INTRODUÇÃO
A relação entre o Estado e a sociedade, delimitada ao entendimento da indistinção entre as esferas pública e privada, é um tema constante no debate do campo político brasileiro. A falta de clareza dos seus limites conduz, consequentemente, ao questionamento das fronteiras conceituais que os separa e se constitui em elemento fundamental para a análise da atualidade, levando, pois, à necessidade de se estudar o padrão concreto do relacionamento entre o Estado, as instituições políticas e a sociedade, buscando nessas interfaces a compreensão de ações que se apresentam incongruentes, como entre muitos outros que se poderiam citar, a presença assegurada do ensino religioso na escola pública em um Estado constitucionalmente laico. Neste caso, um interesse evidentemente particular e subjetivo empreendido e justificado em nome da democratização, dita como processo permanente e inacabado rumo à concretização da soberania popular e em nome do direito à liberdade que, justamente, abona o seu contrário, a saber, o asseguramento da isenção do Estado nessa matéria.
Compreender tais contradições é tarefa permanentemente ensejada, neste sentido, esse artigo objetiva contribuir com uma análise, à luz das ideias de Jürgen Habermas (1929 -), Gilberto Freyre (1900-1987) e Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), dos conceitos de público e privado, com o propósito de compreender a dificuldade no estabelecimento do limite de tais esferas no campo político no Brasil. Isso demanda entender a evolução do conceito de público e privado ao longo de sua formação cultural e histórica.
A abordagem não pretende um mergulho na historiografia dos autores, apenas fazer uma releitura dos conceitos sob a orientação das suas contribuições intelectuais. Desse modo, tomar-se-á a concepção de esfera pública e privada em uma perspectiva sociológica, qual seja: esfera pública, como poder público, que [...] deve seu atributo de ser público à sua tarefa de promover o bem público, o bem comum a todos os cidadãos” (HABERMAS, 1984, p. 14); e esfera privada como a sociedade civil, a qual as ações da esfera pública devem convergir. Para tal, serão usados os conceitos de Jürgen Habermas (1929 -89 anos), cuja abordagem se considera apropriada para o tratamento da questão.
Para Habermas (1984), a ideia de uma esfera pública apossada e manipulada pelos diversos grupos sociais é colocada em questão. Para ele, a constatação da existência de uma concorrência pública entre os diferentes grupos organizados pela realização de seus interesses representa apenas a dimensão visível das disputas políticas nas sociedades contemporâneas. Na esfera pública política, mediante a teoria discursiva de Habermas, ocorrem dois processos concomitantes, quais sejam: o uso manipulativo do poder da mídia para obtenção de lealdades e, por outro lado, a geração comunicativa de poder legítimo. A imagem de espaço público nessa abordagem mostra que, para este, dirigem-se tanto visões de mundo - as interpretações e as reivindicações criadas no mundo da vida, a partir de relações comunicativas voltadas para o entendimento - quanto tentativas de concretizar interesses particularistas.
Cabe, dessa forma, à esfera pública atuar como instância intermediadora entre os impulsos comunicativos gerados no mundo da vida, com os órgãos competentes que articulam institucionalmente o processo de formação da vontade política. A captação das interpretações e das reivindicações gestadas no mundo da vida, nos domínios da vida privada, é feita pela sociedade civil. A essa categoria ele entende as diferentes associações voluntárias que canalizam essas questões para a esfera pública política. Entretanto, o poder conferido à sociedade civil não pode estar associado à ideia de ter o Estado como sua corporificação institucional, ela deve se manter no campo da construção da soberania popular. Somente por meio da mediação dos processos institucionais de formação de opinião e da vontade política é que o poder da influência da sociedade civil deve chegar ao Estado, contribuindo para a introdução de impulsos geradores de alteração nos parâmetros constitucionais para a formação da vontade política e não para utilização do espaço público para a conquista de lealdades por entidades privadas.
Dessa forma, amparando-se nos estudos de Habermas, principalmente “Mudança Estrutural na Esfera Pública”, buscar-se-á, primeiramente, entender como se deu o processo histórico de construção dos conceitos de público e privado nas relações sociais no Brasil.
DESENVOLVIMENTO
PÚBLICO E PRIVADO: SURGIMENTO E EVOLUÇÃO
A carência de delimitação dos conceitos de esfera pública e privada não é estática. Ela foi construída e requer, para sua análise, a busca da evolução histórica que as configurou. Habermas (1984) parte da dificuldade para entender o próprio termo devido à multiplicidade de significados que esse possui. Ele afirma que uma análise histórico-sociológica do termo ‘público’ e ‘esfera pública’ poderia canalizar as diversas camadas verbais históricas até seu conceito sociológico, e é a isso que se dedica o autor. Ele inicia por demonstrar os vários significados do termo “público”, mostrando que o conceito de esfera e opinião pública, como hoje é conhecido, surgiu no século XVIII. Sustenta que a palavra “publicité” começou a ser empregada contraposta à autoridade do Estado e da Igreja, aplicada à vida social e privada da burguesia, que abria seu caminho devido à expansão comercial e industrial, bem como a ampliação da mercantilização das coisas e das ideias. Dessa forma, o termo público[...] pertence à ‘sociedade burguesa’ que, na mesma época, estabelece-se como o setor da troca de mercadorias e de um trabalho social conforme leis próprias” (HABERMAS, 1984, p.15).
Entretanto, os conceitos de espaço público em contraposição ao espaço privado já são aplicados desde a antiguidade1, quando o espaço privado era o espaço doméstico, e o poder era exercido pelo dono da casa sobre as mulheres, filhos e escravos. A esfera pública política era vista como um reino de liberdade que se expressava em direitos iguais para todos os cidadãos, a participar diretamente nos assuntos políticos.
Esse modelo da esfera pública helênica, tal como ele nos foi estilizadamente transmitido pela interpretação que os gregos deram de si mesmos, partilha, desde a Renascença, normativa - até os nossos dias. Não é a formação social que lhe é subjacente, mas o próprio modelo ideológico é que se manteve ao longo dos séculos. A sua continuidade, uma continuidade exatamente nos termos da história das idéias. Inicialmente, ao longo de toda a Idade Média, foram transmitidas as categorias de público e de privado nas definições do Direito Romano: a esfera pública como res pública. É verdade que eles só passam a ter novamente uma efetiva aplicação processual jurídica com o surgimento do estado moderno e com aquela esfera da sociedade civil separada dele. (HABERMAS, 1984, p.17).
As características da dominação feudal das relações sociais e jurídicas da Idade Média restringiram o conceito de privado, que só assumiu alguma relevância com a ascensão social e econômica da burguesia renascentista, quando a esfera pública burguesa passou a ser entendida como a esfera das pessoas privadas reunidas por interesses comuns. Foi no movimento de desagregação dos poderes, ou seja, quando se dá a divisão entre elementos públicos e privados, que os poderes feudais da Igreja e a autoridade senhorial convertem-se em assunto privado.
São bastante conhecidas as grandes tendências que se impõe até o final do século XVIII. Os poderes feudais, Igreja, realeza e nobreza - dos quais dependem diretamente as representatividades públicas - decompõem-se ao longo do processo de polarização; por fim, cindem-se em, de um lado, elementos privados e, do outro, em elementos públicos. A posição da Igreja modifica-se com a reforma; a ligação que ela representa com a autoridade divina, re-ligião, torna-se coisa privada. A assim chamada liberdade de crença assegurava historicamente a primeira esfera da autonomia privada; a própria Igreja continua a existir como uma corporação de Direito público entre outras. [...] Finalmente, dos estamentos desenvolve-se os elementos de dominação corporativa a órgãos do poder público, o parlamento (e, por outro lado, um poder judiciário); os elementos das corporações profissionais, à medida que são vigentes nas corporações urbanas e servem para operar certas distinções nos estamentos rurais, evoluem para a esfera da “sociedade burguesa”, que há de se contrapor ao Estado como genuíno setor da autonomia privada (HABERMAS, 1984, p. 24).
Dessa forma, o burguês torna-se um homem privado e independente. Ao haver a separação e ao assumir como tarefa política principal a regulação social do território e dos negócios, o Estado começa também a delimitar os domínios da esfera pública e da esfera privada.
Na sua origem, o termo público remete então à esfera da coletividade e ao exercício do poder, à sociedade dos iguais. Em contrapartida, o privado se relaciona com as esferas particulares, à sociedade dos desiguais. Porém, historicamente, essas relações sofreram significativas transformações. Com o tempo, estabelecem-se relações coercitivas entre o rei e os vassalos por meio da imposição de normas que definem o comportamento do súdito ou do cidadão e, como consequência, o espaço público deixa de ser a arena em que se dão as relações entre iguais, como ocorria na pólis grega, e passa a ser o espaço em que ocorrem as relações entre os desiguais, ou seja, o espaço em que o governo impõe regulações aos governados.
Se o que regula as relações entre o Estado e a sociedade são as leis, o que regula as relações entre os participantes do mercado é o contrato e, nesse sentido, a esfera em que se dão as relações entre os iguais passa a ser a sociedade privada.
É, pois, nesse contexto, que se inicia a associação entre Estado e conceito de público, que a partir daí passou a ser pensado como espaço da representação política, em que se dá a interação entre o governante e a sociedade e a dicotomia entre bens públicos e bens privados.
Mas, para Habermas (1984), devido à ampliação da esfera pública, esse modelo construído ao longo do tempo já está há muito em decadência. Quanto mais ela se amplia, mais tem perdido força. “Entrementes, seus fundamentos sociais estão, no entanto, há cerca de um século novamente se diluindo; tendências à decadência da esfera pública não se deixam mais desconhecer” (HABERMAS, 1984, p. 17). Todavia, entende que a esfera pública, mesmo que hoje se apresente de forma confusa, ainda se constitui um importante princípio de ordenamento jurídico.
Caso seja possível entender historicamente, em sua estrutura, a complexão do que hoje, de um modo tanto confuso, subsumimos sob o título de “esfera pública”, podemos então esperar, além de uma explicação sociológica do conceito, conseguir entender sistematicamente a nossa própria sociedade a partir de uma de suas categorias centrais (HABERMAS, 1984, p. 17).
O autor entende que o embaralhamento das fronteiras entre público e privado deve-se, em parte, ao desenvolvimento econômico e social do século XIX2. Os acontecimentos desse século levaram a uma crescente intervenção do Estado na sociedade e na esfera privada como protetor e mediador de conflitos. O Estado, entre outras, entrou na sociedade privada, principalmente por meio da regulação no comércio, nas relações de trabalho e no ensino, identificando-se ainda mais com a esfera pública burguesa, porque essa categoria passou a intervir politicamente nas questões, impondo princípios e regras que deram origem, segundo Habermas (1984), ao Estado Liberal de Direito. “O Estado de Direito enquanto Estado burguês estabeleceu a esfera pública atuando politicamente como órgão do Estado para assegurar institucionalmente o vínculo entre a lei e a opinião pública” (HABERMAS, 1984, p. 101). A ideia da vinculação de toda a atividade do Estado a um poder normativo passa a ser legitimada mediante a opinião pública, eliminando a ideia de Estado como instrumento de dominação e autenticando o Estado de Direito.
O Estado de Direito burguês, com cujo auxílio as pessoas privadas, segundo os critérios de sua opinião pública, deveriam traduzir dominação em razão, tende efetivamente a ser reduzido à sociedade civil burguesa, a ser de algum modo “confundido” com ela. Onde, porém, o estamento privado, enquanto tal “é levado a participar da coisa pública no poder legislativo”, a desorganização da sociedade burguesa deveria ter sua continuidade no Estado. Se o sistema antagônico das necessidades está fragmentado em interesses particulares, uma esfera pública das pessoas privadas politicamente ativas levaria a um opinar e querer inorgânico e ao mero poder da massa contra o Estado orgânico (HABERMAS, 1984, p. 144).
Assim, em uma sociedade na qual subsistem vários e diferentes privados, o poder público não pode atender apenas o interesse de uma pequena parcela. A construção de uma esfera pública se expressa em uma abrangente e complicada rede de interesses privados. Quando uma pequena parcela privada, em detrimento das demais, busca associar seus interesses particulares com o interesse público, universalizando para todos seus valores e cultura, dá-se a substituição do público pelo privado ou, especificamente, a privatização do público. Por outro lado, quando a esfera pública institucionaliza esses interesses particulares para toda a sociedade, está também tornando público o que é privado, gerando, dessa forma, a confusão entre essas duas esferas.
Com a crescente complexidade da administração do Estado e da sociedade e com a transformação do Estado Liberal de Direito em Estado da Social Democracia, cresce também a necessidade de racionalização, que requer a mediação, que passa a constituir-se elemento fundamental entre as esferas do poder. [...] o mandamento da ‘publicidade’ passa a ser estendido através dos órgãos do Estado a todas as organizações” (HABERMAS, 1984, p. 269). O autor coloca em dúvida a efetividade do mandamento democrático dessa publicidade, ele questiona até que ponto é possível a racionalização da dominação política e do poder social pretendida pela social-democracia.
Um antagonismo de interesses estruturalmente insuperável iria colocar limites muito estreitos a uma esfera pública organizada, na social-democracia [...] a relação do poder por pressões antagônicas exercidas de algum modo publicamente gera, na melhor das hipóteses, um precário equilíbrio de interesses, apoiados por constelações temporárias de poder, que fundamentalmente não dispõe da racionalidade de acordo com os padrões do interesse geral. [...] É bem aberta a luta entre um jornalismo crítico e a publicidade jornalística que é exercida apenas com fins manipulativos; a imposição de ‘publicidade’ dada pela social-democracia quanto ao exercício legítimo do poder e do equilíbrio entre os Poderes não é, de nenhum modo, segura nem garantida frente a publicidade estabelecida apenas com fins aclamativos (HABERMAS, 1984, p. 272-73).
Não se percebe, nessas ideias de Habermas, uma distinção conceitual das fronteiras do público e do privado. A esfera pública, para ele, apresenta-se perpassando todos os níveis da sociedade e incorporando todos os discursos, visões de mundo e interpretações que adquirem visibilidade e expressão pública. O mérito político e normativo atribuído a tal esfera é a afirmação de uma, em vez de várias esferas públicas, cujos diferentes grupos constitutivos de uma sociedade plural e diversa formulam problemas e constroem soluções comuns. Portanto, na visão de Habermas (1984), a esfera pública conforma o contexto público comunicativo, cujos membros de uma comunidade política pluralizada constituem, além dos acordos em torno das regras que devem reger a vida comum, as condições de possibilidade da convivência e da tolerância.
O PROCESSO BRASILEIRO
O tema esfera pública nos estudos da sociologia e da historiografia política brasileira tem sido tratado a partir de sua inexistência. Os estudos clássicos sobre o assunto apresentam a esfera privada de tal forma ampliada, que a lógica das relações pessoais e patriarcais são levadas para o plano público, condicionando os relacionamentos nessa esfera, promovendo a indistinção entre o público e privado.
Existem clássicos estudos sobre a formação histórica e cultural brasileira3, não existindo, por essa razão, necessidade de reconstruir aqui o processo de colonização e desenvolvimento do país. O que interessa é entender a organização política e administrativa e as relações entre esfera pública e esfera privada dessa sociedade. Nesse sentido, contribui os estudos de Gilberto Freyre e de Sergio Buarque de Holanda, porque ambos, cada um à sua forma, buscaram, nos aspectos culturais, compreender a construção da nação brasileira e, por conseguinte, sua relação com a construção da esfera pública política, o que ajuda a atender as atuais formas de relacionamento entre o campo político e a sociedade.
Freyre4 (1977) descreve os efeitos, no espaço político, da lógica do poder e da cultura política patriarcal. Ele busca essa categoria no regime senhorial rural, em que o patriarca rege a vida no campo e, por extensão, mantém uma fronteira política bem definida contra a intervenção do poder colonial. O poder patriarcal funciona como um poder soberano sob domínio senhorial. Ele é absoluto na administração da justiça da família e é exercido por homens maduros sobre os escravos, a população plebeia, a mulher e os filhos. No Brasil, segundo o autor, devido principalmente à grande distância social, esse regime chegou ao seu limite ortodoxo, tendo o senhor tomado para si até o domínio sobre a vida e a morte daqueles que viviam sobre o seu comando.
A família, sob a forma patriarcal, ou tutelar, tem sido no Brasil uma dessas grandes forças permanentes. Em torno dela é que os principais acontecimentos brasileiros giraram durante quatro séculos; e não em torno dos reis e dos bispos, de chefes de Estado ou de chefes de Igreja. Tudo indica que a família entre nós não deixará completamente de ser a influência senão criadora, conservadora e disseminadora de valores, que foi na sua fase patriarcal. O personalismo do brasileiro vem de sua formação patriarcal ao mesmo tempo que cristã - um cristianismo colorido pelo islamismo e por outras formas africanas de religiosidade inseparáveis da situação familial da pessoa; e dificilmente desaparecerá de qualquer de nós. Como família patriarcal, ou poder tutelar, porém, a energia da família está quase extinta no Brasil; e sua missão bem ou mal cumprida. Suas sobrevivências terão, porém, vida longa e talvez eterna não tanto na paisagem quanto no caráter e na própria vida política do brasileiro (FREYRE, 1977).
O poder patriarcal existe em um espaço bem definido. Trata-se de uma ordem simbólica, de um poder de produção da vida política que sustenta a soberania do campo sobre a cidade. A soberania da casa-grande sobre o sobrado, a Igreja e as instituições políticas. Enfim, o regime econômico rural privado articula a soberania do interesse privado sobre o público.
Porém, segundo o autor, o patriarcalismo não foi absoluto. O poder jesuítico também foi capaz de criar, por meio da produção de subjetividades, desde os tempos coloniais, uma cultura política capaz de se contrapor a cultura política patriarcal, isto é, uma cultura capaz de substituir a cultura política patriarcal.
Procuraram enfraquecer a autoridade do pater-famílias em duas de suas raízes mais poderosas [...]. Mas não foi somente da religiosidade da família que encontraram os jesuítas o clima favorável a sua ação educativa, tanto mais eficaz, nessa atmosfera de servidão, quando no amparo e na força da Igreja, o escravo, a mulher e o filho deparavam um contrapeso aos excessos da autoridade doméstica e patriarcal, com que nenhum outro poder podia defrontar senão aquele em nome do qual falava o missionário. (AZEVEDO 1996, p. 504)
O poder jesuítico colaborou como um exercício pedagógico, principalmente sobre os meninos para contrapor o poder patriarcal que foi, segundo Freyre (1977), agenciado por D. Pedro II para pôr um fim na tutela do senhor político. É verdade que os esforços dos jesuítas foram pela cristianização, porém o que Freyre tenta mostrar é que a autoridade e a influência cultural que os jesuítas exerceram ultrapassaram o poder espiritual, projetando-se em todos os domínios e colaborando com a implantação da cultura política formal no Brasil.
Pedro II foi, entretanto o protetor do moço contra o velho, no conflito que caracterizou o seu reinado, entre o patriarcado rural e as novas gerações de bacharéis e doutores [...] devendo-se acrescentar a esse fato o dos moços representarem a nova ordem social e jurídica, que o imperador encarnava, contra os grandes interesses do patriarcado agrário, às vezes turbulento e separatista, antinacional e antijurídico (FREYRE, 1977, p. 82).
Por meio das ideias de Freyre, é possível apreender como as regras do universo privado se tornaram válidas para a esfera pública, porque permitem visualizar como foi instaurada a lógica do particular sobre o geral, que predominou nas organizações das normas públicas, contribuindo, dessa forma, para a análise do atual quadro político brasileiro e para o favorecimento de interesses privados nos setores políticos públicos.
Nessa mesma linha de pensamento, qual seja, o da busca da caracterização de uma identidade nacional que explique a formatação da esfera pública política brasileira, também contribuem as ideias de Sérgio Buarque de Holanda5. Para o autor, o Estado deveria simbolizar o triunfo do geral sobre o particular, do intelectual sobre o material. Para se constituir de forma expressiva e justa ele deve desprezar todas as particularidades e subjetividades, enfim deve ser impessoal e isento. Assim, o Estado não pode ser uma mera gradação da família, ao contrário, ele deve ser, nesse sentido, até a oposição a ela.
O Estado não é uma ampliação do círculo familiar e, ainda menos, uma integração de certos agrupamentos, de certas vontades particularistas, de que a família é o melhor exemplo. Não existe, entre o círculo familiar e o Estado, uma gradação, mas antes uma descontinuidade e até uma oposição (HOLANDA, 1988, p. 101).
Os entraves para a constituição do Estado democrático são, na visão do autor, a persistência do patriarcalismo e do ruralismo que criaram, devido às ações intimistas das ações sociais, a indistinção entre os domínios do público e do privado. Entende essa visão como uma das barreiras para a idealização de uma sociedade igualitária, porque a valorização da esfera familiar provoca a transformação da mesma em uma referência moral que acaba sendo transferida para a esfera do público. A família assegura a manutenção do íntimo, do particular e dessa forma:
O quadro do familiar torna-se, assim, tão poderoso e exigente, que sua sombra persegue os indivíduos mesmo fora do recinto doméstico. A entidade privada precede sempre, neles, a entidade pública. A nostalgia dessa organização compacta, única e intransferível, onde prevalecem necessariamente as preferências fundadas em laços afetivos, não podia deixar de marcar nossa sociedade, nossa vida pública, todas as nossas atividades. Representando, como já se notou acima, único setor onde o princípio de autoridade é indisputado, a família colonial fornecia a idéia mais normal do poder, da respeitabilidade, da obediência e da coerção entre os homens. O resultado era predominarem, em toda vida social, sentimentos próprios à comunidade doméstica, naturalmente particularista e antipolítica, uma invasão do público pelo privado, do Estado pela família (HOLANDA, 1998, p. 51).
Assim, é na cultura personalista do brasileiro que Holanda vai buscar a categoria analítica para a compreensão da configuração da esfera pública. Para ele, no contexto brasileiro, a pessoa sempre espera ser reconhecida, sempre existe a perspectiva de que os casos sejam personalizados. Para isso, ele recorre à concepção de cordialidade brasileira6 e desenvolve o conceito de homem cordial, trazendo essa expressão para o âmbito da análise da cultura política nacional.
Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade - daremos ao mundo ‘o homem cordial’. A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. Seria engano supor que essas atitudes possam significar ‘boas maneiras’ de civilidade. São, antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante. [...] Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez. [...] Além disso a polidez é, de algum modo, organização de defesa ante a sociedade. Detém-se na parte exterior, epidérmica do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência. Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual preservar intatas suas sensibilidades e suas emoções (HOLANDA, 1988, p. 106).
O homem cordial é, dessa forma, o homem que coloca, acima de tudo, os laços de amizade, desprezando a universalidade dos direitos. Assim, o que o distingue não é a bondade, mas a conveniência. A construção desse homem é, segundo o autor, resultado da cultura personalista própria da sociedade brasileira e simboliza o predomínio das relações humanas mais simples e diretas, sugerindo um distanciamento essencial num mundo diferente do âmbito familiar. A cordialidade do brasileiro pode ser entendida como uma estratégia que fora naturalizada numa sociedade cuja esfera pública sempre permaneceu instável.
É interessante a relação mostrada pelo autor entre o homem cordial e a religião. Ele afirma que no Brasil o sentimento religioso é totalmente dotado de caráter personalista, em que o indivíduo tem uma relação íntima com o seu santo. “[...] Todos, fidalgos e plebeus, querem estar em intimidade com as sagradas criaturas e o próprio Deus” (HOLANDA, 1988, p. 110). Ele exemplifica essa relação mostrando a existência, em cada casa, de capelas particulares com seus altares, onde o culto aos santos era feito individualmente segundo a devoção de cada um aos seus eleitos. “O que representa semelhante atitude é uma transposição característica do domínio religioso desse horror as distâncias que parece constituir, ao menos até agora, o traço mais específico do espírito brasileiro” (HOLANDA, 1988, p. 110).
Outra característica apontada pelo autor sobre a forma de ser do brasileiro é a vontade de mandar e a disposição para obedecer a ordens, decorrentes da sua formação paternalista. Porém, para ele, nem sempre essa obediência serviu como um princípio que sustentasse uma associação coletiva. Entende que a relação do brasileiro com o Estado ainda é muito servil e submissa. Assim, para o brasileiro, o Estado é uma entidade próxima, presente em todas as esferas privadas do indivíduo, mas ainda é visto como uma espécie de pai, de quem se deve esperar tudo, desde que se passe a respeitá-lo. Nesse sentido, o autor pensa que, no Brasil, não houve um desenvolvimento necessário de uma cidadania que pudesse promover e sustentar um Estado democrático, porque existe uma profunda incompatibilidade entre o ideário liberal impessoal e o caráter restrito dos sentimentos que se fundamentam em preferências.
Na verdade, a ideologia impessoal do liberalismo democrático jamais se naturalizou entre nós. Só assimilamos efetivamente esses princípios até onde coincidiram com a negação pura e simples de uma autoridade incômoda, confirmando nosso instintivo horror às hierarquias e permitindo tratar com familiaridade os governantes. A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido. Uma aristocracia rural e semifeudal que importou e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos seus direitos e privilégios (HOLANDA, 1988, p. 119).
É importante frisar que se compreende que o autor não quis dizer, com essa afirmação, que a democracia no Brasil seja um empreendimento impossível. Mas que tem no exagerado apego às formas de convivência patrimonial, em que subsiste uma persistência das tradições na forma centralizada de poder, uma grande barreira a ser transposta. Para existir democracia, é preciso antes que se desenvolva uma cidadania capaz de promover um Estado Democrático. E onde existe uma supervalorização do âmbito familiar, este acaba provocando um esvaziamento público, porque se todos vivem voltados para si mesmos, as questões públicas passam a ser um problema secundário. A cidadania pressupõe, dessa forma, ultrapassar o individual. Porém os privilégios nas relações pessoais inibem as possibilidades da eficácia de um regime democrático, porque esse exige reconhecer que o indivíduo tem direitos e deveres universais que devem ser respeitados e reconhecidos.
A democracia exige a existência de um espaço público em que sejam debatidos de forma pluralista os grandes problemas da atualidade. Um espaço onde se oponham e se respondam os discursos dos agentes políticos, sociais, religiosos, culturais e intelectuais que constituem uma sociedade para se formar um reconhecimento mútuo das legitimidades. Ele deve constituir o laço político que liga milhões de cidadãos anônimos, permitindo a participação efetiva na política. A esse espaço simbólico está ligada, inexoravelmente, a ideia de publicidade no sentido de midiatização, em que a informação produzida sobre a opinião pública torne-se condição básica do espaço público e, como diz Habermas (1984), da “democracia de massa”. A esfera pública conforma, assim, o contexto público comunicativo, no qual os membros de uma comunidade política plural constituem as condições de possibilidade da convivência e da tolerância mútua, que aceita acima de tudo a inclusão do outro.
Um projeto democrático em uma sociedade pluralista, diversa e desigual como a brasileira deve assegurar que cada grupo tenha seu espaço de manifestação cultural. Acredita que:
O liberalismo político representa uma resposta ao desafio do pluralismo. Sua preocupação central volta-se a um consenso fundamental que assegure liberdades iguais a todos os cidadãos, independentemente de sua origem cultural, convicção religiosa e maneira individual de conduzir a própria vida. O consenso que se almeja em torno de questões da justiça política não pode mais apoiar-se sobre um ethos que perpassa a sociedade como um todo e ao qual as pessoas habituaram pela tradição [...] Apesar da falta de um consenso substancial sobre os valores, calcados em uma imagem de mundo aceita pela sociedade como um todo, essas pessoas apelam ontem como hoje à convicções e normas morais, que cada um arroga devam ser partilhadas por todos (HABERMAS 2002, p. 93).
Para o autor, em sociedades tradicionais, a moral era parte integrante da imagem do mundo ontológica e tinha, por isso, grande aceitação, mas com o crescimento da autoridade epistêmica das ciências empíricas, a suposição recíproca de uma capacidade de julgamento moral que se observa cotidianamente exige uma explicação que não contesta o caráter racional de argumentos morais.
Sob aspectos validativos subsiste uma incômoda assimetria entre concepção pública de justiça e as doutrinas não públicas. É contra intuitivo que uma concepção pública de justiça deva extrair sua autoridade moral de razões não públicas. Tudo o que é válido também tem de poder ser publicamente justificado. Enunciados válidos merecem reconhecimento geral a partir de razões comuns (HABERMAS, 2002, p.102).
Porém, Habermas (2002, p. 96) questiona a possibilidade de um consenso em uma sociedade plural. “Pode surgir de razões vinculadas a cosmovisões em particular, cujo caráter público é reconhecido reciprocamente, um consenso que sirva de base a um uso público da razão por parte dos cidadãos de uma coletividade política?” O autor acredita que posicionamentos racionais não implicam o ponto de vista moral, e que nem imagens de mundo racionais venham torná-lo possível. Entretanto, também acredita que as pessoas só podem se convencer da validação de um conceito de justiça no contexto da sua própria imagem de mundo, não sendo provável que algum dia se chegue, dessa forma, a se firmar um consenso abrangente.
Concepções políticas racionais que validam a precedência de valores políticos e que de tal forma também determinam que imagens de mundo religiosas e metafísicas podem ser consideradas racionais devem não apenas serem elaboradas sob um ponto de vista imparcial, mas também precisam ser aceitas sob um ponto de vista como esse. Tal ponto de vista transcende as perspectivas de participantes assumidas por cidadãos enredados no contexto de suas próprias visões de mundo. Por isso os cidadãos só podem continuar tendo a última palavra se participarem da “formulação dessas idéias” a partir de uma perspectiva mais ampla e subjetivamente partilhada, ou seja, se participarem dela sob o ponto de vista moral (HABERMAS, 2002, p. 113).
Os juízos morais ganham independência em relação a contextos determinados por visões de mundo em particular e, por conseguinte, diferenciam-se esferas privadas e públicas, permitindo a liberdade de vida autêntica, porque a liberdade da pessoa une-se à liberdade de todos os outros. Em uma sociedade pluralista, as reivindicações que impliquem reflexos para as políticas públicas ou para as formas de regulação legal da vida coletiva só podem ser justificadas e legitimadas mediante a relevância para toda a coletividade. Porém,
[...] esse papel de fiador não pode ser transferido dos planos da formação política da vontade e da comunicação pública ao substrato aparentemente natural de um povo pretensamente homogêneo. Por trás de uma fachada como essa, iria esconder-se apenas a cultura hegemônica de uma parcela dominadora da sociedade. Por razões históricas, subsiste em muitos países uma fusão de uma cultura de maioria com determinada cultura política geral que arroga a si mesma ser reconhecida por todos os cidadãos, independentemente da origem cultural de cada um. [...] O plano da cultura política partilhada precisa desacoplar-se do plano das subculturas e de suas identidades, cunhadas de uma maneira anterior à política. O anseio por uma coexistência sobre direitos iguais certamente sofre uma restrição segundo a qual as confissões e práticas a que se dispensa proteção não podem contradizer os princípios constitucionais vigentes (HABERMAS 2002, p. 135).
Quando uma cultura majoritária impinge às minorias sua visão de mundo, demonstrando a falta de delimitação entre o público e o privado, isso fere diretamente a igualdade de direitos, o que remete a questões éticas, à medida que tal atitude toca o princípio de igualdade, ou seja, a integridade de formas de vida culturalmente diferentes. Essa questão soa mais grave quando se trata de matérias delicadas, como o Ensino de religião na escola pública, porque se trata de um universo de crença distribuído para todas as formas culturais apresentadas na sociedade, visto ser a escola pública um espaço altamente socializado, no qual convivem diversas formas de culturas.
Para a questão, Habermas (2002) propõe a “ética da ação comunicativa”, que permitiria o surgimento de um espaço público de diálogo tecido racional e eticamente entre os atores da sociedade. Porém é interessante observar o que diz Marilena Chauí sobre a sociedade brasileira.
[...] a sociedade brasileira sequer chegou aos princípios liberais da igualdade formal e das liberdades e muito menos aos ideais socialistas da igualdade econômica e social e da liberdade política e de pensamento. Sociedade sem cidadania, profundamente autoritária, onde as relações sociais são marcadas com o selo da hierarquia entre superiores e inferiores, mandantes e mandados, onde prevalecem relações de favor e de clientela, onde inexiste a prática política da representação e da participação, a sociedade brasileira sempre teve fascínio pelo populismo como forma da esfera pública da política (CHAUÍ, 2002, p. 387).
Não resta dúvida de que a forma de criação e de desenvolvimento do Estado brasileiro seja um condicionante poderoso em relação à indistinção das esferas políticas públicas e privadas. Mas não se acredita que o autoritarismo paternalista brasileiro constitua um traço congênito e insuperável.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A complexidade da questão envolvida nesta discussão demonstra que é da superação desse padrão histórico, e de suas consequências, que depende o melhor funcionamento das instituições públicas no Brasil.
Por hora, o que se percebe é a existência de pelo menos duas ações urgentes a serem empreendidas no sentido da superação da confusão entre o público e o privado no Brasil. Primeiro, é preciso que o Estado deixe definitivamente para trás o ranço patriarcal e autoritário, antinacional e antijurídico, como afirma Freyre (1977); e segundo, que a sociedade supere a identificação irreal entre liberdade e privatismo, ou como diz Holanda (1988), que deixe para trás os traços personalistas, abrindo mão de interesses particularistas tão marcantes nas relações sociais brasileiras.
Nesse sentido, é possível vislumbrar por meio da perspectiva da teoria do discurso de Habermas que a esfera pública se mostra cada dia mais - devido aos fluxos comunicativos - capaz para atuar no sentido da consolidação de uma esfera pública democrática. Devido às influências nos processos decisórios que possuem os meios de comunicação críticos, esses podem se constituir um meio alternativo de formação de opinião, a partir de situações realmente captadas no mundo da vida e levadas para órbita da esfera pública. E que mesmo não fazendo cessar prontamente as pressões feudalizantes e intransparentes do espaço público, esses tendem a mover-se do entendimento encoberto de pleitos particulares para a disputa em torno da produção de consensos realmente majoritários acerca das questões que devem merecer tratamento público.