crianças migrantes dos países africanos na educação infantil paulistana: entre o acolhimento e a exclusão
introdução
Este artigo apresenta a percepção do processo de racialização no acolhimento e inserção de crianças negras africanas entre 0 e 5 anos de idade, por professoras da rede municipal de Educação Infantil da cidade de São Paulo. A fim de responder ao objetivo dessa pesquisa, foram realizadas entrevistas com docentes da Educação Infantil, da rede direta e indireta, de modo a procurar compreender como esses atores e atrizes percebem o acolhimento e a inserção das crianças negras africanas migrantes. Isso significa que serão apresentadas três questões de modo articuladas: o racismo brasileiro, o acolhimento das crianças pequenas imigrantes negras nas instituições de Educação Infantil paulistanas e a percepção das docentes a respeito dos migrantes africanos.
A cidade de São Paulo tem sido historicamente destino importante de pessoas oriundas de diversas regiões do país e do mundo. A pluralidade do fenômeno migratório em São Paulo abarca diversas nacionalidades, com presença significativa dos latino-americanos, africanos, haitianos e sírios. A escolha pela capital paulista se dá, na maioria das vezes, por motivos relacionados a melhores oportunidades de trabalho e de estudo, redes de apoio já sustentadas, solicitação de refúgio ou reunião familiar (Sato, 2017).
O espaço da cidade paulistana é marcado pela presença africana, como destaca Sato (2017): na região central da cidade a presença desses imigrantes é significativa, com destaque para o bairro República, que possui restaurantes especializados em comida típica de vários países da África e um forte comércio de rua na Praça da República, com vendedores/as migrantes africanos/as de produtos eletrônicos, réplicas de roupas, relógios e artigos esportivos de marcas famosas, e várias barracas de venda de objetos de decoração, tecidos, acessórios de beleza e produtos, todas com a temática africana. Nas próprias calçadas é possível presenciar vendedoras que ensinam como usar os tecidos para tranças, turbantes e saias. Destaca-se também, como aponta Dias (2019), que a “Galeria Presidente” ‒ ou “Galeria do Reggae” ‒, localizada ao lado da famosa “Galeria do Rock” e importante ponto turístico da cidade, com cerca de seis andares e muitas lojas, quase que exclusivamente gerenciadas e frequentadas pela comunidade africana da cidade.
Há também um aumento da população migrante africana na Zona Leste da cidade de São Paulo ‒ tal fato está relacionado tanto ao âmbito econômico como ao afetivo. Alugar uma casa em bairros na Zona Leste é mais barato e menos burocrático do que em outros pontos da cidade, o que facilita os contratos para as pessoas migrantes. Entre as vantagens encontradas está a não exigência de fiador, seguro ou comprovante de renda, ou seja, tudo é acertado diretamente com o proprietário, o que facilita os trâmites para os migrantes, que em diversos casos não possuem os documentos necessários para assinar contratos com imobiliárias. Em relação ao âmbito afetivo, nas regiões da periferia é possível alugar imóveis maiores, o que favorece a moradia de mais de uma pessoa e a proximidade com conterrâneos (Haddad, 2019).
Tendo em vista essa distribuição territorial da população africana migrante em São Paulo, foram convidadas para a pesquisa professoras da rede municipal de Educação, da rede direta e indireta de Educação Infantil, da região central da cidade e da Zona Leste1.
Nome fictícios | Instituição | Localização em São Paulo |
---|---|---|
Patrícia | CEI Conveniada | Zona Leste |
Pietra | CEI Conveniada | Zona Leste |
Rebeca | EMEI Direta | Região Central |
Sabrina | EMEI Direta | Região Central |
Simone | CEI Conveniada | Zona Leste |
As entrevistas foram construídas de maneira semiestruturada, ou seja, partiu-se de questionamentos básicos, apoiados em teorias e hipóteses que interessam à pesquisa, e em seguida deu-se espaço para os desdobramentos das falas das docentes em relação à temática pesquisada (Ludke; André, 1986). Durante as entrevistas, foi possível conhecer elementos a respeito do acolhimento e da inserção das crianças migrantes africanas, que são congolesas, senegalesas, nigerianas e angolanas2; também foram considerados os aspectos emocionais das entrevistadas, que foram transformados em dados de valor para a pesquisa. Há toda uma gama de gestos, expressões, entonações, sinais não verbais, hesitações, alterações de ritmo; toda uma comunicação não verbal, cuja captação é relevante para a compreensão e a validação do que foi efetivamente dito (da Matta, 1978; Oliveira, 1988).
relações raciais e migração africana
Eu me lembro de uma professora chegar com uma criança angolana e muitas vezes ela me colocava a questão do preconceito que aparecia nas falas, entre as outras crianças, de chamá-la de angolana com caráter pejorativo, “Seu angolano”, como se aquilo fosse algo ruim, parecia que ser angolano era ser mau. (informação verbal)3
A epígrafe desta seção apresenta a fala de uma professora em relação à percepção de uma criança angolana. O imaginário da miséria e da pobreza como partes fundantes dos países africanos corresponde a um dos elementos reverberados pelo ideário racista e propaga uma ideia sem que se tenha a dimensão de que esses países não são atualmente pobres, mas possuem altas taxas de renda acumuladas em poucas mãos, o que se reflete no baixo índice de distribuição de renda entre a população (Fonseca, 2015). Em relação a esse estereótipo, transcreve-se a fala da professora Sabrina:
Muitas vezes você acha que o pai, porque é da África, do Haiti, do Congo, da África do Congo, do Senegal, vem com estereótipo de que não tem estudo. Entendeu? Essa mãe foi legal para tirar esse estereótipo. Por quê? Porque essa mãe do Congo estava em situação de refúgio político, ela até dizia que não poderia falar muito e é claro que tomávamos cuidado com isso. Essa mãe tinha uma formação muito boa na área de informática e aqui no Brasil ela dava aulas de francês. Inclusive uma das jornalistas que esteve na unidade passou a ter aula com essa mãe. Eu acho que o primeiro passo é isso, porque sempre vem o estereótipo. Se a pessoa vem em uma condição precária tem que ser vista como um ser humano igual a qualquer outro, mas, muitas vezes, apenas por ser africano e negro, eu acharei que ela não tinha estudo nenhum. Quando essa mãe veio, contou um pouco sobre como tinha sido a infância dela. Eu não lembro se ela era exatamente do Congo, porque era uma família que tinha passado por vários países. Mas era uma família de um país da África, apenas não me recordo se ela era do Congo ou era do Senegal e foi para o Congo. Por último eu sei que eles tinham passado pelo Congo. Essa mãe conta como era a escola dela em seu país, cantou para as crianças e ensinou uma cantiga em francês. É bárbaro, porque tem aquele estereótipo de que o africano não tem conhecimento. O mais legal é que ela não ficou somente no francês, que é bem eurocêntrico, depois ela ensinou algumas cantigas em uma língua de uma região que agora não me recordo. Esses países geralmente têm mais de uma língua. As crianças acabaram aprendendo a cantar também nessa outra língua. Eu lembro que a criança dela se destacava muito por ensinar aos amigos as cantigas, tinha uma fluência muito boa no português e era muito interessante ver aquilo. Sabemos que aquela mãe de certa forma quebrava um pouco dos estereótipos das pessoas. O empoderamento daquela mãe ajudava a quebrar um pouco desse estereótipo. (informação verbal)4
Ainda se recorre à ideia ocidental de África para descrever esse continente, pois segue presente no nosso imaginário social que a África se constitui como um continente extremamente pobre, sem nenhuma tecnologia e marcado pela fome. Essa imagem é resultado de uma interpretação eurocêntrica a respeito dos países africanos. Ainda é muito comum no Ocidente uma visão estereotipada que associa a África ao passado, que a vê como “o berço da humanidade” ligado somente a aspectos primitivos, o que é reflexo das lacunas perenes na historiografia em relação ao continente. A historiografia europeia, como destaca Appiah (1997), era baseada na ideia de que a principal fonte de informação sobre uma civilização está nos arquivos, e foi isso que tornou o passado africano invisível para ela. Para além desse aspecto da historiografia eurocentrada, Ki-Zerbo (1982 apudFonseca, 2004, p. 59) ressalta que “durante muito tempo, mitos e preconceitos de toda espécie ocultaram ao mundo a verdadeira história da África. As sociedades africanas eram vistas como sociedades que não podiam ter história”.
Diante desse contexto, torna-se fundamental destacar que
[...] pode-se argumentar que “África” é um lugar material e imaginado, uma geografia histórica, a constelação de lugares e pessoas inseridas em seu âmago conceitual. Trata-se de uma invenção, tanto quanto a noção de “Ásia” ou “Europa” - que, geograficamente, são um só continente - ou quanto os constructos ainda mais burlescos do “Ocidente” e do “Oriente” - e outros espaços civilizacionais desse tipo. Mas “África” tem uma realidade física, política, psíquica e paradigmática para as pessoas que vivem dentro ou são moldadas por essas fronteiras cartográficas e culturais e que estão sujeitas a mudanças espaciais e transformações históricas. Eu diria que a “África” é mais “africana” hoje do que já foi um dia, pois é cada vez mais um constructo produzido e consumido em todo o continente. (Zeleza, 2020, p. 910)
Destaca-se a obviedade de que as ideias hegemônicas dependem das hegemonias do poder material que as constroem. Portanto, a ideia de África que se tem hoje é resultado do processo e do posicionamento político das nossas estruturas de poder, que reproduzem a lógica do processo colonial ao colocar como foco do desenvolvimento somente a Europa e as suas civilizações. O continente africano é concebido como berço da humanidade, mas não da civilização: como a professora aponta em seu relato, “tem aquele estereótipo de que o africano não tem conhecimento”. Mbembe (2018) destaca que
[...] a palavra ‘África’ ocupa o lugar de uma negação fundamental da humanidade e justiça. [...] Essa negação é, no fundo, resultado do trabalho da raça: a negação da ideia do comum, isto é, de uma comunidade humana. Contradiz a ideia de uma mesma humanidade, de uma semelhança e de uma proximidade humana essencial. (Mbembe, 2018, p. 104)
Essa percepção está atrelada ao processo de racialização, e é pautada pela hierarquização e negação do outro, constituída sobre uma base histórica e cultural de processos discriminatórios, marginalizadores e criminalizadores da população africana e de seus descendentes. Processos que criam a ideia de que a humanidade não pertence a todos, transformam em coisas aqueles que não pertencem ao seu grupo étnico e proporcionam experiências distintas para os sujeitos que constroem a sociedade (Santiago, 2020). Entretanto, esse mecanismo não é um mero “preconceito”. Sua “força” depende, sobretudo, das hierarquias, do sistema de privilégios e da violência material da qual é veículo, e que não se constitui simplesmente como um estereótipo. As sociedades racistas se formam, precisamente, a partir da proliferação de espaços e nichos altamente hierarquizados e racializados que, de alguma forma, transcendem a vontade e a subjetividade de indivíduos e grupos (Curcio; Mellino, 2012).
A longa lista de ausências atribuída aos povos africanos é usada pela colonização para subjugar esses mesmos povos, e menciona a ausência de história, cultura, alma, responsabilidade e fala (Achebe, 2012). A racialização está no cerne das tentativas de apagamento das culturas não europeias, estruturando o pensamento colonial/eurocêntrico, ecoando a ideia de que à humanidade não pertencente a todos (Santiago, Faria, 2021). Para um racista, somente o seu povo é capaz de produzir realizações morais, intelectuais ou culturais, ou de características que o façam tornar-se admirável ou atraente (Appiah, 1997). Mbembe (2017) descreve que a noção de raça permitiu que se representassem os sujeitos não europeus como se fossem seres inferiores, assimilados pela ausência, ou por uma presença ligada à ideia de monstros. Os africanos tornam-se, assim, uma invenção do sistema racial, e essa ideia é reforçada quando se pensa nas pessoas migrantes negras, que são vistas em diferentes momentos como pessoas desprovidas de tudo, como sujeitos sem humanidade.
Se aprofundarmos a questão, a raça será sempre um complexo perverso, gerador de medos e tormentos, de problemas de pensamento e de terror, mas sobretudo de infinitos sofrimentos e, eventualmente, de catástrofes. Na sua dimensão fantasmagórica é uma figura da neurose fóbica, obsessiva e, porventura, histérica. (Mbembe, 2014, p. 25)
Diante desse contexto, a migração africana negra no Brasil não somente sofre os efeitos perversos ligados à xenofobia, mas também passa a vivenciar práticas racistas, pautadas no processo de racialização. E isso acontece porque, no Brasil, as relações entre negros e brancos são marcadas por desigualdades sociais e raciais que se refletem na história da migração, que foi seletiva e excludente e não acolheu ‒ e ainda não acolhe ‒ a população migrante não branca da mesma forma que acolhe a população de origem europeia (Demartini, 2004; Freitas; Silva, 2015).
Pesquisa como a desenvolvida por Farah (2007) afirmam que muitos estrangeiros negros, ao adotarem como residência um país majoritariamente negro como o Brasil, esperam que a sociedade tenha menos práticas racistas, mas o cotidiano lhes revela espaços segregados, políticas segregativas e racismo estrutural5. Com efeito, a repulsa ao estrangeiro, a xenofobia, revela o traço comum às discriminações raciais. Para a efetivação desse processo, inúmeras ações cotidianas fortalecem estereótipos, e fixam destinos preestabelecidos para as crianças negras, as mulheres negras e os homens negros. Como apontam Pavez et al. (2019), a racialização da população migrante se manifesta em diferentes áreas da convivência social, tanto no âmbito institucional quanto no cotidiano, e surge uma imagem particularmente racista em vista da população afrodescendente migrante, que acarreta barreiras e controvérsias sociais. A esse respeito, observa-se o relato de uma professora que comenta alguns aspectos racistas envolvendo a imagem das famílias migrantes africanas:
As pessoas que estavam na gestão antes de mim foram fazer aquela orientação de boas-vindas: Olha aonde você está chegando, como eram as famílias, como eram os espaços e como eram os trabalhos das professoras ‒ me deixando a par do espaço que eu ia atuar na gestão. Entre um comentário e outro foi justamente esse tocado na questão que a unidade recebia famílias africanas: a gente não consegue se comunicar muito bem, porque eles quase não falam nossa língua e eles cheiram muito mal. Eu: mas como assim? Cheiram mal? É eles cheiram mal! Quando eles entram aqui já deixa um rastro, assim quando eles passam o rastro de mau cheiro, eles não tomam banho. E eu escutando tudo, contra-argumentei: já conversou com alguém? Já tentou entender se de repente a pessoa está morando num lugar que não tem um chuveiro? Será que ela consegue tomar banho? Será que os vizinhos emprestam água? Se ela não tem água em casa não é uma questão de ser africano é uma questão social, né? Entretanto, as pessoas continuavam a dizer: Ah não, não! É costume deles mesmo, é um costume deles não tomar banho lá na África. Eles não tomam banho. Elas tomaram isso como um costume africano e só que aí felizmente o meu olhar foi para outro ponto de vista, porque quando eu comecei a conversar com as professoras e elas trouxeram tanto de coisas interessantes e os olhos delas brilhavam quando falava das roupas das mulheres: eles têm umas roupas coloridas, tão lindas! não dá vontade de usar? A mãe da criança vem com uns turbantes maravilhosos, ela disse que ela mesma que amarra. Então, o olhar das professoras era outro, e elas que conviviam com a criança supostamente malcheirosa e com a mãe que vinha buscar criança na porta, elas aqui conviviam, mas elas não me relataram isso, mas essa as pessoas da gestão tinham esse olhar já enraizado. E daí, eu tentei, por muitos meios mostrar para elas o que tinham ali era muito bonito, e trazer texto, sei lá vídeos para que elas pudessem entender um pouquinho da dinâmica africana, mas parece que nada, nem um esforço meu adiantava. Então aí eu baixei um Decreto da gestão, então... eu posso baixar um de vez em quando, eu não consigo, eu não sou, eu não sou, eu não sou dessa linha de gestão, mas às vezes a gente é obrigado a tomar algumas atitudes mais radicais e daí. Aí eu chamei as duas bonitas e falei olha a partir de hoje é proibido falar mal de pessoas africanas ou de quaisquer outras pessoas aqui de dentro! É proibido, eu não quero ouvir falar isso aqui. Eu estava chegando, elas ainda não sabiam se eu tinha poder mesmo, ou não tinha, né? aquele poder assim, né? aí será que ela é amiga do mantenedor? Vamos deixar, vamos obedecer, a gente ri, mas o negócio é feio viu! Foi só dessa maneira que eu consegui ter um pouquinho de respeito nas conversas principalmente das questões das crianças africanas. Cada pessoa tem um tempo para assimilar as coisas, e eu não sei se elas assimilaram até hoje. (informação verbal)6
O estereótipo do negro sujo, ou incivilizado, assume função de justificativa do preconceito, e fornece as razões subjacentes à recusa de grupos migrantes. A função do estereótipo é, por um lado, justificar a conduta em relação a certos grupos ou indivíduos e, por outro lado, fornecer elementos para a preservação dos imaginários em relação a determinados grupos étnico-raciais. A função justificadora do estereótipo prevalece com o propósito de caracterização dos atributos específicos do grupo migrante (Alietti; Padovan, 2000).
O estigma relacionado à falta de higiene também é colocado sobre outras crianças migrantes. Como aponta Silva (2016), as professoras relatavam em sua pesquisa que as crianças bolivianas não eram enviadas para a escola com condições adequadas de higiene, e era utilizado o adjetivo “fedidas” como forma genérica de descrever essas crianças, o que estabelecia a “falta de higiene” como um aspecto cultural “deles” ou até mesmo da questão “genética”.
A manutenção de estereótipos negativos em relação a determinados grupos é uma perspectiva de autogratificação, e isso ocorre principalmente no caso em que os julgamentos afetados pelo preconceito se expressam em um contexto social marcado pela desigualdade, “o sujeito negro torna-se então aquilo a que o sujeito branco não quer ser relacionado” (Kilomba, 2019, p. 34).
Em paralelo a essa análise, pode-se levantar as seguintes questões: quem são os sujeitos que têm acesso à água encanada em suas residências? Quem no Brasil tem acesso ao saneamento básico? A cor é um critério objetivo de estratificação, além disso, remete o indivíduo a uma raça, remete-o a uma classe. É, portanto, símbolo de uma classe (Almeida, 2019). Na lógica hierárquica das práticas racistas, a cor foi selecionada como marca racial que serviria para identificar socialmente os sujeitos; passou a ser “um símbolo da posição social, um ponto de referência imediatamente visível e inelutável, através do qual se poderia presumir a situação de indivíduos isolados, como socius e como pessoa” (Bastide; Fernandes, 2008, p. 95).
Lamentavelmente, vê-se presente uma imagem negativa em relação aos migrantes africanos negros. Os discursos privilegiam a questão racial, apontam percepções a respeito do que é ser um migrante africano e trazem elementos correlacionados ao seu pertencimento étnico-racial, à sua condição socioeconômica, à sua cultura, ao seu pertencimento de gênero etc. Muitas vezes, é por intermédio desse discurso que estereótipos e preconceitos sobre o que é ser negro e migrante são reproduzidos. Acoplada a essa ideia encontra-se ainda a noção de racismo de Estado: “[...] um racismo que uma sociedade vai exercer sobre ela mesma, sobre seus próprios elementos, sobre os seus próprios produtos; um racismo interno, o da purificação permanente, que será uma das dimensões fundamentais da normalização social” (Foucault, 2005, p. 73).
Em paralelo a esse processo, os africanos também enfrentam muitas dificuldades em relação ao aspecto da “estrangeiridade”:
Tinha uma moça que sempre me contava algumas coisinhas de portão, porque quem abre o portão sabe muito o que acontece. Percebíamos isso, esses estereótipos vinham. “É angolano, vem tirar os nossos empregos, a vaga da escola”. Essa unidade em que fiquei algum tempo, elas diziam que tinham pais… A secretaria é um lugar bom de ouvir porque eles pegam no ato da matrícula. Nos últimos anos que passei lá eu não cheguei a presenciar, mas elas disseram que anteriormente pais brasileiros chegavam reclamando que não tinha vaga porque as crianças estrangeiras, eles usam esse termo mais pejorativo, vêm e pegam as vagas das crianças e por isso eles não conseguiam vaga. (informação verbal)7
A condição de não cidadão é posta para os estrangeiros em posição de diferente dentro de um conjunto, e formam assim um subgrupo vulnerável à exclusão e a “diversas formas de discriminação, racismo, opressão ou estigmatização do grupo minoritário e seus membros” (Elhajji, 2017, p. 206). As atuais “cidadanias exclusivas”, que reforçam a ideia dos nacionais ‒ aqueles que possuem a cidadania de um país e podem ter a exclusividade dos direitos de cidadão ‒, apenas alimentam a proliferação contínua de espaços diferenciais (incluindo a circulação) e sujeitos hierarquicamente e juridicamente diferenciados (Mellino, 2017).
É preciso salientar ainda que, no contexto brasileiro, como destaca Bano (2019), o governo do país deixou o Pacto Global das Migrações, que é um acordo entre os Estados-membros da Organização das Nações Unidas (ONU) com o objetivo de reconhecer a migração como uma realidade mundial que nenhum país pode resolver isoladamente. O documento também busca promover a cooperação internacional, e define para isso princípios orientadores em um quadro político multilateral, com base na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, na Convenção das Nações Unidas contra Crime Organizado Transnacional, no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e em outros tratados internacionais de direitos internacionais mencionados no início deste capítulo.
A ideia de não cidadão reverbera também no cotidiano da Educação Infantil, como se pode perceber na cena que uma professora recontou durante a entrevista:
A criança estava agitada, aquela coisa de criança mesmo, e a professora olhou para ela e falou: “Se você não se comportar, eu mandarei você de volta para o seu país”. Quer dizer, extradição da criança. Eu imagino que pode acontecer de falar, “eu te mandarei para o Haiti; eu te mandarei de volta para a Angola”, eu imagino que possam aparecer situações como essa. Essa eu cheguei a presenciar em uma outra ocasião, em uma outra unidade e me assustou muito. Falei, “estão querendo extraditar a criança”. (informação verbal)8
Diante desse quadro, “os africanos no Brasil tornam-se objetos de uma dupla discriminação: são negros e africanos, condição que os colocam numa categoria abaixo, por exemplo, dos negros brasileiros” (Vargem; Malomalo, 2015, p. 20). Nesse processo, há uma correlação direta entre o racismo e a xenofobia, que possui, em seu interior, a mesma origem histórica de estruturação e ação, e visa à manutenção de privilégios hierárquicos e à exploração dos diferentes povos. No entanto, como aponta Bano (2019), a xenofobia é uma questão que pode atingir os refugiados e migrantes de modo geral, independentemente da idade ou da nacionalidade; já o preconceito racial é uma questão que pode atingir todos os refugiados e migrantes negros.
Atrelada a este processo ainda está a ideia de ausência, de que os migrantes negros vêm para o local para tirar vagas de emprego, pois em seus respectivos países não têm condições mínimas de sobrevivência, e vão para o outro país para retirar oportunidades dos cidadãos daquela nação. A figura do migrante permite a reprodução da figura do cidadão, pois o cidadão não é uma presença auto evidente, existe a partir do outro, aquele que não pertence à nação. O Estado tem o poder legítimo de discriminar as pessoas, ao regulamentar o acesso de não cidadãos ao território, processo que é marcado por elementos racialmente construídos (Grappi, 2012).
Diante desse contexto, a migração africana negra no Brasil não somente sofre os efeitos perversos ligados à xenofobia, mas também passa a vivenciar práticas racistas, pautadas no processo de racialização. Como destaca Mattos (2016, p. 35), os migrantes vindos da África carregam em sua pele o estigma de sua origem africana e de sua ‘raça’, e são facilmente distinguidos dos demais devido à sua cor, religião e cultura, o que ocasiona uma dificuldade maior de se integrarem plenamente na sociedade.
A xenofobia racializada que nos caracteriza - embora também seja encontrada nos países centrais, dado que também foram marcados pelo colonialismo - desloca a aforofobia para um intricado complexo de exploração, discriminação e opressão, onde os significantes mobilizados pela aparição de determinados corpos, corporeidade e indumentárias transcendem a dimensão meramente econômica ou nacional. (Faustino; Oliveira, 2021, p. 204, grifo dos autores).
A racialização da população migrante se manifesta em diferentes áreas da convivência social, como apontam Pavez et al. (2019), tanto no nível institucional quanto no cotidiano; surge uma imagem particularmente racista em vista da população afrodescendente migrante, o que acarreta barreiras e controvérsias sociais. Os dados das entrevistas realizadas com as professoras apontam também inúmeros momentos nos quais as participantes associam os migrantes do continente africano àqueles do Haiti, pela tonalidade da cor da pele, o que evidencia a superioridade do preconceito racial em detrimento aos outros. Como aponta Essomba (2021), a cor da pele e o território de nascimento ainda são os dois elementos que influenciam diretamente o processo de inserção dos migrantes na nova sociedade.
Esses “novos” migrantes terão uma inserção diferenciada no país devido a sua nacionalidade e cor. Isso ocorre porque as relações raciais no Brasil são marcadas por desigualdades socio raciais e refletem na história da migração, que, em busca de uma identidade nacional aos moldes europeus, foi seletiva e excludente, e não acolheu e ainda não acolhe a população migrante não branca da mesma forma que acolhe a população as de origem européia (Alexandre; Abramowicz, 2019, p. 33).
Esse cenário explicita o conflito racial presente em nossa sociedade, e pode ser observado também no espaço da Educação Infantil. Em uma das falas de Rebeca, a dificuldade de receptividade a uma criança negra africana é explicitada:
Eu comecei a ver que havia uma estranheza das famílias. E eu comecei a provocá-las a pensar sobre isso através de comandas de atividade. Eu percebia nas devolutivas quanto elas estavam: “É essa que é a Felicidade? Que legal. Que bom que tem uma criança de fora para nos ensinar coisas novas.” Porque a Felicidade ensinou uma brincadeira, de como ela brincava na África, para as crianças. As crianças também ensinaram. A Felicidade aprendeu brincadeiras. Mas eu lembro que uma coisa que marcou muito, que eu lembro da Lúcia, que foi essa que teve o estranhamento, que eu percebi que não era um estranhamento só por ser uma criança nova, mas era um estranhamento por ser uma criança negra e estrangeira que estava chegando ali. E que ela tinha uns pré-conceitos. Eu percebi depois nas relações que havia. E não era só a Lúcia. Era de outras crianças também. E todo dia que a Felicidade chegava, eu fazia o empoderamento dela. “Olha esse cabelo da Felicidade que coisa mais linda. Olha esse vestido da Felicidade.” Um belo dia a Lúcia chegou com o cabelo trançado na sala. Ela chegou e fez: “Pro, olha o meu cabelo como está igual ao da Felicidade.” Eu falei: “Que legal, Lúcia. Quem fez para você?” “A minha avó. Eu pedi para a minha avó fazer a trança no meu cabelo igual à da Felicidade.” Eu percebi depois que isso foi melhorando. Eu descobri que isso mudou. Mas eu acho que não foi uma coisa que mudou totalmente. Eu percebi ainda as crianças com algumas falas pejorativas, quando estavam no parque, por exemplo. Falas no sentido assim, de deixar a Felicidade sozinha em algumas situações, pois ela era feia. E depois eu comecei a perceber que não era só com a Felicidade, mas sim tinha a ver com a cor da pele mais escura. E às vezes eu ficava perto para ouvir as narrativas, para ver o que estava rolando ali na conversa delas. Porque tanto a Felicidade como essas outras crianças precisavam de ajuda. Essas crianças também precisavam de que nós quebrássemos, de certa forma, esses racismos cotidianos que são instaurados no cotidiano da Educação Infantil. (informação verbal)9
A mesma professora da Educação Infantil da rede de São Paulo, Rebeca, aponta que desde o primeiro dia da chegada de Felicidade (menina africana negra), as crianças demostraram desconforto:
Eu lembro que quando a Felicidade chegou na sala, era uma turma de Infantil 1, às 7h da manhã. Ela entrava nesse horário mais cedo. Eu lembro que quando ela chegou, ela chegou com umas roupas típicas do lugar dela lá da África. Uma roupa muito colorida, um vestido muito colorido. E o cabelo todo trançado, colorido com fitinhas, miçangas no cabelo. Essa turma que eu tinha era uma turminha muito... umas crianças muito dóceis, afetuosas umas com as outras. E eu lembro que uma das crianças disse assim: “Que é isso?”. E eu disse: “Por que, Lúcia?” Quando eu perguntei a ela por que, ela mudou a feição dela. Eu falei assim: “O que você achou? Você estranhou alguma coisa, Lúcia?” Ela fez: “Ela é muito diferente, olha!”. A Felicidade era uma criança mais alta que as outras, ela era maior, de tom de pele único e lindo. Eu comecei a observar. Eu fui fazer a integração dela com as crianças. Contei: “Olha, a Felicidade vem de outro país, longe daqui. Ela vai trazer tanta coisa para conhecermos sobre o país dela. E vocês podem contar sobre o nosso país para ela também. Para aprendermos juntos.” As crianças ficam curiosas. Só que nisso tudo eu comecei a observar, com o tempo, com os dias passando, a Felicidade isolada, a Felicidade triste. E eu sempre falava: “Gente.” Quando ela chegava de manhã, estava todo mundo já com o seu grupinho sentado. E a Felicidade chegava sempre mais atrasada que os outros. E ela ficava no meio da sala esperando, e ninguém a convidava para brincar. Eu falava: “Olha, Felicidade, escolhe um lugar para você sentar.” Eu percebia que ela esperava que alguma criança convidasse. E eu falava para as crianças: “Quem vai convidar a Felicidade hoje para sentar?” Os meninos chamavam e as meninas não chamavam. Eu comecei a ver um problema ali. Eu falei: “Ai.” E eu comecei a estimular, sempre provocando as crianças para aceitarem ela, para convidarem ela. Só que com todas as mediações que eu fui observando, no parque eu observava que a Felicidade também ficava isolada. A Felicidade não estava integrada ali porque as crianças não a convidavam, não a queriam como uma amiga. Elas já estavam com as suas parcerias formadas e não estavam abrindo espaço para uma nova parceria. Principalmente as meninas. Eu lembro que um desses dias a Felicidade veio chorado para mim. E eu falava: “O que foi? Por que você está triste?” E ela não conseguia me dizer o porquê. E ela começou a perceber que não era só porque ela era uma criança nova na sala. Tinha a ver com a pele dela, com suas roupas, com seu tamanho. Porque outra criança veio para mim e falou assim: “A Felicidade está chorando porque a Lúcia falou para não brincar com ela porque ela é fedida e preta” Eu falei? “Ah, foi?” Chamei: “Vamos conversar. Lucia, vem cá. Conta para mim o que aconteceu.” Ela falou: “É porque a cor dela é fedida.” Resumindo a história, tinha uma questão racial muito forte ali entre as crianças que eu precisava mediar. (informação verbal)10
O estranhamento pela cor da pele, pelas roupas e tranças de Felicidade expressa uma dimensão maior presente na sociedade ‒ o racismo que estrutura as relações sociais no Brasil. Como destaca Mbembe (2018), em larga escala, em larga medida, o racismo é o motor do princípio necropolítico:
[...] racismo é acima de tudo uma tecnologia destinada a permitir o exercício do biopoder, "este velho direito soberano de matar". Na economia do biopoder, a função do racismo é regular a distribuição da morte e torna possíveis as funções assassinas do Estado. Segundo Foucault, essa é "a condição para aceitabilidade do fazer morrer" (Mbembe, 2018, p. 18).
As hostilidades em relação aos migrantes negros não se esgotam em olhares depreciativos ou palavras agressivas, elas também estão presentes no modo pelo qual a sociedade se estrutura. Também vê-se cotidianamente como descendentes de migrantes europeus atacam os “novos migrantes”. Convém ressaltar que somos um país fruto do processo migratório, seja ele forçado ou voluntário. Esses fatos, assim como olhares, palavras e gestos, cotidianamente fazem com que cada pessoa, e notadamente as crianças, deem-se conta de que a sociedade lhes reserva certos lugares, oportunidades e direitos e as exclui de outros. Os preconceitos sobre os quais se constrói a nação brasileira continuam cultivando sentimentos e ideias de que para pertencer à humanidade é preciso ser descendente de europeus, é preciso ser branco.
As diversas experiências raciais, de classe e de gênero na imigração internacional precisam ser compreendidas também nas instituições escolares, para ampliarmos os sentidos críticos da educação intercultural, encontrando as distintas variáveis que contribuem para o processo de inclusão de famílias de diferentes contextos na rotina escolar (Russo; Mendes; Borri-Anadon, 2020, p. 270).
O olhar etnocêntrico, de algum modo, sempre estigmatiza o outro. Existe um “choque cultural” que também se faz presente no contexto da Educação Infantil, como se observam nas falas das docentes Pietra e Simone:
Pietra:
[...] a gente tem muita dificuldade com os costumes, nós temos uma criança, por exemplo, que usava um acessório como se fosse um cinto, vai com uma faixa, ou um colar, eu não sei exatamente que palavra usar, mas ela usava na cintura, o olhar da professora era assim: nossa!!!! Está machucando, mas vai machucar a criança quando a gente se deitar para a troca vai apertar aqui, apertar ali... e aí na época a gente tentou entender com a mãe o que era aquele cinto, e a mãe com toda a dificuldade de linguagem, conseguiu dizer para a gente que era um costume de lá do seu país. Confesso, nós na creche não tínhamos muitos elementos para entender aquilo, e naquele momento não houve um grande esforço. (informação verbal)11
Simone:
Solange entrou com 11 meses, dando os primeiros passos, e quando ela fez um ano, ela chegou na creche de touca. E quando eu cheguei, a minha auxiliar de sala disse olha, a Solange está de touca, mas, eu ainda não tirei...E como estava calor, fui tirando a roupa e quando tirei a touca, ela estava careca! E eu percebi que ela ficou tímida... E aí, eu falei: Olha, a Solange cortou o cabelo! Que bonita! E tal... Elogiamos e brincamos. Deixei-a um pouco de touca para ela aceitar... E aí que a mãe chegou. E aí eu perguntei, né... Aí ela falou assim: você viu o visual novo dela? Eu falei vi, que bonita, e ela falou na minha cultura, quando a criança faz um ano, a gente se desfaz de todo pertence dela! Tudo. Cabelo, roupa, tudo... Ela tá vivendo novo círculo da vida e ela se desprende daquilo, né. (informação verbal).12
A pluralidade de culturas também se faz presente nos momentos de cuidado da Educação Infantil e coloca as dimensões afetivas, como o respeito ou a reciprocidade, como elementos-chave da relação intercultural. Como ponto de partida, destaca-se ainda a inferiorização da cultura africana de algum modo, principalmente quando se refere aos países africanos na seguinte forma: “um costume de lá do seu país”, e não traz para a discussão elementos que caracterizem a identidade e os aspectos presentes nesse contexto em que se produz a prática descrita pela docente. Essa não caracterização reverbera o próprio racismo estrutural presente em nossa sociedade, o que reforça os processos de apagamentos que retroalimentam as estruturas da racialização.
As falas das professoras trazem também elementos que explicitam o contato direto entre diferentes culturas, tanto a presença de objetos que adornam o corpo, quanto o ritual de passagem realizado pela família com a criança são elementos culturais que colocam diretamente essas docentes em contato com uma cultura distinta da delas, o que provoca tanto o estranhamento quanto a curiosidade para saber quais os significados que carregam aqueles elementos na cultura em que os pais, mães e responsáveis das crianças africanas se constituíram como sujeito.
As diferentes práticas de cuidado voltadas para a primeira infância dependem de aspectos culturais estritamente ligados a uma série de fatores, como a localização geográfica e climática do território de vida, a organização da família, o papel da mulher e dos outros membros da comunidade familiar, a concentração da infância e o conjunto de valores individuais e coletivos presentes na educação dos bebês e das crianças bem pequenas, que são a expressão de relação intrínseca entre fatores biológicos e a cultura que determina rituais e modos de cuidado do corpo desse novo membro da sociedade (Lorenzini, 2006).
O encontro intercultural propicia um convite para a construção de uma prática educativa que reconheça a multiplicidade de expressões culturais, no entanto, isso não significa uma aceitação acrítica; pelo contrário, o convite tem como intuito incentivar a identificação das possibilidades de comunicação recíproca e assegurar que seja precisa ao analisar a multiplicidade de cada pertencimento individual, garantindo, assim, o direito do exercício da humanidade de cada sujeito. Como afirma Gusmão (1999, p. 46):
A cultura e seu movimento incorpora ainda uma outra dimensão que é seu caráter de mediação, ou seja, aquilo que faz com que as condições objetivas de vida sejam expressas pelos sujeitos sociais, não pelo que de fato são e representam, mas pela forma pela qual o real é significado, percebido e interpretado. Cabe aos indivíduos e grupos, perceber, significar e interpretar a si mesmos em relação ao que vivem e experimentam e que, impregnam a textura social do cotidiano, enquanto imagem, rotina e ruptura, enquanto universo significante que é parte da vida vivida, pensada, sentida e concebida.
As trocas interculturais envolvem todos os sujeitos presentes nas ações pedagógicas, não é somente um elemento desenvolvido com a criança migrante, mas sim com toda a equipe pedagógica, por ela estar imersa nessa nova percepção das culturas e das relações sociais. Isso induz as creches e as pré-escolas a abandonarem a perspectiva etnocêntrica que ainda parece dominá-las para assumir uma visão mais ampla, que tenha como fundamento o diálogo e seja mais dinâmica, aberta a novos horizontes (Poletti, 1992).
Os momentos de cuidado de crianças de origem estrangeira na creche constituem um contato entre diferentes culturas, por meio das técnicas de produção simbólicas realizadas no corpo, tanto por parte das professoras e professores quanto das famílias. Os métodos de tratamento podem ser profundamente diferentes e, se não forem colocados em diálogo, podem criar separação e desconfiança mútua, que se materializam na relação com a criança (Lorenzini, 2006). Os aspectos culturais proporcionam aos docentes a possibilidade de conhecer o outro, ou seja, o migrante ou a migrante, de modo a estabelecer uma relação mais próxima com eles, renunciar o olhar etnocêntrico e assim estabelecer uma relação intercultural. Para isso, é imprescindível uma abertura nas formas de conceber e nomear o que seja certo e verdadeiro; destaca-se ainda que as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil ‒ DCNEI afirmam que um dos princípios fundamentais na Educação Infantil é o respeito às diferentes culturas:
Desde muito pequenas, as crianças devem ser mediadas na construção de uma visão de mundo e de conhecimento como elementos plurais, formar atitudes de solidariedade e aprender a identificar e combater preconceitos que incidem sobre as diferentes formas dos seres humanos se constituírem enquanto pessoas. [...] É necessário criar condições para o estabelecimento de uma relação positiva e uma apropriação das contribuições histórico-culturais dos povos indígenas, afrodescendentes, asiáticos, europeus e de outros países da América, reconhecendo, valorizando, respeitando e possibilitando o contato das crianças com as histórias e as culturas desses povos (Brasil, 2009, p. 89).
A construção de uma pedagogia intercultural requer profundas transformações no nível didático: a prática educativa é chamada a tornar-se cada vez mais interdisciplinar, de modo que favoreça oportunidades reais de encontro, escuta e diálogo. Assim, cabe aos professores e professoras buscar por estratégias adequadas para a construção de um contexto que acolha e facilite o contato, já que a creche é um dos primeiros lugares de troca entre crianças e famílias de diferentes culturas que acabam de chegar no país que as acolhem (Bolognesi; Rienzo; Pileri, 2006). Paralelo a esse trabalho de abertura para o respeito a outras culturas, o processo de acolhimento intercultural também perpassa o modo pelo qual a instituição articula os elementos físicos - cantinhos, brinquedos, decoração etc. - com a proposta da interculturalidade. Nossas escolhas organizativas proporcionam diálogos culturais ‒ ou não; pode-se perceber um exemplo desse processo na entrevista da docente Sabrina (2021):
Às vezes o acolhimento é em gestos, em olhares, nas múltiplas linguagens, na escuta. Isso tem que estar até nas paredes da unidade, foi a conclusão a que cheguei. Nunca esqueço de uma mãe que estava fazendo a matrícula de uma criança venezuelana. Também é forte os estereótipos com os venezuelanos. Enquanto a mãe fazia a matrícula, eu conversava com a avó. Ela falava em espanhol, e eu em português, porque eu não falo nada em espanhol. Como eu entendo bem o espanhol, falei que se ela falasse devagar eu entendia, e ela me disse que entendia o português também. Conversamos. A mãe olhou para mim e apontou a bandeira da Venezuela, porque no pátio nós tínhamos as bandeiras de todos os países que estavam presentes na unidade. Ela apontou a bandeira e perguntou: “Tem criança do meu país aqui?” Eu falei: “Tem criança do seu país aqui”. Você vê nos olhos da pessoa a alegria de olhar para aquela bandeira. Tudo bem que há alguns furos, por exemplo, pensamos que sabemos geografia, e não sabemos. O Congo, nós colocamos a bandeira errada (risos). Foi duro. Mandamos para a mãe felizes e ela: “Legal, mas essa não é a bandeira do meu país, esse é outro Congo” (risos). São dois Congos. Nós sabemos que tem duas Coreias, mas não sabemos que tem dois Congos. Olhe que interessante. Acabamos aprendendo também. Nós tínhamos a carta de intenção na porta da unidade. Essa carta era escrita em várias línguas. (informação verbal).13
A abertura da creche, ao apresentar símbolos dos diferentes povos que compõem a comunidade da instituição, de algum modo procura uma aproximação entre as culturas presentes naquele contexto, entretanto, existe o fator do desconhecimento em relação à geografia do continente africano. Quando pensamos em uma proposta intercultural, isso implica práticas de reciprocidade e respeito pela diversidade. Trazer os elementos das culturas dos diferentes povos que compõem a comunidade escolar é uma das chaves para o processo de construção de uma educação intercultural.
Acolher uma criança na pré-escola significa muito mais que deixá-la entrar no ambiente físico da escola, designar-lhe uma turma e encontrar um lugar para ela ficar. O acolhimento não diz respeito apenas aos primeiros momentos da manhã ou aos primeiros dias do ano escolar. O acolhimento é um método de trabalho complexo, um modo de ser do adulto, uma ideia chave no processo educativo (Staccioli, 2013, p. 25).
A respeito do que foi destacado por Staccioli (2013), a docente Sabrina destaca em sua entrevista uma iniciativa feita na creche onde ela trabalha para mudar o processo de acolhimento das crianças migrantes africanas, que em muitas vezes passam a ser denominadas de modo genérico, ao não terem reconhecidas suas próprias nacionalidades e pertencimento étnicos:
O projeto se chamava “Música e o brincar: Por todos os cantos e encantos da infância”, pensando esses “cantos” como os cantos da própria unidade, “cantos” de cantar e os cantos do mundo, porque ali recebíamos crianças do mundo. Nesse momento, passamos a fazer um estudo pensando na música, mas também pensando nessas crianças. Tivemos uma professora, por exemplo, que fez um projeto com música dos povos. Então, as mães vinham contar um pouco da sua infância e cantar cantigas dos seus países de origem. Tínhamos mães da América Latina… Eu lembro muito de uma mãe do Congo que ensinou uma canção francesa para as crianças que fala sobre vir para a escola, como é bom vir para a escola e isso me chamou atenção. (informação verbal).14
Dentro deste quadro de construção coletiva de possibilidades em relação a uma pedagogia intercultural desde a Educação Infantil, a professora Pietra destaca a falta de projeto pedagógico de fato, que visaria a implementação de uma proposta que atendesse a essas demandas colocadas pelos processos migratórios:
No que tange ao universo nosso da pedagogia também não existe uma formação efetiva para o acolhimento, a prefeitura de São Paulo tem feito muita coisa, tem dado muitas palestras, eles têm trazido formadores para falar de questões étnico-raciais. Contudo, eu sinto tudo muito nas nuvens, assim não é uma coisa que é da prática, do dia a dia, ações que você pode pensar encaminhamentos, que você pode fazer com as famílias, maneiras que você pode ajudar, por exemplo, acho que a língua é uma questão muito séria, nós recebemos crianças aqui e não conseguimos se comunicar com as famílias, nós aqui não sabemos nenhuma outra língua, uma língua universal, de repente uma boa saída, sei lá, é nos dar formação de inglês, que as pessoas mais conhecem; os africanos conhecem muito mais línguas do que a gente, eu acho que a gente poderia se comunicar uma outra língua com eles. Outra questão das formações é que fica muito jogada as informações, são coisas muito rasas, eu acho que se elas fossem trazidas por pessoas que atuam ou atuaram na educação, sala mesmo, com crianças, sabe, seria muito melhor.
Todos os documentos da prefeitura têm menções a questões étnico-raciais, e isso se repete em todas as formações coletivas, sempre vem alguém com essa temática. Mas tudo de uma forma como se fosse para cumprir um protocolo! No projeto político pedagógico da EMEI temos um capítulo sobre as questões étnico-raciais, mas a minha prática mesmo foi totalmente atropelada, nós mal ouvíamos as crianças, e hoje elas foram cada uma para um destino, e a gente não conseguiu realmente fazer nada de muito concreto. Eu acho que falta tudo, falta tudo! (informação verbal).15
A fala da professora destaca a precariedade em relação ao processo de acolhimento das crianças migrantes, bem como aponta como é difícil a transposição do plano do planejamento teórico, como o exemplo nos documentos legais da Educação Infantil paulistana, e a construção prática de uma pedagogia que tenha como foco pensar os fatores correlacionados a aspectos que visem a construção de um diálogo entre as diferentes culturas que compõem a realidade das instituições educativas.
reflexões para não finalizar
O processo de racialização marca o acolhimento e a inserção das crianças migrantes africanas no contexto da cidade de São Paulo, tanto no âmbito estrutural, que encaminha as crianças negras africanas para serem atendidas na rede parceira da Educação Infantil paulistana, como no âmbito intercultural, com uma não valorização e estigmatização das culturas dos povos africanos que migram para o Brasil. É importante refletirmos se o que chamamos de acolhimento vem de uma visão caridosa com relação às pessoas migrantes africanas, o que não colabora na garantia dos direitos das crianças migrantes africanas. Sendo assim, é importante problematizar essa ideia presente nos salvacionistas, ainda que seja descolar essa ideia que paira em muitos das falas que tratam de pessoas negras, precisamos recuperar a humanidade delas a partir dos direitos sociais que conquistamos, dia após dia.
O acolhimento das crianças migrantes negras demanda a abertura para uma construção não etnocêntrica das práticas pedagógicas, de modo a procurar integrá-las, bem como as suas famílias, e respeitar sempre a interculturalidade que se faz presente nessa relação.
Os dados apresentados possibilitam visualizar os desafios e as dificuldades encontradas pelas professoras, docentes que gentilmente se disponibilizaram a conversar e refletir a respeito de sua prática com crianças migrantes africanas. Os problemas discutidos reverberam, em alguma medida, desigualdades estruturantes presentes em nossa sociedade, que ecoam cotidianamente no interior das creches e pré-escolas.
Entretanto, é fundamental que seja problematizada a responsabilidade perante o cenário que marca pela violência racial as infâncias dessas crianças migrantes negras desde pequenas; não basta não ser racista, temos que ser antirracistas, é urgente haver políticas públicas de combate ao racismo e à discriminação, mas precisamos também enfatizar os nossos papéis como agentes no micro, transformando as macros estruturas.
Na Educação Infantil, o acolhimento exige estratégias que propiciem uma conexão entre as instituições e as experiências anteriores vivenciadas no âmbito familiar e histórico-social das crianças migrantes. Para isso, é imprescindível haver uma abertura nas formas de conceber e de nomear o que seja certo e verdadeiro. Acolher significa pensar a forma como uma criança entra ou sai da creche ou pré-escola, como deve ser a sua ambientação, suas ações cotidianas e seu modo de nelas agir, suas relações e como as desenvolve e reelabora; é pensá-la dentro desse espaço, como criança parte e por inteiro. Nesse contexto, também é fundamental destacar a necessidade de um rompimento com os processos racistas, decorrentes de uma sociedade marcada fortemente por uma estrutura que desumaniza os sujeitos e hierarquiza os modos de ser e viver no mundo.