INTRODUÇÃO
Em 2002, o Brasil iniciou sua trajetória no cenário dos megaeventos esportivos com a eleição do Rio de Janeiro como sede dos Jogos Pan Americanos de 2007. A partir desse evento, o País sediou os Jogos Mundiais Militares (2011), a Copa das Confederações de Futebol (2013) e a Copa do Mundo de Futebol (2014) bem como os Jogos Olímpicos e Paralímpicos de Verão (2016). A agenda dos megaeventos esportivos teria o seu final no ano de 2019, em Brasília, com a realização dos Jogos Mundiais Universitários, não fosse pela desistência por parte do Governo do Distrito Federal em razão da crise financeira vivida pela unidade federativa1.
A Política Nacional do Esporte (2005) define os papéis de todos os entes federados sobre o desenvolvimento do esporte em todas as suas facetas, seja educacional, escolar, de participação ou de rendimento. O documento aborda o esporte de rendimento sob a responsabilidade das entidades nacionais esportivas na iniciação e desenvolvimento esportivo bem como na seleção de talentos. Apesar de ressaltar - em ação específica - a garantia de não haver prejuízos em outras atividades profissionais ou escolares dos atletas, além da cobertura por seguros e planos de saúde, o documento não especifica a entidade responsável por essas ações, deixando implícita a responsabilidade das entidades esportivas nacionais.
De 2004 a 2017, o Governo Federal disponibilizou aproximadamente 26,88 bilhões de reais ao esporte brasileiro, sendo 26,89% dessa quantia - aproximadamente 7.229.370.000 de reais2 - destinados ao esporte de alto rendimento, com o intuito de preparar e fomentar a participação de atletas em competições nacionais e internacionais. Essa priorização de ações direcionada ao esporte de rendimento, tendo em vista a inserção do Brasil no hall das potências mundiais esportivas, exige dos jovens em formação escolar/acadêmica que dividam sua rotina entre escola, estudos, treinos e reabilitação, além de privá-los de momentos de lazer e socialização com amigos e familiares (EPIPHANIO, 2002; GÓMEZ et al., 2016; ROCHA et al., 2011). Essa problemática organização das rotinas de treino e estudos, sobretudo para jovens que são recrutados cada vez mais precocemente pelo mercado esportivo, ganhou espaço na comunidade acadêmica brasileira em 2011 (AZEVEDO et al., 2016). Desse contexto, surge o termo dual career - dupla carreira -, que define o ato de conciliação entre a carreira esportiva e os estudos ou o trabalho, na busca pelo melhor aproveitamento possível de ambas as jornadas, visando, para além da formação integral do indivíduo, à sua inserção no mercado de trabalho ordinário após o término de sua carreira esportiva (EUROPEAN COMISSION, 2012; RYBA et al., 2014).
Cada um desses caminhos presentes na trajetória de vida dos jovens atletas possui configuração própria, mas que exige do sujeito importantes níveis de dedicação. A carreira esportiva demanda tempo dedicado a um extenso calendário permeado por períodos de treinamentos, descanso, tratamento, competições e viagens, chegando a dez mil horas para a formação de um atleta de alto nível. Por sua vez, a formação educacional exige o compromisso do estudante para com o aprendizado sob carga horária obrigatória presencial demandada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, além de dedicação aos estudos fora dos muros escolares.
Melo et al. (2016) estudaram a dupla carreira de jovens atletas futebolistas no Rio de Janeiro e constataram elevada proporção da jornada semanal esportiva em relação à escolar - 85% aproximadamente para os clubes da capital carioca. Esse e outros dados ilustram, para além da priorização do futebol em detrimento da escola, grande dispêndio de tempo para ambas as jornadas - 15 horas e 20 minutos e 14 horas e 57 minutos dedicados ao futebol e 17 horas e 56 minutos e 17 horas e 25 minutos para a jornada escolar respectivamente às categorias sub- 17 e sub- 20.
Em outro momento, Azevedo et al. (2017) retrataram a produção acadêmica internacional sobre o tema da escolarização de atletas comparando os achados em âmbito norte-americano e em alguns países europeus com a produção brasileira - todos em formato de artigo. As discussões convergiram para: a) tensões presentes na conciliação entre esporte e estudos, principalmente na priorização da formação esportiva em detrimento da educacional, tanto nos EUA como no Brasil; b) tentativas de conciliação e as particularidades entre seus processos de formação, contrastando a abordagem de países como EUA, Suécia, Finlândia e Dinamarca com o Brasil, onde a principal diferença está na formalização de projetos específicos para o aporte da dupla carreira por parte do Estado, enquanto no Brasil as estratégias de suporte são elaboradas de maneira informal entre família, escola e instituição esportiva; e c) a influência da família e sua relação com o esporte e a formação educacional como ponto determinante nas tomadas de decisão dentro das dinâmicas presentes na dupla carreira dos jovens.
Portanto, ao passo que o senso comum nos diz que a conquista de elevado grau de instrução pode garantir bons níveis de empregabilidade, como os projetos desses atletas estudantes são organizados e quais estratégias são definidas para alcance de seus objetivos? Por conseguinte, o trabalho em tela tem o objetivo de caracterizar e analisar a produção nacional de artigos científicos sobre a dupla carreira esportiva ou, como é chamada nos estudos encontrados, “escolarização de atletas”3.
METODOLOGIA
Estudos de revisão sistemática são comumente elaborados por ilustrarem o “estado do conhecimento”, também chamado de “estado da arte” sobre determinado tema. O objetivo desse tipo de pesquisa reside na tentativa de articular a multiplicidade de perspectivas acerca de determinada temática, a fim de fornecer pano de fundo consistente para estudos posteriores a partir do encontro de conflitos e coincidências na produção, bem como lacunas a serem exploradas (OKOLI; SCHABRAM, 2010; SAMPAIO; MANCINI, 2007; FERREIRA, 2002; SOARES, 2000).
Nessa direção, a necessidade de caracterizar e analisar a produção científica nacional sobre a dupla carreira esportiva tem seu valor justamente na articulação das conclusões encontradas, bem como das proposições feitas pelos autores sobre lacunas e limitações ainda existentes no campo em estudo. Uma vez situada a produção nacional, torna-se exercício imprescindível a comparação com o contexto internacional na busca por semelhanças e diferenças que possibilitem analisar a dupla carreira de atletas no Brasil por meio não só de estudos de revisão, como esse e outros, mas também de análises exploratórias a respeito das carreiras ao longo das vidas desses jovens atletas estudantes. Com base nisso, são fornecidos subsídios teóricos pautados no entendimento exploratório do contexto desse campo de estudo no Brasil para refinamento e aprofundamento de procedimentos metodológicos tanto na produção de trabalhos inéditos quanto em sua reprodutibilidade e extensão de conclusões com a intenção de caracterizar ao máximo o contexto brasileiro sobre o tema.
A revisão foi realizada mediante consulta ao Portal de Periódicos CAPES do Ministério da Educação, um metabuscador que indexa bases de dados a nível nacional e internacional. Na ferramenta de busca avançada, foram inseridos os descritores Escolarização e Atletas, culminando em 25 itens, que posteriormente aumentaram para 29 devido ao uso da função “Expandir meus resultados” - que adiciona à busca documentos científicos com os quais o site não possui link direto. A partir desse resultado, foram organizados critérios de inclusão e exclusão. A primeira fase de refinamento foi conduzida pela exclusão de trabalhos que não fossem artigos e que estivessem em idioma que não fosse o português, determinando a exclusão de oito itens, como livros, teses e dissertações. A segunda fase teve como critério de exclusão a leitura dos títulos baseada na busca pelos descritores usados inicialmente ou seus sinônimos, por exemplo, educação, esporte, formação esportiva e educacional, escola, ensino e esportistas, resultando na exclusão de sete artigos.
Na terceira fase de seleção - composta por 14 trabalhos -, seis itens foram excluídos após a leitura das palavras-chave. Nessa fase deveriam constar, no conjunto de palavras lidas, pelo menos uma ligada ao esporte e uma ligada à educação, restando oito artigos. A quarta e penúltima fase de refinamento foi realizada mediante leitura dos resumos, de modo que apenas um artigo foi excluído por não tratar da conciliação entre esporte e escolarização. Foram selecionados, portanto, sete artigos na última fase, a qual previa a leitura integral dos textos, seguida de análise e discussão dos estudos.
RESULTADOS
O período de produção compreendido pelo conjunto de artigos selecionados vai de 2011 a 2017, distribuídos em seis periódicos4 diferentes, sendo cinco nacionais e um internacional. Rocha et al. (2011) e Soares et al. (2011) são os primeiros estudos presentes no período relatado, seguidos por Melo et al. (2014), Carvalho e Haas (2015) e Melo et al. (2016), encerrando o intervalo de tempo com dois trabalhos, Corrêia, Silva e Soares (2017) e Oliveira, Nogueira e Nascimento (2017).
Com relação aos periódicos que publicaram os artigos encontrados, a Revista Brasileira de Ciência do Esporte apresenta a maior quantidade de publicações da presente amostra (2), seguida por outros cinco periódicos, cada qual com uma publicação5.
Cinco estudos são provenientes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, caracterizando o pioneirismo na exploração do tema no Brasil. Esses estudos foram realizados no Laboratório de Pesquisas em Educação do Corpo (LABEC), sob a coordenação do Prof. Dr. Antônio Jorge Gonçalves Soares e têm como foco análises sobre a modalidade futebol. Os outros dois estudos encontrados, não pertencentes ao círculo de produção presente na UFRJ, estão localizados na Universidade Federal do Ceará e na Universidade Cidade de São Paulo, tratando, respectivamente, de futebol e da relação entre legislação esportiva e educacional.
Os estudos que debatem futebol expressam a tentativa de compreender como atletas futebolistas conciliam os estudos e a carreira esportiva, bem como os significados da profissionalização futebolística e o lugar da formação educacional na dinâmica de dupla carreira (ROCHA et al., 2011; MELO et al., 2014; MELO et al., 2016; DE OLIVEIRA; NOGUEIRA; NASCIMENTO, 2017). A produção expressa, ainda, o entendimento dos autores sobre a articulação entre o mercado futebolístico e a estruturação dos processos educacionais e de formação esportiva (SOARES et al., 2011). Diante desse contexto, em um plano mais aprofundado, os estudos buscam possíveis entrelaçamentos entre as culturas de ambas as carreiras em caso específico, no qual a formação educacional é oferecida nas instalações de um clube (CORRÊIA; SILVA; SOARES, 2017).
As principais questões levantadas nesses estudos remetem a uma dinâmica onde estão presentes fatores esportivos e educacionais que influenciam nas decisões durante a dupla carreira; o apoio de clubes, famílias e instituições de ensino; e os significados atribuídos à formação para profissionalização no futebol e formação educacional.
O produto dessa dinâmica é indicado como o entendimento da importância da escola, o qual, todavia, não é capaz de superar a importância dada ao futebol, descompensando as relações de conciliação por meio da priorização da formação esportiva em detrimento da educacional.
No que diz respeito à produção sobre futebol, o estudo de Carvalho e Haas (2015) aborda o tema da dupla carreira do ponto de vista legal, com relação à permanência do atleta estudante na instituição de ensino, apresentando uma análise da legislação esportiva brasileira frente à Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Nesse contexto, a permanência do estudante atleta se conecta ao exercício presencial das atividades educacionais, o que levanta questões de dissonância entre a legislação esportiva e educacional quanto ao abono de faltas e cumprimento de exercício domiciliar por parte do atleta estudante em função de seus compromissos esportivos.
Os resultados encontrados apontam ainda para dois grupos de estudos quanto ao delineamento metodológico: estudos descritivos e estudos de revisão. Os descritivos trazem análises a respeito dos atletas, fundamentadas em entrevistas semiestruturadas e questionários, abordando temas, como formação profissional para o esporte, escolarização, atividades de rotina e histórico familiar. Os dados analisados expõem barreiras e facilidades encontradas durante a dupla carreira, com o principal intuito de caracterizar o perfil esportivo e educacional dos jovens estudantes atletas.
Os estudos provenientes do LABEC, que possuem delineamento qualitativo e/ou quantitativo e exploratório, consistem na análise da população de jovens estudantes atletas no Rio de Janeiro, nas categorias sub- 13, sub- 15, sub- 17 e sub- 20 de pequenos e grandes clubes. Por sua vez, o estudo de Oliveira, Balzano e Morais (2017) aborda a população de jovens atletas da categoria sub- 17 de dois clubes de Fortaleza - CE em transição para profissionalização esportiva e ingresso no ensino superior.
Os dois estudos de revisão encontrados se dividem em uma reflexão teórica a partir de consulta não sistematizada à literatura concernente (SOARES et al., 2011) e uma análise documental de marcos legais esportivos e educacionais permeados por uma revisão sistematizada de teses e dissertações sobre o tema da escolarização de atletas produzidas entre 2010 e 2014, conduzida por meio do Banco de Teses da CAPES (CARVALHO; HAAS, 2015).
DISCUSSÃO
Para enriquecimento das discussões no presente trabalho, foram incluídos três artigos (LEITÃO; FERREIRA, 2016; AZEVEDO et al., 2017; AGRESTA; BRANDÃO; NETO, 2008), um capítulo de livro (AZEVEDO et al., 2016) e duas dissertações de mestrado (BARRETO, 2012; CONCEIÇÃO, 2015), visto que tratam do tema em questão de forma direta, embora não tenham sido mapeados pelo exercício de busca e refinamento apresentado anteriormente no delineamento metodológico.
A análise dos estudos encontrados ilustra barreiras a serem enfrentadas pelos jovens bem como alguns facilitadores durante o caminho da formação esportiva em direção a profissionalização.
Os estudos sobre futebol analisam as jornadas de estudantes atletas, desenhando um cenário favorável para a formação esportiva junto à exploração midiática. A mídia enaltece as ações voltadas para o esporte em contraposição à escolarização, seduzindo principalmente jovens de camadas populares com a ideia de ascensão socioeconômica por intermédio do futebol, reforçada cada vez mais pelos veículos de comunicação, que retratam jogadores ostentando uma vida social e financeira privilegiada (SOARES et al., 2011).
Soares et al. (2011) caracterizam a estruturação do mercado do futebol na transição e profissionalização de jovens atletas como um dos pilares da reflexão sobre a dupla carreira, apresentando quatro características centrais que configuram um mercado altamente competitivo e bem agenciado, marcado por um forte trabalho de formação corporal desses jovens6. Por sua vez, o valor dado à escolarização, segundo Costa e Koslinsk (2006) está ligado não só a fatores socioeconômicos, mas também a uma influência cultural vinculada principalmente aos meios sociais por onde o jovem circula, ao seu aporte familiar e às experiências vividas no processo de escolarização. Fatores esses que, quando negativos e somados à precariedade do ensino ofertado a um amplo setor social, são importantes formadores no desprestígio da escolarização.
Essa configuração, em conjunto com o percurso mínimo de 12 anos - sem fracassos - para conquista do ensino básico completo, reforça a perspectiva da rápida mobilidade social e econômica por meio do futebol, ilustrando um modelo de escola encarado pelos jovens como desinteressante e de baixa qualidade, distanciando a dinâmica de conciliação entre as duas jornadas (SOARES et al., 2011; ROCHA et al., 2011).
Rocha et al. (2011) dão início às descrições dos perfis educacionais e esportivos, seguidos por Melo et al. (2014), Melo et al. (2016) e Oliveira, Balzano e Morais (2017), retratando jovens futebolistas das categorias de base tanto de grandes como de pequenos clubes. Os estudos descrevem os perfis dos atletas, apresentando a conciliação como culminante na dedicação ao esporte em detrimento da formação educacional, o que ilustra uma perspectiva de vida útil no esporte de rendimento. Tal perspectiva é caracterizada pelo comum término da carreira esportiva, seja involuntariamente em função de lesões, idade avançada e depleção do desempenho, seja voluntariamente, por motivos pessoais como mais atenção à convivência familiar, questões étnicas, de gênero etc. (GORDON; LAVALLE, 2015).
Vale ressaltar o estudo de Agresta, Brandão e Neto (2008), em que foi analisado o impacto do término da carreira no futebol com base na situação econômica de 57 ex-jogadores, apontando que apenas 1,8% dos casos foram de melhora financeira pós-carreira. Essa inevitável fase da jornada esportiva faz com que esses atletas tenham de buscar outros caminhos para manutenção ou desenvolvimento de suas condições socioeconômicas, mediante outras atividades remuneradas, seja por meio do esporte - como treinadores, por exemplo -, seja pela inserção no mercado de trabalho ordinário (ROCHA, 2011; MELO; SOARES; ROCHA, 2014).
Entre as principais dificuldades encontradas na dupla carreira desses jovens, estão o cansaço físico ocasionado pelo excesso de treinos; a falta de tempo para estudo fora da escola e para assistir às aulas, em razão dos compromissos com o esporte - como competições e viagens -; a desmotivação mediante insucesso escolar; e o interesse obsessivo pelo futebol, caracterizando um cenário onde o clube exige quase dedicação exclusiva de seus atletas estudantes à performance esportiva (ROCHA et al., 2011; MELO et al., 2016; OLIVEIRA; BALZANO; MORAIS, 2017).
Por outro lado, as facilidades observadas pelos estudos de Rocha et al., (2011), Melo, Soares e Rocha (2014) e Melo et al. (2016) se configuram de maneira informal entre atletas estudantes e suas instituições de ensino. Basicamente, os elementos facilitadores consistem em abono a faltas, atrasos sistemáticos - acompanhados de atividades complementares -, ensino a distância e seleção de instituição de ensino capaz de oferecer menor nível de exigência. Ainda nesse contexto, Corrêia, Silva e Soares (2017) apresentam a institucionalização interna desses mecanismos na escola do Clube de Regatas Vasco da Gama, onde, apesar de haver a preocupação com o planejamento da carreira dos jovens, o entrelaçamento das culturas escolar e esportiva prioriza a construção da carreira esportiva dos estudantes, visto que a estruturação do atendimento escolar está pautada, de modo geral, nas atividades do clube.
Soares et al. (2013) buscaram compreender a relação entre o tempo dedicado ao esporte e o tempo dedicado à escola na trajetória de jovens atletas de futebol no Rio de Janeiro nas categorias sub-13, sub-15, sub-17 e sub-20. Os resultados apontam diferença entre o dispêndio de horas dedicadas à carreira futebolística e à educacional no prospecto de nove anos que abarca as categorias estudadas - 6.192 horas para o futebol e 7.200 horas para a escola. Já Bartholo et al. (2011) caracterizaram e compararam a carga horária dedicada aos estudos e ao futebol de atletas brasileiros, no Rio de Janeiro, e espanhóis, na região de Castilla e León. Foi constatado um tempo quase três vezes maior de dedicação aos estudos que ao futebol na Espanha, enquanto os cariocas apresentam carga de treinamento superior ao dobro dos estudantes atletas espanhóis.
O tempo dedicado ao futebol somado ao tempo de permanência na escola impõe uma lacuna deixada pela negligência a outras atividades, como cursos profissionalizantes, estudo fora da escola, atividades culturais e sociais. Esses aspectos são de suma importância para o desenvolvimento de outras habilidades do atleta, que ampliariam o seu horizonte de experiências e o preparariam melhor para o ingresso no mercado de trabalho ordinário (LÓPEZ DE SUBIJANA; BARRIOPEDRO; CONDE, 2015).
A partir do entendimento da priorização da carreira no futebol em detrimento da formação educacional, Rocha et al. (2011) e Oliveira, Balzano e Morais (2017) afirmam que, embora a valorização da escola seja predominante entre os atletas analisados, eles continuam investindo na carreira futebolística em primeiro plano. Dos 417 atletas entrevistados por Melo, Soares e Rocha (2014), apenas 6,2% abandonaram a escola. Outro estudo feito por Soares et al. (2013) com a mesma amostra indica que os atletas de futebol apresentam maior quantidade de anos em escolarização que a população do estado do Rio de Janeiro. Segundo os autores, esses dados rompem parcialmente com as hipóteses de que jogadores de futebol não possuem base na formação escolar ou apresentam alto índice de evasão.
Entretanto, apesar da permanência na escola ser possibilitada mediante os mecanismos de flexibilização citados anteriormente, há ainda uma indicação de que, à medida que avançam nos processos de formação futebolísticos, os atletas optam por migrar para o ensino noturno, priorizando a manutenção das atividades esportivas sem perder o percurso escolar. Tais mecanismos denotam muito mais êxito na concessão à reprovação e ao atraso escolar do que no devido aproveitamento da formação educacional (ROCHA et al., 2011; MELO et al., 2013; CONCEIÇÃO, 2015; MELO et al., 2016).
Todos os mecanismos de conciliação relatados pelos atletas estudantes têm o respaldo de seus familiares no sentido de favorecer a formação esportiva (ROCHA et al., 2011; MELO et al., 2016; OLIVEIRA; BALZANO; MORAES, 2017; CORRÊIA; SILVA; SOARES, 2017). Logo, a influência da família se apresenta como um pilar fundamental nessa jornada dupla, pautada em aspectos culturais e de formação dos pais, responsáveis e demais familiares estão direta e indiretamente ligados a seus jovens atletas, seja emocionalmente, seja financeiramente (LEE, 1986; SAMULSKI et al., 2009; VILANI; SAMULSKI, 2002).
Fica evidente, também, nos estudos considerados, a ausência de regulamentação específica e de atuação do Estado nas dinâmicas de conciliação presentes na dupla carreira esportiva. Como consequência, a informalidade presente nas construções dos mecanismos de flexibilização entre formação educacional e esportiva é apresentada como a escolha tomada por esses jovens e suas famílias como a melhor maneira possível de aproveitar ambas as jornadas trilhadas.
Segundo Carvalho e Haas (2015), a Constituição Federal de 1988 atribui às instituições esportivas formadoras a responsabilidade de garantir a matrícula do jovem atleta na escola pública ou particular, ajustar o tempo de treinamento aos horários do currículo escolar e exigir sua frequência e aproveitamento satisfatório. Já na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), não há nenhum marco que subsidie o atleta estudante quanto a suas demandas específicas oriundas da conciliação entre carreira escolar e formação esportiva para o alto rendimento. O documento trata do atleta estudante da mesma forma que o indivíduo que se propõe apenas a trilhar a jornada escolar, exigindo, por exemplo, 75% de presença obrigatória nas aulas como requisito parcial para aprovação. Entre as leis esportivas, se destaca a Lei 9.615, de 1998 - conhecida como Lei Pelé -, que institui normas gerais a respeito do esporte brasileiro. Entre elas, está a previsão de ausência escolar em função de atividades esportivas apenas para “atleta servidor público civil ou militar” que esteja convocado à representação nacional em treinamento ou competição, no País ou no exterior (CARVALHO; HAAS, 2015).
Essa superficialidade de marcos legais esportivos e institucionais foi reforçada por Barreto (2012) quando, em trabalho de dissertação, analisou os processos de formação de estudantes atletas no futebol de Minas Gerais, mais especificamente no Clube Atlético Mineiro e no Cruzeiro Esporte Clube. O autor, em seu estudo, ressalta a ambiguidade quanto à formação profissional desses jovens no esporte, visto que, apesar de as atividades de formação no futebol serem encaradas pelas instituições esportivas como “trabalho” perante a lei, apenas a partir dos 14 anos é que essa formação se aproxima do caráter profissionalizante, sob a figura do menor aprendiz e seus direitos. Logo, expõe Barreto (2012), os deveres dos clubes quanto aos vínculos profissionalizantes com seus atletas - seja como profissional livre, seja como aprendiz7 - e o oferecimento da escolarização parecem ser atendidos, ao menos teoricamente, de acordo com os interesses da sociedade civil. Ou seja, são oferecidas condições favoráveis para frequência obrigatória ao ensino regular, compatibilização das atividades com o desenvolvimento do adolescente e horário especial para desempenho das atividades trabalhistas no futebol.
Para tanto, a abordagem legislativa brasileira trata indiretamente da questão da conciliação entre esporte e escola, limitando-se a exigir o cumprimento de direitos fundamentais do jovem enquanto estudante ou atleta, como acesso à educação básica e condições favoráveis para formação esportiva, sobressaindo a citada falta de regulamentação específica em relação às duas carreiras quando trilhadas concomitantemente (LEITÃO; FERREIRA, 2016).
Em 2012, foram lançadas as Diretrizes para Dupla Carreira (EUROPEAN COMISSION, 2012), um documento que leva em consideração diversos eixos inerentes às vidas dos jovens que optam por trilhar a jornada da conciliação entre esporte e trabalho ou estudos na Europa, sugerindo ações de amparo ao atleta estudante dentro de uma perspectiva holística8. Assistência médica, psicológica e programas preventivos, bem como assistência financeira no sob a forma de bolsas escolares e outros suportes financeiros, como pensões pagas pelo Estado no formato de fundos advindos de doações, eventos, porcentagens retiradas de casas lotéricas, entre outras estratégias, são apontadas para que cada membro da União Europeia possa elaborar suas políticas de apoio à dupla carreira. Vale ressaltar que esse documento apenas norteia as ações dos países membros, conferindo ampla liberdade e autonomia para elaboração das ações em específico.
No Brasil, a Lei 12.395, de 2011, apresenta requisitos para entidades esportivas cumprirem perante seus atletas em formação e assim serem caracterizadas como entidades esportivas formadoras. Entre os requisitos, estão a garantia de suporte médico e alimentício, transporte, convivência familiar, ajuste do tempo de treinamento ao currículo educacional, etc.9. Contudo, apesar de esses requisitos estarem dispostos na lei para qualquer modalidade esportiva, o artigo 94 da Lei 9.615 impõe a sua obrigatoriedade apenas para o futebol, desamparando formalmente os atletas das demais modalidades esportivas. Nesse caso, a Confederação Brasileira de Futebol, por meio da Resolução da Presidência n. 1, de 2012, estabelece normas, procedimentos, critérios e diretrizes segundo a Lei 12.395, para emissão do Certificado Clube Formador em duas categorias10. No entanto, o reflexo da adesão dos clubes de futebol na aquisição desse certificado é minoritário, pois apenas 6,5% dos clubes filiados a CBF são certificados como clubes formadores, relatam Leitão e Ferreira (2016).
Ainda que a Lei 12.395 aborde aspectos que envolvem a trajetória dupla do atleta estudante, ela trata da conciliação entre esporte e escola apenas no âmbito de dedicação quanto à carga horária. Nesse caso, a exigência da “complementação educacional” presente na lei não é apresentada junto a sugestões de estratégias para o devido aproveitamento dentro e fora dos muros escolares, demonstrando superficialidade. Haja vista a responsabilidade conferida às entidades esportivas pela legislação brasileira e o intenso trabalho corporal na formação de jogadores de futebol (SOARES et al., 2011; SOARES et al., 2013), percebe-se grande autonomia por parte dos clubes no trato a dupla carreira, o que favorece a priorização da formação esportiva em detrimento da educacional, mediante superficialidade de marcos legais direcionados à concomitância das duas jornadas.
Outra lacuna a ser discutida é a fase de descontinuação ou pós-carreira esportiva. No Brasil, o Projeto de Lei Complementar PLP 16/201511 - em tramitação na Comissão de Seguridade Social e Família - busca conceder aposentadoria especial a atletas profissionais e semiprofissionais em virtude de trabalho sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou integridade física. Garantir o direito a aposentadoria mediante menor tempo de serviço não resolve as barreiras específicas da fase de descontinuação esportiva, levantando dúvidas sobre a legalidade da matéria.
Ainda sobre o referido projeto de lei, as condições especiais prejudiciais à saúde são justificadas apenas em relação a riscos físicos, como lesões. Vale lembrar que o abandono da carreira esportiva de alto rendimento não se dá em função apenas de riscos físicos, mas também de questões de ordem financeira, familiar, social e inclusive outros fatores físicos que não sejam lesões - idade avançada e depleção do desempenho - (GORDON; LAVALLE, 2015). Além disso, é indicado na PLP 16/2015 o estabelecimento do tempo de contribuição em 20 anos para essa população específica, sob a justificativa de vida útil “curta” da carreira esportiva de alto rendimento. É válido citar o exemplo dos atletas de ginástica artística e rítmica, que iniciam a carreira precocemente - antes mesmo da puberdade -, atingindo o abandono do esporte em média aos 20 anos (MELO; RUBIO, 2017; NUNOMURA; CARRARA; TSUKAMOTO, 2010). Nesse caso, por mais que o atleta ou a atleta comece a contribuir com a idade mínima de 14 anos - na condição de menor aprendiz - terá, ao final da carreira, apenas seis anos de contribuição12.
Deve-se, portanto, considerar o atleta holisticamente, o que implica prepará-lo para a vida pós-esportiva com vistas à inserção no mercado de trabalho ordinário de forma qualificada, assumindo-se que sua formação educacional tenha tido plenas condições de ser devidamente aproveitada. Em oposição a essa perspectiva, destaca-se que, dos 57 ex-jogadores de futebol entrevistados por Agresta, Brandão e Neto (2008), apenas quatro declararam ter recebido apoio dos clubes que defenderam e 40 receberam apoio da família ou amigos.
Nesse sentido, as Diretrizes para Dupla Carreira (EUROPEAN COMISSION, 2012) sugerem uma abordagem planejada para a fase de descontinuação, que desenvolva a identidade pessoal dos atletas para além do âmbito esportivo, por meio de experiências positivas em outras funções vocacionais, planejando antecipadamente sua aposentadoria e sempre com o apoio do máximo de atores envolvidos em sua trajetória - desde família e amigos até treinadores, associações de jogadores e organizações esportivas.
Entretanto, considerando-se o modelo brasileiro atual, fragilizado pela superficialidade de marcos legais relativos à conciliação entre estudo e esporte, o atleta estudante e sua família sofrem pressões sobre a escolha entre dedicar-se ao esporte ou à escola (CONCEIÇÃO, 2015). Somado ao contexto de escolha reduzida apenas a uma trajetória em específico, está o fato de os clubes, apesar de desenvolverem mecanismos que possibilitem a frequência do atleta aos bancos escolares, de certa forma, negligenciam a responsabilidade de exigir desempenho satisfatório, direcionando a atenção do jovem quase que totalmente à performance esportiva.
CONCLUSÕES
Mapeamos o predomínio das publicações no formato de artigos direcionados à modalidade futebol, descrevendo a conciliação da dupla carreira esportiva de jovens aspirantes a jogadores profissionais. Apesar de os resultados ilustrarem o predomínio de estudos sobre futebol, é importante ressaltar que outras modalidades esportivas também são estudadas, porém apresentam-se no formato de capítulos de livros, monografias, dissertações de mestrado e teses de doutorado, um fator limitador no delineamento metodológico.
A administração do tempo na dupla carreira mostrou-se como principal desafio encontrado nos estudos selecionados, de modo que o excesso de dedicação aos processos de formação esportiva culmina com a flexibilização das instituições de ensino como principal ferramenta da conciliação. Nesse caso, podemos apontar, por um lado, a existência de escolas que flexibilizam suas normas em função da jornada esportiva do estudante, desenvolvendo estratégias apenas para saldar os débitos em relação ao cumprimento de requisitos básicos para a aprovação, como atividades complementares e atrasos sistematizados. Por outro lado, temos clubes inflexíveis quanto à jornada escolar, exigindo dedicação quase que exclusiva de seus atletas, mediante certa permissividade causada pela superficialidade de marcos legais.
Vale lembrar que a comum fase da descontinuação esportiva deve ser planejada antecipadamente, assim como todo o percurso trilhado na dupla carreira, tanto no esporte quanto na formação educacional. Portanto, a ideia de desempenho acadêmico satisfatório - presente na Lei 12.395, de 2011 - a ser alcançado pelo estudante atleta deve organizada de maneira integrada com a instituição escolar, proporcionando o devido aproveitamento do conteúdo escolar/acadêmico, assim como é feito com experiências oferecidas pela formação esportiva.
Salientamos, também, o importante papel da família, caracterizado, nos estudos encontrados, como concessora de estratégias de flexibilização escolares, uma vez que os familiares enxergam, na profissionalização futebolística, a oportunidade da rápida ascensão socioeconômica em virtude, principalmente, de todo o aporte midiático dado ao esporte junto ao seu competitivo e bem estruturado mercado. Todavia, a especificidade da modalidade futebol, principalmente refletida pelo seu exclusivo nível de espetacularização quando comparado às demais modalidades esportivas, suscita a necessidade de aprofundamento dos demais mercados esportivos e sua compreensão por parte dos atores envolvidos nos processos decisórios de dupla carreira.
Portanto, o ponto central desta conclusão reside no planejamento da dupla carreira dos atletas estudantes. Ato que deve levar em consideração a caracterização desses jovens segundo os papéis que assumem dentro de todos os contextos em que atuam: o esportivo, o educacional, o socioeconômico e o familiar. Para tanto, inicialmente são necessários reforços dos marcos legais relativos às ações das instituições esportivas e regulamentação dos direitos fundamentais do estudante e do atleta no formato conjugado exigido pela dupla carreira esportiva - entendendo ainda que o atleta de alto rendimento, mais cedo ou mais tarde priorizará a sua dedicação ao esporte. Além disso, devem ser reforçadas ações fiscalizatórias sobre esses atos para o melhor cumprimento do atendimento desses jovens atletas estudantes, bem como dos atletas encontrados na fase de descontinuação.
Sugerimos para futuras pesquisas a extensão das análises descritivas a outras modalidades, tendo em vista principalmente diferentes barreiras e facilitadores abordados pela literatura internacional quanto ao mercado econômico proporcionado pela modalidade esportiva, além de questões de gênero e idade de especialização. Paralelamente a isso, recomendamos que se façam análises comparativas entre as abordagens brasileira e internacional sob o ponto de vista legal a respeito do apoio ao estudante atleta, visto que elas contribuiriam com o intento de produzir proposições para a criação de políticas públicas efetivas, que ofereçam o melhor aproveitamento possível tanto na formação educacional, com vistas principalmente à fase pós-esportiva, quanto no próprio desenvolvimento do esporte de rendimento na realidade brasileira.