Introdução
Nas últimas décadas, a legislação brasileira tem procurado garantir que a educação especial seja desenvolvida em uma perspectiva inclusiva (BRASIL, 1996, 2001, 2008, 2015), buscando superar uma cultura discriminatória e segregacionista. Entre as pessoas a que se destinam as mudanças previstas nos documentos oficiais, estão aquelas com transtorno do espectro do autismo (TEA).
De acordo com a American Psychiatric Association (2014), o TEA consiste em um transtorno do neurodesenvolvimento caracterizado por prejuízo na comunicação e na interação social e por padrões comportamentais restritos e repetitivos. Esses sintomas manifestam-se desde os anos iniciais e comprometem o cotidiano do indivíduo.
Os modos particulares como os alunos com TEA se comunicam, interagem e se comportam diferem de padrões tradicionalmente valorizados, gerando dúvidas e angústias nos educadores (SCHMIDT et al., 2016). Devido a seus comportamentos considerados difíceis, esses alunos são, muitas vezes, impedidos de permanecer em sala de aula e de participar das atividades realizadas pelo restante da turma, o que acaba limitando as oportunidades de aprendizagem oferecidas a eles (KUBASKI; POZZOBON; RODRIGUES, 2015; RIBEIRO; MELO; SELLA, 2017).
Como afirmam Christmann e Pavão (2018), as restrições impostas à inclusão dos estudantes com TEA na dinâmica escolar são ainda mais notórias quando se trata da realização de trabalhos em grupo, visto que é comum serem propostas a eles apenas atividades individuais, justificadas por suas dificuldades de socialização. Essas dificuldades são determinadas a partir da valorização de formas padronizadas de interação social, desconsiderando-se que a “(...) interação não pode ser concebida de forma unilateral, como o modo correto ou socialmente convencionado de se estabelecer relações. É preciso reconhecer e aceitar outras possibilidades ou condições de funcionamento” (LAPLANE, 2018, p. 117). É necessário que maneiras diferentes de se expressar e de interagir passem a ser compreendidas, deixando de ser consideradas fatores que justifiquem a negação do direito de participação social.
Enquanto a escola se mantiver presa a formas de organização e de funcionamento que não consideram a diversidade discente e as múltiplas formas de aprender, a participação dos alunos com TEA no processo de ensino e aprendizagem continuará limitada. Schmidt et al. (2016) atestam que, para muitos desses alunos, a escola constitui somente um espaço de socialização, destinado à aprendizagem de habilidades funcionais, e não de conteúdos escolares.
Segundo Minatel e Matsukura (2015), há casos em que a não adequação dos estudantes com TEA aos modelos de comportamento tradicionalmente valorizados resulta até mesmo no abandono da escola comum. Muitos pais desistem da inclusão escolar de seus filhos devido às constantes reclamações em relação à maneira como eles se comportam.
Nesse contexto, os direitos previstos na legislação não têm sido garantidos aos indivíduos com TEA. Conforme realçam Nunes, Azevedo e Schmidt (2013), apesar da importância das mudanças legais que asseguram a esses indivíduos o acesso à escola comum, o processo de escolarização deles tem sido marcado por práticas contraditórias, muitas das quais chegam a ser segregadoras.
As contradições que caracterizam a inclusão escolar de alunos com TEA parecem resultar, em grande parte, da relação conflituosa entre os modos como eles se comportam e os padrões estabelecidos pela escola como necessários para que ocorra aprendizagem. A fim de que possamos compreender melhor por que a maneira como esses alunos se expressam e agem tem sido considerada um grande obstáculo e até mesmo um impedimento para sua inclusão nas escolas comuns, é necessário refletirmos sobre as concepções1 que têm fundamentado os modos de pensar e de agir dos profissionais da educação. Por isso, desenvolvemos um estudo2 com o objetivo de identificar e analisar, no processo de formação de educadores, indícios das relações entre os sentidos atribuídos por eles à inclusão escolar de alunos com TEA e as concepções de desenvolvimento humano e de deficiência.
Consideramos importante esclarecer que, embora na área médica o TEA não seja classificado como deficiência, legalmente aqueles que têm esse transtorno são considerados pessoas com deficiência (BRASIL, 2012, 2015). Além disso, como explica Veiga-Neto (2011), as normas são criadas para possibilitar a comparação entre os indivíduos, de modo que aqueles que se diferenciam da maioria sejam considerados anormais e suas características sejam vistas como desvios. Portanto, o modo como se compreende o normal e o anormal afeta a relação com pessoas com TEA e com pessoas com deficiência - no sentido específico do termo - da mesma maneira.
Na seção seguinte, apresentamos diferentes concepções de desenvolvimento e de deficiência, as quais subsidiarão teoricamente nossa análise. Posteriormente, detalhamos os aspectos metodológicos da pesquisa e, em seguida, analisamos os dados, os quais foram construídos por meio da realização de encontros formativos com profissionais da educação básica. Por fim, apresentamos algumas considerações decorrentes de nosso estudo.
Diferentes modos de compreender o desenvolvimento humano e a deficiência
O desenvolvimento humano pode ser compreendido sob diferentes perspectivas. Entre elas, há a perspectiva biológica, que está embasada nos processos de maturação orgânica (OLIVEIRA, 2004), privilegiando uma concepção “(...) que, por analogia com o crescimento das plantas, vê o desenvolvimento da criança como o progressivo ‘desabrochar’ das possibilidades contidas de forma embrionária, desde o começo da sua existência e que definirão sua história” (PINO, 2013, p. 77).
Essa concepção aproxima o desenvolvimento do homem ao de outros seres vivos, atribuindo importância apenas aos aspectos biológicos. Vigotski (2012 3) opõe-se a esse modo de conceber o desenvolvimento humano, compreendendo-o como um processo complexo, não linear, dialético, marcado por evolução e por involução. A complexidade apontada pelo autor decorre da diversidade de fatores envolvidos.
Como sintetiza Wertsch (1988), o desenvolvimento humano, nos estudos vigotskianos, é explicado por meio da apresentação de quatro planos genéticos: a filogênese, a ontogênese, a sociogênese e a microgênese. Esses planos referem-se, respectivamente, à história da espécie humana, à história do homem desde sua concepção até sua morte, às especificidades de determinado grupo sociocultural e às vivências singulares de cada indivíduo.
Considerar esses planos genéticos implica compreender a importância dos fatores biológicos, culturais, sociais e individuais. Essa compreensão conduz a uma concepção segundo a qual o ser humano não se define somente por sua constituição orgânica nem se caracteriza como simples reflexo do meio em que está inserido (MOURA et al., 2016).
Ao criticar a valorização apenas dos aspectos biológicos, Vigotski (2018) realça a importância do meio como fator que, além de interferir na combinação e na manifestação das características inatas de uma pessoa, acrescenta elementos novos ao desenvolvimento dela. Nesse processo, deve ser considerado não o meio em si, mas a relação entre o indivíduo e o meio, isto é, a vivência do indivíduo, definida pelo modo como ele “(...) toma consciência, atribui sentido e se relaciona afetivamente com um determinado acontecimento” (VIGOTSKI, 2018, p. 77).
Em seus estudos, Vigotski defende que o psiquismo seja compreendido por uma perspectiva histórico-cultural. Comparando essa perspectiva com a biológica, notamos que há diferentes modos de conceber o desenvolvimento humano, os quais resultam em concepções distintas de deficiência. A compreensão do desenvolvimento como um processo determinado exclusivamente pelas condições orgânicas do indivíduo fundamenta o modelo médico, segundo o qual “(...) a deficiência e sua suposta desvantagem intrínseca é um problema decorrente unicamente da lesão, uma questão individual cuja reparação permanece na dependência da eficácia de práticas terapêuticas reabilitadoras” (PICCOLO, 2015, p. 69).
Trata-se de uma concepção que considera que as dificuldades vivenciadas pelas pessoas com deficiência são resultantes apenas de suas características biológicas e que as diferenças dessas pessoas em relação aos organismos considerados normais devem ser atenuadas. Esse modo de olhar para as diferenças está embasado na valorização de um padrão definido socialmente como normal. Conforme afirma Canguilhem (2009), o conceito de normalidade é construído com base em julgamentos de valor, sendo considerados negativos os estados e comportamentos que se desviam daquilo que é concebido como normal.
A valoração negativa de tudo o que difere da normatividade socialmente estabelecida resulta na convicção de que “a deficiência, vista enquanto desvio do estado normal da natureza humana, deve ser tratada e amenizada” (BISOL; PEGORINI; VALENTINI, 2017, p. 93). Desse modo, a pessoa com deficiência passa a ser avaliada em função de suas diferenças em relação aos outros, as quais são qualificadas como déficits.
O modelo médico, ao centrar-se unicamente na análise das condições biológicas, atribui ao indivíduo com deficiência a responsabilidade por seus fracassos, uma vez que considera que as causas de suas dificuldades se encontram em seu próprio organismo. Nessa perspectiva, a deficiência é vista como uma tragédia pessoal, isto é, como um problema individual (DINIZ, 2012; PICCOLO, 2015).
As ideias vinculadas ao modelo médico têm sido expressas em diversos espaços sociais. No contexto escolar, elas resultam na valorização excessiva dos laudos dos alunos e na priorização do saber médico em detrimento do saber pedagógico no direcionamento das práticas adotadas com os estudantes diagnosticados com deficiência (DAINEZ, 2017; LAPLANE, 2018; PEREIRA, 2022; PLETSCH; PAIVA, 2018; SILVA; MOLERO; ROMAN, 2016).
Segundo Angelucci (2014), devido à subordinação da educação ao saber médico, os educadores, em geral, diante de um aluno com deficiência, buscam ajudá-lo a aproximar-se da normalidade. Oliveira e Chiote (2013) observam essa mesma finalidade ao analisarem o que tem sido proposto, no campo educacional, para o trabalho com indivíduos com TEA. De acordo com as autoras, são muito comuns abordagens voltadas ao tratamento e à redução dos comportamentos considerados inadequados.
A concepção de deficiência sustentada pelo modelo médico, ainda presente no contexto atual por compor o pensamento hegemônico (MICHELS, 2011), foi alvo de críticas de Vigotski no início do século XX. A pessoa com deficiência, segundo Vigotski (1997), deve ser vista não como alguém que se desenvolve menos, mas como alguém que se desenvolve de modo diferente. Com a substituição da perspectiva quantitativa pela qualitativa, passa-se a buscar não aquilo que falta ao indivíduo, mas suas potencialidades, as quais se mostram e se desenvolvem nas relações com os outros, por meio das mediações socioculturais, conforme ressaltam Stetsenko e Selau (2018).
De acordo com Vigotski (1997), mais importante que a deficiência em si são suas consequências sociais, isto é, sua realização sociopsicológica. O autor diferencia as complicações primárias, que estão relacionadas diretamente aos fatores orgânicos, e as complicações secundárias, que resultam do modo como se estabelecem as relações com a pessoa com deficiência, sendo determinadas, portanto, pelos sentidos atribuídos à deficiência - pelos outros e, consequentemente, pela própria pessoa.
As complicações primárias manifestam-se nas funções psíquicas elementares. Já as complicações secundárias afetam as funções psíquicas superiores - entre as quais se encontram a linguagem, a atenção voluntária, a memória lógica, a elaboração conceitual, a imaginação, entre outras -, uma vez que estas, segundo Vigotski (2012), se desenvolvem nas/pelas relações com os outros, sendo externas antes de tornarem-se internas. Ao fazer essa diferenciação, Vigotski (1997) ressalta que as ações educacionais devem ter como foco as complicações secundárias, visto que elas são responsáveis pelos principais prejuízos ao desenvolvimento do indivíduo e, por não estarem condicionadas pelos fatores biológicos, são mais suscetíveis a mudanças.
Em suas reflexões a respeito do processo educacional de alunos com deficiência, o autor explora a importância de valorizar as possibilidades de compensação:
A educação de crianças com diferentes deficiências deve basear-se no fato de que, juntamente com a deficiência, estão dadas também as tendências psicológicas de orientação oposta, estão dadas as possibilidades de compensação para superar a deficiência e são precisamente essas possibilidades que se colocam em primeiro plano no desenvolvimento da criança e que devem ser incluídas no processo educacional como sua força motriz.4 (VIGOTSKI, 1997, p. 47, tradução nossa).
Por meio do estudo do processo de compensação, Vigotski (1997) observa que os fatores biológicos associados à deficiência não são impeditivos do desenvolvimento do indivíduo, sendo necessário buscar os meios capazes de possibilitar que ele aprenda e se desenvolva. Esses meios encontram-se na esfera social e envolvem a produção de novos instrumentos técnicos e semióticos, que viabilizem outras formas de interação e de significação (DAINEZ, 2014).
Ressaltamos que, embora o próprio Vigotski (1997) realce a necessidade de substituir a ideia de compensação biológica da deficiência pela ideia de compensação social, há, segundo Dainez (2014, 2017), autores contemporâneos que têm interpretado de maneira equivocada o conceito vigotskiano, apresentando a compensação como um processo de correção das falhas orgânicas, o qual se realizaria no âmbito individual.
Esse modo de conceber a compensação conduz a práticas educacionais que têm como objetivo “(...) a normalização do indivíduo e não a transformação das condições sociais que atendam a diversidade dos modos de constituição do humano” (DAINEZ, 2017, p. 2). Trata-se, portanto, de uma concepção que se mostra distante das ideias defendidas por Vigotski, aproximando-se do que propõe o modelo médico.
Quando a deficiência é compreendida em conformidade com o que estabelece Vigotski, isto é, como “(...) um fenômeno de desenvolvimento sociocultural” (SOUZA; DAINEZ, 2022, p. 10), o professor, em vez de tentar adequar os alunos com deficiência ao modo de funcionamento das aulas, busca desenvolvê-las de maneira que as necessidades deles sejam atendidas. Nesse processo, faz-se necessário descobrir os meios pelos quais cada educando aprende e se desenvolve. Esses meios, como realça Vigotski (1997), não podem ser determinados com base apenas na deficiência do indivíduo. É preciso considerar sua história, isto é, seu contexto sociocultural, suas vivências anteriores e o modo como elas foram significadas.
Com as reflexões teóricas apresentadas, podemos inferir que a maneira como os educadores desenvolvem seu trabalho está relacionada às suas concepções de desenvolvimento humano e de deficiência. Portanto, para o enfrentamento dos desafios que têm sido observados na inclusão escolar de alunos com TEA, é importante que sejam oferecidas aos profissionais da educação oportunidades de vivenciar processos formativos que lhes possibilitem refletir sobre as concepções das quais eles têm se apropriado e sobre o modo como essas concepções afetam os sentidos que eles atribuem à escolarização desses alunos.
Aspectos metodológicos
Por compreendermos, assim como Salles e Mendonça (2021), que a formação continuada de educadores constitui elemento essencial para a superação das dificuldades vivenciadas no processo de inclusão escolar de alunos com TEA, optamos por desenvolver uma pesquisa-formação, a qual se caracteriza por uma perspectiva não apenas investigativa, mas também formativa (JOSSO, 2004, 2010). Considerando essa dupla perspectiva, utilizamos, em nosso trabalho, as narrativas autobiográficas tanto como instrumento de construção dos dados quanto como instrumento formativo (PASSEGGI, 2010).
Na pesquisa-formação, segundo Josso (2004), instaura-se um movimento dialético no qual as vivências de cada participante são interpretadas por ele mesmo (autointerpretação) e, também, pelos outros (cointerpretação). Desenvolve-se, desse modo, um importante processo de significação, marcado pelo diálogo entre os diferentes sentidos atribuídos às vivências narradas, conforme destacamos em estudo anterior (MONTEIRO; FREITAS, 2021). Esse diálogo ora se mostra mais harmonioso, ora se apresenta mais tenso e conflituoso, pois, como afirma Góes (1997, p. 27), “o jogo dialógico entre sujeitos não tende a uma só direção; ao contrário, envolve circunscrição, ampliação, dispersão e estabilização de sentidos”.
Por meio do jogo dialógico que é estabelecido na pesquisa-formação, cada um dos participantes tem a oportunidade de tomar consciência das concepções que fundamentam seu modo de pensar e de agir (JOSSO, 2004). Esse processo de tomada de consciência é favorecido pelas narrativas autobiográficas, uma vez que elas “(...) expressam um conjunto de significados construídos culturalmente pelo sujeito, o qual traz as marcas dos traços históricos e culturais internalizados pela pessoa numa determinada época e sociedade” (OLIVEIRA; REGO; AQUINO, 2006, p. 127). Ao narrar suas vivências, o indivíduo produz, por meio da interação entre cognição e afeto, sentidos que estão relacionados às concepções das quais se apropriou ao longo da vida.
Como a narrativa constitui um instrumento técnico-semiótico que afeta os outros, mobilizando-os a expressarem-se (FREITAS, 2019), durante o compartilhamento das narrativas no desenvolvimento da pesquisa-formação, os sentidos construídos pelos autores e as concepções a eles relacionadas tornam-se objeto de reflexão do grupo. Em nosso trabalho, esse processo reflexivo ocorreu por meio da realização de encontros formativos com educadores de uma escola estadual de educação básica. Essa escola está situada em uma cidade de médio porte do sul de Minas Gerais e, no ano em que realizamos a pesquisa, estavam matriculados nela 405 alunos, do sexto ano do ensino fundamental ao terceiro ano do ensino médio. Desses alunos, 16 caracterizavam-se como público da educação especial, havendo entre eles 8 com TEA.
Participaram dos encontros de formação 29 educadores: 22 professores regentes, 2 professoras para o ensino do uso da biblioteca5, 1 professora de atendimento educacional especializado que trabalhava na sala de recursos, 1 orientadora educacional, 1 supervisora pedagógica, além da diretora e da vice-diretora da escola.6 Devido ao grande número de participantes, eles foram divididos em dois grupos, identificados como grupo 1 e como grupo 2 em função do horário de realização dos encontros com cada um deles.
Cada grupo participou de dez encontros quinzenais de 90 minutos, no período de agosto a dezembro de 2020. Devido às restrições impostas pela pandemia causada pelo coronavírus, os encontros foram realizados na modalidade on-line, por meio do Google Meet, sendo gravados com o uso da ferramenta de captação de áudio e imagem disponível na própria plataforma utilizada. Todos os encontros foram conduzidos pela primeira autora deste artigo, identificada no texto como pesquisadora-formadora, sob orientação da segunda autora.
Com os dois grupos foi adotada a mesma forma de trabalho. No primeiro encontro, a pesquisadora-formadora apresentou a proposta de formação e, em seguida, pediu que cada participante comentasse um pouco as ideias e as emoções que tinham marcado sua primeira vivência com um aluno com TEA. Com essa dinâmica, iniciou-se a mobilização dos educadores para a reflexão a respeito de temáticas que, posteriormente, seriam abordadas de maneira mais detalhada.
No final do primeiro encontro, a pesquisadora-formadora solicitou que, ao longo da semana, cada educador escrevesse uma narrativa referente a uma de suas vivências com um aluno com TEA. Cada um pôde estabelecer seu próprio critério para decidir qual de suas vivências gostaria de compartilhar com os colegas7. Dessa forma, os participantes puderam abordar em seus textos as questões relacionadas à inclusão escolar de alunos com TEA que mais os afetavam. A pesquisadora-formadora buscou, desse modo, valorizar aqueles que, segundo Nóvoa (2014), devem ser os elementos fundamentais de qualquer trabalho formativo: as pessoas e seus contextos.
Todos os participantes escreveram as narrativas autobiográficas e enviaram-nas por e-mail para a pesquisadora-formadora antes do segundo encontro, a partir do qual os textos começaram a ser lidos. Após cada educador fazer a leitura de sua narrativa, iniciava-se um processo de reflexão, durante o qual todos podiam expressar o que pensavam e sentiam em relação ao que havia sido compartilhado. Nesse momento, muitos narravam oralmente outras vivências que, de alguma maneira, se relacionavam à narrativa lida e que também se tornavam objeto de análise do grupo. Para garantir que as reflexões, ao tratarem de questões do cotidiano escolar, não deixassem de estar articuladas a fundamentos teóricos, a pesquisadora-formadora apresentava, durante as discussões, proposições da perspectiva histórico-cultural do desenvolvimento humano relacionadas às temáticas abordadas pelos educadores.
Essa forma de trabalho foi adotada até o último encontro, após o qual transcrevemos todas as gravações. Lendo o texto constituído por essa transcrição, buscamos identificar os elementos que caracterizaram o processo de reflexão dos educadores sobre a inclusão escolar de alunos com TEA. Em seguida, definimos eixos de análise com base nos elementos que se mostraram recorrentes, isto é, que foram observados no processo formativo dos dois grupos, em diferentes encontros de cada grupo e em momentos de interação envolvendo educadores distintos. Para este artigo, selecionamos o estudo desenvolvido em torno do seguinte eixo: as relações entre os sentidos atribuídos à inclusão escolar de alunos com TEA e as concepções de desenvolvimento humano e de deficiência.
Ressaltamos que a definição dos eixos de análise após a produção dos dados constitui um procedimento coerente com os princípios que orientam as pesquisas com narrativas. Conforme afirmam Leandro e Passos (2021), nesse tipo de pesquisa, é nas narrativas e nas reflexões motivadas por elas que o pesquisador encontra as chaves de interpretação, as quais nem sempre coincidem com as hipóteses iniciais.
Para o desenvolvimento da análise apresentada neste artigo, selecionamos excertos dos encontros formativos. Neles estão inclusas narrativas dos educadores e diálogos mobilizados pelo compartilhamento delas. Esclarecemos que não constituiu objetivo nosso listar todos os excertos relacionados ao tema de estudo, pois compreendemos, assim como Aguiar e Ferreira (2021), que cada narrativa e cada reflexão motivada pela leitura de uma narrativa representam uma somatória de outras narrativas e reflexões.
Analisamos os dados selecionados com base no método histórico-genético, proposto por Vigotski (2004). Segundo o autor, a investigação deve ser desenvolvida sob um ponto de vista histórico, priorizando-se a análise explicativa em detrimento da análise descritiva.
Conforme explicam Zanella et al. (2007, p. 29-30):
Mais do que estudar o modo como algo se apresenta (um processo psíquico, ou outro objeto de estudo), se faz necessário pesquisar como pôde chegar a se apresentar do modo como se apresenta hoje, busca essa que almeja a desnaturalização dos fenômenos a partir de um olhar que enfoca sua historicidade e a complexidade das relações que o instituíram.
Em nosso trabalho, procuramos desnaturalizar os sentidos atribuídos pelos educadores à inclusão escolar de alunos com TEA investigando as relações entre esses sentidos e as diferentes concepções de desenvolvimento humano e de deficiência que perpassam as relações sociais. Para isso, pautamo-nos pelo paradigma indiciário (GINZBURG, 1989), identificando e analisando indícios presentes nas narrativas e nas falas dos educadores. Como esclarece Pino (2005), ao adotar-se o paradigma indiciário, desenvolve-se uma investigação semiótica, buscando-se inferências a partir da interpretação de pistas ou sinais.
Relações entre os sentidos atribuídos à inclusão escolar de alunos com transtorno do espectro do autismo e as concepções de desenvolvimento humano e de deficiência
No segundo encontro realizado com o grupo 1, Aline8, orientadora educacional da escola, faz a leitura de sua narrativa autobiográfica, na qual aborda uma situação vivenciada com um aluno com TEA quando atuava como professora em outra instituição escolar. Após Aline terminar de ler seu texto, a pesquisadora-formadora convida os demais participantes para um diálogo:
Pesquisadora-formadora: O que passou na cabeça de vocês enquanto Aline estava lendo? O que chamou a atenção, sobre o que vocês ficaram refletindo? Adilson: O comportamento da criança. O comportamento acelerado demais, agitado demais. Essas crianças têm esse comportamento. Pesquisadora-formadora: Por que será que esse comportamento mexe tanto com a gente? Adilson: Porque a gente fica... incomodado com isso. Pesquisadora-formadora: Você usou uma palavra boa: incomodado. E por que incomoda a gente? Felicidade: É porque nós fomos educados que as pessoas têm que ter sempre o comportamento adequado dentro daquilo que a gente acha certo. Então, a gente sempre coloca o nosso padrão, padrão da sociedade que é imposto para nós, com essas duas palavras: o que é certo e errado. (...) Pesquisadora-formadora: O certo e o errado estão muito relacionados ao que é normal e anormal. (...) Mas o que é a norma? A norma foi construída socialmente, não é algo natural. (...) Quando é algo que está fora desses limites, incomoda porque a gente não sabe como lidar com aquilo. (...) E o que fazer diante desse incômodo? É preciso que todos se enquadrem na norma? Sim? Não? Por quê? Adilson: Sim. Aí a união de todos em prol... para ajudar essa criança ou esse adolescente ou esse adulto. (Excertos de falas apresentadas no encontro do dia 26/08/20).
Adilson, professor de Biologia, afirma sentir incômodo diante do comportamento agitado do aluno com TEA descrito por Aline em sua narrativa, sinalizando que seu olhar para esse aluno é pautado pela comparação em relação aos que não têm o transtorno. Como afirmam Christmann e Pavão (2018, p. 6), “a deficiência traz, em si, a presença da diferença, a qual muitas vezes gera estranheza e aversão. (...) ser diferente é não reproduzir uma norma pré-estabelecida como padrão social, razão pela qual se pensa na necessidade de correção, adequação e normalização”.
Essa necessidade é defendida por Adilson, que parece acreditar que uma das finalidades da escola em relação aos alunos com TEA deva ser garantir sua adequação à norma, devendo todos se unir para atingir esse objetivo. A busca da normalização dos alunos constitui um procedimento coerente com a concepção de deficiência proposta pelo modelo médico, que prioriza os aspectos biológicos na análise do desenvolvimento humano.
A fala de Adilson, ao preconizar o controle dos comportamentos considerados inadequados, corrobora o que outros estudos têm demonstrado: na maioria das escolas, as ações consideradas inclusivas visam à adequação dos alunos com TEA às práticas escolares, e não à busca de novas práticas que considerem as necessidades dos alunos (LAPLANE, 2018; MINATEL; MATSUKURA, 2015; SALLES; MENDONÇA, 2021). Esse modo de conduzir a inclusão escolar orienta-se pela compreensão da compensação como um processo biológico, e não social.
Ainda que Adilson apresente sinais de que seu trabalho como professor tem sido pautado pelas ideias defendidas pelo modelo médico de deficiência, é preciso considerarmos que, como ressalta Smolka (2000), os sentidos se produzem nas relações sociais e, portanto, não são estáveis. É justamente com a finalidade de desestabilizar os sentidos construídos anteriormente pelo professor de Biologia que a pesquisadora-formadora dá continuidade ao diálogo, propondo um novo questionamento:
Pesquisadora-formadora: Essa ajuda, Adilson, deve ser no sentido de fazer com que essa criança ou esse adolescente ou esse adulto seja igual às pessoas consideradas normais? É nesse sentido que deve ser a nossa ajuda? Adilson: Deixe-me pensar aqui. Pesquisadora-formadora: O Adilson ou qualquer outro que quiser comentar também, não necessariamente só o Adilson. Adilson: Cada qual tem o seu... a sua educação. No caso, tem também o comportamento, que influencia muito. E tem as pessoas que estudam profundamente a mente, o pensamento, para tentar achar a solução para acalmar essa criança ou esse adolescente e produzir um resultado satisfatório... um resultado cognitivo. Pesquisadora-formadora: A gente fala em resultado cognitivo, em aprendizagem... Será que todos precisam ser quietinhos e calmos para conseguir aprender? A pergunta é para todo mundo. Felicidade: Eu acho que não. (...) Quando o Adilson fala que, para aprender, a gente precisa estar adequado, eu acho que não. Mas, ao mesmo tempo, eu acho muito difícil a gente, numa sala de aula, aceitar todas essas diversidades. (...) A gente tem essa tendência de colocar todo mundo dentro do padrão da gente. Letícia: Eu acho que o que a Felicidade falou - padronizar - é ir muito contra a aceitação das diferenças. (...) Eu acredito que o caminho talvez seja usar estratégias diferentes, observando cada um. E para nós, talvez, dê muito mais trabalho usar estratégias diferentes. (...) Então, olhando para o lado do professor também, é muito trabalhoso para ele dentro da sala lidar com essas questões de forma solitária. E eu vejo que o professor está muito solitário para lidar com tudo isso. Além da falta de uma direção, de saber que caminho tomar, não é simples lidar com essas diferenças com 30 alunos dentro da sala, com os recursos que o professor tem hoje. Então, é assim: é preciso despadronizar a ação docente, mas também é preciso que o docente tenha apoio. (...) Não é muito simples lidar com a teoria e com a prática desse discurso. (...) Francisco: Porque esse tipo de criança, esse tipo de aluno requer mais atenção da gente. Imagina: mais de 30 alunos na sala, 50 minutos de aula. É complicado realmente. Eu concordo plenamente com a Letícia, porque nós não temos estrutura para lidar com esse tipo de garoto. Realmente não temos. Não temos nem estrutura para lidar com os ditos normais. (...) (Excertos de falas apresentadas no encontro do dia 26/08/20).
Embora Adilson se mostre mobilizado a refletir a partir do questionamento feito pela pesquisadora-formadora, ele volta a expressar, em sua fala seguinte, uma concepção de deficiência condizente com o modelo médico, retomando a ideia de que é importante descobrir um modo de acalmar o aluno com TEA para que ele possa aprender. Por isso, a pesquisadora-formadora busca instigar outros educadores a expressarem-se, a fim de que diferentes modos de compreender a inclusão escolar de alunos com TEA possam ser expressos.
Felicidade, diretora da escola, e Letícia, professora de Educação Física, contribuem para a reflexão proposta, criticando a necessidade de padronização dos alunos defendida por Adilson. Dessa maneira, elas parecem perceber a inadequação da concepção segundo a qual a deficiência é vista como um desvio da normalidade que precisa ser corrigido. No entanto, ambas reconhecem que, embora as singularidades dos alunos devam ser respeitadas, é muito difícil aceitá-las e lidar com elas.
Notamos, nas afirmações de Felicidade e de Letícia, indícios de que, como destacam Freitas, Monteiro e Camargo (2015), o cotidiano escolar e o fazer docente estão marcados por contradições, as quais são reveladoras das tensões entre as diferentes ideias que circulam socialmente. Essas ideias são internalizadas pelos educadores e expressam-se em discursos polifônicos (BAKHTIN, 2013), nos quais ouvimos diferentes vozes em luta, como na fala de Felicidade, segundo a qual, mesmo compreendendo que o ideal seria desenvolver um trabalho que se adequasse às necessidades individuais dos alunos, “a gente tem essa tendência de colocar todo mundo dentro do padrão da gente”. Há, nessa fala, duas concepções diferentes de deficiência em tensão.
Conforme ressaltam Freitas, Monteiro e Camargo (2015), as contradições observadas no contexto escolar também expressam o conflito entre o desejo de contribuir para a aprendizagem de todos os alunos, considerando as particularidades de cada um, e as condições concretas de trabalho do professor. Letícia expõe esse conflito, marcado pela não coincidência entre a teoria e a prática.
As dificuldades apontadas pela professora de Educação Física, como a falta de orientação e de apoio aos docentes e a quantidade excessiva de alunos em sala de aula, são reforçadas por Francisco, professor de Geografia. Sua fala pode ser interpretada como uma denúncia das más condições de trabalho do professor, que envolvem problemas anteriores à inclusão de alunos com deficiência nas escolas comuns.
Segundo Assunção e Oliveira (2009), as reformas educacionais pelas quais o Brasil tem passado desde a década de 1990 visam à redução dos custos e ao aumento dos resultados quantitativos, como o número de alunos matriculados, as notas obtidas em avaliações externas, entre outros. Para que essas metas sejam atingidas, têm sido implantados nas escolas procedimentos do meio empresarial, como “regulação, controle e avaliação por competências (...)” (ASSUNÇÃO; OLIVEIRA, 2009, p. 354). Esses procedimentos, além de resultarem em sobrecarga de tarefas para os educadores, favorecem práticas homogeneizadoras, que desconsideram as individualidades dos alunos, tornando difícil para os profissionais da educação acreditar que é possível oferecer aos estudantes com deficiência condições favoráveis à sua aprendizagem e ao seu desenvolvimento (CAMARGO et al., 2020; VENÂNCIO; CAMARGO, 2018).
Nesse contexto, que tem provocado o esgotamento físico e emocional dos educadores, torna-se importante refletir sobre as possibilidades de enfrentamento dos desafios vivenciados por eles. É isso que a pesquisadora-formadora busca ao dar continuidade ao diálogo após a fala de Francisco:
Pesquisadora-formadora: A gente precisa começar a pensar, então, quais são as ferramentas que a gente tem, porque, realmente, a gente tem uma série de desafios, uma série de dificuldades, uma série de carências, mas a gente precisa olhar também para o que a gente tem. O que dá para a gente fazer com aquilo que a gente tem? (Excerto de fala da pesquisadora-formadora apresentada no encontro do dia 26/08/20).
A reflexão mobilizada pelo questionamento da pesquisadora-formadora vai desenvolvendo-se aos poucos, ao longo dos encontros, permeada pela leitura de narrativas de outros educadores, como a de Vitória, professora de Língua Inglesa, que apresenta seu texto no quarto encontro do grupo 1. Ela narra uma situação vivenciada em outra escola, na qual lecionava Língua Portuguesa:
(...) Pedro9 (aluno com TEA) se mostrava de imediato, nas primeiras aulas, muito ansioso, agitado e não conseguia se concentrar em atividades de escrita e oralidade. (...) Estava, neste primeiro momento, bem agressivo e rebelde com a escola, atividades e colegas. (...) De acordo com conversas com a coordenação pedagógica e a direção da escola, chegamos à conclusão de que Pedro, a partir de seu comportamento rebelde, queria chamar nossa atenção para alguma questão em particular. (...) O ritmo do 5º ano o incomodava, pelo fato de ter textos mais infantis, uma linguagem totalmente diferente dos livros que estava acostumado a ler e do mundo que tinha construído com suas grandes habilidades, como: música clássica, inteligência sobre ciências, política e religião, entre outras. Partindo do conhecimento de seu incômodo e de sua rebeldia, estabelecemos alguns acordos com Pedro e os demais alunos, sempre pensando no que seria inclusivo para todos. Desta forma, em todas as aulas de Língua Portuguesa, sempre em conjunto, duas aulas seguidas, adotamos momentos diferentes: leitura, música, brincadeiras etc. (...) Pedro, de imediato, se negou a fazer parte das equipes, contudo se maravilhou pela parte da leitura, pois levava seus próprios livros e gibis para sua atividade. (...) Meses após a aplicação do projeto algumas adaptações foram sendo realizadas e percebemos que Pedro estava mais acolhido, se sentia mais tranquilo, se sentia confortável em contar suas histórias para os colegas. Finalmente, Pedro foi aceito, principalmente pela equipe que mais colocou resistência no início de sua adaptação. Logicamente, as inquietações de Pedro continuaram durante as aulas. Muitas vezes, ele se sentia nervoso e precisava sair da sala e conversar um pouco com a coordenação e logo depois retornava mais tranquilo. Entretanto, as práticas em equipe me ajudaram como educadora a rever formas de avaliação e ajudaram Pedro e seus colegas a se sentirem mais próximos. No final do ano, Pedro já assumia uma postura totalmente diferente. Conseguia realizar suas atividades da apostila com mais atenção e foco. As aulas passaram a ser mais leves, ele até se sentia confortável em participar de equipes e aceitava minha ajuda com as atividades propostas. (...) (Excerto da narrativa de Vitória lida no encontro do dia 23/09/20).
Encontramos, na narrativa de Vitória, indícios de que as ações implementadas na turma de Pedro são motivadas pela compreensão da inclusão de alunos com TEA como um processo complexo, que envolve mudanças nas práticas pedagógicas, pensadas a partir de um olhar cuidadoso para os sentidos que cada aluno atribui às atividades escolares e às relações estabelecidas com os outros no espaço da escola. Inserida em um contexto que lhe permite romper com o trabalho solitário de que se queixa Letícia na fala que transcrevemos anteriormente, Vitória, com o apoio da equipe pedagógica e da equipe gestora da escola, busca compreender o comportamento de Pedro identificando causas que não se limitam à esfera orgânica. Como realçam Guareschi e Naujorks (2016) e Martins e Monteiro (2017), é muito importante que as ações do aluno com TEA não sejam interpretadas como simples manifestações de sintomas do transtorno.
Em sua interação com Pedro, Vitória vai atribuindo sentido à aparente rebeldia do aluno, considerando, para isso, fatores biológicos, culturais, sociais e individuais. A partir da explicação encontrada para o comportamento de Pedro, Vitória modifica a dinâmica das aulas, possibilitando mudanças na relação do aluno com os conteúdos escolares, com ela (professora) e com os colegas. Dessa forma, ela parece compreender que “(...) a qualidade das mediações é mais importante do que a deficiência em si, já que a forma e a qualidade das interações podem gerar êxitos ou fracassos no processo de desenvolvimento” (FARIA; CAMARGO, 2018, p. 23).
Ao investir na qualidade das mediações em vez de focalizar as complicações primárias do TEA, Vitória possibilita que se desenvolva um processo de compensação social da deficiência. Este resulta da mudança no modo de olhar para Pedro: ele deixa de ser visto como o aluno/colega problemático e passa a ser considerado um integrante da turma. A alteração do papel atribuído a Pedro no contexto da escola parece afetá-lo, mobilizando-o a querer participar das atividades escolares. Conforme afirmam Dainez e Smolka (2019, p. 9), “a mudança na posição social incide na dinâmica afetivo-volitiva que influi na dinâmica intelectual e transforma o sentido da vivência”.
A mudança da posição ocupada por Pedro não resulta da anulação do TEA, e sim de modificações no modo como o transtorno é compreendido. A professora não visa igualar o comportamento de Pedro ao dos demais alunos. Ela considera lógico, ou seja, natural que, em alguns momentos, ele precise sair da sala de aula para acalmar-se e depois retome sua participação nas atividades. Esse comportamento, que destoa do padrão de normalidade estabelecido historicamente, não impede que a escola constitua, para esse aluno, espaço de aprendizagem e de desenvolvimento.
A narrativa de Vitória permite-nos inferir que o trabalho desenvolvido na turma de Pedro é pautado por uma concepção de deficiência condizente com o que é proposto por Vigotski. A busca de mudanças nas práticas pedagógicas envolvendo transformações nas relações sociais constitui uma iniciativa contrária à compreensão de deficiência como problema individual, de natureza apenas orgânica.
Ao narrar sua vivência, Vitória auxilia o grupo a pensar em possibilidades de contribuição para a aprendizagem e o desenvolvimento dos alunos com TEA, possibilidades essas que precisam ser buscadas na relação de cada professor com cada turma, com cada aluno. A narrativa de Vitória, portanto, insere, no jogo dialógico que se desenvolve no processo formativo dos educadores, novos sentidos, que podem mobilizar novas reflexões.
Considerações finais
Por meio de nosso trabalho, atingimos o objetivo de identificar e analisar, no processo de formação de educadores, indícios das relações entre os sentidos atribuídos por eles à inclusão escolar de alunos com TEA e as concepções de desenvolvimento humano e de deficiência. Para isso, analisamos narrativas autobiográficas dos participantes da pesquisa e falas deles mobilizadas pelo compartilhamento das narrativas.
Encontramos indícios de que há educadores para os quais a escolarização de alunos com TEA deve visar à correção de comportamentos considerados inadequados, sendo essa ação vista por eles como necessária para que a aprendizagem dos conteúdos escolares possa ocorrer. Essas ideias estão relacionadas a concepções segundo as quais o desenvolvimento humano é compreendido como um processo determinado exclusivamente por fatores biológicos e a constituição orgânica diferenciada das pessoas com deficiência é considerada a causa das dificuldades enfrentadas por essas pessoas, devendo-se, por isso, buscar amenizar ou eliminar as diferenças delas em relação ao padrão estabelecido como normalidade.
Essas concepções têm sido reforçadas pelas políticas educacionais, responsáveis por inserir nas escolas práticas empresariais visando ao cumprimento de metas quantitativas, as quais não consideram as singularidades dos alunos e impõem aos educadores uma série de tarefas que não contribuem para a melhoria da qualidade dos processos educativos. Consequentemente, há professores e outros profissionais da educação que criticam as ações voltadas para a padronização discente, mas, no contexto em que atuam, consideram muito difícil conseguir atender às diferentes necessidades dos estudantes.
Nesse cenário complexo, marcado por contradições, é preciso buscar meios de romper com o olhar discriminatório em relação aos alunos com TEA, resultante da cultura homogeneizadora institucionalizada no ambiente escolar. Para isso, é importante, conforme indicam os dados analisados, que seja desenvolvido um trabalho coletivo, com o envolvimento dos professores, da equipe pedagógica e da equipe gestora da escola, visando promover a inclusão desses alunos por meio de mudanças no processo de ensino e aprendizagem que afetem a relação deles com os conteúdos escolares, com os docentes e com os colegas. Trata-se de mudanças pautadas por concepções segundo as quais o desenvolvimento humano é considerado um processo complexo, marcado pela interação entre diferentes fatores, e as consequências da deficiência são vistas como resultado dos sentidos atribuídos a ela nas relações sociais.
Concluímos, portanto, que, no jogo dialógico possibilitado pelo trabalho formativo embasado em narrativas autobiográficas, diferentes sentidos são construídos e compartilhados, permitindo aos educadores refletir sobre as concepções das quais eles têm se apropriado e sobre a maneira como essas concepções têm afetado o modo como eles compreendem a inclusão escolar de alunos com TEA. Esse processo reflexivo mostra-se de grande importância por contribuir para que os educadores consigam descobrir possibilidades de enfrentamento dos desafios vivenciados no contexto atual.