INTRODUÇÃO
Em 2015, especificamente entre os dias 23 de outubro e 1 de novembro, o Brasil foi sede dos primeiros Jogos Mundiais dos Povos Indígenas (JMPI). Este evento, idealizado por indígenas brasileiros, contou com o apoio do Ministério do Esporte, dos governos estadual do Tocantins e municipal de Palmas e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Os JMPI surgiram como uma proposta de evento internacional, reunindo atletas indígenas de 25 países em competições esportivas e em fóruns temáticos, a fim de proporcionar intercâmbio cultural e discussões acerca das demandas da população indígena do mundo. Utilizou os mesmos moldes dos tradicionais Jogos dos Povos Indígenas (JPI), praticados por tribos brasileiras.
Os povos indígenas brasileiros são representados por 817.963 mil indivíduos, de 305 diferentes etnias e que ainda mantêm vivas 274 línguas (IBGE, 2010). São povos diferentes entre si, cada um com sua identidade cultural, manifestações, usos, tradições, costumes, habilidades tecnológicas, organização social, ritos, crenças, filosofias, espiritualidades e esportes tradicionais peculiares.
Após treze edições dos JPI, os irmãos Carlos e Marcos Terena pensaram na realização de um evento internacional. Posteriormente, ampliaram as discussões envolvendo vários segmentos, buscando o apoio governamental necessário à realização dos JMPI. Por isso, são considerados os idealizadores do evento.
O propósito maior desta pesquisa é analisar os JMPI através do ponto de vista de espectadores que foram ao evento, indígenas e não indígenas, de forma a descrever as percepções desses atores sobre questões políticas e sociais dos jogos.
Podemos encontrar na literatura autores que já se debruçaram sobre a temática indígena e sobre os JPI (ALMEIDA; COSTA, 2012; BANIWA, 2006; NUNES, 2014; FERREIRA, 2015; ROCHA FERREIRA, 2011). No entanto, são raros os textos sobre os JMPI. Este trabalho visa contribuir para a área de estudos sobre relações étnico-raciais e esportes, em especial para as comunidades indígenas.
METODOLOGIA
A pesquisa seguiu a tradição da pesquisa etnometodológica e sua perspectiva qualitativa para compreender como os entrevistados interpretam e constroem o mundo social (SILVA et al., 2015; SILVA; VOTRE, 2012; COULON, 1995; GARFINKEL, 1967). Os conceitos-chave utilizados na coleta dos dados priorizaram: as ações práticas, a indicialidade, a reflexividade, a relatabilidade e a noção de membro (COULON, 1995).
O conceito de ações práticas diz respeito à ideia de que a realidade social é construída na prática cotidiana pelos atores sociais em interação. A indicialidade nos indica que o conhecimento das circunstâncias dos enunciados nos permite atribuir sentidos mais precisos às palavras, entendendo que as expressões utilizadas pelos atores sociais em interação nos mostram características indiciais, e essas passam a ter significado a partir do conhecimento do contexto local onde são produzidas. Reflexividade “designa as práticas que ao mesmo tempo descrevem e constituem o quadro social; isto é, o ator, no decorrer de suas atividades ordinárias, descreve a sociedade em que vive e ao mesmo tempo a constrói” (SILVA; VOTRE, 2012, p. 25). Relatabilidade refere-se à propriedade das descrições que os atores fazem da realidade, a partir da reflexividade, entendendo-a como capacidade que o indivíduo possui de descrever e construir a realidade. Para compreender o conceito de noção de membro, é preciso dizer que consideramos como membro: toda “pessoa dotada de um conjunto de procedimentos, métodos, atividades, savoir faire, que a tornam capaz de inventar dispositivos de adaptação para dar sentido ao mundo que a rodeia” (COULON, 1995, p. 159). Sendo assim, a posição de membro só é adquirida no momento em que se chega a um acordo sobre a significação de nossas ações.
Viajamos no dia 22 de outubro para Palmas/TO, cidade sede dos JMPI, a fim de realizar entrevistas e participar do evento, efetivando anotações em um diário de campo. Apesar de ter sido construída uma arena central exclusiva para os JMPI, alguns eventos aconteciam simultaneamente no Estádio Nilton Santos, nos estádios da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA) e no Primeiro Batalhão da Polícia Militar de Palmas (onde eram disputadas as partidas de futebol) e/ou no Ribeirão Taquaruçú Grande (onde as provas aquáticas eram realizadas). Concentramo-nos nas atividades acontecidas na Arena e no Estádio Nilton Santos, guiando-nos pelo cronograma previamente divulgado no site oficial dos JMPI. Participamos do maior número de atividades ofertadas e conhecemos a maior parte das instalações. Acompanhamos também os debates ocorridos na Oca da Sabedoria, localizada dentro da Arena.
O projeto foi submetido ao comitê de ética e pesquisa, via Plataforma Brasil, recebendo o nº CAEE: 60183816.50000.5289, e de processo nº 1739829.
As entrevistas, semiestruturadas, eram compostas por duas questões basilares: que aspectos positivos os JMPI podem trazer para a relação entre os povos indígenas e não indígenas? Que aspectos negativos os JMPI podem trazer para a relação entre os povos indígenas e não indígenas?
Os participantes da pesquisa foram 15 indivíduos adultos, divididos em dois grupos, sendo cinco respondentes indígenas e dez respondentes não indígenas, de ambos os gêneros, escolhidos de forma aleatória, entre os espectadores do evento.
A interação com o objeto de estudo ocorreu tanto na situação de entrevista como no registro de diário de campo. Assim, a preocupação foi, para além das respostas puras dos entrevistados, retratar a perspectiva dos participantes em interação com o evento, bem como vivenciá-lo (MINAYO, 2002).
Portanto, reiteramos que os dados qualitativos, registrados em diário de campo, foram fundamentais para a análise dos dados coletados via entrevista. Neste sentido, as reações dos entrevistados, do público, dos atletas e seus comportamentos foram também observados e devidamente anotados.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Após a transcrição das respostas, emergiram temas relevantes e recorrentes nas falas dos participantes. A fim de facilitar a discussão, dividimos os temas em duas categorias: a) pontos positivos do evento; b) pontos negativos do evento. Estas categorias foram construídas a partir das duas questões basilares do estudo. No entanto, as subcategorias, surgiram a partir das percepções dos entrevistados.
Quanto à categoria pontos positivos dos JMPI, foram construídas as seguintes subcategorias: 1) visibilidade da população indígena; 2) visibilidade da luta dos movimentos sociais indígenas; 3) valorização da cultura indígena; 4) intercâmbio cultural. Quanto à categoria pontos negativos dos JMPI foram construídas as seguintes subcategorias: 1) falta de autonomia na formulação do evento por parte das lideranças indígenas; 2) possibilidade de o evento servir para obscurecer a realidade de violência que os povos indígenas enfrentam no Brasil.
1) Visibilidade da população indígena
Historicamente os indígenas têm sido objeto de múltiplas imagens e conceituações por parte de indígenas e não indígenas, marcadas profundamente por preconceitos e ignorância. Os habitantes nativos foram alvos de diferentes percepções e julgamentos quanto às características, aos comportamentos, às capacidades e à natureza biológica e espiritual que lhes são próprias (BANIWA, 2006).
Nós somos 270 povos, 170 línguas, né, e que realmente a gente possa estar mostrando isso para o Brasil, né? Que a gente tem essa diferença, né? Nós respeitamos os próximos também... que nem todo mundo, nós temos essa pluralidade que fala, né? Inclusive a gente está discutindo isso nas conferências nacionais dos Povos Indígenas isso aqui, né, essa pluralidade, o resgate dos antepassados, então a gente está vendo essa questão da verdade mesmo dos nossos povos, né? E como, e muitas pessoas quando vê o índio, ele vê o índio de uma forma generalizada, né? Por exemplo, um branco ele faz várias coisas, né, de ruim, né? E assim a gente não discrimina todos os brancos, né? E quando o índio faz alguma coisa de ruim, não, tudo é índio… então isso aí, a gente tenta trazer para a sociedade, que a gente tem um respeito, tem um povo (ENTREVISTADO 12 - INDÍGENA).
Parece ser razoável afirmar que a forma equivocada de entender a palavra ‘índio’ é proveniente das afirmações dos colonos que qualificaram as línguas, religiões e organizações indígenas como inferiores à europeia. Foi um pensamento colonizador que ainda pertence a muitos brasileiros, inclusive sendo perpetuada nos livros didáticos. Mesmo com tantas evidências contrárias, o que parece estar na memória de vários brasileiros é que indígenas seriam ‘preguiçosos e primitivos’.
A sociedade enxerga os povos indígenas de uma forma genérica, com estereótipos, é preconceituosa, então, assim, esse momento é um momento talvez único onde a sociedade vê os índios com mais valor, fora deste espaço vê o índio como empecilho ao desenvolvimento, vê eles como pedintes, e sei lá, a imagem é totalmente negativa, então os jogos têm essa função de fazer uma exposição positiva dessas comunidades (ENTREVISTADO 5 - NÃO INDÍGENA).
Baniwa (2006) categoriza a visão da população não indígena sobre os indígenas em três distintas perspectivas sociais: a visão romantizada, a visão como selvagem e a visão do indígena cidadão, possuidor de direitos sociais.
A primeira diz respeito à antiga visão romântica, presente desde a chegada dos primeiros europeus ao Brasil. É a visão que concebe o indígena ligado à natureza, protetor das florestas, ingênuo, pouco capaz ou incapaz de compreender o mundo branco com suas regras e valores. O indígena viveria numa sociedade contrária à sociedade moderna. Essa visão criada por cronistas, romancistas e intelectuais, perdura até os dias de hoje. Ela tem fundamentado toda a relação tutelar e paternalista, institucionalizada pelas políticas indigenistas do último século; inicialmente, por meio do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e, atualmente, pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Aqui o indígena é percebido sempre como uma vítima que precisa de tutor para protegê-lo e sustentá-lo.
Olha, isso aqui é uma experiência muito boa a nível internacional, não só daqui do Brasil, como a gente tá recebendo personalidades de outros países, outros pessoas que não conheciam os povos indígenas, só ouviam falar, e ver o índio simplesmente como um ser exótico, de vitrine, cheio de cocar, cheio de pintura... isso seria o índio ideal, o índio que usa celular não seria mais índio para ele. Exatamente, essa é uma experiência nova que a gente está buscando adequar, que eu para viver na cidade eu tenho que adequar a vida da cidade, tenho que aprender a usar, utilizar os meios de comunicação que tem na cidade, eu tenho que aprender o meio de tecnologia que existe na cidade, se eu não acompanhar isto, eu não vou poder interagir, não vou poder ter a interação geral com a sociedade da cidade” (ENTREVISTADO 11 - INDÍGENA).
A segunda perspectiva é sustentada pela visão do indígena cruel, bárbaro, canibal, selvagem, preguiçoso, traiçoeiro e tantos outros termos pejorativos. Essa visão também surgiu desde a chegada dos portugueses, através principalmente do seguimento econômico, que queria vê-los totalmente extintos para se apossarem de suas terras. As denominações e os adjetivos eram para justificar as práticas de massacre, como autodefesa e defesa dos interesses da coroa portuguesa.
Ainda hoje essa visão é sustentada por grupos econômicos que têm interesse pelas terras indígenas e pelos recursos naturais nelas existentes. Os indígenas são taxados por esses grupos como empecilhos ao desenvolvimento econômico do país, pelo simples fato de não aceitarem se submeter à exploração injusta do mercado capitalista, uma vez que são de culturas igualitárias e não cumulativistas. Dessa visão resulta todo o tipo de perseguição e violência contra os povos indígenas, principalmente contra suas lideranças que atuam na defesa de seus direitos.
A terceira perspectiva é sustentada por uma visão mais cidadã, que passou a ter maior amplitude nos últimos vinte anos, o que coincide com o mais recente processo de redemocratização do país, iniciado no início da década de 1980, cujo marco foi a promulgação da Constituição de 1988. Diríamos que é a visão mais civilizada do mundo moderno, não somente sobre os indígenas, mas sobre as minorias ou as maiorias socialmente marginalizadas.
Esta visão concebe os indígenas como sujeitos de direitos e, portanto, de cidadania. E não se trata de cidadania comum, única e genérica, mas daquela que se baseia em direitos específicos, resultando em uma cidadania diferenciada e plural. Aqui os povos indígenas ganharam o direito de perpetuar seus modos próprios de vida, suas culturas, suas civilizações, seus valores, garantindo igualmente o direito de acesso a outras culturas, às tecnologias e aos valores do mundo como um todo.
Um ponto positivo ressaltado foi a possibilidade de mostrar para a sociedade brasileira o que é ser indígena nos dias atuais, desmitificando a imagem caricaturada existente no Brasil, buscando ampliar a imagem do indígena cidadão.
Eu acho que a sociedade brasileira ainda está tão distante de entender o papel do indígena, de ter respeito pelo indígena, então de benefício desses jogos, eu acho que é conhecer mais essa população, né, porque as pessoas se conhecendo elas vão quebrando preconceitos (ENTREVISTADO 2 - NÃO INDÍGENA).
Podemos afirmar que os indígenas conseguiram superar algumas dificuldades. Reconhecer sua humanidade e liberdade (direito a não escravização) e sua capacidade (direito de não serem tutelados) foram direitos conquistados ‘a duras penas’, mas atualmente ainda precisam enfrentar a questão da identidade étnica na busca pelo constitucional respeito.
O Brasil ratificou em 2002 a convenção 169 sobre povos indígenas e tribais da Organização Internacional do Trabalho (OIT), segundo a qual a identidade dos povos indígenas hoje é feita através de autodeclaração e não mais atribuída.
Mas, como já abordado anteriormente neste trabalho, a própria terminologia ‘índio’ por muito tempo foi entendida como termo pejorativo pelos próprios indígenas. Algumas etnias ainda não se permitem serem chamadas assim, preferem que o termo ‘índio’ seja acompanhado da etnia a qual pertence. Por exemplo, índios Kaingangue, índios Terena etc. Isto significa afirmar sua condição indígena, mas externando que os povos indígenas são muitos e diferentes.
Encontramos nas palavras de alguns entrevistados, indígenas e não indígenas, a ideia de que os JMPI possam servir de vitrine para mostrar a imagem real do indígena de hoje para a sociedade não indígena, desmitificando o imaginário coletivo da visão romantizada e/ou selvagem da palavra, passando para a visão do indígena como cidadão:
Um ponto positivo para a comunidade indígena nacional, eu acho que é a visibilidade, é poder se ver de uma forma mais empoderada, mais alegre, mais participativa (ENTREVISTADA 3 - NÃO INDÍGENA).
Os JMPI parecem oferecer uma oportunidade de mostrar a nova cara do indígena para o não indígena, algo que se faz necessário não só para as questões identitárias de cada povo, mas principalmente para a busca pelo respeito perante esta parcela da sociedade brasileira.
2) Visibilidade da luta de movimentos sociais indígenas
Os povos indígenas tinham apenas lideranças denominadas tradicionais, os caciques ou tuxauas, cuja função era organizar, articular e representar a aldeia ou o povo diante de outros povos. São denominados líderes tradicionais porque seguem ou cumprem as condições e as regras herdadas dos seus pais ou ancestrais e aceitas pelo grupo (BANIWA, 2006).
O surgimento de organizações indígenas veio modificar a configuração dos espaços de poder presentes nas comunidades, pois surgiram novas pessoas que passaram a ter funções importantes na vida coletiva, como é o caso dos dirigentes de organizações indígenas, dos professores, dos agentes indígenas de saúde e de outros profissionais indígenas.
As lideranças indígenas, denominadas de lideranças políticas ou ‘novas lideranças’, são aquelas que recebem tarefas específicas para atuar nas relações com a sociedade não indígena, geralmente pessoas que não seguiram os processos socioculturais próprios ou tradicionais para chegarem ao posto. São os dirigentes de associações e de comunidades, os dirigentes políticos e os técnicos indígenas. Embora complementares, são diferentes das ‘lideranças tradicionais’, tanto no processo de escolha ou legitimidade, quanto nas funções que exercem (BANIWA, 2006).
As chamadas lideranças tradicionais têm o papel de representar, coordenar, articular e defender os interesses dos povos como uma responsabilidade herdada a partir das dinâmicas sociais vigentes. Por sua vez, as lideranças políticas geralmente exercem funções específicas, como dirigentes de organizações indígenas formais ou como intermediários e interlocutores entre as comunidades indígenas e as sociedades regional, nacional e internacional a partir de uma opção pelo modelo branco. Por isso, a escolha de uma liderança política não-tradicional passa por sua capacidade de se relacionar com o mundo não indígena, como falar a língua portuguesa e possuir bom nível de escolaridade (BANIWA, 2006).
No Brasil existe, desde a década de 1970, o que podemos chamar de movimento indígena brasileiro: um esforço conjunto e articulado de lideranças, povos e organizações indígenas objetivando uma agenda comum de luta, como é a agenda pela terra, pela saúde, pela educação e por outros direitos.
Os povos indígenas hoje não podem estar invisíveis, eles hoje têm que estar participando, não é que um ambientalista, não é que um antropólogo venha dizer aos povos indígenas: não... você tem que ficar lá isolado, você não pode estar na cidade se não você vai acabar ter acesso a vícios. Como? Quando é que o índio vai aprender a se defender? Por isso que eu sempre digo, nos temos que saber hoje a usar a caneta também, hoje o arco e flecha não esta mais dando condições para a gente lutar, entendeu? Nós temos que sentar hoje nas escolas, desde que a gente não perca nossa identidade cultural, linguística, costumes, sabe? Se eu adquiri os hábitos da cidade, isso não quer dizer que eu perdi minha identidade, muito mais, se adaptando (ENTREVISTADO 11 - INDÍGENA).
Foi esse movimento indígena articulado, apoiado por seus aliados, que conseguiu convencer a sociedade brasileira e o Congresso Nacional Constituinte a aprovar em 1988 os avançados direitos indígenas na atual Constituição. Foi esse mesmo movimento indígena que lutou para que os direitos à terra fossem respeitados e garantidos, tendo logrado importantes avanços nos processos de demarcação e regularização das terras indígenas. Foi também esse movimento que lutou para que a política educacional oferecida aos povos indígenas fosse radicalmente mudada quanto aos seus princípios filosóficos, pedagógicos, políticos e metodológicos; resultando na chamada educação escolar indígena diferenciada, que permite a cada povo indígena definir e exercitar, no âmbito de sua escola, os processos próprios de ensino-aprendizagem e produção e reprodução dos conhecimentos tradicionais e científicos de interesse coletivo do povo. A implantação dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas, ainda em construção e aperfeiçoamento, é outra conquista relevante da luta articulada do movimento indígena brasileiro (BANIWA, 2006).
Podemos destacar entre os pontos fortes dos JMPI a maior visibilidade da luta dos movimentos sociais indígenas, inclusive partindo de temáticas abordadas nos fóruns oportunizados pelo evento. Este fato se pauta nas respostas de alguns dos entrevistados:
Os políticos que hoje pensa de uma forma diferente dos povos indígenas, principalmente na questão da demarcação das nossas terras, né? E esses jogos aqui a gente está trazendo inclusive umas manifestações isoladas, foi falado também pelos Xavantes, que nós precisamos também estar garantindo os nossos direitos, que tá sendo violados, né? Pessoas sendo massacradas lá, como os Guarani-Kaiowá, sendo mortos por fazendeiros, pistoleiros; entendeu? Milícias ali daquela região, e aí a gente está aqui num consenso de que a gente possa estar mudando a concepção desses deputados, né? Até porque tem essa, um projeto de ementa constitucional que é a PEC 215, que fala desse genocídio, né, porque, para nós, tirar terra, é estar matando nossas futuras gerações, né? O pessoal tem que entender, né, que nós somos um povo crescente, dentro de umas terra limitada, né? E o pior dessa PEC 215 é que além de não demarcar as terras indígenas ainda é reduzir as que já estão demarcadas, isso para nós é a pior coisa que pode acontecer, né? A gente não tem educação sem nossa terra, não temos saúde sem a terra, nós não temos infraestrutura sem a terra, então, para nós a terra mãe é tudo para a gente (ENTREVISTADO 12 - INDÍGENA).
Nesta perspectiva, eu acredito que no momento que a gente vive no Brasil, né, de um genocídio histórico e persistente em relação aos povos indígenas, eu acho que é um momento ideal de dar visibilidade a essa luta que acontece cotidianamente (ENTREVISTADO 1 - NÃO INDÍGENA).
A causa indígena é uma luta histórica e quase invisível aos olhos da população brasileira não indígena e necessita de maior exposição. O fato é que os indígenas brasileiros são “saqueados, caçados e mortos desde a ‘descoberta’ do Brasil pelos colonizadores europeus e hoje os indígenas representam menos de 0,4% da população” (NAUDASCHER, 2014, p.18).
Pode ser que surja uma agenda positiva em relação aos jogos, não só a questão dos jogos, mas de outras questões que são tratadas nos fóruns paralelos aqui, né? Então, direito à terra, à educação, saúde, questão de gênero, das mulheres, há um fórum das mulheres aí dentro, então, se não propriamente com a questão do esporte indígena há outras frentes de batalha, de luta, cuja aproximação dos jogos permite tal exposição (ENTREVISTADO 4 - NÃO INDÍGENA).
Desde a década de 1950, o Estado vê o indígena como alvo de uma inevitável e gradativa integração à sociedade nacional. Ratificamos essas palavras levantando a questão da criação, em 1910, do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), que atualmente é a Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Esta entidade surgiu com o intuito de garantir que essa transição se desse de forma mediada e sem conflito, onde ao final, o indígena se tornaria integrado, indistinto no meio dos demais brasileiros.
Hoje a FUNAI não é mais tutora, mas é preciso salientar que o SPI agia no sentido de representação dos indígenas perante a lei. “O Estado tutor é aquele que decide pelos índios e, sob pretexto de cuidar deles, os mantém sob controle” (COHN, 2013, p. 18).
Na época da criação do SPI, começava também a ideia de territórios indígenas, locais nos quais os indígenas poderiam dar continuidade a seus costumes sob a proteção (ou controle) do Estado. Ao SPI cabia também a tarefa de definir quem era indígena ou não.
O avanço mais significativo neste quadro foi a criação da Constituição de 1988, onde é reconhecido o direito dos indígenas às suas terras e à cidadania plena. De acordo com Cohn (2013) esse avanço jurídico só pode ocorrer por conta da mobilização indígena e de sua atuação junto a aliados na Assembleia Constituinte.
Apesar de alguns avanços obtidos, algumas terras demarcadas, precisamos pensar que quando promulgada a Constituição de 1988, o Brasil teria cinco anos para demarcar todas as terras indígenas, o que até hoje não ocorreu. O que podemos acompanhar são noticiários sobre como essas terras estão sendo ameaçadas por projetos de criação de hidrelétricas, pela construção e pelo asfaltamento de estradas que as atravessam, por projetos de mineração, fazendas de gado, entre outras intenções de ‘avanço’ nacional.
Há um projeto de lei em tramitação no senado, a PEC 215. Criada em 2000, tramitou na Câmara por quinze anos, sem consenso entre os parlamentares. Em 2015, a bancada ruralista conseguiu colocar a proposta novamente em pauta.
O substitutivo apresentado, que reúne outras propostas apensadas, proíbe a ampliação de áreas já demarcadas e dificulta o reconhecimento de novos territórios. O texto também inclui um marco temporal, em que os povos indígenas e quilombolas somente teriam direito à terra se já a estivessem ocupando em 5 de outubro de 1988, além de propor indenização em dinheiro aos proprietários das áreas demarcadas, de forma retroativa. Este fato corrobora a oportuna exposição das lutas e causas sociais indígenas nos JMPI.
Algumas manifestações ocorreram durante o evento e focalizaram o embargo da PEC 2015. Este acontecimento fez com que se espalhassem nas redes sociais vídeos e textos explicativos sobre este importante debate da sociedade brasileira. Esses manifestantes indígenas entenderam que o evento apresentava uma oportunidade de exposição midiática mundial, e fizeram o bom proveito da situação.
Para nós, os jogos dos povos indígenas é o momento de relembrar o encontro com os nossos velhos, de reivindicarmos os nossos direitos, a questão da nossa educação, a questão social do povo indígena hoje na sociedade brasileira. Isso faz com que nós fiquemos mais fortes, mais unidos. É um momento que traz a união, um momento de mostrar a nossa cultura, as nossas diversidades culturais, as diversidades de como vivenciamos dentro da nossa comunidade, fora da nossa comunidade também. Porque cada povo tem o seu costume, cada povo tem o seu modo de vida, tem a sua responsabilidade de estar preservando a sua cultura, de estar preservando o meio ambiente, de estar preservando a sua identidade cultural. Esses jogos também nos relembram isso, que podemos reivindicar ao nosso governo brasileiro para que preserve a nossa cultura, preserve o nosso meio ambiente, a nossa terra (ENTREVISTADO 13 - INDÍGENA).
3) Valorização da cultura indígena
O termo cultura pode ser entendido dentro de uma multiplicidade de definições. Adotaremos como referência para este trabalho três concepções fundamentais de entendimento da cultura abordadas por Canedo (2009): modos de vida que caracterizam uma coletividade, obras e práticas da arte, da atividade intelectual e do entretenimento e fator de desenvolvimento humano.
Na primeira concepção, a cultura é definida como um sistema de signos e significados criados pelos grupos sociais. Ela se produz “através da interação social dos indivíduos, que elaboram seus modos de pensar e sentir, e constroem seus valores, manejam suas identidades e diferenças e estabelecem suas rotinas” (CANEDO, 2009, p.4).
Sobre esta concepção, Chauí (1995, p.81) chama a atenção para a necessidade de alargar o conceito de cultura, tomando-o no sentido de invenção coletiva de símbolos, valores, ideias e comportamentos, “de modo a afirmar que todos os indivíduos e grupos são seres e sujeitos culturais”. Valoriza-se o patrimônio cultural imaterial: os modos de fazer, a tradição oral, a organização social de cada comunidade, os costumes, as crenças e as manifestações da cultura popular que remontam ao mito formador de cada grupo.
Eu vejo que a partir dos jogos mundiais as comunidades vão ter oportunidade de interagir com a sociedade, de ter uma impressão melhor do que realmente, de como a sociedade vê a cultura deles. E como nós ainda valorizamos, como nós ainda gostamos de ter esse contato, porque eles não tem essa noção dentro das comunidades, dentro das aldeias. Eles não sabem como nós os enxergamos aqui e dentro dos jogos eles vão ter essa noção. Eles estão tendo essa noção, de que as pessoas realmente valorizam a cultura deles (ENTREVISTADO 2 - NÃO INDÍGENA).
A segunda concepção é dotada de uma visão mais restrita da cultura, referindo-se às obras e práticas da arte, da atividade intelectual e do entretenimento, vistas, sobretudo, como atividade econômica. Esta dimensão não se dá no plano da vida cotidiana do indivíduo, mas em âmbito especializado, no circuito organizado.
Na relação entre cultura e mercado, acontecem dois processos distintos: a mercantilização da cultura, quando as atividades culturais passam a ser concebidas visando à distribuição em massa e, consequentemente, a geração de lucro comercial; e a culturalização da mercadoria, que ocorre através da atribuição de valor simbólico a objetos do uso cotidiano. Até mesmo as características culturais de um determinado local ou povo podem ser transformadas em bens vendáveis para o turismo ou como lócus para a produção audiovisual. “Vista sob esse ângulo, a cultura é tida como fator de propulsão ou de resistência ao desenvolvimento econômico” (CANEDO, 2009, p. 5).
Acho que os jogos podem trazer à tona um pouco mais pra gente conhecer essa cultura indígena que está no mundo, muito legal trazer essa diversidade, apesar que os jogos não tá abrangendo, não está contemplando todas a… diversidade indígena aqui do Brasil e dos outros países, né? Acho que tem muito mais para a gente conhecer (ENTREVISTADO 7 - NÃO INDÍGENA).
A terceira concepção da cultura ressalta o papel que ela pode assumir como um fator de desenvolvimento social. Sob esta ótica, as atividades culturais são realizadas com intuitos socioeducativos diversos. É justamente dentro desta concepção que encontramos a importância da exaltação da cultura nos JMPI.
As culturas indígenas têm conservado sua singularidade em face do mundo moderno, mesmo sem o isolamento. Até hoje existem códigos culturais autóctones pouco conhecidos das civilizações europeias, como são as medicinas tradicionais. Os indígenas conservam suas línguas, suas experiências e sua relação com a natureza e com a sociedade. Eles mantêm a tradição oral e os rituais como manifestação artística e maneira de vinculação com a natureza e o sobrenatural. “A consciência de uma cultura própria é em si um ato libertador, na medida em que vence o sentimento de inferioridade diante da cultura opressora” (BANIWA, 2006, p. 50).
Eu acho que pode ajudar na interação cultural, né? Assim porque a gente não... aqui na cidade mesmo a gente não tem muito acesso a cultura indígena, então assim, eu acho que isso pode trazer à tona, né, a cultura deles, os costumes, a maneira como eles vivem e fazer a gente entender algumas coisas também, né, que a gente não entende. Acho que é um a aprendizado, cultura é aprendizado, acho importante por isso, crescimento não só em destaque deles como povo, como raça, mas também para incrementar o nosso conhecimento também (ENTREVISTADO 10 - NÃO INDÍGENA).
De fato, os indígenas presentes se mostravam muito orgulhosos ao demonstrarem sua cultura ao público presente. Danças típicas eram apresentadas em momentos formais e em espaços não formais. Em ambos os casos o público se mostrava maravilhado e os indígenas felizes em serem valorizados por sua cultura (DIÁRIO DE CAMPO, 2015).
Os jogos de demonstração, constituídos de jogos e brincadeiras tradicionais específicos de cada etnia, também fizeram com que os povos indígenas mostrassem, com orgulho mais um pouco dos seus costumes. A importância dos JMPI está para além da demonstração de força, habilidade, velocidade, destreza, cumprimento de regras, mas sim na cooperação, no respeito e na alegria dos participantes. Outros aspectos culturais, além das danças e jogos típicos, também foram muito valorizados pelo público presente, tais como: o artesanato e as pinturas corporais.
De acordo com Urias Tsumey'wa, em entrevista ao site ebc.com, a pintura corporal é mais do que uma moda: cada uma tem um significado, cada uma traz a bagagem cultural de um povo. “A pintura representa alguma coisa, fala alguma coisa. O meu povo se pinta totalmente para a guerra, a nossa pintura é em preto e vermelho. Eu procuraria a pessoa e perguntaria por que ela está se pintando. A pintura é uma manifestação e um meio de mostrar que aquele povo existe e vive” (BRANDÃO, 2015)1.
Verificamos nos dias de jogos os não indígenas encantados com a diversidade e a riqueza mantida entre diferentes povos nativos. De alguma forma querendo fazer parte e aprender mais sobre a rica cultura indígena. Pintavam os corpos, compravam artesanatos, faziam muitas fotos e aplaudiam os jogos e as danças apresentadas com muito entusiasmo. A mídia local e nacional também valorizou esta cultura, cobrindo parte dos jogos ou exibindo matérias sobre algum fato relacionado ao evento ou costumes indígenas (DIÁRIO DE CAMPO, 2015).
Alguns entrevistados relataram essa percepção e também destacaram esse aspecto positivo.
Assim... aqui somos mais reconhecidos, mais valorizados. E também serve para podermos mostrar mais nossa cultura, a cultura do nosso povo. Mas o nosso orgulho é independente do pensamento do homem branco (ENTREVISTADO 14 - INDÍGENA).
De positivo eu acredito que ‘eles’ possa ter uma visão de realmente o que somos, porque infelizmente o que passa nas mídias sociais e tudo, né, televisão, reportagem, é uma imagem negativa, né? Não é uma imagem que realmente o que somos, e aqui temos a oportunidade de mostrar também a nossa cultura, de mostrar o que nós somos, então isso para mim é importante tá aqui (ENTREVISTADA 13 - INDÍGENA).
O homem não indígena, na verdade, ele tá valorizando, ele tá reconhecendo e os povos indígenas estão tendo esse contato, né? Estamos podendo conhecer melhor, eles estão se sentindo mais importantes dentro da nossa sociedade, porque por bastante tempo eles estavam se sentindo excluídos, é uma forma de incluí-los no nosso convívio (ENTREVISTADO 3 - NÃO INDÍGENA).
Acreditamos que, para os brasileiros indígenas, ter sido retratada a obviedade de serem importantes geradores de cultura e, tendo sido reconhecida pela mídia sua importância histórica dentro da formação da população brasileira, em data diferente do dia 19 de abril, tenha sido de grande valia, no sentido de orgulho da condição indígena para esses povos.
Para os brasileiros não indígenas, entrar em contato com muitas das etnias que compõem a população indígena foi uma oportunidade para promover e valorizar a cultura ancestral de um país que ainda caminha para reconhecer uma parte de sua identidade, que foi sistematicamente destruída e inferiorizada.
4) Intercâmbio cultural
Apesar desta maior tomada de consciência não garantir de modo algum a preservação da diversidade cultural, contribuiu para que o tema obtivesse maior notoriedade. De acordo com o relatório da UNESCO (2009) sobre a diversidade cultural, podemos dizer que para compreender os desafios inerentes à diversidade cultural, torna-se necessário discutir algumas necessidades teóricas e políticas que a diversidade tende a levantar.
O relatório sugere a definição do termo cultura segundo o espírito de consenso consagrado pela Declaração da Cidade do México sobre Políticas Culturais da UNESCO (1982):
O conjunto dos traços distintivos, espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social e que abarca, para além das artes e das letras, os modos de vida, os direitos fundamentais do ser humano, os sistemas de valores, as tradições e as crenças (UNESCO, 2009, p. 6).
Esta definição tem o mérito de não adotar uma visão da cultura demasiadamente restritiva e de não se centrar num aspecto particular para definir o que a caracteriza.
Um desafio para alcançar o respeito à diversidade cultural tem a ver com a caracterização dos elementos constitutivos da diversidade cultural. A esse respeito, os conceitos de cultura, civilização e povos têm conotações diferentes segundo o contexto, por exemplo, científico ou político. Enquanto o conceito de culturas evoca entidades que tendem a definir-se com relação umas às outras, o termo civilização refere-se a culturas que afirmam os seus valores ou visões do mundo como universais e assumem uma atitude expansionista relativamente a outras que as não partilham.
Segundo a concepção da UNESCO, deve entender-se por civilização um processo em curso encaminhado para a conciliação de todas as culturas do mundo com base no reconhecimento da sua igual dignidade, no quadro de um projeto universal contínuo.
Outra dificuldade apontada pelo relatório prende-se à relação entre as culturas e a mudança. Transcorreram praticamente sete décadas do século XX antes que se compreendesse que as culturas são entidades que se transformam. Até então, verificava-se a tendência para considerar que permaneciam essencialmente imutáveis, e que o seu conteúdo se transmitia por canais diversos, como a educação ou ritos iniciáticos de diferentes tipos.
Na atualidade, a cultura é entendida como processo: as sociedades vão se modificando de acordo com os caminhos que lhes são próprios. Torna-se, portanto, necessário definir políticas que confiram uma exaltação positiva destas diferenças culturais, de modo que os grupos e as pessoas que venham a entrar em contato, em lugar de se entrincheirarem em identidades fechadas, descubram na diferença um incitamento para continuar a evoluir e a mudar.
Podemos destacar entre os pontos positivos dos JMPI o intercâmbio cultural entre os diversos povos participantes do evento. Através dos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas foi possível explicar para as comunidades indígenas do Brasil a existência de indígenas em outros continentes do mundo e ainda promover a integração e a troca cultural desses diferentes povos.
Sobre o intercâmbio cultural e sua importância, muitas foram as respostas que abordaram este como ponto positivo dos JMPI.
Um ponto positivo para a comunidade indígena internacional é saber que eles não estão sozinhos, que tão por aí, que existem outros parecidos e com questões semelhantes, eu acho que isso é muito bacana, você saber que você não está sozinho (ENTREVISTADA 4 - NÃO INDÍGENA).
Bem, muitos povos se conhecem e se conheceram, por exemplo, na constituinte, quando teve a constituinte de 87 que começou, né, vários grupos que não se conheciam passaram a se conhecer ali na, no terreno de Brasília mesmo, em frente ao congresso nacional, de igual maneira isso também acontece aqui, apesar de muitos grupos serem repetidos, já terem essa relação, com os grupos latinos americanos e de outros lugares é uma relação inédita, então é positivo neste sentido (ENTREVISTADO 6 - NÃO INDÍGENA).
Além das trocas entre os povos indígenas, podemos destacar também a troca com a população não indígena. Muitos voluntários e mesmo os espectadores que entraram em contato com os indígenas puderam desfrutar deste intercâmbio cultural.
Eu acho que é positivo mesmo essa troca de experiências, os não indígenas, os brancos estão curiosos para tocar, né? Para conhecer, às vezes toca a pintura na pele, às vezes toca as penas que fazem parte do cocar, por exemplo, é uma troca de experiência e os indígenas também querem saber de algumas coisas que os brancos estão acostumados e eles não estão, eles têm dúvidas em relação a nós, assim como nós temos dúvidas com relação a eles. Eu acho que a troca é positiva (ENTREVISTADA 6 - NÃO INDÍGENA).
Em relação à população não indígena, a organização tentou separar as arquibancadas da arena esportiva em indígenas e não indígenas, o que dificultava um pouco a interação, mas os espaços não formais, como as feiras de artesanato, faziam com que a interação acontecesse de forma espontânea (DIÁRIO DE CAMPO, 2015).
Entre as diferentes etnias era perceptível maior interesse de interação. Alguns jogos de demonstração (jogos em que uma etnia apresentava um jogo característico e próprio do seu povo) foram realizados com convidados de outras etnias, muitos indígenas que não falavam a mesma língua interagiam e trocavam utensílios e até vestimentas. Eles aparentavam estar muito empolgados e ávidos por estas trocas. Apenas destacamos que poderia ter ocorrido maior interação se houvesse mais tempo de convivência entre eles, pois os indígenas estrangeiros não ficaram hospedados no mesmo local que os indígenas brasileiros, e só chegavam ao evento no horário dos seus jogos, resultando em curto tempo para trocas com os índios brasileiros (Diário de Campo, 2015).
Um dos entrevistados indígenas falou sobre esta questão:
Se você colocar a organização em um espaço fechado, a participação dividida em dois espaços fechados, o público em outro espaço, onde nenhum destes quatro tem acesso ao debate e nenhum deles se encontra então não existe uma construção real. O que existe é a produção de um evento que tende a ser comercializado, que tende a ser popular no sentido da mídia, né, que está sendo acessível à mídia, mas esvaziado de significados, esvaziado de conteúdos (ENTREVISTADA 13 - INDÍGENA).
Nos primeiros JPI, observavam-se muito mais práticas tradicionais indígenas e, no decorrer do tempo, tem-se percebido uma predominância do esporte, prática corporal não indígena na programação do evento nacional (PINTO, 2009). Precisaremos observar as próximas edições do evento mundial para saber se este processo de esportivização ocorrerá também nos JMPI.
Sobre os pontos negativos apontados por nossos entrevistados, encontramos:
1) Falta de autonomia na formulação do evento por parte das lideranças indígenas
Um ponto fraco a ser destacado no evento é a interferência do homem não indígena na organização dos JMPI. Desde o início do processo de construção da ideia de promoção deste evento, as iniciativas, mesmo que partindo dos irmãos Terena, sempre tiveram que buscar aprovação governamental não indígena, e desta forma, serem controladas por entidades e pessoas distantes da realidade desses povos. Muito do que foi pensado e acordado não se concretizou, o que pudemos observar foram mudanças significativas em relação à organização do evento em termos estruturais de acomodação dos atletas até regras dos esportes apresentados (MENDES, 2015; VEREADOR, 2015; DOLEJSIOVA, 2016).
Os problemas de ordem estrutural e organizacional provocados pela falta de consulta aos indígenas ficaram claros para os espectadores. A música que tocava a todo momento era ‘Todo dia era dia de índio’ (Baby do Brasil). Muitas vezes essa música abafava os sons vindos das tribos que se apresentavam (DIÁRIO DE CAMPO, 2015).
Na única praça de alimentação da Vila dos Jogos, as comidas eram industrializadas e totalmente sem relação com a cultura indígena, bem como com a cultura local. Perguntamos para uma funcionária como foi o processo de licitação para aluguel do espaço. Ela diz que foi arrendado por empresários de fora da cidade, pois apesar do interesse dos comerciantes, inclusive os que expõe seus produtos na famosa feira local de Palmas, o valor cobrado era de 30% do lucro, inviabilizando os pequenos comerciantes (DIÁRIO DE CAMPO, 2015).
Na entrada da feira realizada pelo SEBRAI, um fato curioso: duas modelos brancas, vestidas de ‘índias’, recebiam os visitantes; em vez de a organização contratar indígenas reais. Este fato fez com que o evento fosse mais uma vez descaracterizado como evento indígena (DIÁRIO DE CAMPO, 2015).
Esta mesma percepção de falta de autonomia indígena na organização impeliu que o evento se enquadrasse dentro dos modelos da cultura eurocêntrica, isto ficou bem retratado nas palavras de alguns entrevistados:
Negativo eu acho que pode ser, às vezes, uma interferência do homem mesmo, do não indígena, do homem branco, né? Também ouvi isso de algumas pessoas, tipo, ao delimitar como é que funciona os jogos, às vezes do tempo da partida de futebol que eles delimitaram em 2 tempos de 30 minutos cada, na final 2 de 40 minutos. É assim que eles jogam? Será que aqui funciona desse jeito? Ou a venda do artesanato ali na feira mundial do artesanato indígena, eles estão numas cabines super organizadinhas, com um padrão, é padronizado, mas cada etnia tem seu estilo, não é daquele jeito que eles vendem, não é daquele jeito que eles estão acostumados a fazer isso, então querendo ou não, por mais que as pessoas digam que a interferência é mínima, ou que não há interferência, há uma interferência sim, mas eu espero que fique só aqui, que não, né, que não saia daqui, que não levem nada disso (ENTREVISTADO 8 - NÃO INDÍGENA).
2) Possibilidade de o evento servir para obscurecer a realidade de violência que os povos indígenas têm enfrentado no Brasil através da espetacularização da imagem indígena
Outra questão relevante abordada se refere à falta de bom senso por parte do governo que se mostra empenhado em apoiar financeiramente os jogos indígenas enquanto ignoram a falta de recursos financeiros, o genocídio e outros problemas diversos que estes povos enfrentam, principalmente em relação às disputas territoriais com os empresários do agronegócio.
Esta preocupação foi muito comentada nas entrevistas realizadas, especialmente pela população indígena.
Eu acho que existe um perigo muito grande de desse evento ser instrumentalizado para obscurecer a realidade de violência que os povos indígenas têm enfrentado, assim, né? Isso também o movimento indígena falou, vários povos falaram, inclusive os Guarani-Kaiowá que estão na situação mais dramática hoje foi uma das comunidades que manifestou repudio etc. (ENTREVISTADO 4 - NÃO INDÍGENA).
Eu acho que esses jogos tinha que ser numa aldeia, particularmente eu acho que tem que ser numa aldeia, porque a comunidade não leva nada, essa estrutura toda vai ficar para Palmas, entendeu? Nós não vamos ficar com um real de volta, né, a gente não vai... não tem essa estrutura, né? Era bom que esses 3.000.0000,00 que fosse gastado, fosse investido na saúde também das comunidades indígenas, fosse investido na nossa educação, se cada comunidade pudesse levar o transporte, o barco, né, alguma coisa para que a gente possa estar realmente, porque esse é dinheiro público, a gente vem, faz todo o evento, as pessoas bate palma para gente, é importante nós mostrar nossa cultura, mas também é importante a sociedade, né, principalmente os políticos vê que nós temos que realmente trazer alguns benefícios, né, às vezes quando a gente vai para os jogos e volta nesses ônibus é arriscado até ter um acidente, né? (ENTREVISTADO 12 - INDÍGENA).
Então, se por um lado o país diz: olha, nós sim temos uma riqueza cultural, e isso é necessário, e ao mesmo tempo usa como argumento que para aumentar ou para manter a riqueza econômica, o dinheiro, a sustentabilidade da economia seja necessário comprometer a riqueza natural e consequentemente os povos que habitam nesta natureza, entramos numa contradição numa crise muito grande. Então, que tem de negativo aqui é o comportamento do governo brasileiro que diz que quer se promover como defensor dos direitos humanos, da diversidade e dos povos indígenas, num contexto terrível, de políticas reacionárias, antidemocráticas e que vai contra o patrimônio natural (ENTREVISTADO 14 - INDÍGENA).
Muitos povos pensaram exatamente nesta contradição e se recusaram a participar dos jogos. Os indígenas da etnia Krahô do Tocantins foram os primeiros a comunicar a não participação nos JMPI. A informação foi confirmada por meio do ofício de n. 03/2015 encaminhado ao articulador dos JMPI, Carlos Terena, informando a decisão da União dos Caciques Krahô. Segundo o site Conexão Tocantins2, os caciques justificaram que a organização do evento não respeita o povo indígena e ainda, que os organizadores do evento usam o nome e a imagem do povo indígena para se promover. Assim como os Krahôs, os Apinajés também não participaram dos JMPI. O secretário da associação União dos Apinajés, do Tocantins, Antônio Veríssimo Apinajé, confirmou em entrevista ao site conexão Tocantins no dia 23 de setembro de 2015 que a etnia também não participaria dos JMPI (RODRIGUES, 2015).
Dentro deste contexto outra consequência seria o possível caráter de exploração da imagem do indígena brasileiro por empresários e governantes, muitas vezes reforçando estereótipos. Encontramos essas preocupações nas falas de alguns entrevistados:
Se a gente pensa no Brasil, qual é a ideia de povo indígena que a gente aprende lá nos livros didáticos, é, toda essa imagem que é construída, o que me preocupa é talvez de reforçar, de ter todo esse imaginário do espetáculo, em detrimento inclusive dessa luta indígena, da luta dos povos indígenas, não só aqui no Brasil como no mundo inteiro [...] o que me preocupa é com esse caráter de espetacularização, com essa imagem de folclore, porque não é um folclore, né? São povos originários, então a gente tem que ter todo esse respeito à diversidade cultural (ENTREVISTADA 1 - NÃO INDÍGENA).
De acordo com Almeida (2011), o conhecimento de uma sociedade caracterizada pela cultura dos grandes eventos é imprescindível para perceber que o esporte ocupa lugar de destaque na produção de espetáculos para a grande massa. Mobilizando sentimentos e sensibilidade, o esporte-espetáculo atrai consumidores às grandes festas esportivas e, por conseguinte, aos seus produtos. O Mercado e o Estado reforçam a noção de que o esporte é um meio eficaz de transmissão de valores de inclusão social e disso se aproveita para alcançar seus objetivos.
A lógica eminentemente capitalista de aumento de capital econômico, a partir da exploração de bens culturais, envolve em seu bojo a produção de um capital cultural distinto, permeada de relações competitivas. Entende-se que possa haver uma exploração econômica dos patrimônios culturais nos JMPI, proveniente da estruturação do evento, que desperta interesse de um público não índio e propicia grande envolvimento da indústria cultural. Esta, por sua vez, contribui para que esse evento siga as leis do mercado, atendendo ao gosto de um público cada vez maior e, por conseguinte, para que seus produtos possam ser consumidos (ALMEIDA, 2011).
CONCLUSÃO
Os sujeitos da pesquisa apontaram como potencialidades dos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas a aproximação à comunidade global da realidade indígena e o congraçamento dos povos indígenas do mundo todo. Evidenciaram valorização nas trocas e demonstrações da riqueza dessas culturas, com suas especificidades; entendendo-as como algo maior que identidades particulares.
Não se pode ignorar, no entanto, que os entrevistados também apontaram questões negativas: a) falta de autonomia na formulação do evento por parte das lideranças indígenas e b) a possibilidade de o evento servir para obscurecer a realidade de violência que os povos indígenas enfrentam no Brasil. Apesar disso, os Jogos Mundiais dos Povos Indígenas foram entendidos como uma excelente oportunidade de encontros multiétnicos, um espaço propício à verbalização das demandas dos diferentes povos originários do mundo, que passam por problemas semelhantes aos enfrentados pelos povos indígenas brasileiros, e ainda apresentam caráter de exposição mundial para a busca do necessário apoio social.
Os JMPI são um dos passos importantes para compreendermos a cultura de movimento dos povos indígenas do mundo. Essas tradições nos dizem muito sobre a relação humana com nossa casa: o planeta. Esquecidos, silenciados, cerceados da plenitude de seu viver, os povos indígenas têm muito a colaborar com a perspectiva de uma sociedade mais consciente e colaborativa. Os elementos de sua cultura de movimento devem ser mais bem conhecidos, descritos, analisados, divulgados e encarnados pela sociedade. Da mesma forma que alguns dos povos indígenas incorporam ao seu patrimônio elementos da cultura de movimento de povos não indígenas, estes também necessitam desenvolver seu olhar para além de suas bordas.
É cedo para afirmar se as expectativas sociais e políticas do evento estudado foram de fato alcançadas. Observar e colaborar com as próximas edições dos JMPI, acompanhar e estudar o legado: são questões que nos estimulam a continuar por este caminho.