Introdução
(...) mulher nasce para ser mãe (...) me preocupo com a ausência da mulher de casa. (..) Costumo brincar como eu gostaria de estar em casa toda a tarde, numa rede, e meu marido ralando muito, muito, muito para me sustentar e me encher de joias e presentes. Esse seria o padrão ideal da sociedade” . (Damares Alves , em dezembro de 2018).
Ainda hoje, em 2019, a pauta do feminino amalgamada à maternidade tem forte apelo social e político, tal como a epígrafe explicita. A plenitude do feminino alcançada pela maternidade e a passividade como característica fundante desse sujeito, entre outras enunciações, compõem narrativas que perpassam corpos suscetíveis a essas ingerências: o sujeito-mãe.
Sendo o corpo (da mulher) entendido como a matéria atravessada e composta por processos de subjetivação, moldado dicotomicamente por meio do masculino e do feminino como tecnologias de diferenciação que devem ser facilmente reconhecidas por todos e que acabam por organizar a sociedade como um todo, o presente artigo investiga a produção dessa função social atribuída ao feminino em livros didáticos de matemática. Compreende-se que as noções de gênero são uma das categorias constituintes do sujeito (BUTLER, 2010), em que os corpos são posicionados para “performarem” ou seja, executarem determinadas práticas estilizadas a eles ensinadas ao longo de toda sua vida, de acordo com um suposto sexo biológico.
A intenção é descrever e analisar as práticas que são fixadas no corpo que se pressupõe feminino, narradas como intrínsecas da natureza biológica.
Importante destacar que, em oposição a uma compreensão biológica dos sexos (LAQUEUR, 1990), entende-se o masculino e o feminino como signos construídos discursivamente (RICHARD, 1996), sustentados por um conjunto de enunciados para projetar sobre os corpos práticas sociais.
O objetivo torna-se, então, lançar luz sobre a produção de subjetividades que acabam por constituir o que se optou por aqui nomear de “sujeito-mãe”. A constituição do “sujeito-mãe” já foi analisada em Marcello (2004), em estudo que tomou um conjunto de materiais midiáticos impressos no Brasil. Contudo, esse trabalho não abordava a dimensão da subjetividade em espaços em que a maternidade não é o foco, como nos anos iniciais do Ensino Fundamental de uma escola do campo ou com recorte sobre os livros didáticos de matemática.
O perquirir sobre o livro didático como elemento do currículo de matemática escolar e produtor de práticas de subjetividade que disciplinam os corpos dá o tom da presente investigação. Defende-se aqui que os currículos de matemática não escapam a essa prescrição e agem efetivamente na elaboração, propagação e repetição de práticas estilizadas de gestos, atos e atuações que mapeiam os corpos femininos e ainda fornecem justificações potentes acerca das práticas que descrevem. Os conteúdos da matemática escolar justificam, reforçam e validam as enunciações que não alcançariam status de verdade não fosse a relevância deste tipo de conhecimento na atualidade, a exemplo do que Brown (2015, p. 25) preceitua. O exercício é pensar de que modos a matemática escolar é articulada a fim de manejar os corpos, produzindo subjetividades por meio de atributos morais. Em suma, interessa entender a matemática escolar como política cultural (VALERO, 2018, p. 107) com enfoque na questão de gênero.
Nos materiais analisados, os sistemas de imagens e representações que circundam o feminino tecem uma lógica discursiva que expõe as práticas desejáveis sobre o “ser feminino”, repercutindo no que se entende sobre o “ser maternal”, expondo ora explicitamente as práticas desejáveis, ora apagando o não desejado. Assume-se que tal apagamento de outras formas de ser e agir é constituidor, também ele, de subjetividades.
Vale registrar que este artigo é parte de um trabalho de investigação maior, cujo objetivo é analisar duas coleções de livros didáticos de matemática (manual do professor), voltadas para os anos iniciais do Ensino Fundamental (EF), no bojo do Programa Nacional do Livro Didático para o Campo (PNLD Campo).Essas coleções são compostas de cinco livros cada uma, adotados nas escolas públicas do campo no Brasil no período que compreende os anos de 2013 a 2018, a fim de descrever as noções sobre o sujeito desejável no contexto do campo. Esses livros aparecem na esteira de uma série de outras políticas públicas que visavam dar atenção específica à população que habita o campo e às demandas elencadas, em boa parte, por movimentos sociais que atuavam em conjunto com a população do campo (FERNANDES, 2014).
Como o material em análise foi produzido para os anos iniciais do EF, as ilustrações e personagens coloridos, animados ou familiares são elementos recorrentes, sugerindo uma tentativa de capturar a atenção e o engajamento no aprendizado (no caso de conteúdos da matemática escolar) dos alunos por meio de abordagem supostamente contextualizada que considera, também, os aspectos da vida no campo, dando, assim, a tônica das estratégias de apresentação de atividades no material.
Desse modo, a questão que conduz a produção deste artigo é: de que modo os endereçamentos acerca da constituição do sujeito-mãe são mobilizados no material didático produzido especificamente para a educação do campo no Brasil?
Importante destacar que a noção de corpo, diversas vezes trazida ao longo da presente discussão, alinha-se ao entendido por Butler (2010), de que não se trata simplesmente de uma entidade passiva e preenchida unicamente por “um conjunto de significados culturais (...) externamente relacionados” (BUTLER, 2010, p. 27). O corpo está constantemente em construção, sendo reelaborado, atravessado e resistindo às investidas das marcas subjetivantes, inclusive as de gênero. Nesse sentido, a análise aqui produzida descreve e analisa as narrativas que afetam esse corpo. Todavia, apesar de toda performance endereçada buscar amparo em noções robustas de verdade, na racionalidade em que opera o biopoder ela não é compulsória. Essa forma de poder é, assim, caracterizada “(...) pela crescente organização da população e seu bem-estar, visando o aumento da força e da produtividade” (RABINOW; DREYFUS, 1995, p. 8). Em outros termos, os sujeitos são afetados pelo convencimento; a condução das condutas se dá pelo entendimento do que é o bem comum e individual.
Desse modo, o exercício também é o de explorar o papel dos currículos de matemática na mencionada construção. Explicitados esses elementos, apresentam-se alguns componentes das teorizações adotadas, seguindo-se a descrição dos procedimentos metodológicos para, finalmente, considerarem-se as análises referentes aos dados tratados.
Teorizações
As teorizações que balizam a investigação alinham-se a uma compreensão de currículo de matemática como constituinte de, bem como constituído por práticas discursivas alimentadas de um conjunto de tecnologias de governo que repercutem na “(...) vida cotidiana imediata, que classifica os indivíduos em categorias, designa-os por sua individualidade própria, liga-os à sua identidade, impõe-lhes uma lei de verdade que lhes é necessário reconhecer e que os outros devem reconhecer nele” (FOUCAULT, 2014, p. 123), ou seja, é (mais) um espaço, no sentido atribuído por Silva (2010), no qual a posição de sujeito é incorporada: “aquilo que está inscrito no currículo não é apenas informação - a organização do conhecimento corporifica formas particulares de agir, sentir, falar e ‘ver’ o mundo e o ‘eu’.” (POPKEWITZ, 2011, p. 174).
Portanto, o currículo de matemática nos anos iniciais do Ensino Fundamental no campo opera não somente para coadjuvar nos processos de subjetivação, mas também para justificar e ratificar tais práticas, afinal, compreende-se que “(...) o conhecimento é efeito de uma formação discursiva primariamente linguística, isto é, um conjunto de regras fundamentais que definem o espaço discursivo em que o sujeito existe” (WALSHAW, 2016, p. 43) e no qual ele é constituído.
Desse modo, o feminino é posicionado a partir dessas dinâmicas em todos os espaços sociais, inclusive em livros de matemática da educação do campo. Isso ocorre porque, ao se assumir que o gênero é construído por meio de práticas regulatórias (BUTLER, 2010), entende-se, do mesmo modo, que o currículo de matemática como política cultural produz subjetivações que igualmente constituem esse corpo: todo espaço é formativo.
Adverte-se, no entanto, que não se pressupõe que o currículo de matemática - mesmo obrigatório para todas as crianças em idade escolar, no Brasil - aja de forma compulsória na produção de subjetividades. A questão fundamental é que o conjunto de práticas discursivas e não discursivas sustentam, elegem e organizam narrativas que descrevem maneiras de ser e agir no mundo, permitindo que o indivíduo se objetive, se compare, se meça, se enxergue, se espelhe, se adeque e se subjetive.
Entende-se, portanto, esses currículos como parte do rol de requisitos que asseguram o (re)posicionamento dos “(...) sujeitos como cidadãos para que eles possam ser governados” (GALLO, 2017, p. 77), e, como são dotados de um apelo fortemente ligado às aspirações atuais de desenvolvimento social e econômico, “(...) transformam as crianças em cidadãos valiosos ou leais no quadro ou no sistema de valores culturais dos respectivos Estados-Nação” (TRÖHLER, 2016, p. 282) ao mesmo tempo em que produzem processos de exclusão a fim de posicionar aqueles que não são “valiosos”.
Essa afirmação pode soar perturbadora, afinal, seria mais tranquilizador pensar o conhecimento escolar agindo para o desenvolvimento humano e social (POPKEWITZ, 2018); todavia, como uma alquimia, “os currículos escolares (de matemática inclusive) vêm se configurando, historicamente, como um conjunto de procedimentos para a constituição de um tipo de pessoa” (ibid., p. 78). Com efeito, o estudante inserido e circunscrito ao espaço escolar sofre nele um tipo de assimilação do grupo social: “insidiosamente, ele recebeu os valores dessa sociedade. Ele recebeu modelos de conduta socialmente desejáveis, formas de ambição, elementos de um comportamento político, de modo que esse ritual de exclusão termina por tomar a forma de uma inclusão (...)” (FOUCAULT, 2015, p. 14). Isso ocorre seja na educação escolar obrigatória seja na universidade de que Foucault trata no texto do qual se extraiu o excerto supracitado.
Como política cultural, as investigações que pensam a educação matemática nesse sentido compreendem o currículo de matemática escolar para além dos processos de ensino e de aprendizagem de seus conteúdos, mas como um conjunto de práticas inseridas em uma lógica que produz subjetivações: “(...) a educação matemática é política porque a constituição histórica do conhecimento e as práticas associadas emergiram e fazem parte das classificações e organizações que regulam a vida social e, dentro delas, noções de quem as pessoas são e deveriam ser.” (VALERO, 2018, p. 108)
Nesse sentido, ainda que exista um tipo de “aura" ou herança (histórica e culturalmente produzida) de objetivação por meio dos processos de ensino e aprendizagem da matemática escolar, ao se considerar o livro didático como uma ferramenta central nesse processo (FAN; ZHU; MIAO, 2013), denota-se que práticas de subjetivação atravessam esse material. Sem que haja coerção, o “(...) sujeito se liga à sua própria identidade pela consciência ou pelo conhecimento de si” (FOUCAULT, 2014, p. 123), ou seja, as práticas de subjetivação são fixadas muito mais por táticas de condução de condutas, por um exercício de simetria, em que o indivíduo necessita se enxergar e se reconhecer para se posicionar no mundo e, no caso específico das táticas que agem sobre os corpos femininos, por meio de rituais e práticas estilizadas que normalizam as funções sociais ‘generificadas’.
O sujeito-mãe será descrito como imbuído de uma série de características que o ligam a função social atribuída à maternidade. As primeiras notícias de entendimento da maternidade como uma construção social vêm da publicação de “O Segundo Sexo”, de Simone de Beauvoir (2009), que, no Pós-Guerra, começa a compreender a maternidade como categoria designadora dos lugares possíveis às mulheres nos âmbitos sociais e familiares. E essas questões balizaram as problematizações do movimento feminista da época com repercussão nos dias atuais:
a crítica feminista considerava a experiência da maternidade como um elemento-chave para explicar a dominação de um sexo sobre outro: o lugar das mulheres na reprodução biológica - gestação, parto, amamentação e consequentes cuidados com as crianças - determinava a ausência das mulheres no espaço público, confinando-as ao espaço privado e à dominação masculina. (SCANOVE, 2001, p. 138)
Portanto, com base em uma análise contemporânea que toma as temáticas de gênero como balizadora para investigações político-sociais, interrogam-se as condutas maternais que perpassam o currículo de matemática dos anos iniciais do campo.
Procedimentos Metodológicos
O material analisado é constituído, como já mencionado, por dez livros de matemática que fazem parte de duas coleções aprovadas no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), em sua versão para os territórios rurais do país (PNLD Campo) , no edital de 2016 (BRASIL, 2016).
Para as análises, foram tomadas imagens, textos, atividades, tarefas e orientações para os professores acerca de como abordar os conteúdos. Esses elementos são constituídos e constituintes de práticas discursivas que operam em todas as esferas da sociedade e formam, sistematicamente, os objetos de que falam (FOUCAULT, 2004). Importante destacar que os materiais analisados são os livros do professor, que contêm instruções de uso e desenvolvimento das atividades, sendo essas orientações também espaço onde se produz investigação. Os dados foram selecionados a fim de expressar e descrever o que se resolveu nomear de ‘sujeito-mãe’.
Para o procedimento analítico, optou-se por construir duas codificações principais: uma denominada “mãe”, que marca as referências explícitas a esse papel do feminino - todas as vezes em que havia a palavra “mãe” nos livros didáticos (a frequência com que esse termo apareceu foi de 52 menções ao longo do material), as posições e marcas ligadas a essa representação foram perscrutadas; e a outra nomeada “maternal”, com 111 excertos associados a esse código. Neste último, foram selecionadas atribuições e práticas estilizadas e remetidas sempre a corpos femininos. Foram, ainda, sistematizadas algumas marcas, que serão mais bem exploradas no processo analítico, tais como: afeto, segurança, gestão, justiça, entre outras. Destaca-se que nem todas as referências ao “maternal” estavam explicitamente anunciadas com uma referência a “mãe”, todavia, elas sempre foram destacadas, pois remetiam ao feminino.
Outro código elaborado no processo analítico do trabalho maior em desenvolvimento, foi o “aprender matemática”, que se revelou importante para destacar as menções que definitivamente intersectavam os conteúdos e as práticas discursivas associadas ao sujeito-mãe; foram 85 as ocorrências simultâneas ao código “maternal” e ao “aprender matemática”. Nestes casos, o exercício de análise pretende evidenciar as maneiras pelas quais o conhecimento matemático é articulado a fim de ratificar e estabilizar o que é “verdade”, o que é “normal”, o que é esperado do “sujeito-mãe”. Em outros momentos, o sujeito-mãe aparecia somente para ilustrar ou compor alguma cena no livro, não anunciadamente engajado em “ensinar matemática” aos leitores, apesar de não deixar de sê-lo, já que estavam no livro didático de matemática.
Na próxima seção, serão trazidos alguns excertos que ilustram os principais marcos discursivos catalogados e analisados neste material.
Análises
Entender o currículo como práticas subjetivantes (KROEF, 2001) implica assumir sua potência para produzir, moldar e fortalecer as marcas identitárias de gênero, fortemente atreladas a um discurso biológico que clama pelo natural e instintivo para circunscrever acerca do ser feminino. Para as análises não há uma intenção primeira de construir um tipo de exercício comparativo a partir do entendimento do ser masculino e do ser feminino, todavia, por vezes, o contraste proporcionado pelas atribuições sociais binárias e heteronormativas será destacado para que se possa fomentar as argumentações acerca desse sujeito-mãe, considerando que “não podemos compreender a maternidade sem abordar a paternidade, a mãe sem o pai, no sentido biológico e social do termo” (SCANOVE, 2001, p. 142).
Paechter (2009) realiza uma importante análise acerca da construção das feminilidades no ambiente escolar, sendo este, de acordo com a autora, um lugar fundamental na construção dessa identidade que incide sobre a infância. Afinal, nos anos iniciais do Ensino Fundamental também se ensinam feminilidades, o que implica aprender, também, a ser maternal. “Ajudar a mamãe”, por exemplo, aparece como uma enunciação ligada recorrentemente ao uso da atribuição do ser “mãe”:
Na figura 1, para abordar o conteúdo de grandeza de tempo, Aninha descreve sua rotina. A partir deste exemplo, os estudantes são convidados a “fazer como Aninha” e elencar suas atividades ao longo do dia conduzindo-os à reflexão acerca da administração do tempo ao “reconhecer hábitos comuns ao modo de vida (...) humano, de acordo com o momento do dia.” (GOMES et al., 2014a, p. 265).
É certo que as condutas estão sendo ajustadas a uma lógica de vida e trabalho em que o enquadramento dos indivíduos é regido por noções de controle e de eficiência, tal como já identificaram Souza e Oliveira (2018), ao problematizar “(...) a grandeza de medida de tempo como uma tecnologia política do corpo” (p. 11). Além disso, entre as atividades realizadas por Aninha, “ajudar a mãe com a louça do almoço” é uma tarefa que merece ser lembrada. Neste excerto, as noções de cooperação com as obrigações domésticas fornecem um indicativo de que os valores que atravessam o material contribuem para fortalecer no estudante (feminino) noções de uma justa relação e atribuições no âmbito familiar: ‘seja prestativa, ajude sua mãe’. Ao mesmo tempo, seja organizada, elabore um cronograma de atividades e seja produtiva e eficiente dentro dele.
Todavia, é necessário destacar que Aninha, corpo feminino, ajuda a mãe, outro corpo feminino, sendo esta a real e efetiva responsável por executar a atividade doméstica. A mensagem edificadora para a formação sólida do caráter e compreensão de mundo na infância acaba por ocultar uma marca profunda da tradicional divisão sexual do trabalho, que atribui, mais enfaticamente, ao feminino as responsabilidades domésticas. Nesse sentido, o conteúdo de grandeza de tempo age de modo a distribuir as subjetividades aos corpos, por exemplo, as responsabilidades domésticas, entre outras, como ilustrado na Figura 1.
É recorrente nesses materiais a incumbência da gestão doméstica e familiar (especialmente no que concerne aos cuidados com a infância) a um único corpo: o feminino. Já enquanto exercendo atividades remuneradas, os personagens femininos (fora do circunscrito doméstico/familiar) são posicionados como costureira, professora, atendente, médica, entre outras majoritariamente relacionadas a cuidados com o outro. Como agricultoras, são classificadas, por exemplo, em poucas situações (há sete menções a essa atividade se referindo ao feminino, enquanto há outras 34 referências a homens agricultores). Tal disparidade de representação vai de encontro com a forjada proposta de justiça social da qual emanam as coleções, visto que se mobiliza para pensar que,
(...) questões do trabalho, da cultura, do conhecimento e das lutas sociais dos camponeses e ao embate (de classe) entre projetos de campo e entre lógicas de agricultura têm implicações no projeto de país e de sociedade e nas concepções de política pública, de educação e de formação humana. (GOMES et al. 2014a, p. 226).
Significa dizer que as práticas de agricultura familiar (mais igualitárias na divisão sexual e organização social do trabalho) são fundadas em contraposição à lógica do agronegócio, abertamente apregoada nos livros didáticos (menos igualitária). Tal contraposição, contudo, não é explicitada no cenário dos materiais didáticos produzidos para essa população. O material, assim, visa, de forma contraditória, conciliar as duas bases para atender aos editais do PNLD, ao tempo em que acaba por reproduzir uma racionalidade neoliberal que governa os sujeitos, tal como abordou Santos (2019). Essa disparidade de atribuições de trabalho às mulheres foi abordada nos resultados obtidos pelas pesquisas de Hall (2003) e Hall e Mogyorody (2007), no Canadá. De acordo com este estudo, em famílias nas quais havia uma consciência de classe e produção agroecológica, as posições e os espaços ocupados pelas mulheres tendiam a ser mais igualitários em relação às decisões tanto no contexto do trabalho no campo quanto no interior dos lares - o que não é adequadamente explorado pelos livros didáticos de matemática (importante destacar que essa análise foi realizada com produtores heterossexuais), em contraste com o que ocorreu quando a investigação foi realizada com produtores que trabalhavam com a lógica do agronegócio.
A disciplina e a divisão de tarefas, na análise de Foucault acerca do poder disciplinar, ainda têm implicação sobre as relações de poder que incidem sobre os corpos, pois elas os tornam mais produtivos e dóceis. Tanto que o trabalho doméstico, ao ser considerado de natureza fundamentalmente feminina (ROMITO, 1997), é ignorado em suas onerações sociais, ocultando os custos físicos e mentais que acarretam para os corpos femininos, afinal, “o trabalho doméstico é entendido como parte do ser mulher” (HILLESHEIM, 2004, p. 46). E, nesse sentido, a mãe de Júlio exerce perfeitamente sua função:
A mãe de Júlio (na figura 2 acima), mesmo cansada após uma longa jornada de trabalho ao lado do filho, aparentemente, prepara o refresco (para si e para Júlio), em uma segunda jornada de atribuições. Ela ainda necessita ser exata e dividir o suco igualmente. Desse modo, seu conhecimento matemático possibilitará que ela ainda seja justa, o que se espera de uma mãe.
Somente de posse de noções básicas de divisão é que a “mãe de Júlio” terá condições de exercer sua intrínseca função de garantir a justiça e harmonia no lar, a despeito de suas próprias afetações físicas causadas pela recém-iniciada segunda (quiçá terceira) atividade do dia: a mãe é um ser justo e incansável, sempre pronta a satisfazer as necessidades de sua família de forma eficaz e precisa, mais ainda de posse de noções de grandezas e aritmética.
Em relação às características ligadas ao materno, a afetuosidade é outra atribuição marcada reiteradamente como intrínseca ao feminino: as mães são a corporificação da devoção para com o próximo. São fonte de cuidado, atenção e segurança inabalável em relação ao outro, tal como pode ser exemplificado na Figura 3 em que “a conexão com a matemática é feita a partir da proposta de uso atento dos sentidos na modelagem” (GOMES et al., 2014a, p. 269).
Note-se que há dois homens adultos em volta da fogueira: um deles anima a festa junina ao som de uma sanfona, enquanto o outro se delicia com o que parece ser um cachorro-quente, ambos com aparência despreocupada, numa cena que sugere a movimentação característica dessas festividades. O segundo indivíduo está posicionado precisamente ao lado de uma criança que executa as mesmas ações: alimenta-se e observa a agitação pitoresca.
Com um comportamento marcadamente oposto, as personagens femininas aparentam estar mais atentas, até mesmo preocupadas. Embora uma delas, supostamente, aprecie a fogueira, garante, ao mesmo tempo, que a criança que a acompanha se mantenha ao seu lado, pois a segura firmemente pelas mãos. A outra se posiciona de modo a escoltar a criança dos perigos impostos pela fogueira. Esta última, aliás, sugere sequer estar usufruindo das festividades devido aos necessários cuidados para com a criança sob sua responsabilidade. Afinal, o sujeito-mãe precisa estar sempre alerta, gerindo e se antecipando a possíveis rompantes da infância. Além disso, também necessita ter uma noção apurada de localização espacial, afinal, ela deve ter condições de avaliar e de antever as possíveis situações de perigo. Os posicionamentos dos indivíduos marcadamente opostos sugerem que ao masculino é concedida a possibilidade de usufruir tranquila e despreocupadamente as festividades.
Já na figura 4, lança-se mão de atividades que, manifestadamente, buscam abordar o desenvolvimento da “leitura de números”. Para tanto, faz-se uso de uma famosa cantiga infantil:
A “pombinha branca” antropomorfizada na parlenda já foi objeto de análise no que concerne aos endereçamentos heteronormativos, a exemplo de Pacheco (2008). Na atividade exposta na Figura 4, um tipo de prática tende a significar, inscrever e prescrever a maternidade e o matrimônio sobre o corpo feminino.
O dispositivo da maternidade (MARCELLO, 2004) é um elemento imaginário essencial que projeta o sujeito-mãe. A questão colocada para estudantes do terceiro ano do Ensino Fundamental é: qual seria a idade adequada para que uma mulher se envolva em um matrimônio e se reproduza? Por ser mencionada no diminutivo, a espécie “ColumbaLivia” - seu nome científico - é posicionada subalternamente ao mesmo tempo em que se apresenta engajada a um espectro de possibilidades maternais: casar-se (com um representante masculino da espécie) e gerar descendentes. Somente a parlenda possibilitaria a problematização de uma série de enunciados que disparam; todavia, a intenção é fixar o olhar analítico sobre os conteúdos do currículo (de matemática) que mobiliza: o uso de leitura de números para normalizar uma prática sociocultural de relacionamento entre humanos. Ao estudante, cabe tomar a decisão da resposta correta com base nessa norma sociocultural somada ao seu conhecimento do conteúdo.
Como prática do feminino, os estudantes aprendem que, para se casar e ter filhos, precisam ser delicadas (o que sugere o sufixo “inha”, em consonância com as características afetivas e comportamentais atribuídas ao feminino), executar práticas domésticas (lavar a roupa, que aqui se alinha às categorias do trabalho e da gestão do lar) e ter uma idade “adequada” (vinte e cinco anos). E a última afirmação é tomada exatamente para explorar um elemento (conteúdo) compulsório do currículo escolar.
Já na atividade expressa na Figura 5, Gabriela, uma delicada, gentil e justa (como deve ser o feminino) menina, decide usar o conteúdo de divisão para distribuir maçãs de seu pomar entre seus dois amigos.
Não se sabe se Gabriela possuía mais frutas em seu pomar. O fato é que, altruísta, a menina fica sem nenhuma das seis maçãs, mesmo que a divisão do número natural 6 em três partes (Gabriela e seus amigos) resultasse em duas frutas para cada um, ou seja, um resultado que pertence ao conjunto dos números naturais e é adequado para o nível de ensino em questão. Mesmo assim, só os garotos recebem todas as frutas, e, ressalta-se: igualmente! Afinal, Gabriela é justa e a divisão de números naturais (múltiplos entre si) garante isso: ela não precisa ter, também, uma maçã para si.
Em suma, Gabriela faz uso de seus conhecimentos aritméticos para se manter abnegada.
Em continuidade à exposição dos elementos catalogados, a Figura 6 marca uma das mais recorrentes personagens com atribuições maternais em uma das coleções analisadas: Maria Sol.
A personagem é uma flor antropomorfizada que percorre, reiteradamente, todos os cinco livros de uma das coleções analisadas. Sua função, nesse material, é cuidar para que as atividades sejam realizadas da maneira mais adequada possível, sempre “ao seu lado” (do estudante), dele cuidando.
Essa ocupação contrasta com a de outro personagem, também antropomorfizado, que é posicionado como parceiro de “Maria Sol”, mas sem que se relacionem, efetivamente, ao longo de todas as suas aparições.
Esse personagem, “Zé Sabiá”, que pode ser visto na Figura 6, exerce uma função diametralmente oposta no material: como personagem masculino, Zé Sabiá é experiente, explorador de outros ambientes, cosmopolita, livre e, como o próprio nome sugere, sábio. Sua função é contar aos estudantes sobre suas aventuras ao redor do mundo e sobre tudo o que aprendeu em suas viagens.
Maria Sol, uma delicada, passiva, atenta, formosa e frágil flor, exerce a fundamental prática de se ocupar do outro, uma atribuição maternal recorrente nos materiais analisados. Na perspectiva foucaultiana, cuidar de si e do outro está ligado a um conjunto de práticas que pressupõe a necessidade de que cada uma das peças da engrenagem social vigente se movimente adequadamente de modo a produzir corpos adaptáveis e capazes de se posicionar flexiva, inteligível e produtivamente para executar suas funções, ou seja, produzem-se sujeitos, no caso, o sujeito-mãe.
Entende-se que ambos os personagens têm como função executar o que Friedrich (2010, p. 661) denominou “dispositivo pedagógico”, que opera “(...) como parte do regime da verdade que dita o que é real e o que não é, o que é verdadeiro e o que é falso, no processo de transmissão intencional de conjuntos de valores, conhecimentos e comportamentos entre sujeitos que é chamado educação”: eles capturam a atenção e a afeição dos estudantes, transmitem mensagens convenientes relacionadas aos conteúdos previstos no currículo, ao mesmo tempo em que disseminam uma série de atributos e atribuições culturalmente produzidos e direcionados aos corpos femininos, alimentando a constituição do sujeito- mãe. Maria Sol, portanto, é uma figura maternal.
O sujeito-mãe, além de estar ligado a um conjunto de características denominadas “maternais”, necessita sacar conhecimentos relacionados à matemática escolar para que possa exercer sua função social de forma efetiva. As operações aritméticas, por exemplo, são essenciais para a gestão do lar e da família, atribuições do corpo feminino, como pode ser observado. Simultaneamente, a grandeza de tempo se associa ao sujeito da mesma forma: garantindo a administração das tarefas diuturnamente atribuídas a esse corpo. A precisão e a localização espacial também são tipos de conhecimentos fundamentais para que se possa manter a ordem, a justiça e a segurança de todos. Todos esses conhecimentos são mobilizados e permitem que o sujeito-mãe tome decisões assertivas e eficientes, sem que deixe de exercer suas qualidades intrínsecas de competente gestora do lar, incansável cuidadora e facilitadora das atividades cotidianas da família, visionária acerca dos riscos potenciais, ajustada às regulações sociais, entre outras características.
Para este trabalho, apenas alguns exemplos foram destacados a fim de que pudessem amparar a argumentação empreendida. Muitos outros elementos, mesmo não sendo aqui expostos, ratificam as interpretações apresentadas. Fundamentalmente, o sujeito-mãe é um corpo que recebe atribuições necessariamente relacionadas à família e ao cuidado com o outro e é, irrevogavelmente, relacionado ao feminino.
Considerações Finais
Com base em uma análise que assume teorizações contemporâneas, entre elas as temáticas de gênero, para balizar investigações político-sociais, interrogaram-se as condutas dos corpos femininos nos livros de matemática dos anos iniciais do Ensino Fundamental no campo a partir do que se denominou “sujeito-mãe”. Dos exemplos que emergiram do processo analítico, é possível elaborar a questão: o que se aprende, também, quando se supõe estar ensinando/aprendendo, apenas matemática? E uma resposta encontrada nesta investigação é: aprende-se a ser maternal!
Foi evidenciado por meio dos excertos destacados que estes se ligam a um conjunto de práticas que se fixam como construção de noções acerca do sujeito-mãe que molda e configura os corpos. Portanto, afirma-se que a educação é uma forma de governo e de fabricação de tipos específicos de pessoas, que se vinculam inexoravelmente à lógica neoliberal vigente, inclusive no campo, visto que “(...) os princípios do mercado enquadram todas as esperas e atividades, desde a maternidade até o acasalamento (...)” (BROWN, 2015, p. 67).
Neste estudo, isso significa dizer que na lógica de mercado, incorporada a uma lógica de vida, as atribuições do sujeito-mãe, irrevogáveis e, alegadamente, de natureza feminina necessitam ser marcadas, exploradas e, efetivamente, aprendidas, enquanto (ao mesmo tempo) se aprende matemática em uma escola do campo, no Brasil, mesmo porque “todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo” (FOUCAULT, 2004, p. 44). No caso dos exemplos expostos, aprender matemática também possibilita portar ferramentas que não só potencializam como possibilizam a execução das práticas que compõem o sujeito-mãe. O conhecimento matemático é fundamental para o corpo feminino operar como justo, eficiente, organizado e normal.
Nesse sentido, lançar luz sobre as tecnologias de diferenciação operadas por meio desses livros didáticos sobre o feminino permite destacar práticas discursivas de estilização que acabam por objetivar esses corpos e nelas inscrevê-los a partir de táticas de poder que normalizam condutas do feminino.
Tais condutas atribuem a esse corpo feminino todo um grande propósito e um ininterrupto investimento em modos de ser e agir como sujeito-mãe, que o compõe como sujeitos de visibilidade e enunciação, em que o indivíduo, posicionado como feminino, constitui-se a partir de um conjunto de regras, de gramáticas específicas. Assim, ele aprende a operar seus corpos, seus gestos, suas ações dentro de um espectro restrito de possibilidades, ratificadas por conhecimentos específicos, a fim de que possam buscar, ininterruptamente, o padrão de vida ideal para a sociedade, conforme definiu a ministra.