Introdução
O contexto do estudo: colocando a problemática
A intensa e complexa obra produzida no período soviético (1917-1991) por psicólogos, filósofos, filólogos, fisiólogos, metodólogos, didatas e professores, no campo da psicologia pedagógica, tem sido, no Brasil, objeto de estudos e de esforços colaborativos de vários pesquisadores da área em diálogo com estudiosos cubanos, mexicanos, chilenos, italianos, portugueses, ingleses, dinamarqueses, finlandeses, russos, ucranianos, entre outros.
No conjunto desses trabalhos, têm sido realizadas pesquisas teóricas e experimentais , com vistas à apreensão dos modos e condições de realização de um tipo de obutchénie que promova o desenvolvimento no contexto escolar brasileiro, considerando suas especificidades histórico-político-econômico-culturais. O crescimento de estudos com essa abordagem no país tem oportunizado uma melhor aproximação com o extenso referencial produzido no contexto da ex-União Soviética e permitido um melhor entendimento de que a Obutchénie Desenvolvimental emerge e se consolida em meio a um processo histórico controverso, contraditório e díspar. Ainda quando tenha diretrizes gerais materialistas histórico-dialéticas e princípios psicológicos histórico-culturais comuns, não se constitui em um modo único e homogêneo; visão que se consolidou no país, devido ao limite de acesso à obra de grande parte desses autores.
O artigo toma, então como objetivo, revelar a natureza heterogênea e contraditória da Obutchénie Desenvolvimental, abordando-a enquanto expressão do singular-particular-universal. Tendo em vista esse propósito, procura trata-la em sua gênese e desenvolvimento no contexto soviético, onde as contradições e diversidades consolidam sua heterogeneidade. Apresentam-se, portanto, algumas teses gerais (o universal) que a caracterizam e as singularidades (o particular) que distinguem três de seus sistemas: Elkonin-Davidov-Repkin, Galperin-Talizina e Zankov.
A pesquisa, de natureza teórica, tratou o material documental a partir de uma perspectiva materialista histórico-dialética. As fontes de estudo se constituíram em obras originais dos autores soviéticos histórico-culturais, traduções de textos para o inglês, espanhol e português, além de produções bibliográficas de estudos que tomaram a Obutchénie Desenvolvimental como objeto . A análise implicou um movimento de apreensão do fenômeno confrontando diferentes fontes e edições distintas de publicações e de traduções, tendo em vista revelar contradições e tensionar dados numa perspectiva dialética do singular-particular-universal.
Para Lukács (1967), a dialética entre singular-particular-universal é uma propriedade objetiva dos fenômenos. Por essa razão, a lógica e a epistemologia que pretendem apreender a realidade em suas conexões essenciais e básicas devem orientar-se pela perspectiva de revelar a interpenetração dialética entre singularidade, particularidade e universalidade. (PASQUALINI; MARTINS, 2015, p. 363).
Sob esse enfoque, o artigo traz dados históricos e fundamentos psicológico-pedagógicos que ajudam revelar, pelo estudo da gênese e do desenvolvimento histórico-cultural da Obutchénie Desenvolvimental sua natureza heterogênea; o que evidencia o singular-particular-universal impresso historicamente em seu processo constitutivo.
Obutchénie Desenvolvimental: conceito e gênese.
A Obutchénie Desenvolvimental tem seu marco histórico, a partir dos anos de 1950, num movimento didático-pedagógico intenso que viveu a antiga União Soviética (1917-1991), cujas elaborações deram origem a importantes produções no campo da psicologia pedagógica e da didática. Original do russo Развивающего Обучения (Obutchénie Desenvolvimental) aparece, nas traduções para o inglês, como Developmental Teaching, para o espanhol, como Enseñanza Desarrollante (por Marta Shuare) ou Enseñanza Desarrolladora (por José Zilberstein Toruncha e Margarita Oramas) e, nas traduções para a língua portuguesa como Didática Desenvolvimental, Ensino Desenvolvimental, Aprendizagem Desenvolvimental, Ensino Desenvolvente, Ensino para o Desenvolvimento e Obutchénie Desenvolvimental.
Apesar da variabilidade de expressões que emergem das diferentes traduções, nota-se, seja no inglês, espanhol ou português, um predomínio no uso de termos que associam obutchénie à atividade docente; o que é limitante, restritivo e leva a um desvio do sentido conceitual que a palavra russa contém.
Obutchénie corresponde à
(...) interação entre alunos e professores, a inter-relação entre a utchenia (aprendizagem) e os esforços profissionais do professor (se essa interação for compreendida com a noção de "atividade", então a obutchénie pode ser caracterizada como uma correlação entre atividade de estudo e atividade pedagógica.) (ДАВЫДОВ <DAVIDOV>, 1996, p. 252, tradução e destaques da autora).
Dessa forma, obutchénie se constitui no processo pedagógico no qual estão implicados professores e alunos e, enquanto tal, expressa a unidade da ação de ambos, com foco na aprendizagem do estudante que ocorre em processo de colaboração com o professor e com outros estudantes. No entendimento conceitual que temos construído (LONGAREZI; PUENTES, 2017c; LONGAREZI; SILVA, 2018), qualquer uma das traduções para obutchénie pode levar a uma imprecisão conceitual, exceto quando assumida enquanto aprendizagem colaborativa (PUENTES, 2019). Por essa razão, este texto tomará sua designação enquanto Obuchénie Desenvolvimental, para que coloquemos o olhar não na singularidade que caracteriza o processo educativo, quando concebido em partes, mas na unidade que emerge da “(...) inter-relação entre a utchenia (aprendizagem) e os esforços profissionais do professor” (ДАВЫДОВ <DAVIDOV>, 1996, p. 252, tradução nossa); tomando o processo em sua totalidade.
Assim, delineado o campo conceitual da obutchénie, tratemo-la em sua relação com o desenvolvimento. Em primeiro lugar, é preciso que se compreenda que obutchénie “(...) não é o mesmo que desenvolvimento.” (ВЫГОТСКИЙ <VIGOTSKI>, 1956, p.449, tradução nossa), não corresponde de modo direto e incondicional a ele; o que nos remete a compreensão de que existem modos distintos de obutchénie, inclusive o reflexo-associativo. Em segundo lugar, destaca-se a perspectiva histótrico-cultural a partir da qual se revoluciona a relação obutchénie-desenvolvimento pela compreensão de que a primeira pode impulsionar a segunda se for organizada com tal finalidade. Para o psicólogo bielorusso, Lev S. Vigotski (1896-1934) a “(...) única boa obutchénie é a que se adianta ao desenvolvimento” (ВЫГОТСКИЙ <VIGOTSKI>, 1956, p.449, tradução da autora) e é essa que foi assumida no contexto da psicologia pedagógica soviética e deu origem ao que hoje conhecemos como Obutchénie Desenvolvimental.
Na posição de L. S. Vigotski, “(...) a organização correta da obutchénie resulta no desenvolvimento intelectual da criança, causando assim uma série de processos que fora do contexto dela seriam impossíveis realiza-los.” (ВЫГОТСКИЙ <VIGOTSKI>, 1956, p.449, tradução nossa). Isso é o que se intenciona no âmbito de uma educação desenvolvimental. Portanto, nessa perspectiva, “(...), a obutchénie em si é um momento necessário e universal para que se desenvolvam na criança não apenas as características humanas não-naturais, mas também aquelas historicamente formadas.” (ВЫГОТСКИЙ <VIGOTSKI>, 1956, p.449, tradução nossa). Para o autor, a obutchénie que está à frente do desenvolvimento
(...) desperta e provoca o surgimento de uma série de funções que se encontravam em fase de amadurecimento e na zona de desenvolvimento possível. É nisso que consiste o papel principal da obutchénie no desenvolvimento.
(...) a obutchénie pode também ultrapassar o desenvolvimento tornando-se uma alavanca de impulso na formação dos conceitos científicos. (ВЫГОТСКИЙ <VIGOTSKI>, 1999, p.215-216, tradução da autora).
O processo de constituição e consolidação dessaObutchénie Desenvolvimental tem seus fundamentos elaborados em meados dos anos de 1920, quando a Psicologia Histórico-Cultural começa a se estruturar, embora só se efetive enquanto perspectiva didática a partir do final dos anos de 1950, com os trabalhos de L. V. Zankov (1901-1977), P. Ya. Galperin (1902-1988), D. B. Elkonin (1904-1984), V. V. Davidov (1930-1998) e N. F. Talizina (1923-2018); e se consolide, na década de 1980, quando é oficialmente reconhecida como orientação na rede pública de ensino em várias repúblicas soviéticas.
Os primeiros estudos experimentais se estruturaram no contexto das escolas primárias. Foi L. V. Zankov quem inaugurou na escola 172, em 1958, uma série de experimentações que se constituíram as bases para a elaboração de “(...) um sistema didático novo, o que representou uma importante contribuição para se defender o potencial progressivo da obutchénie.” (LONGAREZI, 2019c).
A partir de 1959, os experimentos didáticos na educação primária passaram a ser realizados também por D. B. Elkonin e logo em seguida ampliaram-se com a participação de vários outros grupos liderados por V. V. Davidov, P. I. Zinchenko, V. V. Repkin, P Ya. Galperin, N. Talizina etc. Esse movimento fez com que os estudos experimentais se estendessem para várias escolas de Moscou, Dushanbe, Kharkov, Tula, Ufa, Volgograd e Vila de Médnoe; ultrapassando as fronteiras dos países da Comunidade dos Estados Independentes - CEI, envolvendo também estudos na Europa Ocidental, Israel, Japão, Canadá e Estados Unidos (DAVIDOV, 1988a, 1988b; ДАВЫДОВ <DAVIDOV>, 1986). Ressalta-se que todos os esforços empreendidos nesse sentido resultaram na proposição de uma nova escola soviética e tiveram ali concentrados seus principais produtos, seja pelos novos métodos, teorias, princípios educativos e sistemas didáticos; seja pela produção dos vários materiais pedagógicos, artigos científicos e processos didático-formativos estruturados.
O volumoso e intenso trabalho realizado nas diferentes repúblicas soviéticas foi de tal envergadura que resultaram na elaboração de um conjunto de teorias, sistemas e materiais didáticos produzidos simultaneamente por várias equipes, o que dificulta hoje a identificação de uma paternidade para a Obutchénie Desenvolvimental.
Historicamente, a expressão Pазвивающее обучение (Obutchénie Desenvolvimental) aparece empregada, em 1979, no livro homônimo de Yakimanskaya (PUENTES, 2019), e depois, em 1981, no livro Atividade de Estudo e Modelagem (Учебная деятельность и моделирование), de V. V. Davidov. Contudo, só vai ser conceitualmente desenvolvida, em 1986, no trabalho monográfico, de V. V. Davidov, Problemas da obutchénie desenvolvimental: a experiência de pesquisa teórica e experimental na psicologia (Проблемы развивающего обучения: Опыт теоретического и экспериментального психологического исследования).
No contexto de sua gênese, a Obutchénie Desenvolvimental assume a condição de teoria apenas nos anos de 1995 e 1996, quando foram publicados, respectivamente, os livros de V. V. Davidov O conceito de obutchénie desenvolvimental (О понятии развивающего обученияe) e Teoria da obutchénie desenvolvimental (Теория развивающего обучения ) (PUENTES, 2019).
Nas palavras introdutórias à obra monográfica Problemas da obutchénie desenvolvimental: a experiência de pesquisa teórica e experimental na psicologia (Проблемы развивающего обучения: Опыт теоретического и экспериментального психологического исследования), elaboradas para a edição traduzida para o espanhol, V. V. Davidov apresenta a Obutchénie Desenvolvimental como aquela que impulsiona o desenvolvimento, que determina o caráter do desenvolvimento psíquico, com foco, particularmente, no pensamento teórico (LONGAREZI, PUENTES, 2017b).
(...) a escola deve ensinar as crianças a pensar, isto é, desenvolver ativamente nelas os fundamentos do pensamento contemporâneo, para o qual é necessário organizar uma obutchénie que impulsione o desenvolvimento (a chamaremos de “desenvolvimental”). (DAVIDOV, 1986/1988b, p. 3, tradução e grifosnossos).
Os fundamentos dessa perspectiva didática podem ser localizados nos princípios psicológicos histórico-culturais inaugurados por L. S. Vigotski e, portanto, alicerçados no materialismo histórico-dialético. Enciclopedista, L. S. Vigotski transita pela fisiologia do sistema nervoso, endocrinologia, genética, medicina, antropologia física e psicologia; vincula, nos estudos pedológicos, diferentes áreas, que o levou a “(...) criar uma ciência unificada e uma teoria geral do desenvolvimento” (MESHCHERYAKOV, 2010). Seus estudos foram fundamentais na emergência e consolidação de uma psicologia nova, de epistemologia materialista histórico-dialética; razão pela qual se faz todo o reconhecimento da importância e grandiosidade do trabalho empreendido por esse psicólogo bielorrusso, cujas teses foram o alicerce principal para a estruturação de uma psicologia marxista, fonte e fundamento da Obutchénie Desenvolvimental.
Não obstante,
As primeiras tentativas de confirmação experimental da ideia de L. S. Vigotski sobre o caráter desenvolvimental da obutchénie são realizadas por psicólogos em Kharkov, ainda antes da guerra. “De fato, no início dos anos 30, em Kharkov, sob a liderança de A.N. Leontiev (moscovita nativo, que viveu durante vários anos nesta cidade), um grupo de psicólogos (G. D. Lukov, V. I. Asnin, A. V. Zaporozhets, P. I. Zinchenko, L. Bozhovich etc.) estudou o conteúdo e a estrutura das ações perceptivas, mnemônicas e mentais, bem como o desenvolvimento de generalizações em crianças.” (ДАВЫДОВ, 1997, p. 3, tradução da autora). (LONGAREZI, 2019c, p. 176).
Os fundamentos dessa perspectiva didática estão alicerçados, portanto, nos princípios gerais da Psicologia Histórico-Cultural, especialmente, no que se refere ao da não espontaneidade da constituição humana, entendida como histórica e cultural; ao do caráter desenvolvimental que a obutchénie pode assumir, fundada na nova perspectiva defendida por L. S. Vigotski da relação obutchénie-desenvolvimento; e ao conceito de zona de desenvolvimento possível, em que L. S. Vigotski demonstra que a obutchénie pode impulsionar o desenvolvimento com a colaboração do outro mais experiente, no intervalo que se cria entre os níveis de desenvolvimento real e potencial.
Com base nesses fundamentos gerais, as teses nucleares da Obutchénie Desenvolvimental se consolidam como resultado de várias pesquisas realizadas em escolas-laboratório, em diferentes províncias da ex-União Soviética, envolvendo numerosos grupos, especialmente os de Moscou/Rússia e Kharkov/Ucrânia, que assumiram a perspectiva vigotskiana de que a “(...) boa obutchénie é a que se adianta ao desenvolvimento” (ВЫГОТСКИЙ <VIGOTSKI>, 1956, p.449, tradução nossa).
Esse contexto interdisciplinar e internacional é o campo de estudo, a partir do qual se levantou a premissa apresentada neste trabalho de que não há uma Obutchénie Desenvolvimental única; de onde emerge a defesa de que ela é diversa e heterogênea. Ao contrário do que se acreditou durante décadas de estudo no contexto brasileiro e latino-americano, não podemos olhar para a didática produzida no bojo dessa abordagem psicológica e pedagógica vendo-a como um modo único de tratar a educação na perspectiva de uma Psicologia Histórico-Cultural, que, de certo modo, também não é única.
O legado produzido pelo que hoje se tem consolidado em torno da chamada Psicologia Histórico-Cultural é resultado do esforço e da produção conjunta de S. L. Rubinstein (1889-1960), L. S. Vigotski (1896-1934), G. D. Lukov (1910-1968), V. I. Asnin (1904-1956), A. V. Zaporozhets (1905-1981), P. I. Zinchenko (1903-1969), L. I. Bozhovich (1908-1981) e inúmeros outros psicólogos, filósofos, filólogos e didatas soviéticos; tendo em S. L. Rubinstein e L. S. Vigotski seus principais precursores.
A despeito do espírito colaborativo em torno da estruturação dessa nova psicologia, havia diferenças significativas de objeto, métodos de apreensão dos objetos e mesmo de interpretações das teses fundamentais de L. S. Vigotski que foram delineando produções teóricas singulares; às quais, resguardadas suas particularidades, contribuíram para dar corpo à chamada Psicologia Histórico-Cultural.
Sob a base de uma filosofia marxista e a partir de alguns princípios gerais comuns à psicologia materialista histórico-dialética produzida à época, os estudos delineiam especificidades que culminam em perspectivas teóricas próprias, constituídas no campo da Psicologia Histórico-Cultural, originadas a partir de enfoques específicos que lhes asseguraram certa identidade: 1) uma Teoria da Atividade, representada pelos vários grupos coordenados, entre outros, pelo moscovita A. N. Leontiev (1903-1979) e pelo ucraniano S. L. Rubinstein (1889-1960); 2) uma Teoria da Personalidade, proposta pelos coletivos que trabalharam com os(as) soviéticos(as) L. I. Bozhovich (1908-1981), N. G. Morozova (1906-1989), B. G. Ananiev (1907-1972), B. F. Lomov (1927-1989), L. S. Slavina (1906-1988) e L. I. Aidarova; e 3) uma Teoria da Subjetividade, elaborada pelos psicólogos cubanos F. Gonzáles Rey (1949-2019) e A. M. Martínez (1949). Nesse campo diverso e
(...) alicerçadas em alguns princípios comuns à psicologia vigotskiana emerge, então, uma Psicologia Histórico-Cultural da Atividade, uma Psicologia Histórico-Cultural da Personalidade e uma Psicologia Histórico-Cultural da Subjetividade (LONGAREZI, 2019a; PUENTES, 2017; PUENTES; LONGAREZI, 2017a, 2017b). (LONGAREZI, 2019a, p. 17)
Foi, especificamente, no contexto e com os pressupostos da Teoria da Atividade, em particular, que a Obutchénie Desenvolvimental se estruturou; pois as teorias psicológicas da personalidade e da subjetividade não chegaram a desenvolver uma didática propriamente dita. Os avanços didáticos produzidos na perspectiva desenvolvimental o fizeram a partir do campo conceitual produzido pela Teoria da Atividade, sobretudo na perspectiva leontiviana; a partir da relação atividade, consciência e personalidade sustentada por esse constructo e com base na estrutura da atividade elaborada e proposta no seio da Teoria Psicológica da Atividade. Nesse sentido, os princípios que fundamentam a Obutchénie Desenvolvimental estão nas teses gerais da psicologia vigotskiana, assim como nos pressupostos desenvolvimentais defendidos pela Teoria Psicológica da Atividade.
Com essa base comum, o movimento experimental que caracterizou a ação dos vários grupos que se debruçaram na edificação de uma perspectiva didática desenvolvimental levou à estruturação de perspectivas que, sob uma mesma base filosófica, epistemológica, ideológica, política e psicológica (que caracteriza o universal da chamada Obutchénie Desenvolvimental), se efetiva com singularidades que vão delinear os sistemas didáticos assumidos, posteriormente, como modos particulares distintos de organização da condução do processo didático desenvolvimental (o particular que se quer revelar no contexto da Obutchénie Desenvolvimental).
Sistemas didáticos desenvolvimentais
Com base nas teses gerais comuns apresentadas, o trabalho experimental realizado por diferentes grupos, a partir do final dos anos de 1950, tornou-se fundamental para a edificação de uma Obutchénie Desenvolvimental, pela estruturação de sistemas didáticos particulares; entre os quais, os mais conhecidos são o Sistema Elkonin-Davidov-Repkin , o Sistema Galperin-Talizina e o Sistema Zankov (LONGAREZI, 2019a; LONGAREZI; SILVA, 2018; PUENTES, 2017; PUENTES; LONGAREZI, 2017; PUENTES; CARDOSO; AMORIN, 2019).
Embora se estruturem a partir de princípios comuns, os sistemas possuem aspectos particularmente distintos que delineiam perspectivas próprias, assim como também a Teoria Histórico-Cultural, conforme demonstrado. O Sistema Elkonin-Davidov-Repkin produziu uma Teoria da Atividade de Estudo, o Sistema Galperin-Talizina, uma Teoria da Formação de Ações Mentais por Etapas e o Sistema Zankov, um Método de obutchénie que desenvolve coração, mente e mãos(NECHAEVA, 2020).
Os dados apresentados no contexto dessas experimentações são reveladores das fortes discrepâncias de compreensão que se tinha dos sistemas na relação entre si e na relação com as teses principais de L.S. Vigotski, com divergências na demonstração dos impactos desenvolvedores dos estudantes como resultado de um ou outro sistema. (LONGAREZI, 2019b, p. 265-266)
No Brasil, as particularidades que caracterizam os diferentes sistemas têm sido foco do interesse de estudos recentes (NUNEZ, 2009; MENDOZA; DELGADO, 2018; ROSA; DAMAZIO; SILVEIRA, 2014; LIBANEO; FREITAS, 2013, LONGAREZI, 2019a; 2019b; LONGAREZI; SILVA, 2018; LONGAREZI; PUENTES, 2017a, 2017b; PUENTES; LONGAREZI, 2017a, 2017b; PUENTES, 2017; PUENTES; CARDOSO; AMORIN, 2019; FEROLA, 2019; AQUINO, 2012, entre outros). A complexidade e diversidade expressaspelos trabalhos desenvolvidos nesse sentido, têm contribuído para o entendimento da dialética singular-particular-universal revelada e reveladora da heterogeneidade que caracteriza a psicologia e a pedagogia marxista-soviéticas, desde os primeiros estudos apresentados por L. S. Vigotski, em meados do século XX, até os dias atuais, passando pelo período auge de elaboração e proposição dos vários sistemas didáticos desenvolvimentais.
Os precursores e elaboradores dos sistemas tinham interpretações distintas de algumas teses de L. S. Vigotski, o que conduziu as experimentações para objetos e processos distintos, orientadas por finalidades específicas. O Sistema Elkonin-Davidov-Repkin teve por objetivo a formação e o desenvolvimento do pensamento teórico, enquanto o Sistema Galperin-Talizina, o desenvolvimento gradual dos processos mentais e o Sistema Zankov, o desenvolvimento geral de qualidades tais como a inteligência, os sentimentos internos e os valores morais (NECHAEVA, 2020).
Sistema Elkonin-Davidov-Repkin
O Sistema Elkonin-Davidov-Repkin, que teve a formação e o desenvolvimento do pensamento teórico como principal finalidade, emerge de um extenso e complexo conjunto de experimentações realizadas com o intuito de se investigar os “(...) processos de trânsito a novas formas da psique, no estudo das condições de surgimento de um ou outro fenômeno psíquico e na criação experimental das condições necessárias para que surjam” (DAVIDOV, MARKOVA, 1981/1987, p. 326, tradução nossa). O esforço de construção dessas condições didáticas pretendia fazer com que “(...) os avanços e processos desencadeados no nível da consciência das crianças fossem transferidos a uma prática social mais ampla; a formação de um novo homem para uma nova sociedade” (LONGAREZI, 2019c, p. 267).
Tomando o desenvolvimento do pensamento teórico (formação de conceitos científicos e de modos generalizados de ações) como finalidade precípua, esse sistema didático desenvolveu, além de um grande número de materiais didáticos para as várias disciplinas escolares, uma Teoria da Atividade de Estudo e, associada a ela, várias teorias auxiliares: 1. teoria do diagnóstico, 2. da generalização, 3. do pensamento teórico, 4. da ascensão do abstrato ao concreto, 5. da cooperação, 6. da comunicação, 7. da transição de um nível para outro, 8. da modelagem, 9. da formação de professores, e 10. do experimento formativo. (ZUCKERMAN, 2011; ДАВЫДОВ <DAVIDOV>, 1991).
Essas teorias, no modo como se tem compreendido, foram produzidas enquanto sistema de teorias, a partir do qual o nuclear de cada uma revela, por meio de seus nexos conceituais, sua existência intersistêmica. Nesse sentido, todas se constituem articuladas entre si e à Teoria da Atividade de Estudo, nuclear teórico do sistema didático Elkonin-Davidov-Repkin (LONGAREZI, 2019c).
Esse sistema didático foi elaborado sob a base da Teoria Psicológica da Atividade, com foco nos princípios da Atividade Principal . D. B. Elkonin, V. V. Davidov e os vários grupos que trabalharam com eles, apoiados na atividade principal do jovem em idade escolar (Atividade de Estudo), desenvolveram vários experimentos junto a estudantes, primeiro e principalmente de escolas primárias e, posteriormente, de outros níveis de ensino. Os trabalhos realizados experimentalmente procuraram estruturar um sistema didático potencializador do desenvolvimento do pensamento teórico dos estudantes. Todo esse trabalho implicou um intenso envolvimento, inicialmente de D. B. Elkonin e V. V. Davidov e, posteriormente, de V. V. Repkin e várias equipes interdisciplinares. O processo experimental como um todo resultou, para além da proposição do sistema didático em si, na elaboração da Teoria da Atividade de Estudo e das teorias auxiliares, articuladas sistemicamente a ela (LONGAREZI, 2019c).
A Atividade de Estudo é, na perspectiva davidoviana, “(...) atividade de autotransformação” (DAVIDOV, MARKOVA, 1981/1987, tradução da autora) que ocorre a partir do processo colaborativo dos estudantes entre si e deles com o professor, tendo por finalidade o trânsito a novas formações psíquicas. Sob essa ótica, o principal conteúdo da Atividade de Estudo é a “(...) assimilação dos procedimentos generalizados de ação na esfera dos conceitos científicos e as trocas qualitativas no desenvolvimento psíquico da criança” (DAVIDOV, MARKOVA, 1981/1987, p. 45, tradução nossa). No bojo das elaborações propositivas estruturadas à época pelos idealizadores do sistema, os estudos realizados em Kharkov, na Ucrânia, pela equipe coordenada por V.V. Repkin (1997/2014), conduziu-os à compreensão de que a principal finalidade da Atividade de Estudo é a de levar o aluno a tornar-se professor de si mesmo.
Os trabalhos realizados pelos vários coletivos envolvidos na edificação desse sistema didático
(...) incluíram estudos experimentais sobre o papel de cada componente da Atividade de Estudo, da tarefa, da ação de estudo e das ações de controle e avaliação, analisaram-se as particularidades evolutivas e individuais da Atividade de Estudo. Esses experimentos conseguiram demonstrar o caráter reitor da Atividade de Estudo no desenvolvimento psíquico das crianças; a natureza desenvolvedora de determinado tipo de obutchénie; a delimitação de que uma obutchénie desenvolvedora como aquela que só pode acontecer pela formação orientada da Atividade de Estudo; e as condições reais de sua efetivação. (LONGAREZI, 2019c, p. 193)
Durante um longo período de experimentação, V. V. Davidov e os grupos que trabalharam com ele em diferentes províncias da antiga União Soviética, conseguiram realizar um trabalho que envolveu uma produção tanto no campo teórico, quanto prático; e, por essa razão, resultou num legado em ambas dimensões. Por um lado, alguns resultados que poderiam ser considerados mais pragmáticos, relacionados à estruturação do próprio sistema didático, incluídos aqui “(...) livros didáticos e materiais de ensino para crianças e adolescentes, guias para professores, um sistema de avaliação de desempenho dos alunos, um sistema de monitoramento da qualidade da educação, equipamentos de informática e assim por diante” (ZUCKERMAN, 2011, p. 48, tradução da autora). Por outro, podemos identificar resultados de natureza mais teórica, que culminaram na estruturação do sistema de teorias associado à Teoria da Atividade de Estudo. Toda a produção da época em torno desse sistema é orientada pelo propósito de desenvolver o pensamento teórico. No limite dessa perspectiva, é importante enfatizar que outras dimensões do processo formativo e desenvolvimental das qualidades humanas, ficam em aberto, ao menos no modo como o sistema se estrutura, com foco para o desenvolvimento das dimensões cognitivas do estudante.
Sistema Galperin-Talizina
O Sistema Galperin-Talizina, por sua vez, produziu uma Teoria da Formação de Ações Mentais por Etapas, elaborada no processo de estudo sobre os modos a partir dos quais as ações mentais são formadas; o que representou, nessa perspectiva, uma importante contribuição para a Teoria Psicológica da Atividade.
P. Ya. Galperin formula os fundamentos da Teoria da Formação das Ações Mentais por Etapas, a partir dos princípios: 1. do carácter ativo do objeto da psicologia, 2. da natureza histórico-social da psique humana e 3. da unidade das formas externas (materiais) e internas (psíquicas) da atividade humana. A teoria produzida se constituiu método de investigação da origem e do conteúdo dos processos mentais. Nesse sentido, demonstra como a atividade prática externa se interioriza e adquire a forma de atividade interna ideal.
Essa perspectiva compreende o processo de formação de conceitos por meio da “atividade conjunta e por mecanismos de simbolização do conteúdo, usando a linguagem como meio de formação linguística de relações e de conscientização do aluno” (NÚÑEZ, OLIVEIRA, 2013, p. 307-308); a partir de três elementos essenciais: o encontro da forma adequada da ação, da forma material de sua representação e, da transformação da ação externa em interna.
A teoria produzida no contexto do Sistema Galperin-Talizina compreende a formação das ações mentais passando por algumas etapas: 1. Motivacional, 2. Base Orientadora da Aprendizagem (BOA), 3. Material ou materializada, 4. Linguagem verbal e 5. Ação Mental (GALPERIN, 1995, 2001).
Para os precursores do sistema, a etapa motivacional deve acompanhar todo o processo de formação das ações mentais. A Base Orientadora da Aprendizagem (BOA), por sua vez, é a projeção do processo de formação, consiste na familiarização com a condição da ação e determina a qualidade do processo de assimilação; corresponde à imagem da ação que o sujeito vai realizar, imagem do produto final, ligada tanto aos procedimentos quanto ao sistema de condições exigidas para a ação (NÚÑEZ, OLIVEIRA, 2013). Na BOA expressa-se o modelo teórico da atividade de aprendizagem como um sistema de operações que regula e dirige a aprendizagem nas condições específicas, inicialmente chamada por Galperin de Etapa de Formação da Representação Prévia da Tarefa e, depois, de Base Orientadora da Ação (NÚÑEZ, OLIVEIRA, 2013, p. 256). A etapa da formação da ação no plano material ou materializada compreende a realização detalhada da ação numa relação direta com o objeto da operação, seja sob a forma material ou de sua representação. (GALPERIN, 2001). Na etapa da linguagem verbal, subsequente à material, a ação não ocorre com o apoio em objetos ou suas representações, já se exprime mediada por recursos da linguagem externa. Aqui o trabalho se eleva a um nível de abstração que dispensa o objeto, porém ainda se faz necessária a fala como modo de apreensão do mesmo. Por fim, a ação no plano mental, última etapa, consiste na fala interna, no conceito como atividade mental no mais elevado grau de abstração.
A teoria produzida nesse contexto desenvolve a ideia histórico-cultural da atividade externa que se constitui atividade interna para o sujeito, submetendo a formação e o desenvolvimento do pensamento científico a processos que se deem sequenciamente do interpsiquico para o intrapsiquico, apoiado no objeto de aprendizagem e/ou sua representanção, quanto menos desenvolvido estiverem as ações mentais mediadas pelo domínio científico do conceito. O Sistema Galperin-Talizina consiste, portanto, numa proposta didática cujas ações garantem a interiorização dos conceitos, tal como a Teoria da Formação de Ações Mentais por Etapas propõe.
P. Ya. Galperin e N. F. Talizina desenvolveram o processo defendido por L.S. Vigotski, na etapa de sua produção que analisa a formação das funções psicológicas superiores, demonstrando experimentalmente como a atividade externa se torna interna. Toda a Teoria da Formação de Ações Mentais por Etapas revela o esforço dos autores nesse sentido. Contudo, a perspectiva didática produzida está focada nos aspectos intelectuais e cognitivos do desenvolvimento do estudante. Esse nos parece um limite na produção do sistema, porque (mesmo quando uma das etapas se denomina “motivacioanal” e ainda quando se defende que essa deva perpassar todo o processo educativo), as ações que caracterizam todas as etapas estão dirigidas para a internalização do conteúdo cultural essencialmente cognitivo.
Sistema Zankov
O Sistema Zankov tem como foco o método que propicia o desenvolvimento do conhecimento científico pelo aluno, com o intuito de ultrapassar sua dimensão cognitiva, incluindo a formação e o desenvolvimento de qualidades como a inteligência, os sentimentos e os valores morais (NECHAEVA, 2020). Em suas proposições, L. V. Zankov (1901-1977) apresenta como preocupação didática a sistematização de um método que promova não apenas o desenvolvimento do pensamento, mas o desenvolvimento integral do estudante.
O desenvolvimento geral, nesse sentido, difere do mental, na medida em que engloba não apenas os processos cognitivos, mas também a vontade e os sentimentos. Como se sabe, na ciência psicológica até os dias atuais, a vontade e os sentimentos (ou emoções) destacam-se como aspectos especiais da psique em contraste com sensações, percepções, memória, pensamento e outros processos cognitivos (ЗАНКОВ ZANKOV, 1968, p. 25, tradução de Bianca Carvalho Ferola).
Na perspectiva de produzir um tipo de aprendizagem nesse sentido, L. V. Zankov compreende que os padrões integrais de desenvolvimento precisam incluir habilidades educativas universais reguladoras (desenvolvimento da vontade), habilidades educativas cognitivas universais (desenvolvimento mental), bem como habilidades educativas universais pessoais e comunicativas (desenvolvimento de sentimentos e valores morais) (NECHAEVA, 2020).
O autor compreende que é pela vospitánie e obutchénie que se pode impulsionar o desenvolvimento geral ótimo do sujeito, entendido como “(...) desenvolvimento do intelecto, da vontade, das emoções, das ideias morais”, por isso, Nechaeva (2020) o denomina de “desenvolvimento do coração, mente e mãos”.
Não pode haver dúvida de que o desenvolvimento da atividade mental da criança é influenciado não apenas pelas instituições educacionais, mas também pela vospitánie da família e por uma série de outras influências sociais: organizações infantis, livros, rádio, cinema, teatro, etc. (ЗАНКОВ ZANKOV, 1963b, p. 9, tradução de Bianca Carvalho Ferola)
Nesse sentido, L. V. Zankov defende a unidade vospitánie-obutchénie no processo de formação e desenvolvimento integral humano. Contudo, o sistema zankoviano não avança muito em uma proposta que ultrapasse os aspectos intelectuais do trabalho educativo, o que limita o atendimento às finalidades de desenvolvimento geral pretendidas pelo autor, na qual se faz presente de forma inequívoca a unidade vospitánie-obutchénie.
Essa aparente distorção entre as intensões de desenvolvimento integral e a proposição de um método voltado mais para o desenvolvimento cognitivo pode ser visivelmente observada nos princípios didáticos elaborados no processo experimental do sistema: 1. a obutchénie com um alto nível de dificuldade, 2. o papel principal do conhecimento teórico, 3. o avançoem ritmo acelerado no estudo do material planejado, 4. aconscientização do processo de aprendizagem por parte dos estudantes, e 5. o desenvolvimento da classe de estudantes como um todo.(ЗАНКОВ <ZANKOV>, 1963; HЕЧАЕВА <NECHAEVA>; PОЩИНА <ROSHCHINA>, 2006; GUSEVA, 2017; GUSEVA E SOLOMONOVICH, 2017; FEROLA, 2019; AQUINO, 2012). Nota-se a proeminência dos aspectos intelectuais como prerrogativa de cada um dos princípios didáticos que regem o sistema zankoviano.
Essa ambivalência caracteriza a produção do autor. Em suas propostas, oscila entre aspectos mais cognitivistas e a tentativa de construir uma perspectiva didática que promova o desenvolvimento integral; uma vez que os métodos produzidos no contexto do sistema preveem a formação de coletivos, a relação amigável entre professores e alunos, o foco no pensamento independente dos estudantes e o papel ativo do estudante no processo de obutchénie (FEROLA, 2019).L. V. Zankov considera que o “(...) surgimento das relações recíprocas, baseadas na ajuda e no enriquecimento em experiências mútuas, cria a base para a formação do coletivismo” (ZANKOV, 1975/1984, p. 76); o que é fundamental para a criatividade e o pensamento inquieto dos estudantes: “O livre intercâmbio de opiniões contribui para se constituir um ambiente de criatividade: o pensamento inquieto das crianças não se contém, a busca da melhor decisão continua durante toda a lição” (ZANKOV, 1975/1984, p. 78). Observa-se que, do ponto de vista metodológico, destaca a importância da formação de coletivos e da relação amistosa entre professores e estudantes (FEROLA, 2019).
A proposta metodológica produzida no contexto desse sistema reúne quatro importantes qualidades pedagógicas: a multilateralidade, o caráter do processo, as colisões e a variabilidade (ZANKOV, 1975/1984; HЕЧАЕВА <NECHAEVA>; PОЩИНА <ROSHCHINA>, 2006; FEROLA, 2019). A multilateralidade prevê o desenvolvimento psíquico no lugar de uma obutchénie fundada apenas na aquisição de conhecimentos e hábitos. O caráter deprocessualidade compreende que a aquisição e o domínio de um determinado conteúdo, implica um novo nível ao conhecimento anteriormente adquirido, que entra em sistemas novos e mais amplos de relações, por isso, se desenvolve. (HЕЧАЕВА <NECHAEVA>; PОЩИНА <ROSHCHINA>, 2006, FEROLA, 2019). As colisões implicam o confronto com o incompreensível, entendido que isso provoca emoções, a partir das quais se iniciam as atividades de aprendizagem pelo estudante. Na compreensão zankoviana, as colisões implicam a emergência do trabalho criativo e ativo do pensamento, correspondem aos conceitos apropriados pelos estudantes que entram em colisão, mediante o incompreensível. A variabilidade, por sua vez, prevê a alteração de tarefas, procedimentos, estilo de trabalho etc., tendo em vista provocar mudanças que impeçam que os sujeitos envolvidos no processo se adaptem.
L. V. Zankov procura trazer uma visão mais ampla das finalidades e ações didáticas, incorporando em suas concepções a formação integral (atitudes, valores, emoções etc.). Mas, em sua materialidade, o sistema didático proposto ainda não consegue avançar suficientemente no sentido de superar uma educação pautada prioritariamente no desenvolvimento intelectual. Ainda assim, a importância dada pelo autor para as outras dimensões do desenvolvimento é merecedora de reconhecimento. Essa perspectiva marca sua obra e o leva a algumas leituras críticas da própria psicologia pedagógica da época. Em suas palavras:
“Um dos objetivos principais de nossa obutchénie consiste em despertar o pensamento independente, inquieto, do escolar, ligado a emoções vivas” (ZANKOV, 1984, p. 62, tradução da autora). Percebe-se como a atividade independente está ligada ao despertar das emoções, e como essas são consideradas como impulsionadoras da atividade, portanto, não se ignora o fato de que há uma busca do sistema para despertar o aspecto emocional do estudante, porém, submetido ao objetivo da aprendizagem e o desenvolvimento cognitivo. (FEROLA, 2019, p. 63, destaque da autora)
Nesse ponto que parece um avanço propositivo no sentido de desenvolver integralmente o estudante, o autor traz à tona aspectos que geraram um desconforto no interior da perspectiva didática desenvolvimental e que produziram fortes críticas, inclusive de V. V. Davidov, que considera que, sob alguns aspectos, o pensamento zankoviano se distancia da tese central de L. S. Vigotski sobre o papel da colaboração no processo de desenvolvimento.
Obutchénie Desenvolvimental em seu singular-particular-universal.
Do geral ao particular, o movimento do estudo apresentado no contexto das fontes documentais trabalhadas, revela, pela dialética do singular-particular-universal, as especificidades que resguardam identidades próprias no interior de cada um dos sistemas didáticos, mostrando que não há homogeneidade no pensamento dos autores nem quanto às finalidades, nem quanto aos processos didáticos propostos. Do mesmo modo, os dados evidenciam a universalidade expressa no delineamento das teses gerais que caracterizam, em sua gênese e desenvolvimento, a Obuchénie Desenvolvimental, também conhecida no Brasil como Didática Desenvolvimental, Ensino Desenvolvimental, Aprendizagem Desenvolvimental, Ensino Desenvolvente e Ensino para o Desenvolvimento.
Evidentemente, não há dúvidas, inclusive pelas próprias denominações assumidas no país, que o desenvolvimento é um ponto fundamental em toda essa proposição didática. Não obstante, o estudo das particularidades dos sistemas permite afirmar que, apesar de suas diferenças, todos estão organizados para o desenvolvimento intelectual do estudante. O desenvolvimento integral humano, ainda quando defendido em sentidos distintos no interior dos sistemas, não se objetiva nos procedimentos didáticos organizados. Isso nos leva à conclusão de que os processos pedagógicos produzidos por uma Obutchénie Desenvolvimental no contexto da Psicologia Histórico-Cultural da Atividade, não conseguem influir, de maneira global, sobre outras dimensões do desenvolvimento humano, para além de funções psíquicas ligadas ao intelecto. Tratam, portanto, do desenvolvimento, essencialmente, do pensamento teórico. E, sob esse aspecto, é preciso cautela para que uma leitura literal dessa perspectiva não conduza à compreensão de que o pensamento possa ser ensinado. Não há como se ensinar a pensar, pelo menos no modo como cultural e conceitualmente concebemos o ensino.
O pensamento se constitui enquanto processo psíquico que se realiza no sujeito, mediado por ele próprio e pelo campo de significação produzido histórico e socialmente pela humanidade. Não se constitui por transferências sociais, introjetadas, mas por processos de produção de sentidos, mediados pela significação social. As significações enquanto atos de pensamento são, igualmente, mediações para o desenvolvimento do pensar. Assim, o pensamento que, nos dizeres de L. S. Vigotski, se realiza em palavras não é produto, senão também processo; uma vez que se desenvolve mediado por um campo de significação que se materializa em palavras.
Na perspectiva da Psicologia Histórico-cultural da Atividade, as mediações no contexto da educação escolar precisam ser baseadas em conceitos científicos, uma vez que o papel da escola, nessa abordagem, é o de desenvolver o pensamento teórico. A mudança qualitativa, mediada pelo conhecimento científico, só pode acontecer na escola, dada as condições e os modos de sua organização. Nessa compreensão parece haver um consenso entre os vários grupos que trabalharam na elaboração dos sistemas didáticos, ainda quando seus objetivos e focos tenham sido distintos.
Os pedagogos começam a compreender de forma mais clara que a tarefa da escola contemporânea não consiste em dar às crianças uma ou outra somatória de fatos conhecidos, (...) a escola deve ensinar as crianças a pensar, isto é, desenvolver ativamente neles os fundamentos do pensamento contemporâneo, para o qual é necessário organizar uma obutchénie que impulsione o desenvolvimento (chamemo-la “desenvolvente”) (DAVÍDOV, 1986/1988b, p. 3, destaques e tradução da autora).
Apesar do universal comum aos sistemas, o estudo lógico-histórico da Obutchénie Desenvolvimental traz indícios de que sua gênese e desenvolvimento se constitui na tensão contraditória característica dos processos de edificação dos vários modelos didáticos, onde se materializa enquanto particular. Desse modo, salvos os aspectos comuns produzidos sob a base da Teoria Histórico-Cultural da Atividade (LONGAREZI, 2019a, 2019b; PUENTES, 2017; PUENTES; LONGAREZI, 2017a, 2017b), cada sistema (Elkonin-Davidov-Repkin; Galperin-Talizina e Zankov) elaborou modos singulares que, por sua vez, traz contribuições para o campo da Obutchénie Desenvolvimental; o que caracteriza sua natureza heterogênea.
A Obutchénie Desenvolvimental representa, portanto, um complexo e rico movimento produzido experimentalmente em seu período auge de 1958 a 1984; tem princípios comuns, mas guarda particularidades que caracterizam seus diferentes sistemas. Apreender a generalidade e a singularidade que a constitui é fundamental para que a Obutchénie Desenvolvimental seja conceitualmente revelada a partir de seu próprio processo lógico-histórico e, em consequência, para que se expresse na unidade contraditória, como expressão dialética do singular-particular-universal.