Introdução
A Tecnologia Assistiva (TA) foi criada em 1988 como elemento jurídico dentro da legislação norte-americana conhecida como Public Law 100-407, que compõe o American with Disabilities Act. Ela ganhou uma forte dimensão social a partir do final da Segunda Guerra Mundial, quando os Estados Unidos e os países europeus buscaram alternativas para reabilitar os deficientes, projetando tecnologias de acessibilidade e capacitação humana (BERSCH; TONOLLI, 2006).
No Brasil, a TA é conceituada pelo Comitê de Ajudas Técnicas (CAT) da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, como:
produtos, recursos, metodologias, estratégias, práticas e serviços que objetivam promover a funcionalidade, relacionada à atividade e participação, de pessoas com deficiência, incapacidades ou mobilidade reduzida, visando sua autonomia, independência, qualidade de vida e inclusão social” (CAT, 2009, p.30)
Em território nacional brasileiro, as demandas em torno das TA’s têm aumentado muito nos últimos anos, entretanto, as pesquisas ainda são escassas (RODRIGUES; ALVES, 2013). Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) as pessoas com deficiência somam um percentual de 23,9% da população, demonstrados nos dados do Censo 2010 (IBGE, 2010). Ainda, o IBGE mostra, nos dados da Pesquisa Nacional de Saúde de 2019, que cerca de 17 milhões (8,4%) de pessoas com dois anos ou mais tinham alguma deficiência investigada, ao passo que, na população idosa, esse número chega a casa dos 8,5 milhões (24,8%) (PNS, 2019). Além dos deficientes, a TA também tem nos idosos seu público alvo.
Na busca por criar um ambiente mais inclusivo para essas pessoas, foi criado a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2008), com o objetivo de incluir crianças, jovens e adultos com deficiências nas escolas regulares. Em muitos casos, a permanência e participação desses educandos no ambiente escolar é por meio da mediação das TA’s presentes no espaço. Na qual, de acordo com Manzini (2005), ela pode passar despercebida por nós ou nos causar impactos diretos ou indiretos em nossas vidas.
Uma das áreas que a TA pode ser aplicada é na educação, principalmente, pela utilização de tablets, computadores de mesa, notebooks e aparelhos móveis de telefonia como mediadores dos processos educativos de ensino e aprendizagem, visando uma inclusão e construção de uma autonomia de sujeitos que tenham algum tipo de deficiência.
Neste contexto, a educação especial, no âmbito da educação inclusiva, busca na TA uma forma de incluir pessoas com transtornos do neurodesenvolvimento. A sua utilização por estes sujeitos, deve ser centrada na possibilidade deles exercerem sua autonomia e direitos humanos (ALVES; FERREIRA; VIANA, 2017) e que a inclusão; trata-se sim, de conhecer as diversas possibilidades para o desenvolvimento humano e de estar aberta a elas numa relação dialógica genuína” (PRESTES, 2010).
De acordo com Andrich (2002, p.3), a autonomia reflete na "capacidade de projetar a própria vida, de entrar em relação com os outros e sempre com os outros participar da construção da sociedade”. Ainda segundo o autor,; esta conceitualização cria uma espécie de equação do tipo autonomia = relação que se articula em três níveis: relacionar-se consigo, com os outros e com o ambiente” (ANDRICH, 2002, p.3). Seguindo este aspecto, a criação desta relação no contexto da vida escolar de um estudante com deficiência pode ser mediada pela TA.A TA é capaz de construir e fornecer subsídios para a autonomia dos estudantes deficientes em escolas, principalmente, porque ela tem se "tornado uma das formas de ter acesso ao conhecimento, no intuito de ampliar suas habilidades e cooperar nos seus estudos, na sua comunicação e na interação com o outro" (ALVES; PEREIRA; VIANA, 2017). Além disso, à medida que a pessoa com deficiência vai tendo contato com a TA, esta, por sua vez, proporciona uma significação e ressignificação das suas vivências cotidianas, o que resulta na criação e até fortalecimento das relações interpessoais (família, colegas, professores) e os objetos que o circunda (BISO; VALENTINI, 2021). Ademais, essas mediações feitas pela TA podem auxiliar no reconhecimento do ambiente em que o sujeito está inserido, ampliando e criando novos caminhos de aprendizagem.
Quando aplicadas ao contexto educacional, a TA também contribui para a superação de barreiras (motoras, visuais, auditivas e/ou de comunicação) que impeçam a aprendizagem de educandos com deficiência. Além disso, lhes proporcionam um respeito conquistado com a convivência, aumentando a autoestima, a autonomia e a inclusão social (FREITAS, 2020; GALVÃO-FILHO, 2013). Mas, ainda que a TA figure nesses aspectos supracitados, ainda é necessário pensar que, ao utilizá-la, esta tenha um fim pedagógico dentro da prática educativa, não podendo ficar aquém do contexto de ensino e aprendizagem.
O Transtorno do Espectro Autista (TEA) e a inclusão escolar
Dentre os grupos de estudantes com necessidades especiais, encontram-se aqueles que possuem diagnósticos de Transtorno do Espectro Autista (TEA). Eles apresentam traços que afetam a afecção e a evolução dos indivíduos, sendo eles; o isolamento social, a falta de interação do indivíduo com o mundo exterior, resistências às mudanças, presença de movimentos estereotipados/repetitivos, distúrbios na linguagem/fala, a inversão pronominal, falas repetitivas, inteligência e desenvolvimento físico, que são algumas das características mais presentes em pessoas dentro do espectro (SBP, 2019).
No Brasil, não existem dados oficiais do número de pessoas com TEA. Somente em julho de 2019 que foi sancionada a lei 13.861/19, que altera a lei 7.853/89, incluindo as especificidades inerentes ao transtorno do espectro autista nos censos demográficos (BRASIL, 2019). Até o presente momento deste artigo, o censo ainda não foi realizado no país. Nesse aspecto, por meio da Lei de Acesso à Informação (BRASIL, 2011), da Controladoria Geral da República, os pesquisadores desse trabalho solicitaram ao Ministério da Saúde o número de atendimentos de pessoas com TEA (CID F84 a 84.9) realizados nos Centros de Atenção Psicossocial (CAP’s) entre os anos de 2011 a 2020 (Gráfico 1).
Os dados mostram uma crescente nos números ao longo dos últimos anos. A maior expressão desse crescimento pode ser observada entre os anos de 2018 e 2019. Em 2018, foram atendidas 4.910 pessoas em todo o país, já em 2019 um total de 8.781 pessoas foram atendidas, o que representa um aumento de 55% no número de atendimentos.
Tais dados, indiretamente, nos dão a dimensão de pessoas diagnosticadas com TEA em todo o país que recorrem a atendimentos especializados nos CAP’s. Outra realidade versa sobre o ensino regular. De acordo com os dados do último censo escolar, o número de pessoas diagnosticadas com TEA matriculadas nas unidades escolares de ensino regular está na marca de 273.924 pessoas em 2021 (INEP, 2021).
Como forma de incluir estes sujeitos com TEA no ensino regular e nos CAP’s, é importante a capacitação da equipe escolar e a disponibilização de material adequado aos estudantes com TEA (COSTA; ZANATTA; CAPELLINI, 2018), sendo a TA uma importante ferramenta nesse aspecto. Outro ponto do processo inclusivo desses educandos está centrado, principalmente, no que se refere ao desenvolvimento da socialização. Esta deve ser pensada naquela que estimule as interações sociais pelo estudante diagnosticado com TEA, e para as outras crianças, por meio da convivência, desenvolva o respeito às diferenças (CAMARGO; BOSA, 2009), tornando esse processo humanizado e que permita o desenvolvimento do sujeito por completo.
A inclusão do sujeito com TEA não deve ser pensada apenas no ambiente escolar, mas em todos os lugares que ele tem contato, como no ambiente natural em que vive. No que tange ao contexto natural, o ensino de ciências e biologia pode e deve ser pensado não somente para a construção do conceito dentro do processo de ensino e aprendizagem do educando, mas como forma de abarcar as diversas possibilidades de sua aplicabilidade no contexto social em que ele está inserido, dando-lhe a possibilidade de participação, integração e reconhecimento do ambiente natural, levando em consideração suas características pessoais e interpessoais (BRASIL, 2018).
De acordo com Klin (2006), existem quatro critérios definidores de “Prejuízo qualitativo na comunicação” em pessoas com TEA, que incluem:
atrasos no desenvolvimento da linguagem verbal, não acompanhados por uma tentativa de compensação por meio de modos alternativos de comunicação, tais como gesticulação em indivíduos não-verbais; prejuízo na capacidade de iniciar ou manter uma conversação com os demais (em indivíduos que falam); uso estereotipado e repetitivo da linguagem; e falta de brincadeiras de faz-deconta ou de imitação social (em maior grau do que seria esperado para o nível cognitivo geral daquela criança)” (KLIN, 2006, p.4).
Os prejuízos na comunicação se dão, pois as pessoas com TEA não possuem uma comunicação utilitarista. Neste contexto, a maioria destes sujeitos apresentam uma ampla diversidade de palavras conhecidas e conseguem formar frases, mas não encaixam elas em um contexto. Isto implica em uma dificuldade de estabelecer trocas de mensagens, resultando em um impacto na inserção e no convívio social (MENESES et al., 2020). Nesse sentido, trabalhar o desenvolvimento da comunicação pode ser um caminho a ser seguido para a inserção das pessoas com TEA nos mais variados ambientes e contextos sociais.
Segundo Vygotsky, é por meio da linguagem que a criança constrói o pensamento, levando a um processo de internalização no desenvolvimento interior (MONTOYA, 1995). Entretanto, algumas pessoas com TEA podem apresentar dificuldades na fala, o que impacta no seu processo de desenvolvimento da linguagem. Neste sentido, o processo de ensino e aprendizagem pode se tornar mais desafiador ao docente que lida com crianças diagnosticadas com TEA que possuem dificuldades de comunicação (MAGALHÃES et al., 2017).
Ainda, afirmava que a mediação é o caminho pelo qual a criança irá desenvolver, progressivamente, as funções psicológicas superiores (KAULFUSS, 2019). O autor separou em dois elementos mediadores, a saber: signos e instrumentos (JOENK, 2002). Os signos podem ser a linguagem, a forma de contar, os sistemas mnemônicos dentre outros (JOENK, 2002; VYGOTSKY, 1999) e também são descritos “como elementos que representam ou expressam outros objetos, eventos, situações”(OLIVEIRA, 1993, p. 30). Os instrumentos, por sua vez, são tidos como os elementos que estão entre o humano e o objeto de seu trabalho, eles ampliam as possibilidades e carregam consigo as funções para os quais foram desenvolvidos (VYGOTSKY, 1999; OLIVEIRA, 1993). A partir dessas relações, o sujeito vai configurando um processo de aprendizagem que é perpassado ao longo da sua construção sociocultural e permanece dentro daquele grupo social ao longo das gerações.
Tecnologias Assistivas (TA’s) para dispositivos móveis, e a relação com TEA
A TA pode ser concebida como um instrumento que pode mediar a relação de aprendizagem aos sujeitos que a utilizam (GALVÃO-FILHO,2013). Uma TA que ajude na criação de um percurso de desenvolvimento da fala pode auxiliar o docente na mediação de sua prática pedagógica com pessoas com TEA. Quanto ao discente, a TA contribui no processo de aprendizagem, autonomia e inclusão, tornando a percepção de mundo mais ampliada.
De fácil acesso, os dispositivos móveis estão presentes nas casas de grande parte da população brasileira. Nesses dispositivos, os aplicativos se tornaram recursos funcionais para diversas atividades cotidianas na vida das pessoas, inclusive as que possuem deficiências (SILVA et al., 2021). É visto na literatura científica uma gama de aplicativos para smarthphones com o intuito de auxiliarem no cotidiano de pessoas diagnosticadas com TEA. Embora se mostrem aplicativos funcionais que proporcionam novas experiências ao usuário, ainda há uma necessidade de maior ampliação das pesquisas sobre o uso destes aplicativos móveis para pessoas com TEA (FONSECA; SCHIRMER, 2020).
Os autores Fonseca e Schirmer (2020, p. 171) salientam que "esses estudos possam apontar não só a existência dos aplicativos para pessoas com TEA, mas também a sua eficiência nos diversos contextos, incluindo o da escola comum". Para que isso ocorra, vale ressaltar que é importante entender quais as necessidades das pessoas com TEA. Pois, segundo Light e McNaughton (2013), as características subjetivas do usuário devem ser levadas em consideração frente às escolhas dos aplicativos. Cada sujeito terá uma usabilidade e habilidade para interagir com o aplicativo e, caso surjam dificuldades na usabilidade dos aplicativos, pode haver uma adequação da tecnologia ao sujeito (LIGHT; MCNAUGHTON, 2013), visando sua interatividade, inclusão e autonomia no uso do aplicativo.
Neste contexto, o aplicativo criado por uma equipe do Instituto Federal de Minas Gerais, chamado de SpeeCH, que tem o objetivo de fazer estudantes com TEA se comunicarem (ROSA JUNIOR et al., 2015), pode ser utilizado para este processo inclusivo e de construção de autonomia do educando.
O SpeeCH é uma ferramenta desenvolvida para estimular a fala em crianças autistas e não autistas. Ele possui uma prancha eletrônica com categorias de fotos temáticas que podem ser acessadas pelo usuário (inclusive o responsável pela criança pode criar uma categoria própria editando-a, por exemplo, com fotos de familiares). Quando o usuário clica na foto, o aplicativo emite o nome da figura em som audível estimulando a criança a repeti-lo (ROSA JUNIOR et al., 2015), auxiliando no desenvolvimento da fala, viabilizando a expressão e comunicação motora da linguagem (PRATE; MARTINS, 2015).
Neste contexto, sabendo que as TA’s podem auxiliar nos processos de ensino e aprendizagem, de inclusão e de autonomia no ambiente escolar e social de sujeitos com TEA, além de proporcionar o desenvolvimento da fala e linguagem, o estudo da usabilidade dessas tecnologias se torna necessário para buscar compreender o impacto que as TA’s desempenham em sujeitos com TEA. Sendo assim, este artigo tem por objetivo apresentar o relato de um estudo de caso acerca da usabilidade do aplicativo SpeeCH como tecnologia assistiva, por uma criança diagnosticada com TEA.
Percurso metodológico
A metodologia foi aplicada conforme os seguintes tópicos:
A criança com TEA
O estudo de caso foi feito por meio de observações e relatos de experiências no cotidiano de uma criança de 5 anos diagnosticada com Transtorno do Espectro Autista (TEA). Ele vive com sua família (pai, mãe e três irmãs) em uma cidade no interior do Distrito Federal. Sua casa está localizada na zona rural com alguns fragmentos do bioma Cerrado como ambiente natural que o circunda. A criança está matriculada em uma escola de ensino regular e em uma instituição de apoio a crianças com TEA, que devido à pandemia do Coronavírus, que se iniciou no ano de 2019 e se estende até os dias atuais, a criança segue tendo aulas online assíncronas e, com ajuda da mãe (pedagoga), ele realiza as atividades propostas para aquele dia.
O aplicativo
O aplicativo SpeeCH foi criado por pesquisadores do Instituto Federal de Minas Gerais - Campus Formiga (IFMG - Formiga), no estado de Minas Gerais - MG. Ele foi desenvolvido para smartphone e tem o objetivo de estimular o desenvolvimento da fala por meio de imagens e da repetição de palavras (feitas pelo próprio aplicativo). Ele pode ser adquirido nas plataformas de download para sistema Android de forma gratuita.
Delineamento experimental
Em um aparelho celular, foi feito o download do aplicativo SpeeCH e, dentro dele, foi criado um portfólio de imagens de animais que pertencem ao bioma Cerrado (esse bioma foi escolhido por se tratar das características naturais que a criança está inserida e tem contato) e do alfabeto. Durante sete (7) dias de 10 a 40 minutos, a criança teve acesso ao aplicativo com portfólios do alfabeto e de animais encontrados no bioma Cerrado. Enquanto ele interagia com o aplicativo, foram feitas observações e anotações do comportamento dele em relação à usabilidade do aplicativo pelo responsável da criança. Depois de uma semana sem a utilização do aplicativo, como forma de examinar a assimilação do que foi aprendido com o uso da TA, foi feito um teste de reconhecimento dos portfólios, por meio de projeções em power point, utilizando a TV da casa em que a criança mora.
Termo de Consentimento Livre Esclarecido e Ética experimental
Por se tratar de uma criança com menos de seis (6) anos de idade, foi necessário a utilização e assinatura, pelos responsáveis, do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), que concordaram com o estudo. Esse projeto também foi aprovado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CAAE: 53844921.5.0000.0197).
Resultados e discussão
Uma vez que a presença dos pesquisadores poderia causar estresse ou timidez na criança, os relatos abaixo foram feitos pela responsável da criança, que a acompanhou durante a utilização do aplicativo. O quadro 01 traz as observações enquanto a criança interagia com o portfólio do alfabeto.
Dia 01 | Deixei o aplicativo aberto e entreguei o celular para a criança, que imediatamente o fechou e foi para o Youtube. |
Dia 02 | Entreguei o celular para a criança, com o aplicativo do SpeeCH aberto e ela ficou vendo o alfabeto por completo várias vezes, tipo remixando os sons das letras e falando os nomes dos animais de cada letra. |
Dia 03 | A criança pediu pra ver o alfabeto no aplicativo do SpeeCH. Ela já reconheceu o ícone do aplicativo e ela mesmo selecionou o grupo do alfabeto para ver. Viu todo o alfabeto por várias vezes, demonstrando alegria e algumas estereotipias. |
Dia 04 | A criança veio pedir para assistir o alfabeto no aplicativo SpeeCH, mas não chegou a ver todas as letras, ficou apenas repetindo o som das primeiras letras por várias vezes. Ela fica feliz com o som das letras. |
Dia 05 | Hoje, novamente, a criança pediu pra ver o alfabeto no SpeeCH, repetiu todas as letras algumas vezes e depois foi para o Youtube. |
Dia 06 | A criança pediu várias vezes ao longo do dia para ver o alfabeto no aplicativo do SpeeCH. Ela mesma, já procura o ícone do aplicativo no celular e selecionou o grupo para assistir, mas hoje ficou pouco tempo e logo mudou para ver outros desenhos no Youtube. |
Dia 07 | Embora tenha ficado pouco tempo, uns 10 minutos, remixando as letras no aplicativo do SpeeCH, a criança faz com alegria ao ouvir o som das letras, mas logo muda para outros desenhos. |
Dia 08 | Embora tenha ficado quase 10 dias sem acesso ao aplicativo do SpeeCH, ainda hoje ela pede pra ver o alfabeto do celular. |
Fonte: Próprio autor (2022).
O quadro 02 apresenta as observações da criança utilizando o aplicativo com o portfólio de animais.
Dia 01 | Deixei o aplicativo aberto e entreguei o celular para a criança que, imediatamente, o abriu no grupo do alfabeto. |
Dia 02 | Entreguei o celular para ela com o aplicativo do SpeeCH aberto no grupo dos animais, ela logo ficou encantada e começou a apresentar estereotipias expressando sua alegria em ver os animais, viu todos os animais e repetiu o grupo algumas vezes. |
Dia 03 | A criança pediu pra ver os animais no aplicativo do SpeeCH, ela já reconheceu o ícone do aplicativo e ela mesma selecionou o grupo do alfabeto para ver e depois viu o dos animais também. Viu todos os animais por várias vezes, demonstrando alegria e algumas estereotipias. Notei que as vezes a velocidade de rolagem da imagem passa mais rápido do que som do nome do desenho, o que faz com que o nome do animal seja trocado as vezes. |
Dia 04 | A criança pediu para assistir os animais no aplicativo SpeeCH, mas não chegou a ver todos, ficou apenas repetindo o som do nome de alguns animais. Ela fica feliz com o som remixado dos nomes. |
Dia 05 | Hoje, novamente, a criança pediu para ver os animais no SpeeCH. Ela viu os grupos que há no aplicativo. Repetindo os sons algumas vezes. |
Dia 06 | A criança está totalmente independente quanto ao uso do aplicativo, basta entregar o celular que ela mesma procura o ícone do aplicativo e seleciona o grupo que quer ver, se deixar, fica o dia todo remixando os nomes dos animais. |
Dia 07 | Hoje, ela ficou remixando apenas os cinco primeiros animais do grupo, mas ficava encantado com sons. Já sabe o nome de quase todos os animais. |
Dia 08 | - Não houve anotações. |
Fonte: Próprio autor (2022).
Em um primeiro momento, a criança não se mostrou interessada pelo aplicativo e apresentou certo grau de desinteresse com os portfólios da TA. Isso foi observado em relatos, no qual a reponsável diz “selecionou o grupo para assistir, mas hoje ficou pouco tempo e logo mudou a criança pediu pra ver o alfabeto no SpeeCH, repetiu todas as letras algumas vezes e depois foi para o Youtube.”
Neste sentido, ele foi aberto pelo responsável nos portfólios do aplicativo para a criança ter uma primeira interação. Foi observado que a criança já tinha um contato com o aparelho celular, uma vez que a responsável relatou que ele reconheceu o aplicativo Youtube,e, em boa parte dos relatos, a criança deixava de interagir com o aplicativo deste estudo para navegar nos vídeos do referido aplicativo. Ferreira et al (2018) demonstraram, em resultados preliminares, que os dispositivos touch’s são os mais utilizados por pais de crianças com TEA e que elas interagem sozinhas de forma independente com estes aparelhos. Em sua grande maioria, o Youtube é o aplicativo mais acessado pelas crianças (FERREIRA et al., 2018).
Segundo o Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (CETIC), órgão vinculado à Organização das Nações Unidas (ONU), a pesquisa realizada sobre o consumo de internet por crianças e adolescente com idades entre 9 e 17 anos, revelou que 48% das crianças que utilizam o celular como forma de acesso a conteúdos cibernéticos, visualizam vídeos mais de uma vez por dia (NIC, 2020). Esses resultados demonstram o potencial do aplicativo Youtube no consumo de conteúdos em formatos de vídeos por crianças e adolescentes nativas digitais (CORRÊA, 2015; PRENSKY, 2001).
Para que haja uma melhora nos processos de ensino e aprendizagem de pessoas com deficiência, alguns fatores como participação da família e educadores e desenvolvimento da autonomia dos sujeitos são importantes neste processo (ALVES; MATSUKURA, 2011). Neste estudo, à medida que a criança foi sendo apresentado aos portfólios do alfabeto e animais, foi observado uma maior interação e autonomia dela para o uso do aplicativo conforme relatado pela responsável, no qual “A criança está totalmente independente quanto ao uso do aplicativo;” principalmente com os recursos sonoros e de imagem (figura 1).
Os resultados acima também foram observados no uso da tecnologia assistiva SCALA - Sistema de Comunicação Alternativa para Letramento de Pessoas com Autismo (DE SOUZA BITTENCOURT; FUMES, 2016; 2017). Tais resultados demonstram que o aplicativo SpeeCH,como ferramenta de comunicação alternativa de pessoas com deficiências na fala, pode auxiliar no desenvolvimento da autonomia desses sujeitos.Contudo, ainda que o aplicativo SpeeCH tenha promovido a autonomia da criança, vale ressaltar que o mesmo apresentou algumas dificuldades no próprio software da tecnologia, conforme observamos no relato da responsável; as vezes a velocidade de rolagem da imagem passa mais rápido do que som do nome do desenho, o que faz com que o nome do animal seja trocado as vezes Isso demonstra a necessidade de atualização do aplicativo e uma melhora na sua adequação para sua utilização.
O SpeeCH, tem por objetivo auxiliar na comunicação e reconhecimento de algumas figuras por meio da repetição. Segundo a responsável, a criança começou a apresentar estereotipias expressando sua alegria em ver os animais, e repetiu o grupo algumas vezes bem como; Viu todo o alfabeto por várias vezes, demonstrando alegria Isso demonstra que, depois do tempo de uso do aplicativo, a criança foi capaz de reconhecer o alfabeto e animais que estavam sendo apresentados, bem como repetia os sons expressados pela TA.
Esses relatos demonstram que o aplicativo despertou interesse e culminou na aprendizagem da criança acerca do alfabeto e dos animais. Além disso, a criança também utilizou de recursos de assimilação entre as letras do alfabeto com os nomes dos animais. Tais observações também foram encontradas em Radwan e Cataltepe (2016), que mostraram como a tecnologia assistiva utilizada em um tablet, pode ser usada para o melhoramento do reconhecimento de objetos de ensino para estudantes com TEA.
Como forma de aproximação e reconhecimento do meio natural em que a criança vive, foi criado um portfólio de animais que continham imagens de representantes da fauna do Cerrado, dos quais a criança, com a utilização do aplicativo, segundo a responsável, “Já sabe o nome de quase todos os animais e repetiu o nome destes. Este resultado demonstra que o SpeeCH, como meio de comunicação alternativa e aumentada, contribui no processo de apropriação da linguagem motora e reconhecimento do meio natural ao qual o sujeito está inserido. Tais resultados também foram observados em outros trabalhos que utilizam sistemas de pranchas com imagens para o desenvolvimento da aprendizagem em crianças com TEA (FRANCESCO DA SILVA et al., 2021; MONTENEGRO et al., 2021).
Embora esses sistemas sejam amplamente utilizados com pessoas com TEA em idades escolar e pré-escolar, ainda há uma carência de suas aplicações nos contextos escolares. Além disso, os resultados demonstrados pela utilização da aplicação vão ao encontro dos estudos de Vygotsky (1987), que demonstram as necessidades das interações entres os sujeitos e a cultura que os circundam, pois esse processo favorece a construção e o desenvolvimento das estruturas mentais superiores.
Quando examinado a assimilação da criança em relação ao reconhecimento do alfabeto e dos animais projetados no aparelho de televisão, depois de um período sem o uso do aplicativo, foi relatado que a criança reconheceu todas as letras do alfabeto e dos animais projetados, não conseguindo repetir apenas o nome de um animal, o sagui. Este resultado demonstra a aplicabilidade do aplicativo no auxílio da fala da criança com TEA, conforme encontrado em outros estudos (TOGASHI; WALTER, 2016; CORDEIRO; DE SOUZA, 2020).
Considerações finais
Com a popularização e a fácil utilização dos smartphones, há um crescente número de aplicativos que auxiliam em atividades e tarefas do dia a dia, bem como podem desempenhar funções educativas. Assim, esse relato de caso contribui para as reflexões sobre a utilização de aplicativos em smartphones por crianças diagnosticadas com TEA, no contexto das TA’s. Nesse cenário, os aplicativos para esses aparelhos de telefonias móveis podem apresentar possibilidades de emprego em atividades que visam o letramento, a alfabetização e a comunicação oral de crianças com TEA por pais, professores e responsáveis por estes sujeitos.
Além disso, o aplicativo SpeeCH pode ser aplicado como uma ferramenta de interação com o meio ambiente em que sujeitos diagnosticados com TEA estão inseridos, dando-lhes a possibilidade de desenvolver uma educação de mundo e uma maior interação com o espaço que o circunda.
Ante o exposto, esse estudo de caso mostrou que o aplicativo SpeeCH tem uma boa usabilidade e é capaz de oferecer autonomia ao seu usuário, contribuindo para sua aprendizagem em idade pré escolar. Contudo, vale ressaltar que o aplicativo ainda precisa ser utilizado com um maior número de pessoas diagnosticados com TEA e em estudos que visam integrar as tecnologias assistivas, ensino e aprendizagem em contextos escolares por estes sujeitos, uma vez que a prática docente possui uma intencionalidade, que versa sobre diferentes aspectos quando o assunto é a utilização de metodologias educacionais de ensino.