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Educação UFSM

versão impressa ISSN 0101-9031versão On-line ISSN 1984-6444

Educação. Santa Maria vol.46  Santa Maria jan./dez 2021  Epub 04-Dez-2023

https://doi.org/10.5902/198464439574 

Artigo Demanda Contínua

Docência e a aula como ensaio

Teaching and the class as rehearsal

Sônia Regina da Luz Matos1  , Professora doutora
http://orcid.org/0000-0002-3946-5628

Betina Schuler2  , Professora doutora
http://orcid.org/0000-0002-2424-7601

1Professora doutora na Universidade de Caxias do Sul, Caxias do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil. srlmatos@ucs.br

2Professora doutora na Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, Rio Grande do Sul, Brasil. betinaschuler@hotmail.com


RESUMO

Na atualidade, temos uma das políticas nacionais de formação de professores se efetivando via Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência Programa (Pibid)1. Por meio dessa macropolítica, o projeto Práticas curriculares de escrita e leitura e a formação de professores participa desse espaço político, articulando a pesquisa universitária e a escola pública. O artigo versa sobre o tema aula a partir do aporte conceitual dos filósofos Nietzsche e Deleuze. Com eles, na primeira parte do artigo, definimos a docência como vontade criadora e a articulamos à noção de aula como ensaio. Apresentamos, em seguida, a operação da crítica genealógica como um dos principais elementos didáticos da aula como ensaio. A pesquisa, ao assumir esse posicionamento conceitual, apresenta, na terceira parte do texto a experimentação do elemento didático da crítica genealógica na aula intitulada “Oficinando com as bruxas: entre o bem e o mal”, desenvolvida junto a uma turma dos anos iniciais de uma escola pública via o Pibid. A partir disso, a personagem bruxa foi levada ao território da crítica genealógica como elemento didático da aula como ensaio, possibilitando a problematização da valoração dos valores e a desnaturalização de estereótipos.

Palavras-chave: Docência; Crítica genealógica; Aula

ABSTRACT

One of the current national policies for teacher education has been put into practice through the Institutional Teacher Training Program (Pibid). By means of this macro-policy, the project known as Curricular Practices of Writing and Reading and Teacher Training has taken part in this political scenario by connecting public school and university. The paper approaches the class by considering conceptual tools provided by Nietzsche and Deleuze. In the first part of the paper, teaching is both defined as creating will and articulated to the notion of class as rehearsal. In the second part, the operation of the genealogical criticism is presented as one of the main didactical elements of a class as rehearsal. From this conceptual perspective, the third part of the paper presents the experimentation of the didactical element of the genealogical criticism in the class named as “Workshop with the witches: between good and evil”, carried out with early grade students in a public school through the Pibid. From that, the witch character was carried to the territory of the genealogical critic as a element of didactics of the class as rehearsal, allowing the problematization of values and the denaturalization of the stereotypes.

Keywords: Teaching; Genealogical criticism; Class

Certa introdução

O projeto denominado“Práticas curriculares de escrita e leitura e a formação de professores”se fez presente na atual política nacional de formação de professores por meio do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (Pibid), desenvolvido em um curso de Pedagogia na região sul do país. O projeto entra no espaço macropolítico envolvendo os professores e os alunos da Educação Básica, bem como acadêmicos/as do curso dessa licenciatura em Pedagogia. Em termos de micropolítica, o tema do projeto -a docência e a aula - busca entrelaçar a pesquisa acadêmica, a escola pública e a formação de professores.

O Pibid objetiva incentivar a formação de professores em nível superior voltada para a educação básica, valorizar o magistério, qualificar a formação inicial de docentes nos cursos de licenciatura por meio da integração entre a universidade e as escolas, promover a inserção dos/as licenciandos/as no cotidiano das escolas de educação básica para proporcionar espaços de participação em experiências pedagógicas e incentivar os docentes das escolas de educação básica a se envolverem no processo de formação dos futuros docentes. A legislação do Programa, determinada pela Lei nº 9.394/1996, pela Lei nº 12.796/2013 e pelo Decreto nº 7.219/2010, afirma sua finalidade de “(...) fomentar a iniciação à docência, contribuindo para o aperfeiçoamento da formação de docentes em nível superior e para a melhoria da qualidade da educação básica pública brasileira” (CAPES, 2013).Desse modo, a própria legislação decide a estrutura de funcionamento dos projetos, que “(...) no âmbito do Pibid são propostos por instituições de ensino superior (IES) e desenvolvidos por grupos de licenciandos sob supervisão de professores de educação básica e orientação de professores das IES” (CAPES, 2013). A partir dessa legislação e estrutura de funcionamento, existem o financiamento e a concessão de bolsas aos envolvidos no Programa.

Nos anos de 2014 e 2015, o Pibid foi envolvido na proposta deste projeto de pesquisa, contando com 10 a 15 licenciandos/as bolsistas do curso de Pedagogia, duas professoras de escola pública e os/as alunos/as de suas turmas, duas pesquisadoras Coordenadoras de Área e uma bolsista do Mestrado Acadêmico em Educação. As ideias, estudos e produções do grupo de pesquisa foram registrados em diferentes espaços, tais como o aplicativo WhatsApp, o blog institucional, o Google Drive partilhado pelo grupo - com a escrita de texto coletivo -, o GoogleFotos, dois diários que ficavam nas escolas, 10 ateliers de leitura e escrita, o caderno de ata, os relatórios mensais das bolsistas, os relatórios semestrais e anual para CAPES/Pibid, as produções dos alunos nas aulas, os planejamentos das aulas na escola e os cadernos de cada bolsista.

Com essa composição, o projeto toma uma posição crítica sobre o trabalho junto à escola, isso porque a escola moderna, histórica e politicamente, é uma das instituições disciplinares que passaram a criar e aperfeiçoar as tecnologias de poder com técnicas que produzem a conduta dos indivíduos e os submetem a um tipo de disciplinamento, tal como na formação de professores. Sabe-se que a sociedade moderna tinha e tem como fim o desenvolvimento civilizatório da maquinaria capitalística. Na contemporaneidade, a escola vê-se atravessada também pelas forças do controle, um modo de o poder se exercer para além dos espaços de confinamento. Essas forças do disciplinamento e do controle contemporâneos são tratadas pelo projeto como modos de exercício de poder no controle minucioso das operações sobre o individual, buscando uma relação de docilidade, utilidade (FOUCAULT, 2002) e de um controle ininterrupto sobre o espaço e tempo, em um panóptico generalizado em que todos controlam a todos (DELEUZE, 1992).

A partir disso, podemos pensar que as políticas de educação, atravessadas nos espaços de formação de professores, não estão isentas de relações de forças, estando a elas vinculadas e sendo por elas produzidas, a exemplo das hierarquias desenvolvidas pelo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB). Tem-se, nesse plano de atuação da política nacional, uma questão de objetivar resultados quantitativos e também de dominar os dados e as metas, ou seja, de controlar-se o controle.

Ao reconhecermos algumas das forças da maquinação escolar nas produções das sociedades disciplinares e de controle, aspiramos a mostrar que estamos atuando noPibid como modo de fazer alguns enfrentamentos. Assim, a pesquisa aposta no funcionamento micropolítico junto ao Pibid, na problematização do que tomamos como “aula”. As derivações conceituais do processo de investigação e de elaboração das aulas na escola são inspiradas nos denominados pensadores da diferença (GALLO, 2010), tais como Nietzsche e Deleuze, bem como em outros autores que cruzam esse pensamento na área da educação.

Para o presente artigo, marcamos o tema da docência como vontade criadora que investe na “aula como ensaio” (DELEUZE e PARNET, 1997; CORAZZA, 2010). A fim de defender essa temática, evidenciamos a crítica genealógica como um dos elementos didáticos que caracterizam esse tipo de docência e de aula.

O artigo é construído a partir de três segmentos. Os dois primeiros consistem de um conjunto de argumentos teóricos sobre a docência como vontade criadora e sua relação com a crítica genealógica, tomada como um dos elementos didáticos compostos na noção de aula como ensaio. Na terceira parte do texto, trazemos um dos trabalhos desenvolvidos com alunos e alunas dos anos iniciais em uma escola pública no sul do Brasil, intitulado “Oficinando com as bruxas: entre o bem e o mal”.

Com essa construção argumentativa, o artigo expressa-se por meio de uma micropolítica, porque toma o espaço escolar como sintomas das urgências das sociedades. Esses sintomas são capturas provisórias que colocam o tema da docência e da aula em uma posição de experimentar saídas do aprisionamento das metanarrativas educacionais e do controle de verdade atribuídos pelas observações e suas informações produzidas pela sociedade disciplinar e pela sociedade de controle.

O desafio micropolítico que envolve a formação de professores é conviver com a tensão do abandono de novas e de velhas certezas, ou seja, de enfrentar o conservadorismo que se agarra às velhas crenças, mas sem abandonar a tradição pedagógica, pois não se opera com um elogio do novo pelo novo. Isso porque problematizar o disciplinamento e o controle não significa negá-los, mas justamente, nesse caso, investir em uma formação que traga a necessidade de abrirmos outras possibilidades de existência no território da docência. Isso não significa existir fora das relações produzidas pelas sociedades, mas produzir brechas. Por isso, neste artigo, priorizamos apresentar os resultados parciais de uma pesquisa que investe na microfísica da aula.

Uma docência: vontade criadora e genealogia

Quando inflexionamos uma docência como vontade criadora de inspiração nietzschiana, expressamos como matéria de atuação pedagógica o que excede durante o processo em pesquisa, questionando o posicionamento metafísico e dissolvendo a estabilidade do já sabido e a permanência do conhecido em docência. O que excede é produzido pela necessidade de capturar as forças do presente, e temos como ação didática a dissolução de currículos centrados nos valores da moral prescritiva (NIETZSCHE, 2009).

O professor-pesquisador (MATOS, SCHULER e CORAZZA, 2015), ou a docência como vontade criadora, não opera a partir da denúncia ou da salvação das práticas escolares. Busca mostrar a docência atravessada por forças que afirmam a vida em meio à problematização da valoração dos valores. A docência, pois, tomada como esse movimento de criação de outras possibilidades de existência que podem dissolvem a consciência e as leis da moral de rebanho (NIETZSCHE, 2009; DELEUZE, 1976; DIAS, 2009), capturada pelo funcionamento do disciplinamento e do controle (FOUCAULT, 2002; DELEUZE, 2008) nas escolas brasileiras contemporâneas.

Assim, pode-se questionar: o que cria essa docência que pesquisa? Cria brechas microfísicas, cria questionamentos e problemas que abrem outros modos de pensar a escola, suas práticas e os modos de existência? A brecha microfísica tem o poder de criação porque é parte de um jogo de forças. Esse jogo sempre carrega modos de as forças se exercerem ˗ ativas e reativas ˗, agindo com uma desigualdade de forças. Age-se sempre com ação de qualidade e de quantidade de forças (DELEUZE, 1976). O jogo marca uma relação entre essas duas forças (Ibidem.). As forças reativas operam a partir da não-afirmação da vida para poder existir em modelo, em moral prescritiva, em nome de valores superiores e universais (NIETZSCHE, 2008). As forças ativas exercem vontade da potência de ação na vida/docência.

A vida/docência como vontade criadora exprime-se nesse jogo. Ela é a complexidade do processo de luta e do movimento de resistência e expansão, em que se dá o jogo das forças que sempre se chocam, atuam, confrontam, dominam, submetem e movimentam2 a docência e a aula (DELEUZE, 1976). Poderia a docência viver da abundância de forças que produzem outros sentidos para a aula? No caso deste projeto, a docência envolve-se na didática que se volta para a crítica genealógica como elemento didático que se compõe com a aula. E isso não como um novo projeto de aplicação prescritiva, inovação ou salvação em educação. Trata-se, apenas, de uma tentativa de se pensar outras questões em se tratando da formação de professores.

Quando dissemos que a vida/docência é afirmada, estamos nos referindo à ideia de vida demarcada pelo filósofo Nietzsche (S/d). A vida, para ele, é um combate político entre o que excede do significante e o que se significa, entre o que escorre e o que se configura. A partir disso, a vida/docência como vontade criadora pode elaborar uma didática que força o que acontece entre o preparo da aula e o vivido, como diz Deleuze (1968, p.33, tradução nossa): “(...) a grama que está no meio e que brota pelo meio... Entre as pedras do calçamento”. Com o movimento entre o ensaio da aula e o vivido, desloca-se uma ação pedagógica que atua sempre no porvir da aula, produção essa que ganha duração contínua e se manifesta pelo complexo movimento das forças e suas batalhas, suas resistências de confronto e sua ampliação de sentidos.

Buscamos a afirmação desse vitalismo em docência. O vitalismo a que nos referimos é nietzschiano e, como tal, parte de uma imposição provisória de um produto desse jogo onde as forças podem agir como potência criadora (DELEUZE, 1976). Então, uma docência que afirma a vida como vontade criadora problematiza a vontade de verdade, composta na lógica identitária de modelos e cópias, com o sentido dado de antemão. Essa docência problematiza a lógica da verdade original, como se houvesse um sentido a priori no mundo a ser impresso neutramente nos alunos, como muitos dos discursos contemporâneos apregoam, tal como o Escola sem Partido. Assim, o que está em questão não é a origem da verdade, mas a genealogia do valor da vontade de verdade sobre a aula. A vontade de verdade, para essa ação docente é tomada como sintoma do presente e serve como problematização na valoração dos valores por meio da crítica genealógica (Ibidem.).

Assim, desnaturalizar a língua, problematizar a linguagem por meio da qual instituímos valores pode ser operada como uma micropolítica que abra outras possibilidades quanto à aula. Uma linguagem não baseada na origem da verdade e nem mesmo na identidade, mas nas forças e nos modos de subjetivação. Ou seja, interessa para a perspectiva nietzschiana genealógica desmontar esse tipo de linguagem para poder desmontar mecanismos que apequenem a vida, mostrando a arquitetura das relações de forças. Por isso, o critério de avaliação do que é importante ser trabalhado em uma aula não é o critério da verdade, mas a vida como vontade de potência. O que está em questão é o que um determinado estudo com um grupo de alunos nesse espaço coletivo que é a aula pode promover ou conservar a vida.

Trata-se de uma relação diferente com a vida e o pensamento, o que não significa um novo conteúdo de pensamento, mas pensar as condições de possibilidade para um pensamento mais afirmativo em educação. Como traz Mosé (2016, p. 197):

A positividade da vida, afirma Nietzsche em seu pensamento trágico, decorre exatamente da ausência de fundamento que caracteriza tanto a atividade estética infinita da vida, o dionisíaco, quanto a linguagem e os valores da cultura. O estado estético é esse fundo infinito, esta força criadora, e consequentemente destruidora, incessante. O que a tragédia encena é a abundância de linguagens, presentes na vida. Como um jogo marcado pela luta entre forma e ausência de forma a vida é um fenômeno estético. Tudo, em último instância, é arte, invenção, linguagem. E a linguagem humana somente se tornará afirmativa se for capaz de se afirmar como uma interpretação infinita.

A partir disso, podemos pensar em uma docência mais interessada do que produzir novas soluções para os mesmos problemas, esteja interessada em criar novos problemas a partir do encontro com as aulas e com os alunos. Nessa perspectiva, a partir de Deleuze (LÓPEZ, 2008), os problemas não são o obstáculo ao saber, aquilo que deve ser superado. Pelo contrário, os problemas dão dignidade às perguntas e às respostas, é o que faz pensar. Daí que tomar a criação na docência teria a ver com a criação de novos problemas, a partir de uma postura que desnaturaliza a vontade de verdade e o sujeito fundante, para pensar como estamos nos constituindo no que somos e no que já estamos deixando de ser.

Um professor atravessado pela perspectiva da criação não coloca a tradição pedagógica fora e não se atira em uma inovação do tipo empresarial, a partir de uma linguagem instrumental. Um professor marcado por essa dimensão estética, desde a perspectiva genealógica de Nietzsche, opera com o saber como acumulação, mas também com o exercício do pensamento como experimentação. E somente podemos pensar nessa relação estando abertos ao infinito do qual falava Mosé (2008), com esse heterogêneo que nos atravessa. Um tipo de conversação que não estaria não preso na contradição, na falta, no consenso, mas justamente que se produza na aula via composição. Isso não significa pensar o mesmo que o outro, pensar contra o outro ou pensar pelo outro, mas pensar com o outro, perguntando pelos sentidos e pelas perspectivas a partir das quais dizemos, lemos e escrevemos coisas nas escolas.

Daí que essa dimensão de criação na docência traz uma atenção especial para a relação entre pensamento e cultura (LÓPEZ, 2008). Por isso, quando se fala em professor e vontade de criação, não se está falando de uma habilidade cognitiva, mas de uma abertura ao outro e ao mundo. Uma abertura àquilo que não conhecemos, ao encontro, a composições novidadeiras entre textos, autores, imagens, músicas, filmes, entre outros, colocando-nos sempre outros problemas.

Operando com a crítica genealógica: a aula como ensaio

O autor Gilles Deleuze, especificamente no livro Nietzsche e a filosofia (1976), trata a crítica genealógica nietzschiana como um pensamento filosófico que vai destituir a ideia passiva de que a genealogia é a procura da origem e do fundamento dos valores ou de alguma coisa. Essa genealogia nietzschiana, portanto, teria uma força de ação (DELEUZE, 1976). O posicionamento da crítica genealógica tem a força de “fundir os antigos conceitos, como se pode fundir um canhão para fabricar a partir dele novas armas” (DELEUZE e GUATTARI, 2005, p. 40). Esse tipo de crítica fabrica um elemento diferencial, porque seu problema é o valor dos valores e também a avaliação da qual procede o valor dos valores (DELEUZE, 1976). Desse modo, a crítica genealógica envolve-se numa dupla problemática: a fabricação da crítica e a fabricação de novas armas.

Esse tipo de crítica não opera por essência, perguntando, por exemplo, o que é uma aula, mas busca seus modos de funcionamento em seus efeitos de poder e subjetivação. Rompe-se, portanto, com uma perspectiva metafísica e com uma moral de rebanho em educação, embasadas pela vontade de verdade. Busca-se escapar, em brechas, dessa divisão binária do verdadeiro e do falso, para apostar na história descontínua da valoração dos valores.

Assim, dentro dessa dinâmica da crítica genealógica, elaboramos, a seguir, dois direcionamentos da pesquisa para mostrar a potência da crítica genealógica como elemento didático. Um primeiro direcionamento aponta como esse elemento didático é acionado durante o processo de pesquisa. Já no segundo direcionamento do texto, apontamos a crítica genealógica como um dos elementos didáticos que caracterizam o funcionamento da aula como ensaio junto à escola.

No primeiro direcionamento, a pesquisa opera, também, com a crítica genealógica como um elemento didático, pois a tomamos como uma possibilidade de decomposição dos determinantes morais que definem as essências sobre o tema aula. Com a força de decomposição que carrega essa crítica, problematizamos o bloco conceitual produzido pelos regimes de verdade das metanarrativas sobre o que é uma aula e como dar uma aula. Eleva-se o tema aula para a campo da problematização dos regimes de verdade vigentes quando se pergunta pelas forças envolvidas nessa fabricação.

A problematização desse tipo de crítica faz das perguntas um diagnóstico do presente, uma sintomatologização em torno do alargamento da didática, o que exige certa ruminação3. Dispara-se, pois, uma composição de perguntas que desestabilizam a vontade de verdade sobre o tema aula, tais como:mas o que quer a docência quando pergunta o que é uma aula? Ou: como dar uma aula? Ou ainda: o que é uma boa aula? Também: o que quer quem quer uma boa aula? Boa para quem? Então, continuamos as questões, mas mudando as perguntas, para que as respostas são sejam parte da acomodação das forças que compactuam com omodelo-essência de aula na formação de professores/as.

Acreditamos que a força da crítica genealógica tem potência para evanescer os clichês sobre o tema aula. A sensação é de que a parte da pesquisa que investe no cunho genealógico causa estranhamento entre as licenciadas e professoras, justamente porque questiona o funcionamento da produção da verdade sobre as metanarrativas do tema aula. Portanto, durante os encontros semanais na escola e nas reuniões de pesquisa na universidade, perguntávamo-nos criticamente, em busca de alguns fragmentos genealógicos sobre o tema aula, tais como: como funciona a invenção de uma aula? O que quer a vontade de verdade sobre o que é uma aula? Quem quer a verdade sobre o que é aula? Por que querê-la? Para que tê-la? Que pretende a aula? Como ela quer existir? Como ela passa a existir como aula? Esses são alguns dos básicos questionamentos de elemento didático em inspiração genealógica.

O movimento genealógico pode produzir um efeito vertiginoso, pois ele também aciona, paralelamente, uma força de vontade de potencializar outra aula. Retiramos de um dos registros da pesquisa, especificamente do aplicativo WhatsApp, a ideia de uma das bolsistas de iniciação à docência do Pibid quando ela questiona aula: “aula é como um cubo espaço temporal?”. A bolsista pesquisadora questiona sobre o tema aula e, ao mesmo tempo, elabora outra ideia sobre o tema disparado pelo exercício da crítica genealógica. Assim, executamos uma ação didática de inspiração crítica genealógica para colocar em velocidade o já acomodado sobre o tema aula e extrair outros pontos de encontro sobre o próprio tema. Com esse percurso investigativo, o tema aula ganha espaço micropolítico da ação de teoria e da ação de prática (DELEUZE, 2006; GALLO, 2010). Desse modo, passamos ao segundo direcionamento do texto, que se compõe com esse elemento didático como parte que movimenta a aula como ensaio junto à escola.

O percurso com o encontro da noção de aula como ensaio acontece a partir de um vídeo em formato de entrevista com o filósofo francês Gilles Deleuze. Ele responde a uma série de perguntas da jornalista Claire Parnet. Foram elencados 25 temas mais presentes em sua obra, que são expostos em ordem alfabética com o documento:O Abecedário de Gilles Deleuze (DELEUZE e PARNET, 1997). A entrevista é organizada com a lógica das letras do alfabeto, que indicam os temas a seguir: A de Animal, B de Beber, C de Cultura, D de Desejo, E de Enfance (infância), F de Fidelidade, G de Gauche (esquerda), H de História, I de Ideia, J de Joie (alegria), K de Kant, L de Literatura, M de Maladie (doença), N de Neurologia, O de Ópera, P de Professor, Q de Questão, R de Resistência, S de Style (estilo), T de Tênis, U de Uno, V de Viagem, W de Wittgenstein, X de Desconhecido, Y de Indizível e Z de Ziguezague.

A letra P do alfabeto, a qual traz o tema Professor, muito aqui nos interessa. Dela retiramos a noção de aula como ensaio e é com ela que nos questionamos sobre a noção de aula e sobre as diferentes ideias que podemos ter em se tratando da intervenção na pedagogia. Colocamos em movimento a pesquisa quando, no vídeo, a jornalista Parnet perguntou ao filósofo sobre suas aulas, até porque o filósofo foi professor durante 40 anos. Ele narra sua docência, apontando que ela acontece desde o ensino médio até tornar-se professor universitário. Diante das perguntas da jornalista, responde que uma aula é ensaiada, assim como se faz no teatro (DELEUZE e PARNET, 1997). Para ele, é o ensaio que provoca a inspiração da aula. É com o ensaio que ele fala sobre a fascinação pela matéria que tratamos em aula. E simplesmente diz: “o ensaio é isso” (Ibidem.).

A definição de que “uma aula é ensaiada, como no teatro” (DELEUZE e PARNET, 1997) é parte do teatro de inspiração nietzschiana, ou seja, um teatro que produz um movimento capaz de conduzir o pensamento na dobra da representação. Um teatro que produz movimento genealógico de ação, porque “o que interessa são os atos” (GUATTARI, 1987, p.13). O ato que interessa na aula como ensaio é o ato da crítica genealógica que envolve a ação de teoria e ação de prática. E aqui o ensaio não se trata de uma repetição a ser imitada, de um planejamento a ser seguido passo a passo e muito menos de uma abstração sem sentido. O ensaio está muito mais vinculado à experimentação de si no pensamento e na docência, nesse caso. Por isso, seria muito mais da ordem da experiência do que do experimento que pode ser comprovado ou refutado. Por isso, não se trata da verdade da docência e da aula, mas como estamos vivendo essas relações nas escolas e estamos sendo atravessados e transformados por elas.

O ato do ensaio funciona como uma pesquisa labiríntica que vive da força da problematização genealógica. Essa força imprime uma fragilidade na aula quando seu limite é dar forma a derivações de outras problematizações. Assim, mesmo frágil, o ato de aula como ensaio não tem possibilidade de aliar-se às definições morais binárias sobre o certo/errado, o verdadeiro/falso, o científico/não-científico, o bem/mal e o real/irreal, teoria/prática, justamente porque rompe com o real da representação. Não haveria, nessa perspectiva, uma teoria a ser representada e aplicada em aula, nem um mundo da aula que inspiraria certa teoria.

O ensaio, nessa perspectiva, estaria vinculado a um questionar as fronteiras disciplinares e essa linguagem instrumental que é tão forte na escola contemporânea. Desse modo, a aula não seria somente a tarefa do professor, uma execução de passos previamente determinados, mas também o seu problema. A aula necessita ser montada, criada. A aula como ensaio necessita de conceitos, textos, imagens, palavras, sons, mas não como algo que irá pré-determinar a aula, mas como o terreno que se cultiva para se caminhar por. Ela precisa ser preparada não como algo a ser representado, mas como algo a ser pensado e inventado junto aos alunos.

Outrossim, o ato de ensaio constitui seu rigor quando, junto ao movimento da crítica genealógica, cria o espaço de problematização de algumas dessas formações morais binárias, rejeitando os valores “em si” dos valores. Por isso, a aula como ensaio está muito vinculada a uma postura docente que coloca-se estoicamente frente a frente consigo mesmo, justamente para afastar-se de si. Trata-se de estranhar o presente, o que é mais habitual e familiar na escola e perguntar: por que dessa forma e não de outra? Por que esse enunciado para falar de professoras, alunos e da aula e não outros em seu lugar? Por isso a aula como ensaio perpassada pela crítica genealógica teria essa primeira característica de desnaturalização do mundo, rompendo com imagens evidentes demais que não nos permitem mais pensar sobre o que se passa no pensamento, sobre o que se passa conosco. Opera-se, assim, com a multiplicidade e não com a busca pela unidade da representação; entendendo que a verdade não tem critério a evidência, mas sua condição de invenção e esquecimento, as quais são culturais, sociais e morais. (NIETZSCHE, 2006).

No decorrer da investigação do projeto, a aula como ensaio passou a existir junto à vontade criadora da experiência de aula desenvolvida na escola pública, a partir do exame de aulas intituladas “Oficinando com as bruxas”.

Oficinando com as bruxas: entre o bem e o mal

A construção conceitual que o texto vem desenvolvendo traz o percurso de uma relação de docência como vontade criadora e faz ressonância com um tipo particular de aula. Para elaborarmos essa construção, munimo-nos com a dinâmica da crítica genealógica nietzschiana. Isso não significa operar sem nenhum valor, mas problematizar justamente os pesos e a valoração dos valores com os quais trabalhamos na escola. Essa dinâmica genealógica rumina por significantes e a-significantes deterministas, universais e transcendentes sobre o tema aula. Então, com os questionamentos genealógicos, dissolve-se a valoração dos valores da vontade de verdade sobre o tema da docência e da aula. Essa matéria de pesquisa produz e é produzida em forma de ação de teoria e de ação de prática. Refere-se, pois, a um tipo de estudo investigativo que opera com as perguntas genealógicas, as quais forçam uma didática forasteira para a execução da aula como ensaio. A partir dessa perspectiva conceitual, passa-se a detalhar algumas descrições do trabalho desenvolvido em uma escola pública no sul do Brasil no ano de 2014 a partir do projeto específico operado por meio do Pibid. Essas aulas foram trabalhadas como oficinas, tomadas como ensaio, tendo como um de seus elementos didáticos a crítica genealógica.

Um dos conjuntos de aulas dessa experiência foi denominado como “Oficinando com as bruxas: entre o bem e o mal”. Uma das bolsistas de iniciação à docência escreveu no seu relatório mensal que as aulas tinham como objetivo “(...) problematizar os conceitos sobre o bem e o mal através de estudos sobre as bruxas no contexto histórico, utilizando como base filosófica as escritas de Nietzsche para investigar a construção dos conceitos estudados”. A aula e seu objetivo aconteceram atravessados pela crítica genealógica nietzschiana, que problematiza a valoração dos valores, apostando em sua história descontínua (NIETZSCHE, 2006). Operou-se com a ideia de heresia em Nietzsche (2009) para problematizar a valoração dos valores de bem e de mal.

Nessas aulas, as bolsistas tomaram a ideia de bruxa e de heresia, como pudemos constatar no relatório mensal do mês de setembro de 2014, anexado ao planejamento. Desse documento, removemos a seguinte frase, em que consta o tema aula: “Das aulas: Contexto histórico bruxa, heresia, Inquisição”. O objetivo e os temas das aulas foram conduzidos pelo movimento genealógico e, assim, passaram a ser problematizados quando mostraram a arquitetura da valoração dos valores. A partir disso, foram examinadas as forças da vontade de verdade sobre o bem e o mal junto às crianças em sala de aula. Encontramos vestígios desse movimento crítico genealógico do jogo das forças dos valores morais também nos registros do ensaio das aulas. Eles estavam intensamente presentes nos encontros, mas queremos apontar, especificamente, as problematizações descritas em duas das 10 aulas, que são as aulas dos dias:

24 de setembro de 2014. Problematizações: O que é ser uma bruxa? Como ela se veste? Onde moram? O que fazem? Quem foram as bruxas da história? De onde surgiram as bruxas e suas histórias? O que são bruxas? De onde elas surgiram? As bruxas são boas ou más? Quais são as características das bruxas? Como são suas roupas, seus hábitos? Qual é o comportamento de uma bruxa? Existem bruxos? 30 de setembro de 2014. Problematizações: De onde vieram os costumes dos antepassados de tomar chás? Por que as mulheres consideradas bruxas sabiam muito sobre plantas?

Outra questão relevante é que as alunas bolsistas explicitaram essa necessidade de inspiração genealógica quando, em um resumo da pesquisa apresentado em um evento científico, escreveram: “O foco das aulas centra em investigar a origem dos juízos de valor ‘bem’ e ‘mal’ para assim possibilitar a valoração dos valores e dissolver estereótipos relacionados às bruxas, assim como à estigmatização das mesmas”. Prontamente, a aula, com o diferencial genealógico não prioriza distinguir junto aos alunos e alunas o verdadeiro do falso, mas quer investigar como estamos nos constituindo no que somos atravessados pelas práticas tomadas pelo tema da investigação dessa aula, as quais contornavam as bruxas, o bem e o mal. Junto a essa temática, outras foram se compondo, tais como as discussões de gênero, sexualidade, questões sobre padrões estéticos, entre outras.

Particularmente, no que se refere à escolha da personagem bruxa, o trabalho “Oficinando com as bruxas” também foi problematizado pelo grupo de pesquisa.As bolsistas inicialmente argumentaram que a personagem bruxa é colocada no tema da aula como parte de uma personagem bem conhecida no universo infantil, tanto em livros de literatura infantil quanto em livros didáticos. Sendo assim, ela carregava o jogo das forças da valoração dos valores bem e mal. Abaixo, segue um excerto do trabalho publicado no evento do Pibid:

As bruxas protagonizaram as atividades como artefatos culturais para problematizar a valoração dos valores bem e mal. (...) O artefato cultural estudado, bruxas, justifica-se por apresentarem uma ligação, sobretudo, no período medieval. Porém, atualmente, podem-se identificar resquícios desses estigmas. Nesse ínterim, pensou-se em propor para análise o modo como a figura ‘bruxa’ está retratada em livros didáticos e literários, e investigar a razão que cujos juízos de valor referentes ao bem e ao mal estão associados a tais figuras, e, também, como determinado julgamento acarreta outros estereótipos, como no caso das bruxas, a beleza e/ou a feiura. Dessa forma, o alvo principal de estudo desse trabalho não constitui mero acaso, pois bruxas fazem parte de muitas das narrativas ouvidas pelo público infantil com os quais o grupo de bolsistas trabalhou. Mas o que se configura em novidade nessa questão é a percepção dos diversos valores que preenchem o cultivo dessa crença, perpetuando uma visão cultural permanente sobre um único olhar que determina qual é a imagem do bem e do mal.

Insistimos no fato de que o argumento inicial construído pelas bolsistas era que lidávamos com um artefato cultural fortemente expressado na literatura infantil e que, por isso, a personagem bruxa era tema da aula. Todavia, há um alargamento desse argumento desenvolvido pelas bolsistas ao localizarmos outra direção argumentativa descrita por elas. Esse outro argumento não foi organizado em resposta direta, como da citação acima. Constatamos que, nos registros do relatório das bolsistas, a personagem bruxa foi levada para o território da crítica genealógica como elemento didático de aula. Com isso, não foram somente o bem e o mal os provocadores de valor moral, mas a identidade da bruxa, que carregava um tipo, o nível e o grau de valoração do bem e do mal.

Identificamos, assim, um movimento de crítica genealógica em relação à identidade da bruxa e como ela é produzida dentro da valoração dos valores moralizadores de uma sociedade ocidental. Essa sutil constatação foi retirada dos relatórios mensais das bolsistas de iniciação à docência entre os meses de setembro de 2014 e janeiro de 2015, quando elas descreveram alguns dos objetivos da aula, como:“desconstruir identidades de bruxas construídas pelo senso comum; analisar o contexto histórico em que as bruxas surgiram e esclarecer as relações de poder que a Inquisição tinha com as ‘bruxas’”.

Desse modo, o trabalho “Oficinando com as bruxas” se fortalece quando confisca a dinâmica da crítica genealógica, elemento que caracteriza a aula como ensaio, a partir dos argumentos desta escrita. Com esse tipo de crítica que dissolve a vontade de verdade e o sujeito fundante, as operacionalizações da aula efetivavam-se buscando escapar ao máximo das dicotomias, dualidades ou contradições entre teoria e prática. Rompe-se com a ideia de que a prática é a aplicação ou inspiração de teoria. Ambas são tomadas como ação, porque ambas são efeitos das relações de forças, ambas são efeitos sem causa. Elas se engendram pelas forças da crítica como ação. No caso da aula como ensaio, a parte da crítica genealógica cerca a ação de teoria e a ação de prática, ou seja, “uma teoria sempre é local, ela é relativa a um pequeno domínio” (DELEUZE, 2006, p. 265). A ação de prática não vai acontecer na aplicação de similitude do pequeno domínio de ação teórica (GALLO, 2010). Se isso acontecer, correremos o risco de universalizar a vontade de verdade e acomodar as forças sobre o tema aula.

Deleuze (apudFOUCAULT, 2003, p. 71) argumenta, em uma conversação com Foucault, que “uma teoria é como uma caixa de ferramentas. Nada tem a ver com o significante. É preciso que sirva, é preciso que funcione. E não para si mesma. (...) A teoria não totaliza; a teoria se multiplica e multiplica”. Essas ações expressam-se como ação teórica e como ação prática no trabalho das bolsistas, quando registraram:

Temas: Bem e mal; A filosofia de Nietzsche. Problematizações:O que a palavra bem representa? De onde surgiu o mal? Nascemos bons e/ou maus ou aprendemos a ser assim? Quem foi Nietzsche? Quais as suas contribuições para o pensamento o filósofo fez? Quais relações podem ser estabelecidas entre os conceitos de Nietzsche sobre o bem e o mal e as bruxas?

Podemos dizer que há dois sentidos de ação na aula: a ação de teoria e a ação de prática. A tensão entre essas duas ações fortalece a elaboração e/ou a invenção de problematizações. Com isso, a teoria não está a serviço da reflexão, nem a prática a serviço da aplicabilidade da teoria. A matéria que move a potência da teoria não é a mesma que move a prática. O que as une é a ação que faz funcionar a matéria, e não a substância. Ambas são ações que produzem matérias problematizadoras, ou seja, menos acomodação nas vontades de verdade. As duas diferentes ações envolvem a aula como ensaio. Trata-se, pois, de singulares movimentos detransversalidade entre as duas ações, que são reconhecidos como um dos constantes desafios da pesquisa quando vivemos e propomos este trabalho de pesquisa na formação de professores.

Considerações finais

A partir desta pesquisa, tem sido possível pensar uma didática que quer a afirmação da vida. A vida na docência, nessa perspectiva, quer criar o deslocamento em relação a tudo que excede a ideia da extensão da verdade pedagógica cristalizada. Há um sentido para a afirmação da vida, porque a docência é tratada como um corpo em devir, em combate - com duração provisória - que se manifesta sempre pelo complexo movimento das forças - quantidades e qualidades; que se manifesta também na batalha pela resistência do confronto e pela imposição da violência que se choca com outros corpos, sendo a vida tomada como necessidade de ampliação da potência.

Por isso, com este artigo, não estaríamos falando de um novo modelo de docência nem de um novo modelo de aula. Optamos por viver a docência com suas forças de criação em brechas que possibilitem desacomodar o tema aula. Para tanto, como resultado de pesquisa, temos o elemento didático inspirado na crítica genealógica movimentando a noção de aula como ensaio. O artigo busca mostrar alguns dos funcionamentos das perguntas genealógicas “que avaliam a origem das forças” (DELEUZE, 1976, p. 62). Assim, não sedimenta a pergunta “o que é uma aula?”, mas expressa quais forças estão em movimento quando estamos tratando dela. Passamos a conviver em pesquisa com a instabilidade da variação da ideia de aula. Com essa instabilidade, procuram-se “as forças que produzem sintomas”(Ibidem., p. 62) - sintomas que são parte da problemática dos encontros junto à escola, e suas questões são parte da vontade das forças ativas.

Por isso, a aula é investida da necessidade de labor, de certo exercício de inventivas experimentações desse elemento didático que remete ao jogo das forças. Daí a necessidade de se ficar atento às forças que se apoderam e se expressam nos currículos escolares, nas estratégias didáticas, nos processos avaliativos e nas lidações da atuação docente, bem como ao que produzem no que se refere aos efeitos. A didática, dessa forma, é deslocada de seu lugar tecnicista ou denunciatório para ser pensada como questão de relações de saber, poder e subjetivação, envolvida em certas valorações dos valores. Uma didática que busca fazer escapes aos modelos explicativos e meramente informativos, tentando extrair da didática alguns elementos para operar as forças em outras direções. Nesta perspectiva não se busca o controle dos resultados, porque se foca em disparar estudos, leituras, escritas e não temos controle sobre seus efeitos, uma vez que se trata da ordem do inusitado de todos os encontros que se dão nesse espaço público que é uma aula.

Pensar a docência no atravessamento da noção da aula como ensaio coloca-se como uma tentativa de retirar a docência da lógica da generalização, da moralidade dada e da marca de modelo pedagógico prescritivo, inovador instrumental ou de bom professor. Desse modo, o ato da vontade criadora inventa outros sentidos para ela, sem se reduzir aos romantismos e totalitarismos que veriam aí uma nova docência. Não é disso que se trata. Cria-se uma paragem sobre o desconhecido que força o espírito profissional que vive: pesquisando, procurando, inquietando, duvidando, querendo, problematizando, estudando, encontrando e elaborando outros procedimentos didáticos.

E isso tudo se dando na relação entre as escolas e as universidades. Mas não uma universidade que pensa para a escola, mas uma universidade que se compõe com a escola e suas forças, que se compõe com professores, alunos, aulas, literaturas, livros didáticos, justamente para pensar de outros modos junto a esse coletivo. Por isso, há um forte deslocamento ético, estético e político nessa ação de teoria e nesta ação de prática.

Isso não significa uma docência existindo fora dos funcionamentos disciplinares e de controle; também não significa conscientização, mas a invenção de pequenos esburacamentos nessas relações de força; movimentos micropolíticos dando-se na conversação entre escola e universidade. Nesse caso, optamos pela noção da aula como ensaio, operada pelo elemento da crítica genealógica como possibilidade de promover o rigor de viver o presente em outros modos de existência docente. Trata-se de existências em docência inspiradas em ideias como a do escritor francês Rolland Barthes quando escreve: “há uma idade em que se ensina o que se sabe; mas vem em seguida outra, em que se ensina o que não se sabe: isso sechama pesquisar” (BARTHES, 2000, p. 47). Ainda sobre essa inspiração, atravessamos esta pesquisa pensando sobre o quanto a aula envolve um longo tempo de preparo ou, dito de outra maneira, o ensaio. Tanto para o filósofo Deleuze (DELEUZE e PARNET, 1997) quanto para o escritor Barthes (2000), a aula é aquilo que se pesquisa, que se busca na pesquisa, e não pode ser reduzida ao já sabido. Por isso, talvez a aula como ensaio não seja tanto sobre aprender ou ensinar, mas sobre o estudar e o exercício de pensamento e de vida.

Entendemos que essa perspectiva conceitual pode provocar outros modos de operar em se tratando da relação com a docência e a aula, não como um espaço em que algo será transmitido, em que se irá suprir uma ignorância, se irá corrigir um funcionamento falho ou reproduzir uma verdade dada a priori. A aula como ensaio pede um deslocamento da lógica da representação. Com a crítica genealógica, a oficina citada pôde realizar alguns esburacamentos na problematização de relações de forças que produzem importantes sentidos na constituição das infâncias contemporâneas. Infâncias essas que ainda são profundamente atravessadas pelos contos de fadas, nos quais a figura da bruxa vem produzindo efeitos de verdade e modos de subjetivação, principalmente em se tratando da divisão binária do bem e do mal e da figura do feminino. Esse modo de operar com a docência entende que esses exercícios não trabalham na transferência neutra de conhecimentos, mas buscam transformar o que se pensa e o que se é na problematização do que estamos fazendo conosco mesmos nas práticas escolares no presente. Assim, talvez, a aula como ensaio tenha muito a ver com o sentido mais abundante de formação e de transformação, o que carregaria grandeza pedagógica em se tratando da função da escola e da universidade.

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2A força é diferente do movimento, pois é ela que impulsiona o movimento (NIETZCHE, 2008).

3“É certo que, a prática desse modo de leitura como arte, faz-se preciso algo que precisamente em nossos dias está bem esquecido - e que exigirá tempo, até minhas obras sejam ‘legíveis’ -, para o qual é imprescindível ser quase uma vaca, e não um ‘homem moderno’: o ruminar (...) ” (NIETZSCHE, 2006, p. 14-15).

1 Financiamento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

Recebido: 15 de Agosto de 2019; Aceito: 22 de Junho de 2020; Publicado: de 2021

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