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Childhood & Philosophy

versão impressa ISSN 2525-5061versão On-line ISSN 1984-5987

child.philo vol.19  Rio de Janeiro jan./dez. 2023  Epub 12-Dez-2023

https://doi.org/10.12957/childphilo.2023.76289 

Dossiê: Filosofia na e para além da sala de aula; FPC através de diferenças culturais, sociais e políticas

Estaremos prontos para a escuta das crianças?

Are we ready to listen to children?

¿Estamos listos para escuchar a los niños?

INica-Universidade dos Açores, Ponta Delgada, Portugal - E-mail: ricardolinofrias@gmail.com

IINica-Universidade dos Açores, Ponta Delgada, Portugal/escola classe ipê, brasília, brasil - E-mail: daylanesoares@gmail.com

IIInica-universidade dos açores, ponta delgada, portugal - E-mail: nalis.carvalho@gmail.com


resumo

Este texto parte de inquietações em torno da prática filosófica com crianças e da escuta que ocorre em algumas comunidades de investigação filosófica (Sharp, 1987; Mendonça; Carvalho, 2018) em contexto escolar. Pensamos nas certezas com que nos movemos nestes espaços e como momentos imprevisíveis podem interromper esses caminhos (aparentemente) seguros, possibilitando novas formas de educar. Esses “momentos críticos” (Haynes; Murris, 2012a) surgem a partir da escuta das vozes de crianças e transformam a forma como o educador-filósofo-investigador se conduz na escola e nas reflexões que faz a partir dessas práticas. Dessa forma, a pergunta da Inês abre a presente escrita. Partiremos também de diálogos com alguns autores, como seja Jean-Luc Nancy, que nos traz importantes ideias acerca da escuta, e Michael Apple, nos lembrando que as escolas podem atuar como mantenedoras de uma situação hegemônica por meio da transmissão de valores e tendências culturais e econômicas ao contexto escolar. Seguimos pela importância e pela reflexão crítica sobre a escuta das vozes das crianças, até nos perguntarmos se a escola as escuta e quais vozes são consideradas nessa escuta. Além disso, em diálogo com hooks, Haynes, Murris e Carvalho, propomos pensar a escola também como um espaço político e, sendo assim, como os exercícios e vivências da escuta ali experienciados podem constituir práticas democráticas. Compartilhamos como exemplo algumas vivências que buscam escutar as vozes das crianças na sala de aula, a partir das quais perpassamos juntamente com Walter Kohan pelos enlaces marginais entre escuta, escola e filosofia. Terminamos referindo que o percurso desta escrita nos conduziu a considerar que a escuta, quando pensada criticamente, pode contribuir para comunidades de investigação filosófica cada vez mais atentas e cuidadosas com a dimensão política das contribuições e falas das crianças.

palavras-chave: filosofia para/com crianças; escuta; comunidade de investigação filosófica; escola; educação.

abstract

This text is based on concerns about philosophical practice with children and the manner of listening that occurs in some communities of philosophical inquiry (Sharp, 1987; Mendonça; Carvalho, 2018) in a school context. We think about the certainties with which we move in these spaces and how unpredictable moments can interrupt these (apparently) safe paths, enabling new ways of educating. These “critical moments” (Haynes; Murris, 2012a) arise from listening to the voices of children in the interest of transforming the way in which the educator-philosopher-researcher conducts himself by way of the reflections he makes based on what he hears. As such, the present text opens with a question, which we respond to in dialogue with several philosophers; first, Jean-Luc Nancy’s work, brings us important ideas about listening. Next, Michael Apple reminds us that schools can act as maintainers of a hegemonic situation through the transmission of values and cultural and economic trends in the school context. We continue by discussing the importance of critical reflection as we listen to children's voices, and ask ourselves how school is constructed for listening-particularly, whose voices are considered worthy of listening to. This leads, in dialogue with bell hooks, to the identification of school as a political space and the question of how the exercise of listening there can create and maintain authentic democratic practice. We also share a few examples of the experience of listening to children's voices in the classroom, and we explore, together with Walter Kohan, the marginal links between listening, school and philosophy. We end by reflecting on the process of creating this text, which led us to consider that listening, when practiced critically, can contribute to those philosophical research communities that are increasingly attentive to the political dimension of children's thinking and speaking.

keywords: philosophy for/with children; listening; community of philosophical inquiry; school; education

resumen

Este texto parte de inquietudes sobre la práctica filosófica con niños y niñas y sobre la escucha que ocurre en algunas comunidades de investigación filosófica (Sharp, 1987; Mendonça; Carvalho, 2018) en contexto escolar. Pensamos en las certezas con las que nos movemos en estos espacios y cómo momentos impredecibles pueden interrumpir estos caminos (aparentemente) seguros, posibilitando nuevas formas de educar. Estos “momentos críticos” (Haynes; Murris, 2012a) surgen de la escucha de las voces de niños y niñas y transforman la forma en que el educador-filosofo-investigador se conduce en la escuela y en las reflexiones que realiza a partir de estas prácticas. De esta forma, la pregunta de Inês abre el presente escrito. También partiremos de diálogos con algunos autores, como Jean-Luc Nancy, quien nos trae ideas importantes sobre la escucha, y Michael Apple, quien nos recuerda que las escuelas pueden actuar como mantenedoras de una situación hegemónica a través de la transmisión de valores y tendencias culturales y económicas al contexto escolar. Continuamos con la importancia y con la reflexión crítica sobre la escucha de las voces de niños y niñas, hasta preguntarnos si la escuela las escucha y cuáles voces son consideradas en esa escucha. Además, en diálogo con hooks, Haynes, Murris y Carvalho, proponemos pensar la escuela también como un espacio político y, por tanto, cómo los ejercicios y experiencias de escucha que allí se viven pueden constituirse en practicas democráticas. Compartimos como ejemplo algunas experiencias que buscan escuchar las voces de niños y niñas en el aula, a partir de las cuales exploramos, junto a Walter Kohan, los vínculos marginales entre escucha, escuela y filosofía. Finalizamos refiriendo que el recorrido de este escrito nos llevó a considerar que la escucha, cuando es pensada críticamente, puede contribuir a comunidades de investigación filosófica cada vez más atentas y cuidadosas con la dimensión política de los aportes y discursos infantiles.

palavras-clave: filosofía para/con niñas y niños; escucha; comunidad de investigación; escuela; educación

estaremos prontos para a escuta das crianças?1

Tens a certeza? Inês Nascimento, 4 anos2

Fonte Registros pessoais. 

estaremos todos?

Convidamos o/a leitor/a a acompanhar-nos na pergunta “estaremos todos?” enquanto nos detemos acerca dos contributos e das vozes que trazemos para este texto. Sendo importante o estudo hermenêutico e crítico da literatura da especialidade, também é notória a necessidade de atender a outros discursos para além destes textos. De outros especialistas, menos assíduos nos textos acadêmicos. O reconhecimento do estatuto político e epistêmico das crianças tem sido algo que nos tem preocupado recorrentemente. Talvez nem tanto por uma questão de protagonismo ou notoriedade das crianças, mas por uma questão de coerência com a índole do trabalho que vimos fazendo - a escuta das vozes das crianças -, trazemos neste texto não só a leitura dos textos dos autores que elegemos e que nos inspiram, mas também a leitura das vozes das crianças que nos questionam e nos põem em questão. Assim, tentamos uma escrita sobre a escuta das crianças que traz a escuta e as crianças para dentro do próprio texto, como quando alguém chama para começar uma viagem: estamos todos (all aboard, todos/as abordo)?

Dado que várias crianças constituíram comunidades de investigação filosófica (Sharp, 1987; Kennedy, 2004 ) às quais pertencemos em diferentes momentos do nosso trabalho como educadores-filósofos-investigadores3, tornou-se necessário pensar a partir de algumas das suas falas e de uns poucos movimentos ali ocorridos. Como Murris (2013 ), também queremos falar sobre e com as crianças, na sua presença. É por isso que, neste texto, identificamos as crianças quando mencionamos as suas falas, por defendermos com Sônia Kramer e outros autores que a anonimização pode invisibilizá-las (Kramer, 2002; Silva; Barbosa; Kramer, 2005 ) e, sobretudo, emudecer as suas vozes. A Inês autorizou a utilização do seu nome e das suas palavras na abertura da escrita (autorização secundada pelos pais, seus representantes legais), o que reforçou as nossas intenções e nos fez sentir que estávamos todos em diálogo no texto: o autor e as autoras do texto, os autores e as autoras de referência na área da filosofia da infância e da filosofia com crianças e, ainda, as crianças de referência. Talvez estejamos com isto a perguntar se poderão as crianças ser uma referência para os adultos educadores-filósofos-investigadores.

A Inês fez uma pergunta ao seu educador titular (que colocamos como epígrafe deste texto), quando aquele, no afã de uma saída ao exterior, pediu às crianças para identificarem os seus chapéus, afirmando que seria mais rápido desenharem um símbolo do que escrever o nome. Ao escutar esta afirmação peremptória, Inês indagou “tens a certeza?”, colocando a voz de uma forma tímida, mas corajosa. O educador, surpreendido, ficou literalmente sem voz (ou perdeu o pio, como por vezes se diz), e ficou desconcertado, surpreendido, perplexo, sem saber o que dizer ou fazer. Será que Inês tinha a noção de que o seu nome é, de fato, um nome pequeno, quando comparado com outros nomes com mais letras? Ou será que a sua pergunta se referia ao tempo de fazer o desenho de um símbolo, potencialmente de uma duração maior do que o da escrita do nome? Quanto à docilidade do tom da voz da Inês, também haveria que perguntar: seria por receio, por timidez, ou por sentir que por vezes os adultos não reagem bem ao serem questionados (pelas crianças) naquilo que afirmam?

Ao refletirmos sobre esta e outras experiências ocorridas no contato com as crianças, reconhecemos uma inspiração clara das práticas pedagógicas que exercemos nas escolas por onde passamos (que é onde nos encontramos com as crianças de referência, as crianças que participaram das comunidades de investigação filosófica e que, com suas perguntas, provocaram várias outras perguntas, e aquilo a que gostaríamos de chamar de “escutas filosóficas”). Nesse sentido, reforçamos um pendor não prescritivo do nosso discurso, ou seja, de que as nossas escritas sobre essas experiências não sejam entendidas pelos leitores e pelas leitoras como um programa a aplicar.

Através de nossa escrita, procuramos abrir espaço para questionamentos a partir dessas experiências, e tentamos estender a outros e outras as provocações que nos cativaram e fizeram pensar. Parece ambíguo, mas é como se escrever sobre e a partir de experiências em comunidade de investigação filosófica com crianças fosse não apenas escrever sobre coisas particulares (que acontecem no cotidiano de um profissional), mas também públicas e políticas, dificilmente emuláveis e difíceis também de codificar por escrito. A irrepetibilidade dessas experiências, movimentos, ou “episódios críticos” ( Haynes; Murris, 2012a ), está intimamente ligada à singularidade de cada comunidade e pode, segundo Joanna Haynes e Karin Murris, “mostrar como a Filosofia com crianças efetivamente perturba ou interrompe as estruturas epistemológicas que informam as práticas (in)formais dos educadores” (p. 119). E - acrescentamos - (n)os mantêm no caminho do questionamento e da interrogação, sobretudo daquilo que pensamos saber.

Arriscamos, portanto, uma escrita aprendiz, que parte da surpresa, se deixa perturbar, que partilha, que erra e que luta. Uma escrita que avança e afronta, e que, fiel ao seu título, parece nunca se achar pronta. O fio condutor é a comunidade e a interrogação, numa vontade constante de nos afastarmos do chão.

estaremos prontos?

E Inês continua a perguntar-nos: “Tens a certeza?”. E pergunta sobre as certezas que carregamos enquanto educadores-filósofos-investigadores. Apesar de, em algumas das nossas práticas, nos parecer que caminhamos um pouco no sentido da escuta, a questão da Inês cria uma dúvida sobre a validade do nosso conhecimento e desafia o pressuposto de detentor da verdade. Um pressuposto de superioridade epistêmica exposto em apenas três palavras - “tens a ]certeza?” -, não mais do que dois segundos de som. Esta exposição, ou este estar exposto, é também, para Han (2022 , p. 127), o “espaço do escutar como espaço de ressonância do outro [que] se abre onde o ego é suspenso”, em que se baixam todas as guardas e reservas.

Por outro lado, apesar do esforço educativo em encetar procedimentos democráticos e assumir posturas de igual modo democráticas nas salas de aula onde trabalhamos ( Sharp, 1991 ), subsistem momentos em que aquilo que se escuta suspende essas bem intencionadas diligências e, de certa forma, a nós próprios. Assim, a indagação da Inês mostra um tipo de linguagem crítica que se adquire ( Haynes; Murris, 2009 ) ou que se permeia em alguns espaços e tempos educativos, com a qual se torna possível desafiar pressupostos e analisar ideias, crenças e teorias. Neste processo de alargamento e aprofundamento da linguagem, existem reconhecidamente possibilidades de emancipação política e transformação social (Haynes; Murris, 2009) que desafiam modos epistemológicos dos quais iremos dando conta seguidamente. Preocupa-nos a hipótese de que, se apenas pontualmente nos damos conta de questões como esta, muitas ocasiões haverá em que não as escutamos, e em que vamos perpetuando as formas de educar que já conhecemos.

Tal afirmação traz o perigo da generalização, em que vivências pontuais e diferentes são completamente desconsideradas. Isso não configura a perspectiva daqueles que escrevem. Pretendemos causar nos leitores e nas leitoras o desconforto e o incômodo. Tal como Inês se sentiu e devolveu em pergunta. Sabe-se que há pesquisas, estudos e implementação de outras formas pedagógicas em que se busca o diálogo com as crianças, tal como estamos a partilhar. Contudo, sabe-se também que muitas escolas ainda privilegiam um formato conteudista, informativo, centrado no professor e em que se aprende a obedecer à autoridade (hooks, 2013)4. Nesse espaço é difícil que outras vozes e escutas possam emergir ou acontecer. São formas que não são, geralmente, inspiradas nas ou pelas crianças.

Tanto na educação formal como na informal, o estado democrático (modelo de Estado das sociedades ocidentais) é o grande influencer que projeta na escola e na sociedade as ideias que tem para transformar crianças em adultos. Transformar crianças em adultos que correspondam ao ideal ocidental, liberal e capitalista de ser humano ( Gallo; Monteiro, 2020 ), que persegue um determinado modelo democrático. Talvez um dos problemas seja a transposição de certas formas maiores de fazer democracia em sociedade, como o sistema representativo, para formas menores, como aquelas que se podem praticar em educação. Gallo e Monteiro (2020) falam desta diferença entre macro e micro fatores que influem na escola, e nos quais residem diversos (des)equilíbrios políticos. Tão maiores quanto mais se permitir que se perpetue o “exercício de um poder que produz seus efeitos sobre uma população que é governada como população, tomada em seu conjunto” (Gallo; Monteiro, 2020, p. 190), ou que se permita que este dite a forma como nos devemos (bem) comportar na escola.

Na verdade, defendemos que a escola é necessariamente um espaço político (hooks, 2013), e a escola obrigatória acaba por ser um espaço muito pouco democrático, pelo fato de as crianças não poderem escolher estar em outro lugar ( Haynes; Murris, 2012a ). Dado que o espaço político é o palco do confronto, do diálogo e da escuta, o escutar ganha uma dimensão política, de ação e participação do outro (e com o outro), e “liga e medeia os seres humanos primeiramente em uma comunidade” ( Han, 2022 , p. 130).

Nas comunidades em que a filosofia com crianças se apresenta como uma pedagogia crítica ( Michaud, 2020 ; Daniel; Gagnon, 2011 ; Daniel; Gagnon, 2016), as crianças participam no próprio processo democrático com liberdade e iguais oportunidades ( Haynes; Murris, 2012a ). Mas estaremos prontos para atender a novas formas de democracia, nas quais há outros atores que participam para além daqueles que se encontram na adultez? O que seria a escuta nessas relações políticas em comunidade? Uma prática benfeitora e condescendente ou uma disposição que considera a desconstrução da própria prática e talvez até dos próprios conceitos que lhe subjazem?

Carvalho auxilia nessa reflexão, mostrando que o diálogo numa comunidade de investigação filosófica desdobra-se e impacta as próprias ações no mundo, tanto ética quanto politicamente.

Para além disso, o diálogo da comunidade de investigação adquire dimensões que vão muito além da prática argumentativa, envolvendo um horizonte de questionamento de matriz ética e política. Quando me empenho na investigação sobre conceitos configuradores da existência, como sejam a vida, o tempo ou a imaginação, ponho em causa decisões sobre o tipo de pessoa que quero ser, sobre o sujeito em que me torno, sobre o mundo que escolho construir ( Carvalho, 2020 , p. 81).

Construir espaços em que esse tipo de diálogo possa ocorrer é construir espaços democráticos. Espaços onde há vozes e escutas. Mas é relevante pensar que problematizar e vivenciar a escuta como uma possibilidade que propicia novas formas de educar, novas relações políticas e conceitos em comunidade nos leva a refletir sobre a escuta enquanto uma filosofia educativa ou uma educação filosófica.

Então, o que entendemos por escutar num contexto educativo? Como acontece essa escuta das crianças? Quais são as condições precisas para que a escuta aconteça? Para compreendermos mais sobre essa perspectiva, primeiramente vamos percorrer o sentido de escuta que afirmamos neste texto5.

estaremos à escuta?

Começamos por pensar um pouco sobre a audição, com Hans Jonas (2004 ). Este filósofo afirma que o que se ouve depende apenas daquilo que provoca o som. A única coisa que o sujeito pode fazer para ouvir seria colocar-se num “estado de prontidão atenta para a eventual recepção de sons (exceto quando produzidos por ele próprio)” (Jonas, 2004, p. 4). Nesse sentido, talvez a prontidão de que falamos no nosso título seja uma disponibilidade atenta, uma “constante prontidão perceptiva”. O ouvir estaria, assim, ligado ao “acontecer, e não ao existir, ao vir-a-ser e não ao ser” (Jonas, 2004, p. 5), dado que no ouvir não existe ação por parte do sujeito, mas do objeto que é ouvido. Como tal, e de acordo com Jonas, não nos é possível escolher ouvir ou não ouvir um som que tenha sido produzido. A informação acústica prescreve a ação, ou a reação. Se ouvirmos um choro, um carro, ou algo que cai no chão - afirma Hans Jonas (2004) -, temos que voltar a nossa atenção para a origem desses sons, e aí já estamos envolvidos na dinâmica da situação.

Isto parece desde logo mostrar a potência do som nos acontecimentos. No entanto, para o autor supracitado,

Posso dizer que estou ouvindo um cão, mas o que eu ouço é o seu latir, um som que eu reconheço como o latido de um cão, e com isto eu ouço o cão latir, e com isto de certa maneira eu percebo o cão. Mas esta maneira de perceber o cão nasce e morre com o ato do latir ( Jonas, 2004 , p. 161).

Significa isto que os sons não subsistem para além da sua emissão e da sua audição? Ou será que se prolongam e permeiam outros acontecimentos? Por que será que alguns sons (da infância?) permanecem na nossa memória e outros, mais recentes, se perdem? Por que parece que se assume uma efemeridade na mensagem sonora, que de certa forma a tem desvalorizado (e por consequência, a escuta)? Quais os sons que ouvimos/escutamos e que se inscrevem e reinscrevem no nosso viver? Será que ouvir é o mesmo que escutar? Será que escutar implica mais do que a mera utilização do pavilhão auditivo? Jean-Luc Nancy, outro filósofo que nos inspira a pensar a escuta, aponta para uma mobilização singular dos sentidos sensoriais da audição na escuta, ou o que designa como “uma intensificação e uma preocupação, uma curiosidade e uma inquietude” (2014, p. 162), o que denota já um certo modo de nos posicionarmos em relação ao que nos chega aos ouvidos. Um modo que, para além de ouvir e escutar, nos empurra para fazer algo sobre, com ou a partir daquilo que escutamos.

Nesse mesmo sentido, o de uma ação, o filósofo Byng-Chul Han fala sobre o escutar. Para ele, o escutar implica uma atividade que considera a presença e fala do outro. Escutemo-lo:

O escutar não é um ato passivo. Uma atividade especial o caracteriza. Eu tenho, primeiramente, de dar boas-vindas ao outro; ou seja, afirmar o outro em sua alteridade. Então, eu o presenteio com a escuta. O escutar é um presentear, um dar, um dom. Só ele traz o outro primeiramente à fala... Eu já escuto antes que o outro fale, ou eu escuto para que o outro fale. O escutador convida o outro a falar, liberta-o em sua alteridade. O escutador é um espaço de ressonância no qual o outro fala livremente ( Han, 2022 , p. 124).

A escuta, segundo o que diz o filósofo sul-coreano, implica uma relação com o outro, nos coloca em relação com a fala do outro, propiciando uma espécie de afetação. Nesse sentido, a escuta pode ser também dolorosa, abrir feridas e colocar desafios, desafinos e desatinos. Dependendo da atitude que assumimos, a escuta pode trazer aquilo que não esperamos ou para o qual não estamos inclinados. Aquilo que perturba ou interrompe os processos a que estamos habituados, quando educamos, investigamos e estudamos com crianças. Joanna Haynes e Karin Murris (2009; 2012a; 2012b), duas interlocutoras muito presentes nas nossas reflexões, estendem a sua consideração à dimensão filosófica e vão mais longe: “A escuta é o aspecto vital da disposição e receptividade filosóficas para o que é esquivo, problemático, opaco ou provoca perplexidade” (Haynes; Murris, 2012b, p. 174).

Se entendermos que escutar implica atender ao desacordo que as vozes das crianças podem trazer ( Johansson, 2013 ), não será essa escuta fundamental para se questionar o que está habitualmente decidido, aquilo que é tomado como norma? Será que as vozes da infância podem fazer uma real diferença nos ambientes políticos, dentro e fora das escolas? Estaremos dispostos a atender a outros critérios de organização política dos nossos espaços? Vejamos de seguida uma outra história em que a desarmonia entre crianças e educador pode revelar a dissonância (Johansson, 2013) entre as suas vozes, questionando as práticas e os locais estabelecidos pelas macro políticas, pelos movimentos maioritários. As práticas e os locais que, até ali, tinham funcionado, que o Estado determina como corretos e aceitáveis nas escolas, onde os educadores e os professores raramente se vêem encostados à parede.

a escuta das crianças: parede! parede!?

Um determinado diálogo com um grupo de crianças de Educação Infantil decorreu por cerca de uma hora, com algumas provocações filosóficas. O espaço foi o de uma escola pública em território insular português, na presença do educador titular, das crianças residentes (com idades entre 4 e 5 anos) e dos três adultos visitantes. Todos estavam familiarizados com o diálogo filosófico com crianças, na abordagem da comunidade de investigação filosófica, inclusivamente as crianças, que ao longo daquele ano letivo tinham recebido na sua sala facilitadores6 externos com regularidade quinzenal.

No entanto, esta foi a primeira (e única) vez que os visitantes se encontraram juntos7 dentro de uma sala com crianças, eles próprios com percursos e experiências diferentes na área. Entre temas e técnicas diversas (sem acordo prévio), trocaram palavras, inspirações e emoções, fizeram um desenho coletivo e muitas outras pequenas grandes coisas que não cabem neste texto. Apesar de uma das afirmações iniciais do educador anfitrião ter sido um peremptório “aqui há regras!”, como que estabelecendo claramente a sua autoridade, queremos focar aqui a forma como a atividade daquele dia terminou.

Após esse animado diálogo e o desenho coletivo feito pelo grupo, surgiu a questão de onde se havia de afixar o desenho, colocada (talvez de forma intencional e provocatória) por um dos adultos visitantes. O educador titular apontou para um quadro de cortiça, antecipando-se às crianças, indicando o lugar habitual onde as produções delas são expostas, de acordo com o habitual modo de funcionamento daquela sala: todas as produções das crianças em forma de desenho deveriam ser colocadas nesse espaço, que estava devidamente preparado para o efeito.

Todavia, quando questionadas, as crianças tiveram uma opinião diferente do educador, sugerindo que se pendurasse aquele desenho coletivo noutro lugar da sala. Assim, uma após outra, foram hesitando, apontando outros lugares possíveis, até que uma das crianças propôs que fosse colocado diretamente na parede (e não preso numa superfície própria para o efeito). Uma concordou, logo outra, e outra a seguir, até que todas as crianças começaram a se manifestar em uníssono, de uma forma que provocou até alguma comoção nos adultos presentes. Um êxtase infantil de palavra, voz e contágio, na forma de resposta a uma questão política que nos remete à democracia: onde querem pendurar o desenho?

A questão de quem decide onde se expõe as suas produções despoletou vozes em coro (“Na parede! Parede! Parede!”), que se sobrepuseram à do educador e que, em crescendo, foram pondo em causa a escolha óbvia do lugar habitual. Aquelas vozes unidas, com a expressão-grito de uma vontade comum, a fazer lembrar o célebre slogan “o povo unido jamais será vencido!”, que tem sido, em várias línguas, locais e contextos, grito de revolução, descolonização, libertação, livre arbítrio, liberdade de expressão.8 Ainda que cada revolução maior ocorra em contextos diferentes, esta manifestação menor “revolucionária” das crianças coloca-nos em dúvida sobre como a interpretar e, sobretudo, como compreendê-la no cotidiano de uma sala de aula e de um educador. Terá sido uma interrupção do normal exercício (normalizado) do poder decisório num espaço partilhado?

Tentamos olhar para lá da comparação entre as revoluções referidas, para lá do que nos é familiar, e propor outras questões que dela se poderão extrair: será que já não teria sido a primeira vez que as crianças assim se exprimiram naquela sala, o que pressupõe que para isso elas têm liberdade e que questões semelhantes à colocada (“Onde querem colocar o vosso desenho?”) suscitam reações mais ou menos idênticas? Outra: será que aquela comunidade pensa e age de forma crítica per si, ou terá sido por convivência com a filosofia que as crianças reagiram desta forma à provocação dos adultos (educadores e facilitadores da atividade)? Uma terceira questão à qual fomos conduzidos seria: será que o movimento despoletado especificamente pela pergunta do educador visitante incitou a comunidade a exprimir-se de forma coletiva e crítica? Ou ainda dar-se o caso de que as crianças simplesmente gostem de se manifestar ruidosamente. É este ruído que agora, enquanto escrevemos sobre a experiência, nos salta ao ouvido: talvez as crianças juntem suas vozes, elevando os decibéis, para se fazerem escutar? E, nesse caso, gritam não só porque gostam, mas porque precisam, para se fazerem ouvir, para fazer acontecer, para se fazerem presentes, resistindo ao que está imposto ( Gallo, 2002 ).

Uma vivência marcada por uma escuta de sons do acontecimento. Dizendo assim, pode-se levar o leitor e a leitora a entenderem que todo o processo de escuta foi marcado por uma mesma condição. Ao se investigar e escutar mais de perto, verifica-se que há camadas nesses sons do acontecimento. O que se iniciou por emissões de sons esparsos e duvidosos, passando a revelar o inesperado e aquilo que é problemático, culmina por propor um desejo do grupo diferente da norma vigente.

De fato, pareceu-nos escutar nesta manifestação democrática das crianças daquela sala de aula um repto, uma insurreição, um desequilíbrio da ordem estabelecida, algo sempre controverso, sobretudo em ambientes com algum desgaste democrático, como em muitas salas, em muitas escolas. Como temos vindo a pontuar nesta escrita, existe nas escolas uma educação maior ( Gallo, 2002 ), que dirige e impõe, planifica e determina, organiza e aponta, “é aquela instituída e que quer instituir-se, fazer-se presente, fazer-se acontecer“ (p. 173). A outra, a menor, revolta-se e resiste. E, pelo visto, também faz acontecer. A educação maior é a dos gabinetes, das tutelas, dos ministérios, dos grandes projetos, das grandes políticas educativas. A menor empenha-se na micropolítica, no que acontece todos os dias, “cavando seus buracos, minando os espaços” (Gallo, 2002, p. 175).

A expressão coletiva resultará, eventualmente, do fato de este grupo de crianças ser uma comunidade em si mesma, e a ação de cada indivíduo ser sempre coletiva, incluindo a(s) ação do(s) educador(es), ou seja, na educação menor “não há a possibilidade de atos solitários, isolados; toda ação implicará em muitos indivíduos” ( Gallo, 2002 , p. 176) e, da mesma forma, “ações menores em educação nunca são isoladas e individualistas.” (Gallo; Monteiro, 2020).

Kennedy (2020 ), no entanto, repara que muitos adultos duvidam até do benefício do “pensamento crítico” na educação, por temerem uma erosão das relações corretas de autoridade entre a criança e o adulto, resultante de encorajar essas crianças a “pensarem por si mesmas”. Em diálogos filosóficos com crianças, este temor torna-se realidade quando os interesses, as opiniões e as questões das crianças (as suas vozes) influenciam o assunto e o decorrer do diálogo ( Haynes; Murris, 2012a ), bem como o seu fim, como vemos no episódio acima referido.

Sabemos que, por vezes, o uso generalizado de alguns termos tende a banalizar o seu significado. É o caso de “estar à escuta” ou a “voz da criança”, nos quais, como afirma Nancy, “se filiam afetações filantrópicas, frequentemente condescendentes” (Nancy, 2014 , p. 161), com os quais se podem criar receitas tipo uma “canja de galinha” ou a “cura para todos os males”. Acreditamos não ser esse aqui o caso. Ao invés de prescrever o que quer que seja, continuamos insistindo nos problemas da escuta da voz da criança, e concordamos que, na prática, quanto à escuta, “a boa vontade inicial pode se dissipar quando a retórica precisa ser colocada em prática, principalmente quando o efeito disso é desafiar o pensamento dominante, gerar polêmica ou custar dinheiro”9 ( Lundy, 2007 , p. 131, tradução nossa). No momento acima falado, existe um claro desafio à autoridade, e pensar sobre a resistência aqui testemunhada pode-se também tornar numa forma de desestabilizar os fundamentos das práticas estabelecidas ( Johansson, 2013 ), que desafia, entre outras coisas, aquilo que pensamos sobre o que as crianças dizem, fazem e são. Murris (2013 ) convida-nos a pensar que o próprio conceito de criança de que partimos (enquanto educadores, enquanto filósofos, enquanto investigadores) condiciona a escuta das suas vozes; ela considera que esse conceito tem que ser analisado nos vários discursos dominantes: direitos humanos, psicologia desenvolvimental, raça e gênero. A autora enfatiza que, entre outras coisas, esses discursos têm contribuído para a exclusão da própria criança dos processos e espaços de cidadania, como a escola.

Os ecos filosóficos e políticos tanto da voz da Inês quanto das vozes das crianças “da parede”, ambas ditas na escola, levam-nos a perguntar: escutamos as crianças entre a filosofia e a política? Escutamos a Inês que fala em cada uma das nossas escolas?

a escola escuta a filosofia?

Será que, apesar de as escolas estarem cada vez mais inundadas de pedagogias e métodos de trabalho que sublinham explicitamente a necessidade de escutar todos os envolvidos nos processos educativos, os ecos das vozes das crianças continuam a ser excluídos nos espaços de educação formal? É certo que cada vez mais educadores estão atentos a esta necessidade, e existe uma tendência crescente para a criação nas escolas de espaços em que os alunos podem expressar as suas opiniões (assembleias, associações, conselhos, clubes, blogs e grupos em redes sociais). No entanto, essa participação tem-se aplicado em domínios relativamente marginais e inócuos do cotidiano escolar. O que acontece na institucionalização escolar destes espaços? Verifica-se que ocorre um processo de normatização do espaço de fala e escuta das falas das crianças ( Foucault, 2013 ), fazendo com que formem (nem que seja simbolicamente) espaços autorizados para fala/escuta, e espaços que não são autorizados, mantendo-se a situação vigente de controle e poder pela instituição (aquele que autoriza a fala), e a consequente exclusão das vozes das crianças.

Em Portugal, o Conselho Nacional de Educação10 (CNE) ( Rodrigues et al., 2021 ) reforça que a escuta da infância se tem restringido a trocas de opiniões e sugestões, que pouco influenciam nas decisões a tomar. Destes diálogos continuam a excluir-se as crianças mais pequenas (em muitos estabelecimentos de ensino, por exemplo, há uma idade mínima para se participar em certas assembleias de escola), evidenciando o perpetuar de um preconceito baseado na idade cronológica. Este preconceito configura um défice de credibilidade, em que a idade determina a credibilidade de um falante e a possibilidade de o silenciar sistematicamente ( Murris, 2013 ). Muitas crianças continuam, assim, a habitar a condição de marginalizadas, colonizadas, sendo “mais uma voz das margens da subjetividade platônica patriarcal” ( Kennedy, 2020 , p. 92).

A situação hegemônica de exclusão de vozes mantém-se inativa também quanto ao encaminhamento dado aos enunciados pronunciados pelas vozes das crianças que, de fato, conseguem ser escutadas. Seja como exercício de condescendência (como quando se fica extasiado perante tudo o que as crianças dizem e fazem), seja como recurso decorativo (instrumental), não parece haver uma real escuta das vozes e do pensamento da infância, nem um real impacto político naquilo que se passa dentro e fora das instituições educativas.

Desse modo, as crianças continuam a ser entendidas como receptáculos passivos de decisões alheias, objetos de análise e avaliação de desempenho, ou então como sujeitos a quem apenas se reconhece uma agência parcial, incompleta e lacunar. Assim, embora as vozes infantis se expressem, ficam sempre na beira, face ao desinteresse real das instituições.

A este propósito, Apple (1979 ) afirma que os mecanismos utilizados na vida escolar apresentam-se nas áreas de conhecimentos ensinados e nas regras e rotinas para manter a ordem. O autor também chama a atenção para a existência de um currículo oculto, que serve para perpetuar as normas de trabalho, obediência, pontualidade, sistema de avaliação e o controle de significados, preservando o poder instalado e criando desigualdades sociais. Apple enfatiza que a cultura e o poder estão relacionados entre si, além de constituírem atributos das relações econômicas existentes. Soma-se, ainda, que as escolas são usadas para finalidades hegemônicas, isto é, atuam como mantenedoras da situação por meio da transmissão de valores e tendências culturais econômicas que são, supostamente, compartilhados por todos. A escola elege um número especificado de estudantes, identificados como competentes, para níveis elevados de ensino, com objetivo de maximizar a produção de conhecimento técnico (Apple, 1979). Ao destacar estas vozes de exceção, a escola silencia uma multidão. Esta ausência ou dificuldade de escuta de certas vozes implicam, para hooks (2013), na manutenção de uma cultura de dominação em que impera o racismo, o sexismo, a exploração de classe e o imperialismo, na qual se desconsideram e desqualificam determinados sujeitos, não se abre espaço para inovação e transformação em nossa sociedade.

No mesmo sentido fala David Kennedy quando destaca que, nesses cenários, a excelência de uns acarreta a ausência de outros - os estrangeiros, os indígenas, os indigentes, as mulheres, os loucos e, sobretudo, as crianças (Kennedy, 2020). Que condições ou movimentos podem, então, concorrer para a escuta das crianças? Será a filosofia uma dessas condições? Será que precisamos, como aconselha Nancy, de “puxar a orelha do filósofo” (e, com a dele, também a do educador e do professor) para que escutem o que menos tem representado o saber filosófico (o que se escuta) (Nancy, 2014, p. 161) e para que se escute quem menos tem sido escutado nas nossas polis educativas (as crianças)?

Quanto a este esforço filosófico, Haynes e Murris reparam que “a escuta pode ser muito fácil, e mesmo sem esforço, quando há ímpeto, fluxo e ausência de ansiedade. Mas ela pode ser também muito difícil, demandando o esforço de ceder espaço e dar lugar para o pensamento incipiente do outro” (2012, p. 175). E serão possíveis esses espaços nas escolas? Qual será, então, o papel da filosofia na escola?

Percorremos o sentido de escuta, uma vivência de escutar as vozes políticas das crianças na Educação Infantil, com Inês e com as demais crianças que clamavam pelo direito de escolher onde colocar o seu desenho coletivo. Em todas essas vozes procuramos o seu ressoar em problematizações filosóficas. Essa ideia de vozes políticas pode ampliar nossa compreensão do que se entende por escuta ao reconhecer que as crianças têm perspectivas políticas legítimas e valiosas que merecem ser ouvidas e consideradas. Assim, a escuta como ato abrangente e inclusivo valoriza as opiniões e experiências das crianças. Além disso, perpassamos pelos enlaces marginais entre escuta, escola e filosofia. Para auxiliar na reflexão do papel da filosofia na escola, terminaremos na próxima seção com a partilha de mais uma vivência através de um projeto e o diferencial das vozes das crianças na construção e decisão de atuação e transformação no e do seu ambiente escolar.

a escuta e a filosofia na escola?

Continuamos aqui a insistir: até onde estamos dispostos a deixar que ventos ciclônicos nos desprendam de pensamentos e práticas insuficientemente questionadoras? De que condições e posições de conforto estamos dispostos a abdicar? O que pode acontecer se nos colocarmos numa posição de vulnerabilidade, abdicando do ceptro, do controle, do privilégio de mandante, tradicionalmente reservado ao professor/educador? Não parece ser tarefa fácil, como reforçam Haynes e Murris (2012b , p. 122): “A prática democrática e o respeito pela criança que a teoria pressupõe gera frequentemente desconforto e perturbação com todos os educadores, incluindo muitos educadores de FcC com formação filosófica”.

Será esta sensação de desorientação causada pela liberdade alucinante que se vive numa comunidade de investigação filosófica com crianças? ( Kennedy, 2020 ). Será esta liberdade o resultado, segundo Haynes e Murris (2012a , tradução nossa), de “uma pedagogia que questiona profundamente o equilíbrio do poder nas escolas, e o estatuto do conhecimento”11? Esse mesmo estatuto que é, repetimos, questionado pelas perguntas das crianças, como a da Inês (“Tens a certeza?”) e o poder que é questionado por grupos de crianças que teimam em questionar algumas ordens maiores dentro da sala de aula?

Em comunidades de investigação filosófica em que as crianças têm espaço sonoro para fazer escutar os seus protestos e reclamar a parede para colocarem os seus desenhos, as perguntas são parte de uma prática que considera as expressões dissonantes como algo diferente, mas valioso ( Johansson, 2013 ), e são também convites para filosofar ( Gomes; Vieira, 2021 ). Por outro lado, não se deve tomar a comunidade de investigação como solucionadora para os problemas pedagógicos, mas sim como sugestão, inclusive se pensar criticamente sobre ela. Até que ponto a própria comunidade de investigação filosófica pode se constituir como mais um dos espaços/tempos que “enquadram” as vozes das crianças?

Dado que, em muitos ambientes escolares, se reproduzem modelos idealizados de sociedade, que podem levantar questões importantes de como a educação pode influenciar a percepção de mundo da criança, é possível que as crianças comecem a questionar esses mesmos ideais, propondo “mudar as regras do mundo”12 e reclamando protagonismo: “Quem tem que fazer as regras é a gente”. Podemos notar um pensamento crítico e desejo de participação ativa nessas falas. A menção de que as crianças podem levantar hipóteses que desafiam os modelos sociais estabelecidos é significativa. Isso sugere que a educação pode ser um espaço para questionar e repensar as normas sociais em comunidade de investigação filosófica (que foi onde surgiram tais falas). A ideia de que as crianças podem imaginar outros modelos de sociedade, cidades e espaços é inspiradora, e destaca a criatividade e a capacidade das crianças de pensar fora das normas preestabelecidas e propor mudanças. Tal como na vivência anterior, podemos notar com as falas das crianças o desejo de serem ouvidas e exercerem sua escolha favorecendo, assim, a construção de um espaço democrático onde o diálogo reflete em suas atuações no mundo. Pode ser que as crianças coloquem hipóteses que a maioria do mundo ocidental já não considera habitual, provocando possíveis reflexões quanto ao modelo de sociedade posto. Desse modo, talvez assim seja possível imaginar outros modelos, outros espaços, outras cidades ou, adaptando uma expressão de Silvio Gallo (2002 ), outras multipli(cidades), que são, por sua vez, produto de uma educação menor.

Tais questionamentos e problematizações como a pergunta da Inês, como as que surgiram na vivência na Educação Infantil e do projeto agora citado, não são muito usuais na escola, menos ainda quando partem das crianças. Com isso, percebemos no percurso realizado a problematização da não escuta dessas vozes; contudo, abordamos a escuta como propiciadora de novas relações democráticas na comunidade. Também problematizamos a escuta na medida em que quanto o escutar pode ser perturbador, bem como revelar situações de poder e hierarquia. Consideramos que a escuta, quando pensada criticamente, pode contribuir para comunidades de investigação filosófica cada vez mais atentas e cuidadosas com as contribuições e falas das crianças. Talvez um dos trabalhos da filosofia na escola seja este convite a escutar o que é diferente, e a escuta se torne ela própria o convite para filosofar? Ou, nas palavras das crianças, o convite para termos “a cabeça a borbulhar de ideias”?

a a de

cabeça borbulhar ideias

Deixamos, a propósito do que as crianças dizem e escutam, uma razão para continuarmos a pensar: estaremos prontos para a escuta das crianças? Estarão os adultos prontos, no sentido da prontidão receptiva de que fala Hans Jonas, para a escuta das crianças?

Pensar nestas questões começou por ser, para nós, uma forma de reconhecermos o estatuto político e epistêmico das intervenções das crianças. Trouxemos as suas falas e as suas vozes para a escrita e, através delas, questionamos o que pensamos sobre a escuta, nas nossas experiências como educadores, filósofos e investigadores. Percebemos depois como essas opções bem intencionadas (e por vezes inconscientes) podem ser suspensas por determinadas circunstâncias, perante acontecimentos que nos surpreendem. E refletimos sobre como esses momentos decisivos quebram certas dinâmicas sociais, políticas e educativas, mantendo-nos no caminho do questionamento filosófico. Por vezes, todo este caminho poderá até tornar-se numa busca pela prontidão, por uma completude enquanto adulto escutante que se sente já num suposto “caminho certo”.

Portanto, sim, pensamos que estamos prontos para escutar as crianças.

Até que alguém nos pergunte: tens a certeza?

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Recebido: 21 de Maio de 2023; Aceito: 20 de Novembro de 2023

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