Introdução
Pensar nas dimensões do conhecimento na Educação Física escolar leva-nos a reconhecer que historicamente os objetivos de nosso campo1 foram orientados a vivências de movimentos (“atividades”), ao “exercitar-se para” (Fensterseifer e González, 2007; González e Fensterseifer, 2009; 2010). A crítica a esses propósitos enfatizou a necessidade de uma elaboração conceitual acerca das vivências de movimento, correndo o risco de nos excedermos a ponto de transformar a Educação Física em um discurso sobre a cultura corporal de movimento (Betti, 1994). Aqui parece estar um dos maiores desafios da Educação Física escolar, a saber, ocupar-se da tematização da cultura corporal de movimento mantendo uma tensão permanente entre: o fazer (se-movimentar), o saber com esse fazer, que nem sempre é conceitual (ideia geral e abstrata); e, ainda, com um saber (não conceitual) que considere as dimensões estéticas (sensíveis e subjetivas) e éticas (sociais e intersubjetivas), e que são difíceis de ser conceituadas (a partir de uma objetividade meramente descritiva); fato que nos leva a repensar a relação teoria-prática que, embora presente em todas as áreas do conhecimento, exacerba-se na Educação Física pelo seu estreito vínculo com a prática2.
Adotamos uma postura crítica pela chave de leitura da hermenêutica3 e encontramos em Gadamer, em especial na obra Verdade e Método, alguns indicativos para tentar compreender como a noção de linguagem4 pode nos auxiliar a esboçar um entendimento sobre essa incontornável relação5, sem reproduzir as dicotomias que advêm dos dualismos6.
Realizamos neste artigo uma reflexão acerca de nossa tarefa educativa, construindo um aporte teórico capaz de nos dar subsídios para pensarmos nas dimensões do conhecimento na Educação Física sem estarmos condicionados (unicamente) a uma racionalidade (científica-instrumental). Percebemos na linguagem7 uma via legítima de acesso e produção do conhecimento, que nos permite não perder de vista o tensionamento das especificidades de nosso campo de tematização com os propósitos educacionais da escola.
Linguagem e Educação Física
A linguagem, segundo Oliveira (2006), tornou-se a questão central do debate filosófico na atualidade8. Desde a chamada “reviravolta linguística” ou “giro linguístico” (linguistic turn), que ocorreu no século XX, houve uma ruptura (de paradigma) que caracterizou a filosofia (Oliveira, 2006) desde o seu nascimento, na antiguidade clássica, a qual atribuiu à linguagem uma função secundária, como instrumento para comunicar o pensamento, uma vez que a cognição (raciocínio) era superior à linguagem; “o pensamento ofuscou a linguagem” (Lawn, 2007, p. 104). A partir dessa ruptura, a linguagem passa a constituir a tese fundamental da filosofia, tendo em vista que “é impossível filosofar sobre algo sem filosofar sobre a linguagem, uma vez que esta é momento necessário constitutivo de todo e qualquer saber humano” (Oliveira, 2006, p. 13), condição de nossa compreensão e de nosso ser no mundo; nas palavras de Gadamer (2009), a linguagem considerada no âmbito que só ela consegue preencher é o centro do ser humano, pois compreende “o âmbito da convivência humana, o âmbito do entendimento, do nosso consenso crescente, tão indispensável à vida humana como o ar que respiramos” (p. 182).
Cabe destacar que não entendemos a linguagem como mero instrumento para comunicar o pensamento, pois ela é condição de nossa compreensão do mundo, uma vez que já “estamos tão habituados e inseridos na linguagem como estamos no mundo” (Gadamer, 2009, p. 177), e não podemos torná-la, sem perdas, um objeto de investigação (Lawn, 2007). De acordo com Gadamer (2008), “não existe nenhum lugar fora da experiência de mundo que se dá na linguagem, a partir donde fosse possível converter-se a si mesmo em objeto” (p. 584), ou seja, não é possível sairmos do mundo e o analisarmos de fora (da linguagem e do mundo), com imparcialidade como a um objeto (científico). Sem linguagem, lembra Lawn (2007), não haveria mundo, pois esta trata da “negociação e do ato de fazer sentido de um mundo de nossa própria construção” (p. 112).
Diante deste entendimento, tomar a linguagem como instrumento é desconsiderar sua dimensão de historicidade, tendo em vista que o mundo é mais velho que nós mesmos, nos antecede e só se torna mundo (humano) “quando vem à linguagem, como a própria linguagem só tem sua verdadeira existência no fato de que nela se representa9 o mundo” (Gadamer, 2008, p. 572). É no plano da linguagem que o mundo se torna compreensível para nós, em nosso “estar-no-mundo”, pois como lembra Gadamer (2009), é de Aristóteles a expressão clássica de que o homem é um ser vivo que possui logos. A expressão logos foi traduzida (na tradição do Ocidente) como razão ou pensar, mas também significa: linguagem.
Parece-nos que, na tradição do pensamento moderno, convencionou-se traduzir logos por razão, sendo esta fundamentada em si mesma, ordenando o mundo para conhecê-lo e dominá-lo (Fensterseifer, 2001). Esse pensamento, segundo o autor, pretende “estabelecer uma dicotomia entre epistemologia e história ao conceber o conhecimento como destituído de historicidade” (p. 68).
Na esteira da tradição moderna (dualista - sujeito/objeto, corpo/alma, organismo/mente, qualidade/quantidade, etc.), o “homem experimenta o real como objeto, isto é, como o manipulável, o dominável por ele, como aquilo que se pode pôr à disposição do homem” (Oliveira, 2006, p. 203). A linguagem, nesse contexto, passa a ser vista apenas como um instrumento de informação, “como processo por meio do qual o homem toma conhecimento dos entes, a fim de poder exercer sobre eles o domínio” (p. 203).
Assim, acreditamos ser necessário distinguir a “objetividade” (Objektivität) da ciência para não confundi-la com a objetividade (Sachlichkeit) da linguagem, uma vez que na primeira procuramos eliminar os elementos subjetivos do conhecer para distanciar o sujeito do objeto (na experimentação), com vistas a dominá-lo e torná-lo disponível para os fins arbitrários da ciência (uma tentativa de “coisificação” do mundo). Na segunda, não acontece nada parecido, tendo em vista que na experiência “natural” (não tematizada) do mundo, que já está impregnada de linguagem, não é possível um distanciamento do mundo para manipulá-lo e dizer o ser em si dos entes (objetificação), isso porque falar “de modo algum significa tornar as coisas disponíveis e calculáveis” (Gadamer, 2008, p. 585), uma vez que não podemos dizer o que o ser do ente é, apenas expressar situações do ser (que continua sendo), pois este é “revelado e oculto pela linguagem” (Lawn, 2007, p. 113).
Portanto, é preciso entender a linguagem sob uma perspectiva mais alargada, como condição de mediação de compreensão de nosso ser no mundo, pois é nesse meio “que se realizam o acordo dos interlocutores e o entendimento sobre a coisa em questão” (Gadamer, 2008, p. 497), uma vez que quem compreende faz parte e já está na linguagem (Ruedell, 2005).
Com estas notas iniciais sobre a noção de linguagem, buscamos em Gadamer10, que não trata explicitamente de temas relacionados ao corpo, ao movimento humano ou às práticas corporais, algumas pistas (nas entrelinhas de suas obras) para pensar como a noção de linguagem pode nos dar indicativos para redimensionar o hiato existente entre o fazer (prático), o saber com esse fazer (teórico) e as dimensões estéticas (subjetivas) e éticas (intersubjetivas) na Educação Física (escolar). Quando tematizamos as manifestações da cultura corporal de movimento, é possível construir um saber com esse fazer, para além de um plano conceitual (ideia geral e abstrata das práticas corporais), que considere as dimensões estéticas (subjetivas) e éticas (intersubjetivas) na Educação Física escolar, mesmo sabendo que, quando traduzimos esse saber, sempre fica algo de não dito?
O caminho para enfrentar esta questão (e outras) leva-nos a reconhecer, com Fensterseifer (2012), que “não há linguagem sem ‘restos’, sempre ‘sobra algo’, mas esse algo inominável ou permanece como tal, sem aceder ao mundo humano, ou para ser comunicado em uma prática pedagógica, por exemplo, precisa aceder à linguagem, e por isso paga um preço”11 (pp. 323-324). Também nos leva a pensar o corpo e o movimento humano como linguagem, abrindo-nos o campo da experiência12.
Ao compreendermos o corpo e o movimento humano como linguagem, distanciamo-nos da objetividade (Objektivität) científica, como único caminho de acesso ao conhecimento, e aproximamo-nos da objetividade (Sachlichkeit) da linguagem, que considera a dimensão de pertencimento ao mundo humano em seu caráter de historicidade. Cabe destacar que a expressão se-movimentar parece nos aproximar ainda mais da objetividade (Sachlichkeit) da linguagem, uma vez que considera o movimento humano como um fenômeno relacional de “Ser-Humano-Mundo”, como um diálogo do ser (humano) com sua realidade social e material (Kunz, 2006). Diferentemente dessa perspectiva, o movimento humano analisado por uma objetividade (Objektivität) científica (paradigma empírico-analítico) interpreta o movimento apenas como um deslocamento no tempo e no espaço físico (Trebels, 2006), sem considerar o elemento histórico-situacional do sujeito que se-movimenta.
Desta forma, entendemos que o se-movimentar é uma linguagem que, “permanecendo imbricada na materialidade dos processos corporais, os transcende para apresentar ideias que emanam da relação do homem com o mundo e expressam essa relação” (Pich e Fensterseifer, 2012, p. 31). Ao apresentar ideias, dizemos o ser dessa relação para que possa tornar-se compreensível e acessível também a outros13; porém, ao dizer o ser, transmitimos apenas o ser de uma situação e
Não imaginamos uma linguagem que se lhe adapte mas antes encontramos a linguagem adequada à situação. Assim, o que encontra expressão na linguagem não é a nossa “reflexividade”, mas a própria situação: as palavras não funcionam essencialmente para se referirem a esta subjectividade; pelo contrário, referem-se à situação. O fundamento da objectividade não está na subjectividade daquele que fala, mas sim na realidade que se exprime na e pela linguagem. É nesta objectividade que a experiência hermenêutica deverá encontrar seu fundamento (PALMER, 1989, p. 244-245).
Podemos perceber que o ser de uma situação, ao se exprimir na e pela linguagem, continua sendo, não se reduzindo à subjetividade daquele que compreende. Fazendo uma relação desta afirmação, a título de exemplo, com o conceito de jogo em Gadamer (2008), é possível dizer que o jogo ganha representação por quem joga e continua sendo jogado; quem entra no jogo é jogado por ele, para além da subjetividade do jogador. A objetividade para a ciência moderna, ao contrário, tem a pretensão de controlar o ser da situação por um sujeito autônomo que domina um objeto, como se fosse possível fazê-lo fora da linguagem, da historicidade, do mundo.
De acordo com Palmer (1989, p. 230), “não há nenhuma perspectiva humana a partir da qual possamos dizer o que o ser ‘realmente é’”, pois, ao compreendermos algo, já estamos interpretando a partir do “nosso” próprio horizonte, e não há como pensar o ser em si no sentido “original”. Quanto a isso, é preciso lembrar Gadamer (2008), quando este afirma que “às vezes a linguagem parece pouco capaz de expressar o que sentimos” (p. 519), referindo-se à dificuldade de traduzir em palavras o que nos dizem as obras de arte. Parece-me que poderíamos atribuir uma dificuldade semelhante para o se-movimentar, posto que, ao dizê-lo, não conseguiríamos traduzi-lo em palavras (de forma “clara e distinta”, para dizer “de vez” o que “é”), mas apenas expressar uma situação do que sentimos14. Essa situação seria interpretada, por um outro, de maneira sempre parcial, pois já seria uma interpretação, colocando em jogo os próprios conceitos prévios do intérprete, trazendo à fala apenas uma situação do se-movimentar (Gadamer, 2008).
Ao relacionarmos as obras de arte e o se-movimentar com a experiência, percebemos os limites de dizê-los, o que nos leva a pensar em como a tradução poderia amenizar a nossa dificuldade em “dizer” o corpo e o movimento humano (gestos, expressões, sentimentos, fala, escrita) para um entendimento no plano intersubjetivo. Apesar de Gadamer (2008) tratar da tradução tomando como referência as línguas estrangeiras, acreditamos ser possível estabelecer uma relação (ou analogia) com a tradução do se-movimentar (como linguagem) e produzir um entendimento sobre essa relação.
O objetivo da tradução (grosso modo) de línguas é tornar acessível um “texto”, por exemplo, para uma outra língua, para que os interlocutores possam produzir um entendimento sobre o que se deseja compreender. Na tradução, o tradutor “precisa transpor o sentido a ser compreendido para o contexto em que vive o outro interlocutor” (Gadamer, 2008, p. 498); ao fazer isso, já está interpretando dentro do seu próprio horizonte e percebe a impossibilidade da tradução no sentido original da obra, mas se depara com uma nova obra, que deve guardar uma fidelidade com a original, “sem suspender a diferença fundamental entre as línguas. Por mais fiéis que queiramos ser, em nossa tradução, vamos nos deparar com decisões delicadas” (p. 500), com escolhas que precisam proporcionar um entendimento comum entre os intérpretes para a mesma língua, algo possível no medium da linguagem (Gadamer, 2008).
A tarefa do tradutor não é a de decifrar um texto (obra), mas a de estabelecer um acordo sobre um assunto em que se deseja compreender algo e, para isso, segundo Gadamer (2008), é necessário falar a mesma língua. Porém, esse falar a mesma língua não se dá de maneira muito simples, uma vez que o tradutor “precisa resguardar o direito de sua língua materna, para a qual traduz, ao mesmo tempo em que acolhe também o estranho e inclusive o adverso do texto [obra] e de sua forma de expressão” (Gadamer, 2008, p. 501). Portanto, é necessário encontrar uma linguagem comum adequada àquela do original, sem suspender a sua língua materna.
Acreditamos que essa linguagem comum, que possibilita nossa compreensão, é algo que se dá como encontro, diálogo ou como conversação do tradutor (intérprete) com o texto (obra). Nessa relação acontece a fusão de horizontes (do intérprete e da obra) quando se dá, a cada vez, nossa compreensão como interpretação (tradução) (Gadamer, 2008). Essa linguagem comum só se dá pela palavra? Apesar de Gadamer (2008) atribuir um lugar central para a fala e a escrita em suas obras, ele reconhece que a linguagem (escrita e falada) “parece pouco capaz de expressar o que sentimos” (p. 519). Para o autor, a interpretação “que se dá na linguagem é a forma da interpretação como tal, por isso ela também ocorre onde a interpretação não é da natureza da linguagem, e não é, portanto, um texto, mas, por exemplo, um quadro ou uma obra musical” (p. 515). Por outro lado, reconhece que essas formas de interpretação em si “não pertencem à linguagem, mas pressupõem o caráter de linguagem15” (p. 516). Ao lado dessas formas de linguagem (quadro ou obra musical), acreditamos ser possível colocar o se-movimentar, que é uma forma de linguagem que possibilita um diálogo do homem com o mundo.
A título de exemplo, podemos pensar nas práticas corporais, fazendo uma referência ao esporte institucionalizado. É preciso falar a mesma língua para jogá-lo ou entendê-lo? Acreditamos que não, uma vez que os acordos já são estabelecidos antes mesmo de nossa entrada no jogo (regras e regulamentos) e estão inscritos no plano cultural, o que nos permite “solucionar” o que nos acontece na contingência do nosso movimento em situação quando estamos no jogo. Podemos pensar, ainda, no simples andar de bicicleta, que a princípio não possui um regulamento prévio, pois se trata de nos colocarmos em uma situação de movimento em que devemos pedalar em qualquer direção (de acordo com nossos objetivos), nos deslocando no espaço (em qualquer terreno) e mantendo o equilíbrio (para não cair). Em ambos os casos, estabelecemos um diálogo (pelo nosso se-movimentar) com o mundo (social e material), muitas vezes sem proferir ou enunciar uma palavra, apenas nos relacionando com a situação.
Guardadas as devidas proporções, podemos analogamente relacionar a experiência do se-movimentar com a tradução de uma língua estrangeira. Na tradução de uma língua para a outra já fazemos uma interpretação, isso porque “todo tradutor é intérprete” (Gadamer, 2008, p. 501). Ao interpretarmos um texto, não conseguimos reconstruir o original e percebermos a distância que nos separa deste. Apesar de se colocar em acordo com o assunto e tentar manter uma fidelidade com o original, em uma espécie de conversação ou diálogo, o tradutor se depara com a tortura de traduzir, “no fato de que as palavras originais parecem inseparáveis dos conteúdos a que se referem, de modo que para tornar compreensível um texto muitas vezes é necessário circunscrevê-lo com amplos rodeios interpretativos, em vez de traduzi-lo” (p. 520).
Parece-nos que poderíamos atribuir uma dificuldade semelhante ao nosso se-movimentar, uma vez que “as palavras originais parecem inseparáveis dos conteúdos a que se referem” (Gadamer, 2008, p. 520). Relacionando a afirmação do autor ao nosso se-movimentar, poderíamos reescrevê-la da seguinte maneira: o movimento corporal parece inseparável da situação do se-movimentar; tendo em vista que não conseguimos “traduzir” uma dimensão de nossa percepção, pois se refere a uma outra forma de linguagem, que produz um “deslocamento de sentido”, seja na sua “reprodução”, no pensar e no falar (no dizê-lo). Esse deslocamento de sentido revela-se como uma condição de nossa própria linguagem, que é capaz de acercar-se do que queremos compreender, sem jamais possuí-la na sua completude. Para Schneider (2008),
Não há como dizer algo outro sem se descrever a si mesmo no que diz e descreve, ou, ainda, sem fazer expressivamente o desenho de si pelo próprio exercício do dizer. Tudo o que se compreende ao dizer é inevitavelmente a própria compreensão, que é um acontecer constante sem possibilidade da garantia de objetivar algo enquanto absolutamente outro como separado, à parte de si (p. 442).
Essa é uma condição de nossa existência no mundo, que se dá como um acontecimento (na experiência). Na interpretação (tradução) de um outro se-movimentar, captamos o ser da situação sem alcançar o seu plano original, pois só compreendemos o que é visível para nós, a percepção do sujeito que se-movimenta se oculta, e o que se desvela é a situação do se-movimentar na ação.
Nossa compreensão do mundo (e desse se-movimentar) se dá nessa impossibilidade de alcançarmos plenamente a linguagem (dominá-la), pois esta sempre nos ultrapassa e é condição indispensável para a convivência humana, para que os homens possam comunicar-se e pensar nas “condições de possibilidade de sentenças intersubjetivamente válidas a respeito do mundo” (Oliveira, 2006, p. 13) e produzir um entendimento comum.
Esse entendimento comum só é possível porque temos, somos e pertencemos a um mundo (humano) que se torna compreensível para nós na e pela linguagem, a partir da experiência com o que queremos compreender. Assim, podemos esboçar um entendimento acerca desta questão: o que muda na nossa relação pedagógica com o se-movimentar, ao entendê-lo como fenômeno da linguagem?
Acreditamos que o reconhecimento do se-movimentar como fenômeno da linguagem permite-nos lançar um olhar mais alargado para as dimensões do conhecimento na Educação Física escolar que, assim como as artes, guarda especificidades que não podem ser “enquadradas” nos moldes das demais disciplinas escolares16, uma vez que o ser humano é capaz de diferentes formas de linguagem (que não deveriam ser hierarquizadas) que potencializam o entendimento humano. Esse reconhecimento permite-nos, também, conferir dignidade
Não tão somente à racionalidade discursiva, mas também à linguagem corporal e à linguagem artística, e sustentamos que entre elas é possível a “tradução” - e consequentemente entendemos que os saberes que se manifestam em diferentes registros linguísticos em torno de uma ideia não se reduzem ao conceito discursivo, mas podem ser exprimidos pelas diversas linguagens das quais o ser humano é capaz - teremos uma outra aproximação da ideia de verdade. Nesse sentido, as expressões corporais e artísticas ganham dignidade e valor de verdade (Pich; Fensterseifer, 2012, p. 34).
Ao atribuirmos dignidade e valor de verdade às expressões corporais e artísticas (como linguagem), aproximamo-nos de uma ideia de verdade17 diferente daquela proposta pelo estatuto das ciências modernas, as quais conferiram-conferem valor somente àqueles “objetos” que poderiam-podem ser medidos, testados, refutados e controlados, livres (ou isolados) do caráter de historicidade, da tradição e da mundaneidade da qual estamos encharcados (e não conseguimos nos “livrar”). É nesse sentido que Gadamer (2008) busca “rastrear por toda parte a experiência da verdade, que ultrapassa o campo de controle da metodologia científica, e indagar por sua própria legitimação onde quer que se encontre”18 (p. 30).
A tentativa de conferir valor de verdade e dignidade ao se-movimentar19 como fenômeno da linguagem aproxima-nos das ideias de Gadamer (2008), o qual busca no encontro com a obra de arte uma experiência da verdade que não se reduz ao conceito de verdade da ciência (como na teoria estética), mas na possibilidade de experienciar o que queremos compreender, como encontro, diálogo (com as obras humanas), em seu caráter de abertura, que nos comunicam (ocultando e desvelando) o seu ser, sem dar-nos de antemão os critérios para apreendê-las definitivamente (por uma consciência estética). O autor toma a arte para redimensionar a questão da interpretação, uma vez que é no encontro (experiência) com a obra (como acontecimento) que ela nos diz (ao mesmo tempo em que oculta) a sua verdade. Assim, a compreensão se dá (a cada vez) na “fusão de horizontes” do intérprete e da obra (Gadamer, 2008), e não permite um superdimensionamento de um dos polos dessa relação, pois como diálogo fica sempre na dependência de sua recepção e na produção de “novas” interpretações.
Considerações Finais
Entendemos que o esforço hermenêutico aqui empreendido permite-nos redimensionar a nossa relação pedagógica com as práticas corporais, perceber o caráter não metafísico do conhecimento, a noção não instrumental da linguagem e os desdobramentos destes para darmos dignidade e validade às dimensões do conhecimento na Educação Física, tendo em vista que guardam especificidades diferentes das demais disciplinas, tal como foi destacado no texto.
Essas dimensões do conhecimento e diferentes saberes (corporais e conceituais) manifestam-se em distintas formas de linguagem (não verbais e verbais) e não podem ser sobrepostos ou substituídos, pois se complementam e promovem uma mudança em nossa relação pedagógica com os temas estruturadores abordados nas aulas de Educação Física20.
Nesse sentido, reafirmamos a necessidade de manter uma tensão permanente entre os diferentes tipos de saber em nosso campo de tematização em toda a sua complexidade e ambivalência, sem eleger ou hierarquizar uma dimensão primordial (evitando os dualismos), mas potencializando a compreensão acerca dos limites e das possibilidades da construção-elaboração do conhecimento como produção humana.
Este estudo nos indica um novo caminho que promove uma abertura para um diálogo mais aprofundado entre as noções de linguagem e experiência, uma vez que estas não podem ser vistas como dois polos opostos, mas como condição (complementar) de nossa compreensão do mundo. Faz-se necessário manter uma tensão desta relação paradoxal que nos parece intransponível, uma vez que a experiência se encontra no ponto nodal da interseção entre a linguagem pública e a subjetividade privada, entre os traços que são expressos no plano comum e o caráter indizível da interioridade individual (Jay, 2009)21, o que se acentua ainda mais quando tratamos de nossa relação com as práticas corporais (ou a cultura corporal de movimento).
Sem a pretensão de ter alcançado uma formulação definitiva para a questão que nos moveu neste estudo, encontramos alento nas palavras de Gadamer (2008), quando este afirma que seria um mau hermeneuta aquele que tivesse a pretensão de dizer a última palavra (como fundamento metafísico), pois as certezas são sempre provisórias, condenadas à linguagem babélica (como palavra caída) (Pich e Fensterseifer, 2012), e dependentes da contingência dos acordos que estabelecemos entre nós.