na etimologia latina de vox se encontra vocare, o verbo que significava chamar ou invocar alguém. A voz transporta já em si mesma este endereçamento ao exterior, ao para-além-de-si. “Antes de se fazer discurso, a voz é uma invocação que se dirige ao outro e que se confia a um ouvido que a recebe. [...] A voz é sempre para o ouvido, é sempre relacional; mas nunca é tão relacional como no primeiro grito do bebé - uma invocação de vida que inadvertidamente se confia a uma voz que responde” (Cavarero, 2005, p. 169)9. Neste primeiro endereçamento da voz, o choro do recém-nascido (in-fante) encarna a pura vocalidade de uma voz que é pura voz, que se expressa a si própria ainda antes de ser semantizada. Talvez seja o primeiro dos momentos em que a voz se dá como voz, para além de um sistema de comunicação que pretenda transmitir conteúdos específicos. Mas sendo esse o primeiro, não será certamente o último. Cavarero considera, aliás, que esta endereçabilidade não desaparece nunca da voz e que, mesmo quando aprende a ser discurso semântico, a voz é, acima de tudo, ressonância (2005, p. 179).
Curiosamente, o que a pergunta da Lara nos parece dizer ultrapassa a defesa de uma imperiosa necessidade de se escutarem todas as vozes. Será, talvez, anterior a essa consideração. O que ela nos pode dizer é talvez de uma ordem ontológico-política anterior: a voz, já enquanto voz, transporta em si a ligação a uma escuta, a enunciação de um conteúdo vocal inscreve-se por ela mesma num espaço partilhado de emissão-receção. E por isso a voz não é simples som: é ressonância. A voz soa e ressoa à infância, a voz soa e ressoa infância. Não porque se deva buscar uma regressão cronológica ao primeiro momento inaugural do choro do bebé. Não se trata de recuperar uma voz-pura-enquanto-som-que-precede-o-discurso - o que seria cair na clássica oposição metafísica dualista entre pura fonia e pura semântica -, mas de reconhecer em todo o discurso, em toda a vocalidade, já a presença da relacionalidade de uma expressão que se destina a uma audição. Como se, afinal, escutar a voz fosse já abrir para fora dela mesma.
Mas se a experiência da voz instaura, como na intervenção da Lara, a pergunta sobre modos de escuta, por que a pensamos tão pouco? Se a escuta atravessa a voz desde o início e se os efeitos da sua experiência nos podem colocar no caminho do pensamento, então, continuamos a perguntar com a Lara, por que motivos a filosofia ocidental tem descurado a audição?
É difícil não recordar a preferência da metafísica, já desde a sua fundação grega, pela esfera visual. Platão e Aristóteles foram alguns dos pensadores antigos fascinados pelo sentido da visão, contribuindo com os seus estudos para o surgimento e a consolidação da disciplina de pendor físico e matemático a que se chamaria precisamente “Ótica” (Camps, 2009). As potencialidades reveladas pela visão como fonte privilegiada de acesso ao chamado conhecimento da natureza, sobretudo através do estudo dos efeitos provocados pelos fenómenos da luz, tornaram-na particularmente sedutora como modelo e normativa de um pensamento bom, rigoroso, excelente. Para Platão esta relação era óbvia, pois considerava que o sentido da visão era o responsável por podermos pensar “nos números que nos proporcionam a noção de tempo”, assim como na “investigação sobre a natureza do universo” (Timeu, 47a). Mais do que isso, o filósofo considerava que eram os olhos que abriam o caminho da filosofia e que a atividade intelectiva procedia de forma análoga ao funcionamento da própria visão. Aristóteles seguiu no mesmo caminho, com a sua célebre abertura da Metafísica e o elogio das sensações visuais, mais amadas que quaisquer outras, por ser a visão o sentido “que más nos hace conocer y muestra múltiples diferencias.” (980b).
Mas esta preferência pela visão não era exclusividade dos filósofos e parece ter sido uma inclinação comum e transversal na cultura grega. Mais uma vez, a língua e os significados atribuídos às palavras mostram-se como excelentes vestígios destes movimentos semânticos. A palavra “teoria”, por exemplo, nasceu do vocábulo grego theoría que significava originalmente o próprio ato de ver, de observar ou examinar, e que só por uma derivação de sentido entrou nas línguas modernas enquanto contemplação do espírito (Machado, 2003, p. 290). Aliás, um estudo filológico dos escritos homéricos revela inclusivamente que, no grego antigo, não havia um verbo único para referir a função da vista enquanto sentido estritamente corporal, mas antes diferentes verbos para designar específicos tipos de visão e, sobretudo, os atos mentais a eles associados (Snell, 1953, p. 4). Snell considera que, não existindo uma palavra única para referir o ato sensorial de receber impressões óticas, isso significava que, para a cultura grega clássica, a visão nem sequer era interessante pela sua função corporal básica10.
Esta ambiência cultural tornou-se, então, favorável à aproximação entre a atividade mental e a visão, entre as condições ideais do pensamento e as condições ideais do olhar. E, como sabemos, a metafísica ocidental reproduziu ao limite esta aproximação que marca ainda hoje uma boa parte dos nossos quadros discursivos sobre o que seja pensar (Cavarero, 2006, pp. 35-36). O olho do espírito, a luz da razão, a clareza das ideias. Esta predominância metafórica da visão foi de tal maneira hegemónica que se instalou sem grande sistematização ou questionamento durante séculos, como se se tratasse de um modo apenas “natural” de entender o fenómeno do pensamento. E só na contemporaneidade surgiu um texto que procurou justificar a nobreza filosófica da visão, considerando o seu autor que, apesar de ser uma opinião comum entre os filósofos, a asserção carecia de devida justificação. Em 1966, Hans Jonas assumia então a tarefa contrapondo este grande sentido aos seus congéneres: “O sentido da visão não apenas foi o preferido para fornecer as analogias para a superestrutura intelectual, mas serviu também em larga escala como modelo da percepção em geral, e com isto como padrão e medida para os outros sentidos.” (Jonas, 2004, p. 159). Entre esses outros sentidos estava, obviamente, a audição. A nossa escuta.
Com Jonas retomamos a pergunta da Lara. Será que a voz que ouvimos por dentro é a mesma que as pessoas ouvem por fora? A voz é para a escuta, mas para que escuta a dirigimos? O texto do filósofo alemão intitula-se “A nobreza da visão. Um estudo sobre a fenomenologia dos sentidos” e aquilo que afirma sobre o sentido da audição (que aqui tomaremos como sinónimo da escuta) procura colocá-la numa espécie de sombra dessa grande luz que seria a visão.
Relemos a última frase que escrevemos: “uma espécie de sombra dessa grande luz que seria a visão”. E percebemos como somos apanhadas por algumas armadilhas contidas na linguagem que utilizamos, metaforicamente favorável aos vieses metafísicos que atrás identificamos. É difícil escapar à normatividade que se imprimiu nos modos de falar a partir do universo visual e que, inadvertidamente, invadem o discurso. Prossigamos.
No texto sobre a visão - entendida como “única, porque contempla uma variedade simultânea como tal, que pode estar em repouso” (Jonas, 2004, p. 160) -, a audição surge secundarizada porquanto, para o filósofo, não apresenta as mesmas potencialidades cognitivas. Contudo, quando entramos neste texto a partir das inquietações da pergunta da Lara, fomos surpreendidas por algumas inversões semânticas. Se, na nossa escuta do texto de Hans Jonas, desvincularmos a referencialidade de um sentido a outro e procurarmos entender a audição por aquilo que dela mesma é dito, o que descobrimos nesse movimento? Sintetizamos de seguida.
Porque os sons não revelam diretamente os objetos que os provocam, a audição tem uma fraca função representativa; porque os sons se dão em sequência e não em simultaneidade, a síntese percetiva da audição é um processo meramente temporal; porque os sons são aconteceres dinâmicos que se impõem, a audição é pura passividade perante a intensidade atuante do mundo (Jonas, 2004, p. 161-163). A própria forma como a audição é apresentada assume uma perspetiva desvalorizadora do modo de funcionamento deste sentido, precisamente porque Jonas se coloca num ponto de vista com certas especificidades: a de uma conceção atomista de sujeito autónomo, livre e plenamente atuante sobre o que o rodeia. Por isso, entende que a audição não só não contribui para o aumento de um certo tipo de informação sobre o mundo (rigorosa e objetiva), como ainda vulnerabiliza o sujeito deixando-o à mercê do que venha sem que ele possa ter controle.
Continuemos o nosso excurso pelo texto, movidas pelas pela pergunta da Lara, e tomemos a audácia de deixar cair esta conceção de sujeito. O que pode então ficar? Como se podem ressignificar a conceção da audição e, por ela, da escuta? A audição não visa apenas informar sobre determinados estados de coisas, mas é um dos meios através dos quais o mundo atravessa o sujeito. Um meio favorável a uma experiência presente do que, em cada instante, chega a um aparelho auditivo. Captar o mundo através de sons implica uma atenção extrema e próxima à singularidade de cada acontecimento, assim como permite experimentar o mundo como algo que não está dado todo de uma vez. No mundo tal como a audição o permite encontrar, há ainda lugar ao contingente e ao imprevisto, ao que dura11 (Bergson, 2013). A audição preserva o caráter criador e atuante do que acontece, contraria o afã representador da racionalidade desenhada à imagem de uma visão que tudo abarca e controla na pretensa quietude de um globo ocular dominante. Ouçamos novamente o texto, já despidas da des-consideração da escuta:
“Não se sabe quando um som irá acontecer. Quando ele acontecer, dará notícia de uma ocorrência no ambiente, e não de uma existência constante: e como uma ocorrência, isto é, uma modificação no ambiente, pode a todo o momento ser de decisiva importância para a vida, os ouvidos têm que estar sempre abertos a esta possibilidade. […] Como, pois, toda a iniciativa fica com o mundo exterior, o caráter contingente do ouvir é inteiramente unilateral, e por isso exige uma constante prontidão perceptiva. A razão mais profunda para esta contingência fundamental do sentido da audição é o facto de ele estar relacionado ao acontecer e não ao existir, ao vir-a-ser e não ao ser.” (Jonas, 2004, p. 163).
E agora substituamos “som” por “voz”: Não se sabe quando uma voz irá acontecer. Quando ela acontecer, dará notícia de uma ocorrência no ambiente e, como uma ocorrência, essa voz pode a todo o momento ser de decisiva importância para a vida. Por isso, os ouvidos têm que estar sempre abertos a esta possibilidade.
E agora substituamos “voz” por “voz de uma criança”: Não se sabe quando a voz de uma criança irá acontecer. Quando ela acontecer, dará notícia de uma ocorrência no ambiente e pode a todo o momento ser de decisiva importância para a vida. Por isso os ouvidos têm que estar sempre abertos a esta possibilidade.
o que se pode pensar na partilha das vozes e das escutas?
Dar atenção a isto um tempo longo e espantar-se. Espantar-se de não haver mais nada senão sons, tudo bem atrás disso, o mexer dos rostos, as emoções, a tensão. […] O segredo está em os sons serem diferentes uns dos outros e se encadearem, tais diferenças dão sentido aos sons.
Fernando Belo, Linguagem e Filosofia
Será que a ligação entre voz e escuta permite a instauração de um espaço partilhado? Poderá esse ser um espaço (também) sonoro que precede os falantes e os ouvintes? Ou serão antes os movimentos das sonoridades, entre gargantas e ouvidos, que permitem o eclodir do espaço mesmo da partilha? As vozes de cada falante e os ouvidos de cada escutante serão determinantes do que se vai construindo em conjunto? E o que constitui os falantes-ouvintes e ouvintes-falantes num espaço de partilha?
Entramos na pergunta-inquietação da Lara movidos pela procura do que se pode encontrar no meio das vozes ou entre essas vozes e os ouvidos que as acolhem. Não tanto a voz como recurso para a posterior entrega de conteúdos, ou simples meio de uma finalidade posterior, mas a sua sonoridade, tom e vibração como instauradoras de uma medialidade em que alguém se constitui como falante e logo como escutante (até de si próprio).
Assumir a perspetiva do espaço comum das sonoridades permite descobrir que não existem ideias no geral, abstratas e generalizáveis, ou perguntas em si mesmas autossuficientes. Uma ideia começa em alguém e uma pergunta é trazida por um perguntador. O pensamento dá-se precisamente como partilha e diferença das vozes singulares onde ressoa. As ideias falam na sonorização articulada a partir da qual brota o tal espaço em comum, o pensamento é voz partilhada. Não enquanto encadeamento articulado de ideias consensualmente adotadas por todos os que falam, mas no sentido de se instituir precisamente na diferença que se vai criando a partir das vozes singulares. Estas vozes não transcrevem, traduzem ou interpretam pensamentos prévios (Nancy, 1982, p. 68), mas são elas mesmas um pensamento em ebulição. Um pensamento que se dá nas brechas e margens do que se ouve, precisamente como movimento, transitividade, desvio e diferenças entre falantes-ouvintes. Por isso, o sentido das vozes não pré-existe à sua expressão, não é um dado prévio (anterior ou exterior) ao que se escuta, assim como também não chega só no final do exercício da partilha. O sentido é a própria partilha das vozes porque as vozes não participam, mas particionam o pensamento: "Aquilo que nos entrelaça partilha-nos [tem-nos partilhados], aquilo que nos partilha nos entrelaça" (Nancy, 1982, p. 87)12. A comunidade entende-se como partilha de sonoridades em movimento, faz-se como essa partilha: não de acordo com uma lógica fundadora ou teleológica, relembra Nancy, mas porque este ser-junto é o ser-partilhado do próprio pensamento. Das vozes de que esse pensamento se constitui.
Será que a voz que ouvimos por dentro é a mesma que as pessoas ouvem por fora? A voz da Lara enunciou a sua pergunta num contexto educativo específico: o da comunidade de investigação filosófica (Kennedy; Kennedy, 2012). Os ouvidos que a acolheram estavam em círculo à volta de uma grande folha de papel onde a Lara, pacientemente, escreveu depois a sua inquietação. Depois de a escrever - e enquanto a pergunta ainda ressoava em nós - a Lara olhou longa e pausadamente para o que acabara de partilhar. Confirmava-se, agora na forma de letras desenhadas, a inscrição da voz da Lara no espaço partilhado de um pensamento em comunidade. Começáramos escutando a pergunta da Lara e agora podíamos também lê-la. O que se partilhava? Que comunidade se foi construindo a partir da pergunta daquela criança-falante-ouvinte? O que é que ela nos oferecia e abria ali ao pensar? Durante quanto tempo poderia ressoar em nós? Quanto tempo duraria aquele encontro em comunidade de investigação filosófica? Até que ponto essa duração dependia dos modos como dizer a voz e escutar a voz se entrecortam e reciprocamente se constituem?
Foi a comunidade de investigação filosófica enquanto abordagem educativa que, na Escola da Lara, permitiu o exercício do pensamento enquanto partilha ressoada de vozes, mostrando-se favorável à afetação que a pergunta da menina provocou. Esta abordagem - concretizada no projeto filosofâncias (Santos et al., 2022) - constrói-se precisamente na transitividade das partilhas como sentido próprio das vozes dos presentes. Os posicionamentos ontológicos e epistémicos perante as intervenções das crianças que tornam possível esta abordagem apresentam claras repercussões ético-políticas dentro dos contextos educativos: os seres humanos existem numa permanente interação constitutiva com o mundo, não sendo a subjetividade individual um fenómeno pré-social; o conhecimento partilhado que conta como válido acontece no espaço entre todos os intervenientes educativos, não tendo origem apenas no adulto-professor; o processo de significação do mundo resulta de dinâmicas co-construtivas, não se reduzindo a uma ligação unidirecionada do adulto (entendido como único polo ativo) para as crianças (vistas como polos passivos); e uma vez que as crianças são também detentoras de conhecimento relevante, educam tanto quanto são educadas (Murris, 2013).
O espaço-entre é, por isso, decisivo: por um lado, sendo necessário assegurar-se que a escola abre esse espaço e garante a sua manutenção; e, por outro lado, sendo necessário permitir que seja um espaço atuante onde se possa dar o acontecer. E talvez estes sejam apenas dois lados da mesma moeda. Isto é, para que se garanta a manutenção de um espaço-entre não basta dispor corpos e cadeiras em determinadas configurações. É, sem dúvida, necessário, mas não suficiente porque os participantes podem continuar presos a uma justaposição de partes sem qualquer mudança real e eficaz decorrente da sua reunião. O espaço-entre que permite que perguntas como a da Lara ressoem só começa a existir quando isso que é colocado no meio age sobre os sujeitos, desenhando-os como eles são, quando as vozes ditas e escutadas se tornam partilha e a partilha se faz pensamento. Isto significa que se pode instituir algo designado como “comunidade de investigação filosófica” e ainda assim continuar-se a reproduzir práticas de pensamento em que vozes como as da Lara não tenham expressão. Será talvez impossível enumerar todas as condições que têm de ser garantidas para que aconteça esse espaço de pensamento como partilha de vozes que ressoam. Só nos podemos aproximar de uma reflexão que sublinhe a relevância de determinados aspetos que nos parecem imprescindíveis.
No que se refere às práticas partilhadas da voz e da escuta, e de regresso ao espaço-entre sobre o qual a pergunta da Lara nos levou a pensar, é interessante notar que apesar de ter sido a intervenção que ressoou em nós - a única que registamos na memória daquele encontro - não foi a pergunta que orientou as posteriores intervenções do grupo. Não foi sequer uma pergunta que tenha colhido muitos comentários por parte dos colegas. A Lara voltou brevemente à sua pergunta (numa intervenção que revelou que a menina entendia a voz no sentido literal do termo), mas muito naturalmente se envolveu nas outras dinâmicas discursivas que se iam criando, aderindo sem dificuldade a outros temas que cruzavam os diálogos. Isto significa que os efeitos que uma voz pode ter nos seus escutantes não dependem do que ela provoca no momento em que é proferida. Há muitas e diferentes formas de o eco de uma voz se propagar, física e psicologicamente. Há muitas e diferentes intensidades com que uma pergunta pode afetar quem a escuta, ontológica, epistemológica, ética e politicamente. E talvez isto faça mais sentido se regressarmos ao espaço de partilha de vozes e escutas para repensarmos o modo como entendemos as próprias funções do “falante” e do “ouvinte”.
De um modo geral, as conversas em ambientes educativos formais como a sala de aula pautam-se por um modelo ideal de conversação dialógica em que, à vez, cada interveniente pode assumir a função de orador ou de falante. Este modelo é normativamente adotado como garante do respeito entre todos e da salvaguarda da democraticidade dos processos pedagógicos. Há inclusivamente recursos e estratégias que visam agilizar a imposição desse modelo, permitindo que todas as vozes sejam, de facto, escutadas (Santos; Costa Carvalho, 2017). Mas se, por um lado, é importante pugnar pela manutenção deste modo de gerir os diálogos, por outro lado talvez seja igualmente relevante considerar alguns momentos de desconstrução deste modelo quando se considera o que acontece dentro do espaço de partilha das vozes das crianças. Desconfiar do uso absoluto de termos como ‘falante’ ou ‘orador’ e ‘ouvinte’, sob pena de se representarem as interações de pensamento das crianças como um entrançado ordenado, regular e bem alinhado.
Janet Maybin, a partir do estudo de discursos de crianças em diferentes contextos educativos formais e informais, apresenta a significação dos discursos como um processo ambíguo e intrincado, com níveis de complexidade crescente: “Em vez de um orador comunicar uma 'mensagem' em particular e outro responder na noção convencional de diálogo, havia um processo constante de criação interativa e recursiva de significados entre as crianças. [...] uma criança pode iniciar uma enunciação e outra completá-la ou, retroativamente, minar um significado anterior.” (Maybin, 2006, p. 24)13. Trazendo esta perspetiva para o espaço-entre das vozes e das escutas das crianças, entendemos que não se trata de um espaço de linearidade discursiva e somos novamente levadas à ideia de entrelaçamento de que falava Nancy (1982, p. 87). O que se cria no entrosamento do pensamento partilhado são vozes que nunca sabemos de antemão como ou quando serão escutadas, vozes que não preexistem a essas escutas como unidades de sentido liminar, mas que só se fazem o que são no encontro com aquilo que ultrapassa as suas próprias sonoridades, timbres e intensidades. Vozes que não são, mas que se vão tornando.
Por isso a pergunta da Lara - Será que a voz que ouvimos por dentro é a mesma que as pessoas ouvem por fora? - pode manter-se como a pergunta de toda e cada voz que é partilhada, a pergunta que atravessa e acompanha o próprio exercício da oralidade. As vozes sobrepõem-se, fragmentam-se e depois completam-se, repetem-se e imitam-se, recriam-se, suspendem-se, alargam-se e sussurram-se. E é nesse frenesim que os sentidos se vão criando e que essa criação vai, simultaneamente, criando quem os diz e quem os escuta. E, neste contexto, o exercício da escuta talvez seja o sentido mesmo da construção partilhada de mundo já que nada se diz sozinho e nada se escuta sozinho: as vozes são sempre recebidas e entrecortadas por condições acústicas fora das cordas vocais que as dizem; e os sons chegam de fora sem que se possam controlar. No espaço-entre de partilha do pensamento dito e escutado descobre-se que não há unidades modulares (nem modelares) prévias ao que acontece, ao que se diz, ao que se escuta.
E se, enquanto sujeitos, aquilo em que nos tornamos decorre das interações que praticamos - a subjetividade enquanto função da intersubjetividade e não vice-versa (Biesta, 1994) -, então também uma professora que permite que na sala de aula se abram espaços-entre para que perguntas como a da Lara façam caminho nos seus ouvintes, é ao mesmo tempo uma professora que se constrói de acordo com um certo modo de ser Escola. Os ecos que esta professora permite que surjam na acústica dos seus contextos educativos vão inevitavelmente confundir-se nas sonoridades da sua própria voz. Os modos como convida à escuta vão ser decisivos das vozes que (não) surgem: francas, provocadoras e diferenciadoras... ou conformadas, desistentes e apagadas.
a voz de uma história com perguntas
A tua diferença é o meu espaço de esperança.
Valter Hugo Mãe, As doenças do Brasil
Era uma vez uma pergunta que se fez voz num espaço-entre de escutas partilhadas. Uma pergunta que, como tantas outras nascidas nos corredores de uma Escola, poderia não ter encontrado espaço onde ecoar. Mas encontrou, encontrou-nos. A pergunta da Lara teve uma história própria: da garganta da menina fez-se sonoridade escutada por quem estava com ela na sessão de filosofia, ressoou para além do tempo cronológico desse encontro e esticou-se até à escrita deste texto. Pelo caminho, trouxe consigo outros questionamentos e, com eles, a descoberta de como um pensamento partilhado sobre as vozes que perguntam e são escutadas diz mais sobre nós - falantes e ouvintes - do que poderíamos inicialmente imaginar.
A história que contamos foi a história (do) que nos trouxe até aqui, sobretudo uma história de diferenças. Uma história possível da diferença como abertura de espaços de pensamento sobre o que se vai revelando quando seguimos os encantos de uma voz. E isto, como afirma W. Kohan, “Significa pensar a diferença como acontecimento do pensar, como aquilo instaurado por um pensamento indócil, potente, singular.” (2002, p. 126) A singularidade da pergunta da Lara foi precisamente ser força propulsora do tanto que pensamos sobre modos de dizer, modos de escutar e modos de esse espaço-entre de partilhas de pensamento. Esse espaço permitiu que fôssemos surpreendidas pela potência de uma pergunta porque se fez espaço da diferença. Não só da diferença entre os indivíduos que o compunham, mas da diferença entre o que esperávamos escutar e o que, de facto, escutamos na pergunta da Lara. A diferença entre o que pensávamos sobre a voz das crianças e o que, nessa voz, descobrimos sobre a própria filosofia. A diferença entre um exercício da escuta como registro de afetação filantrópica na qual a condescendência ressoa junto à boa intenção (Nancy, 2002, p. 161) e a escuta enquanto recetividade ao esquivo, ao problemático, ao que provoca perplexidade (Haynes; Murris, 2012). Estas talvez sejam as “diferenças desejáveis” ou “diferenças interessantes” (Kohan, 2021, p. 49) pelas quais importa lutar em educação.
A voz da Lara é a voz de uma pergunta com história, a pergunta de uma criança que permitiu desafiar pressupostos sobre o próprio exercício filosófico do pensamento. Talvez a comunidade de investigação seja o espaço-entre em que a filosofia está sempre em reconstrução, em que a oralidade das vozes e das escutas se reafirma na intensidade das partilhas, em que a partir das margens da racionalidade a infância permite reinaugurar um permanente recomeço, em que reentramos no tempo (Kennedy, 1999, p. 357). Onde a diferença se faz escuta de esperança.