Introdução
A presente pesquisa aborda o estranhamento causado pelo ingresso de um estudante Surdo no Curso de Medicina da maior universidade brasileira, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O termo Surdo é utilizado em letra maiúscula, pois existem surdos que representam cultura baseada na visualidade e utilizam a Língua Brasileira de Sinais (Libras) como forma de comunicação.
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE), do Censo de 2010, informam que 5% da população brasileira é composta de indivíduos surdos. Segundo o recenseamento de 2010, o número alcança 10,7 milhões de brasileiros, dos quais 2,7 milhões apresentam surdez profunda (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2010). A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que 900 milhões de pessoas desenvolvam surdez até 2050, em nível mundial (WORLG HEALT ORGANIZATION, 2020). Apesar de a perda auditiva ser um fato relacionado ao processo de envelhecimento, a deficiência auditiva apresenta outras características. No Brasil, há indivíduos completamente Surdos, alfabetizados pela Libras, e surdos oralizados, sem, no entanto, haver dados estatísticos que possam revelar os números absolutos de quantos são em cada categoria. Em ambos os casos, no entanto, são evidentes as dificuldades de comunicação e a exclusão do grupo em diversas situações (CHAVEIRO et al., 2014; FELLINGER et al., 2007).
De fato, as barreiras comunicacionais restringem sua autonomia e liberdade. Nesse sentido, podemos compreender a desigualdade entre direitos fundamentais de Surdos e ouvintes apesar dos crescentes incentivos legais e tecnológicos voltados à acessibilidade. A Lei n° 8.112/19901 e a Lei n° 8.213/19912 configuram estratégias redistributivas para garantir o acesso de pessoas com deficiência ao mercado de trabalho que não culminam no reconhecimento social das mesmas. No exemplo dos Surdos, as empresas alegam sua dificuldade de comunicação, baixa escolaridade e falta de capacitação, fatores esses que são evidenciados como barreiras impeditivas em outras esferas sociais. Dessa forma, evitam sua contratação (SILVA; BORDAS, 2020). Essa dificuldade de entrada de pessoas Surdas no mercado de trabalho é resultado de um longo e árduo processo educacional, na maioria das vezes negligenciado.
A universidade brasileira, de fato, foi composta historicamente por estudantes detentores de uma base sólida de conhecimento tanto em seu ambiente doméstico, quanto escolar. Sendo assim, poucos brasileiros alcançaram o nível superior. Esse quantitativo demonstra uma realidade ainda pior se os estudantes forem pessoas com deficiência. Segundo as Estatísticas do século XX (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2006), o número de estudantes universitários aumentou mais de quatro vezes em toda a década de 1960, alcançando 0,12% da população brasileira; triplicou entre 1970 e 1978, quando se atenua em 1,03%. Nos anos finais do século XX está registrada uma massa aproximada de 2 milhões de estudantes universitários, o que corresponde a 1,15% da população para a época.
Na última década, o acesso aos cursos universitários foi diversificado por políticas de reserva de vagas para estudantes oriundos da educação pública pela Lei nº 12.711/20123 que, além do critério escolar, contemplam diferenciais de renda e distinções étnico-raciais. No ano de 2016, a política de cotas foi ampliada pela Lei nº 13.409, que garante um percentual da reserva de vagas para pessoas com deficiência. Assim, no ano de 2011, a UFRJ iniciou a oferta de vagas pelo sistema de cotas para estudantes negros e indígenas (WICKBOLD; SIQUEIRA, 2018; BRASIL, 2016; BRASIL, 2017); e, no segundo semestre de 2017, em atendimento a Lei nº 13.409/2016, conhecida como Lei de Cotas, recebeu em todos os seus campi, seus primeiros estudantes com deficiência (SILVA JÚNIOR; CAPELLI; CORRÊA, 2018).
A UFRJ, em um Centro específico, somente no primeiro semestre de 2018, teve quatro estudantes com deficiência pleiteando pelo deferimento de suas matrículas, dentre eles um Surdo não oralizado, comunicante pela Libras. Naquele momento, o ingresso de um estudante Surdo, gerou inúmeras discussões, reflexões e ações da parte das instâncias do Centro e da Diretoria de Acessibilidade (Dirac), que é vinculada à reitoria, em prol da sua acessibilidade e inclusão, devido ao ineditismo deste perfil ingressante, uma vez que ele tem a Libras como primeira língua (L1), apresentando pouco conhecimento da língua portuguesa (CAPELLI; DI BLASI; DUTRA, 2020).
Neste sentido, o presente estudo visa analisar a centralidade das narrativas, pela perspectiva docente, acerca do ingresso de um estudante Surdo na UFRJ.
Percurso Metodológico
Realizou-se uma pesquisa de campo, qualitativa, de abordagem etnográfica, com a utilização de entrevista semiestruturada, no mês de outubro de 2018. Foram selecionados 13 docentes, que participaram da vida acadêmica do estudante Surdo no primeiro semestre de 2018, na UFRJ, dos quais 10 aceitaram participar (76,9%) e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
A mostra foi composta por sete professores do primeiro período do curso de Medicina (M1), quatro membros de uma comissão de acessibilidade (CPAI), dos quais um participava dos dois grupos (CPAI e M1); no total de 10 (dez) participantes. As entrevistas garantiram a privacidade dos participantes, o sigilo e a confidencialidade das informações. A metodologia detalhada do estudo encontra-se em Capelli; Di Blasi e Dutra (2020).
Os participantes tiveram a identidade preservada (GLAT, 2009) por meio da utilização de codinomes necessários à elaboração do corpus textual (CT). Cabe ressaltar que o tema norteador das entrevistas foi “o movimento causado pelo ingresso de um estudante Surdo no Curso de Medicina, da UFRJ”. Suas ocupações individuais foram desconsideradas no momento da realização das entrevistas.
Nesse estudo, realizou-se a análise textual que trata especificamente da análise automatizada de material verbal transcrito; produzido em diferentes contextos. É aplicada em estudos de pensamentos, crenças e opiniões produzidas em relação a determinado fenômeno, tema de investigação, e permite a quantificação de variáveis essencialmente qualitativas originárias destes textos, a fim de descrever o material produzido por determinados sujeitos (CAMARGO; JUSTO, 2013).
Observamos os resultados da análise automatizada segundo a lógica da Análise de Conteúdo para elaboração das categorias propostas nesta pesquisa; ao identificar crenças, sentimentos, valores, razões e motivos que acompanham fatos e comportamentos detraídos do processo de captação na íntegra, da fala destes sujeitos (BARDIN, 2016).
Já em relação ao Iramuteq, a Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires (Iramuteq - versão 0.7 Alpha 2 e R versão 3.2.3) foi utilizada para análises automatizadas sobre o grande volume de textos resultante das entrevistas. O Iramuteq é um software gratuito, de código fonte aberto, licenciado por GNU GPL (v2), que utiliza o ambiente estatístico do software R. Desenvolvido no ano de 2009 por Pierre Ratinaud para auxiliar a análise e interpretação de textos e é utilizado em estudos no campo das Ciências Humanas e Sociais4. Longe de esgotar conceitualmente sua capacidade de processamento de dados, o funcionamento do programa, por definição, fragmenta o corpus textual (CT) em segmentos textuais (ST) e assim são formadas as unidades de análise. Esta abordagem automatizada ocorre tanto qualitativa quanto quantitativamente, pois as palavras que compõem o corpus textual são analisadas por sua frequência, coocorrência e pelo método estatístico inferencial qui-quadrado. Consideramos a organização matemática do universo lexical empregada como ferramenta complementar da Análise de Conteúdo, na qual, a automação dispõe o conteúdo de forma descritiva para auxiliar no processo analítico dos dados.
O corpus textual foi analisado em três momentos: 1) segundo a Classificação Hierárquica Descendente (CHD); 2) sua representação gráfica em clusters por Análise Fatorial de Correspondência (AFC); bem como, por 3) Análise de Similitude na qual são gerados grafos definidos por vértices e arestas; elementos nos quais são atribuídos pesos distintos para a inter-relação de elementos de um conjunto. O conteúdo gráfico resultante do processamento pelo software permite visualizar centralidades e distanciamentos emanadas por diferentes interlocutores em seus processos discursivos distintos, relativos a um mesmo fato gerador.
O resultado da Classificação Hierárquica Descendente (CHD) elucida três observações necessárias à categorização das classes: correspondem ao conteúdo específico sobre a ocorrência de palavras ou Segmentos de Texto (ST); ao dinamismo do discurso mediante aproximações e distanciamentos contidas no percurso discursivo; bem como, nas representações sociais atreladas aos emissores destes conceitos (REINERT, 2001). Tais observações não excluem umas às outras e reiteram a utilização do método automatizado como ferramenta complementar para uma leitura mais elaborada e minuciosa do texto. A análise é baseada na proximidade léxica e visa obter classes de segmentos de texto que, ao mesmo tempo, apresentam vocabulário semelhante entre si, e vocabulário diferente dos segmentos de texto das outras classes (CAMARGO, 2005). É válido ressaltar que essa análise é feita a partir de uma lógica estatística processada por computador e aplicada de forma lexical (OLIVEIRA, 2015).
A Análise Fatorial de Correspondência (AFC) entre as classes formadas está intimamente ligada ao processo de CHD, enquanto categorização prévia. Sua representação gráfica, em plano cartesiano, apresenta como as aproximações e distanciamentos entre as classes, originadas na CHD, podem ser observados segundo suas centralidades discursivas; dispostas em clusters; por afinidade. A interação entre as classes, em plano cartesiano, ainda que limitada por sua localização, sem sua contextualização, permite uma visualização generalista sobre a disposição do léxico presente nos discursos. Dessa forma podemos extrair elementos como “quem fala” e “do que” ou “de quem se fala” de acordo com a inter-relação entre a frequência e a incidência das palavras dispostas em cada uma das classes. O procedimento adotado incorreu na seleção total das variáveis disponíveis, dada a característica de grupo e monotemática do corpus textual, em suas formas ativas e complementares, com frequência mínima de 20 (vinte) citações.
A utilização de grafos gerados por Análise de Similitude aproxima o léxico empregado, categorizado previamente, em uma representação na qual temas confluentes aparecem dispostos e familiarizados por interseções de conjuntos. Nesta pesquisa, aproximações e distanciamentos sobre elementos constituintes da vida acadêmica5 podem ser reconhecidos, bem como, o reconhecimento observável de uma transição necessária, de movimento, proferida nos discursos formadores do corpus textual (CT) analisado. A representação gráfica utilizada resultante da análise de similitude é fornecida pela biblioteca Igraph do software estatístico R. O score adotado nos parâmetros ajustáveis foi o de ‘coocorrência’ seguido por apresentação em ‘Fruchterman Reingold’; gráfico ‘estático’ com árvore ‘máxima’. Foram também marcados os parâmetros ‘Comunidades’ e ‘Halo’ para a visualização em cores dos conjuntos e suas interseções.
Aspectos Éticos
Conforme prevê a Seção I da Resolução nº 466/12 do Conselho Nacional de Saúde (BRASIL, 2012), a pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF) da instituição proponente (Universidade Federal do Rio de Janeiro), sob CAAE nº 92341318.6.0000.5257.
Resultados e Discussão
Neste estudo, o corpus foi dividido em 761 segmentos textuais compostos por um máximo de 40 palavras. Foram identificados, pelo método de Classificação Hierárquica Descendente, cinco classes (Figura 1) formadas pela classificação de 647 (85,02%) dos 761 segmentos textuais totais.
A CHD tem como resultado um dendrograma com dois níveis. No nível 1 a classe 5 representa os professores como cerne dos depoimentos. Está subdividida um nível abaixo (nível 2) em classes 1 e 2 (CPAI e M1). Neste mesmo nível 2 observamos as classes 3 e 4 (demandas e críticas).
A classe 1 representa os valores da comissão CPAI, ou seja, reúne a fala dos professores enquanto comissão institucional criada para regular e debater sobre o atendimento aos estudantes com deficiência.
A classe 2 reúne a fala dos professores da M1, que estão em contato direto com o estudante Surdo em seu fazer pedagógico, em sala de aula, expressando certa insegurança e estranhamento, em relação à nova situação enfrentada pelo Curso de Medicina
A classe 3 aponta para mudanças que podem ser realizadas no desenvolvimento de uma abordagem educacional inclusiva. Ou seja, o que pode ser feito para adequar a experiência acadêmica de um estudante Surdo às demandas da universidade.
A classe 4 reúne as declarações docentes sobre as contribuições que o próprio estudante Surdo deve realizar em prol de sua vida acadêmica. Nesta classe, estão dispostas as críticas ao estudante e sua rotina pouco condizente com a apresentada por outros acadêmicos.
A classe 5 se destaca, e revela as centralidades do discurso contidas na “Fala do Docente”, compreendendo os elementos componentes tanto da CPAI quanto da M1, enfatizados pelo pensar pedagógico sobre a experiência proporcionada.
Nesse estudo, as relações interclasses são apresentadas em dendrograma com dois níveis, visualizáveis da esquerda para a direita (Figura 1). A classe 5 aparece destacada das demais pela integridade grupal dos participantes que, mesmo antes de responder enquanto membros institucionalizados da CPAI ou M1, pensam e dispõem suas declarações a partir do lugar de fala de professores. Devido ao caráter monotemático do corpus textual analisado, a CHD também apresenta quatro classes estáveis (1, 2, 3 e 4) complementares discursivamente, porém divididas por suas observações constituintes.
Neste cenário, é mister fazer uma nova alusão à classe cinco, que parece regular a complementaridade discursiva quando disposta ao “centro” da representação gráfica. O docente, declarante, segundo seu lugar de fala, aparece como o mediador destas demandas insurgentes, pois participa de ambos os lados, ou seja, deve atender imposições legais de políticas educacionais, ao mesmo tempo em que deve exercer com louvor sua pedagogia em atendimento a um sistema infinito de demandas e possibilidades, tanto positivas quanto negativas, porém, adequáveis.
A Figura 2 revela a disposição das cinco classes encontradas nesse estudo e, como se situam em quadrantes opostos, verificando-se que cada classe possui contextos semânticos específicos, ou seja, a raiz semântica da palavra que mais interferiu na classe, consideradas suas frequência e incidência de palavras. A variação no tamanho das palavras apresentadas nos quadrantes se refere à frequência de suas citações; assim como as aproximações, distanciamentos e oposições entre classes ou formas, referem-se à sua incidência.
No eixo vertical, podemos observar dois agrupamentos de palavras, que explicam 33,15% da variância total dos ST e remetem para dois campos semânticos: quatro no plano superior, com as contribuições das classes 2 (cor cinza), 3 (cor verde), 4 (cor azul) e 5 (cor roxa); e outro em oposição, no plano inferior, onde se posicionam as palavras oriundas das classes 1 (cor vermelha), 2, 3 e 4.
As classes 3 e 4 estão dispostas no mesmo eixo fatorial e estão centralizadas tanto nos eixos horizontal e vertical. As classes 1, 2 e 5 estão no mesmo eixo fatorial, contudo as classes 1 e 5 estão mais afastadas do centro. Fato este que reforça a transposição necessária de barreiras atitudinais. A visão institucional é redistributiva, enquanto a observação dos professores é recognoscível. Fato observável pelo notório distanciamento entre as classes 1 e 5. No Eixo horizontal podemos verificar quatro agrupamentos de palavras que explicam 26,29% da variância total dos ST.
Podemos considerar ainda, que o quadrante inferior direito (classe 1; cor vermelha), as palavras de maior destaque são: CPAI e UFRJ, apontando o envolvimento da comissão e da instituição, por meio de reuniões frequentes para repensar as suas práticas educacionais e estratégias acessíveis que permitissem a garantida da inclusão e permanência do estudante Surdo frente às dificuldades enfrentadas pela instituição e pelos próprios docentes (Figura 2).
No quadrante inferior direito, as palavras (classe 2; cor cinza) que se destacam são: A GENTE, INSEGURANÇA e CAMPUS, mostrando que a falta de infraestrutura, formação e conhecimento de muitos docentes sobre a Libras interferem na parte emocional quando entra no campo da educação do Surdo cuja experiência é praticamente nula pelos docentes (Figura 2).
As palavras AULA, ATRASADO e UNIDADE, no quadrante superior esquerdo (classe 4; cor azul), revelam a necessidade também do comprometimento do estudante com a nova realidade, ou seja, ser um estudante de um curso historicamente desafiador, por ser difícil o ingresso pelos estudantes brasileiros, bem como a necessidade de estudar mais devido as dificuldades que possui em relação aos conhecimentos científicos no campo da Saúde bem como na língua portuguesa, uma vez que o Curso de Medicina é oferecido em português (Figura 2).
As palavras PROVA, MODIFICAÇÃO e DISCIPLINA, destacadas no quadrante inferior esquerdo (classe 3; cor verde) revelam a necessidade de os professores reverem a sua didática, adequarem suas aulas, dentre outros, para tornar o conhecimento acessível ao estudante.
As palavras PESSOA e NÓS, observadas no quadrante superior direito (classe 5, cor roxa) sugerem a polaridade na identidade dos docentes em seu discurso, uma vez que suas narrativas apontam tanto para o individual como para o coletivo.
A análise do dendrograma (Figura 1) e do plano fatorial (Figura 2) evidenciam que o processo educacional amplo deve sofrer transformações para dar conta de demandas no campo da inclusão e diversidade. Isto porque, no íntimo de seus discursos está presente o reconhecimento da necessidade de adequação do processo educacional, binômio ensino-aprendizagem na configuração de uma nova sociedade equânime, permeada por sua ampla participação no ensino superior.
Podemos considerar na classe 1 (representando os valores da comissão CPAI) que a demanda de estudantes com deficiência nas universidades têm aumentado cada vez mais, sendo os núcleos de acessibilidade uma proposta promissora de suporte para o atendimento de qualidade dos mesmos (CIANTELLI; LEITE, 2016), afinal o seu objetivo é promover ações que garantam a inclusão das pessoas com deficiência na vida acadêmica, eliminando qualquer tipo de barreira que possam encontrar, “promovendo o cumprimento dos requisitos legais de acessibilidade e se estruturando com base nos seguintes eixos: infraestrutura, currículo, comunicação e informação, programas de extensão e programas de pesquisa” (BRASIL, 2013).
Assim, medidas da CPAI priorizam a inclusão desse estudante Surdo, como podemos observar nos discursos:
(...) tenho orgulho de participar da comissão de acessibilidade, mas enquanto pessoa, enquanto servidora da instituição, independe de ser da comissão ou não, cada um tem sua responsabilidade para com ele ou qualquer pessoa com deficiência aqui dentro. A gente começa aqui todo esse pensamento crítico reflexivo transformador que uma universidade pública precisa começar, a gente precisa começar daqui, então eu me sinto partícipe disso tudo não apenas enquanto membro da comissão. (P8)
(...) a CPAI trabalhou arduamente. Eu acho que a instituição da comissão foi fundamental para dar base para que o campus recebesse esse estudante. (P5)
(...) quantos surdos existem na universidade? Acho que frente as dificuldades que eles têm no ensino básico, tá difícil de chegar no ensino superior, então a demanda ainda não tá chegando, mas isso tem que ser superado. (P9)
Ciantelli e Leite (2016), em seu estudo evidenciaram que:
É necessário um maior investimento da universidade em ações de acessibilidade realizadas pelos núcleos para todos os segmentos da comunidade acadêmica (estudantes, docentes e técnico-administrativo) através da oferta de ações de sensibilização, promovendo informação, conhecimento e conscientização dos dispositivos legais e políticas relacionadas à remoção das barreiras, visando a alterações no regimento interno, no projeto político- pedagógico e no plano de desenvolvimento institucional das instituições de ensino superior brasileira, em prol de uma educação menos excludente (CIANTELLI; LEITE, 2016, p. 426).
As narrativas dos docentes de M1 (representadas na classe dois) expressam certa insegurança e estranhamento em relação à nova situação enfrentada na parte pedagógica. Segundo Amorim, Antunes e Santiago (2019) gestores, docentes e demais profissionais que trabalham no ensino superior são desafiados, a todo momento, a lidar com a diversidade que habita as universidades, e dentre esses desafios, destacam o atendimento ao estudante com deficiência, desafios esses evidenciados na fala de alguns professores desta pesquisa:
(...) a situação já estava posta e a gente tentando correr atrás de coisas que deveriam ter sido pensadas há muito tempo atrás, quando essa legislação da inclusão foi posta em prática... vem uma lei, vem uma resolução da Universidade, mas não nos foi dada a ferramenta para isso... foi um semestre assim bem intenso. (P5)
(...) o que eu percebo das conversas, das reuniões, dos desdobramentos, dos eventos que fizemos, é há uma dificuldade do corpo sim docente, nós professores, de lidarmos com essas diferenças. (P1)
Embora tenha a legislação, a resolução da UFRJ, acho que nem a gente, nem o campus não estava preparado para essa chegada, então sabemos que poderia chegar, chegou e foi tudo muito junto. A percepção que eu tive era que a situação estava acontecendo e a gente estava descobrindo tudo muito junto, sabe? (...) a gente não sabia muito o que fazer na minha visão e eu acabei percebendo que alguns professores também acabaram sentindo isso, principalmente professores da medicina que tiveram esse contato mais próximo com aluno. (P5)
(...) então isso acaba gerando uma movimentação não só no curso, uma discussão não só no Curso de Medicina, mas em outros cursos também. Eu faço parte do Curso de Engenharia, no futuro a gente pode também estar recebendo um aluno surdo. (P2)
Antunes e Amorim (2020) reforçam que o processo de inclusão no ensino superior é dinâmico e consequentemente trará desequilíbrios e novos equilíbrios em prol de transformações ocasionadas pela e para a inclusão:
Enquanto na escola básica há duas décadas observa-se a promoção da formação docente para um trabalho pedagógico inclusivo, nas IES pouco se discutia a presença das PCD nos seus cursos superiores. Dessa forma, o desenvolvimento de uma cultura de inclusão no ambiente universitário é fundamental para trazer o debate da docência em ensino superior a partir de práticas inclusivas. O tema da inclusão nas IES precisa ser colocado em pauta e os pleitos das PCD e suas especificidades de acessibilidade e aprendizagens devem permear as discussões acadêmicas que compõem os projetos pedagógicos dos cursos (ANTUNES; AMORIM, 2020, p.1473).
Um estudo realizado por Anache et al. (2014) elencou várias ações que podem contribuir para a efetivação de práticas inclusivas no ensino superior, dentre elas a orientação do corpo docente e de funcionários de diferentes setores da instituição, ação necessária em suas práticas laborais, como podemos observar segundo relatos dos professores. Antunes e Amorim (2020, p. 7) enfatizam que “diante de tantos desafios que se colocam para as universidades, o trabalho docente é, certamente, um dos mais fundamentais”. Desta forma, o reconhecimento dos docentes sobre as novas demandas institucionais foi a primeira instância de mudanças e movimentos necessários com o ingresso do estudante.
Vários estudos destacam a importância da reflexão e posterior mudança para o atendimento de qualidade ao estudante com deficiência no ensino superior (ANTUNES; AMORIM, 2020; MARTINS; ANTUNES; MONTEIRO, 2019, CABRAL; SANTOS; MENDES, 2018; CRUZ; ARAUJO, 2016), assim como a classe três aponta para mudanças que podem ser realizadas no desenvolvimento de uma abordagem educacional inclusiva.
(...) que eu fico pensando agora como eu conseguiria passar isso ao aluno que não é ouvinte, então isso me preocupa muito, porque daqui a pouco posso estar recebendo um aluno assim e não posso ficar com aquela mesma aula que eu dou para alunos ouvintes. Eu tenho que repensar isso. Não só na parte pedagógica, mas na parte é aplicar uma prova que seja adaptável a esse aluno... não sei por que eu tinha uma percepção antes do (nome do estudante) que se eu desse um texto comum como eu dou para meus alunos ouvintes, ele teria facilidade pra, pra entender aquilo. (P2)
(...) conversamos com muitas pessoas e procuramos saber de que forma... eu procurei muito o aluno em si, perguntei muitas coisas às intérpretes procurando compreender melhor o universo dos surdos, embora não fosse um universo totalmente novo. A gente procurou desenvolver algumas adaptações dentro da disciplina mesmo, a questão de tentar fazer algo mais individualizado, mas assim surgia muito desse conflito de às vezes dele perceber que foi melhor, mas não participou do momento do grupo. Mas assim, eu também não tinha alguém para me dar um feedback de que aquilo estava sendo suficiente, eu pedia para o aluno, eu perguntava se estava sendo suficiente... ele falava que sim. (P3)
Sabemos o quão significativo é conhecer as especificidades de cada estudante e dar a voz a ele para um processo de inclusão eficiente, dessa forma, é fundamental travar um diálogo constante para saber se as medidas adotadas atendem às demandas.
Das narrativas dos docentes em relação às declarações, sobre as contribuições que o estudante Surdo deve realizar em prol de sua vida acadêmica, pode-se destacar que,
(...) e a comissão chegou a conversar com ele no final do período passado. Ele estava até diferente, agora ele tá tudo de novo... ele chega atrasado todas as aulas ou praticamente a maioria. A última aula ele chegou faltando 20 minutos para acabar. A minha aula foi uma aula de revisão e a intérprete estava sentada aguardando. Ele não tira muitas dúvidas, ele, as poucas vezes que ele falou já falou assim ‘to com dificuldade porque é muito conteúdo’ sempre é assim é muito conteúdo é muita coisa nova. (P4)
Para o (nome do estudante) perder uma aula é muito precioso porque a reposição daquele conteúdo é um processo muito mais complexo do que como eu falei antes, do colega que vai pegar a gravação da aula, chegar em casa, ouvir e me trazer uma pergunta pontual. (P6)
Atrasos nas aulas e a pouca comunicação são fatores negativos em qualquer processo de aprendizagem. Aliados a todos os outros fatores da inclusão, realmente podem afetar o desenvolvimento do estudante. Entendemos então que o empenho também deve ser bilateral, com dedicação integral ao processo da instituição e do estudante.
Finalizando as análises segundo as classes, podemos destacar a classe 5, que revela as centralidades do discurso contidas na “Fala do Docente”, elementos componentes tanto da CPAI quanto da M1, enfatizados pelo pensar pedagógico sobre a experiência proporcionada.
(...) penso que o aluno que apresenta qualquer tipo de deficiência e não só da surdez, ele precisa ser tratado e olhado como é um ser humano com os mesmos direitos essa é a regra básica. O que eu penso no (nome do estudante) é que o tempo dele é diferente dos demais, a forma que nós estamos acompanhando não é para dar privilégio é para garantir um direito dele. Eu acredito muito numa universidade pública, assim com essa qualidade e é por isso que eu estou nessa comissão tentando aprender e botar em prática isso. Hoje nós temos alunos surdos, amanhã teremos um aluno com deficiência visual e como a gente vai se preparar? Então foi um semestre para a gente refletir que universidade é essa que a gente quer para todo mundo. (P5)
(...) então eu acho esse desafio de dar conta de uma turma que já tem todo mundo diferente em suas individualidades e mais esse que precisava de um suporte. (P3)
Diante do exposto, podemos considerar que não existe uma receita pronta ou um protocolo a seguir, mas por se tratar de um processo interativo entre os estudantes com deficiência e os contextos universitários, cada instituição deve avaliar a sua realidade e, a partir dela, construir possibilidades de tornar o seu cotidiano mais inclusivo e acessível a todos (ANTUNES; AMORIM, 2020; CRUZ; ARAUJO, 2016).
Análise de Similitude
A análise de semelhanças é apresentada na Figura 3, verificando-se a sua estrutura, o seu núcleo central e o seu sistema periférico das narrativas dos docentes sobre o ingresso do estudante surdo em um Centro, da UFRJ. Podemos observar que os dois grandes eixos organizadores das narrativas são o núcleo, com as palavras ser, eu e ele, e a zona periférica, com a palavra ter, que se refere à instituição.
Na nuvem de palavras mais evocadas, podemos destacar as palavras “eu”, “perceber” e “modificação”, referentes ao docente, como elementos centrais de seu conteúdo. Em relação ao estudante Surdo, observam-se as palavras “ele” e “prova” como elementos centrais de seu conteúdo. As palavras “ter”, “campus”, “tempo”, “dificuldade”, “intérprete”, “conhecimento”, “junto”, “turma”, “começar”, “diverso”, “formação”, “necessidade”, “CPAI”, “UFRJ” se apresentam como referência aos estranhamentos, inadequações e componentes essenciais à promoção de mudanças, mas se encontram mais periféricos nas narrativas dos docentes. No que tange o universo institucional, emanam-se experiências, representações e todos os posicionamentos tanto declarados quanto silenciados (Figura 3).
A começar pelas palavras ligadas ao universo institucional, o elemento “movimento” parece mesmo promover o deslocamento dos limites gráficos presentes no diagrama e até mesmo a ruptura desses limites, para a formação de um novo conjunto. Neste sentido, encontra-se uma clara analogia às iminentes tensões por adequações necessárias ao desenvolvimento de uma educação inclusiva, uma vez que a instituição em si (com espaço físico) é inanimada, e, por isso, não se interpõe. O dinamismo se dá pelas narrativas e representações dos docentes.
O termo “ter” se encontra na interseção do discurso institucional vigente com as medidas externas ao mesmo, representadas pelos demais elementos. Logo, a instituição “tem” que observar ou deve observar melhor, os pontos diagnosticados; e, neste caso, todo o corpo social6 é compreendido como sendo a instituição, ou seja, a instituição viva, pulsante e não apenas parte da mesma. Por isso, o corpo social tem que dar visibilidade, ser protagonista, ou seja, sujeito ativo que observa, diagnostica, reflete, discute, debate sobre os pontos críticos, para propor a melhor estratégia.
O termo “eu” também aparece no núcleo central do docente participante, representante institucionalizado que “percebe” uma necessidade de “modificação” até então externa à realidade contida neste universo institucional. O termo “modificação”, ainda que não forme um conjunto visível, aponta para sua iminência, ou talvez eminência, por compor o universo ainda externo, porém necessário, ao entendimento e desenvoltura acadêmica inclusivos por excelência.
No entanto, uma observação marcante é o elemento “prova”, contido no conjunto azul e disposto em uma interseção limítrofe ao universo institucional. As “provas” que “ele” o estudante realizará durante o percurso são documentos de registro formal, burocracia constituinte do ethos acadêmico, até então necessárias ao modelo educacional vigente. Esta “prova” documental, mesmo que não possa ser abolida por motivos de desconstrução de um ranking meritocrático formalizado, tem em sua constituinte elementos que necessitam de adequação e acessibilidade tal qual ocorre no modelo educacional que representa. Neste caso, a “prova” é a metonímia da educação como a vemos.
Considerações Finais
Podemos concluir que as narrativas apontam para um movimento necessário à transposição de barreiras atitudinais que, por sua vez, evidenciam a necessidade de formação continuada voltada à diversificação das estratégias para o processo de ensino e aprendizagem. Observamos as várias demandas no campo da acessibilidade e inclusão do Surdo, não obstante, em sua totalidade, interpretadas como demandas do sistema educacional brasileiro (OLIVEIRA; LIMA, 2019).
Neste contexto, o ingresso do estudante Surdo na UFRJ, apesar de parecer mais justa quando assegurada por políticas redistributivas de acesso ao ensino superior, revela a fragilidade da educação básica no Brasil no campo da Educação do Surdo, bem como, a falta de reconhecimento e atendimento individualizado para a acessibilidade deste estudante enquanto público sujeito da educação inclusiva.
Cabe-nos reforçar, portanto, que o ingresso à universidade, ainda que ampliado por força de lei, não garante sua permanência ou conclusão do curso escolhido e, no íntimo dos discursos analisados, entendemos que o processo educacional amplo deve sofrer transformações para dar conta de demandas no campo da inclusão e da diversidade em atendimento à Lei nº 13.409/2016, que garante um percentual da reserva de vagas para pessoas com deficiência.
O reconhecimento da necessidade de adequações do processo educacional, em respeito ao binômio ensino-aprendizagem, reitera o combate às barreiras encontradas, de fato, como adequações socioeducacionais necessárias ao desenvolvimento uma nova sociedade inclusiva equânime, permeada por sua ampla participação no ensino superior.