INTRODUÇÃO
Nas últimas décadas, a sociedade sofreu grandes transformações. As mudanças nos sistemas econômicos, a instauração do neoliberalismo, a globalização, a intensificação dos fluxos migratórios, as lutas dos grupos minoritários por representação e o surgimento da internet, estimulando a proliferação de significados, produziram diferentes efeitos sobre a vida.
A eclosão de outras formas de análise do social - o pós-modernismo, os estudos culturais, o multiculturalismo crítico, o pós-estruturalismo, os estudos feministas e o pós-colonialismo, somadas às lutas dos grupos historicamente marginalizados, fortaleceram os debates sobre os direitos à educação e deram importantes contribuições para o campo dos estudos curriculares. Silva (2007) e Lopes (2013) compreendem que sob influência das chamadas teorias pós-críticas do currículo, a politização foi ampliada, reivindicando outros saberes e lutas, indo além das questões de classe social e abrindo o debate para a sexualidade, gênero, raça, etnia, religião, tomados como marcadores identitários.
Esse movimento afetou diferentemente o ensino das disciplinas escolares. No caso da Educação Física, Rocha et al. (2015), Tenório et al. (2017) e Pereira et al. (2020) observaram que as influências das teorias pós fizeram surgir o chamado currículo cultural. Conforme Santos Júnior (2020), nessa proposta, um conjunto de princípios ético-políticos (reconhecimento da cultura corporal da comunidade, articulação com o projeto político pedagógico da escola, justiça curricular, descolonização do currículo, rejeição ao daltonismo cultural, ancoragem social dos conhecimentos e favorecimento da enunciação dos saberes docentes) agenciam os docentes, tanto na definição das práticas corporais a serem tematizadas, quanto na organização e desenvolvimento das situações didáticas.
Existe um vasto material produzido por professores de Educação Física em atuação nas mais diferentes redes de ensino, afirmando que o currículo cultural de Educação Física produz efeitos nas representações culturais dos estudantes sobre as práticas corporais e seus representantes.
Cruz (2009, p. 142), por exemplo, desenvolveu um projeto no horário do intervalo entre as aulas da escola, identificando como as relações de poder atuam nesse espaço e para isso propôs diferentes possibilidades de intervenção. Após realizar uma assembleia com os atores envolvidos e definir diferentes ações coletivas, afirma que “o currículo, ao ganhar vida em meio aos diversos cenários escolares, contribui de forma decisiva na formação das identidades dos cidadãos formados pela escola”.
Após tematizar da capoeira e abordar seus diferentes sentidos, Reis (2009, p. 167) explica que “algumas representações foram construídas, reconstruídas e, em muitos momentos, transformadas devido à complexidade dos assuntos abordados”. Neves e Escudero (2012, p. 63) também promoveram o estudo da capoeira e constataram que os alunos “ao terem contato com diferentes discursos sobre os negros e ao saber das próprias pessoas seus saberes e todas sua luta para sobreviver", mudaram seus discursos que antes inferiorizavam esse grupo cultural.
Durante a tematização1 da pipa, Salomão et al. (2016) perceberam que as gestoras da escola e alguns estudantes exteriorizavam preconceitos sobre a brincadeira, mas ao final do trabalho houve quem dissesse que a pipa é uma arte. Ao tematizar o funk em uma escola da rede estadual da cidade de São Paulo, o professor sofreu resistência de uma parcela da comunidade escolar. Entretanto, ao final, percebeu que alguns estudantes tiveram sua voz reconhecida diante de um contexto que muitas vezes se sentem estranhos (QUARESMA; NEVES, 2016).
Em suma, os trabalhos supracitados fazem alusões a modificações nas significações dos discentes a partir de constatações empíricas, sem entrar em detalhes sobre como isso acontece. Tal fato desencadeou o interesse de investigar como o currículo cultural atua na produção das representações discentes.
Os estudos sobre o currículo ratificam seu papel decisivo na constituição de identidades. O acesso a determinados conhecimentos e não outros, fazendo uso de certas atividades e não outras termina por posicionar o aluno de uma determinada forma diante das “coisas” do mundo, influenciando fortemente as representações construídas. Aceito o fato de que o currículo forja identidades conforme o projeto de sujeito almejado (SILVA, 1996; 2007), e assim, ganha relevância toda investigação que evidencie seus possíveis efeitos, ao colocar sob análise os conteúdos abordados, a maneira com que são desenvolvidas as atividades de ensino e como todo esse processo de ressignificação mobiliza e leva os sujeitos a assumirem determinadas posições de sujeito.
Considerando que toda decisão curricular é uma decisão política e que o currículo pode ser visto como um território de disputa em que diversos grupos atuam para validar os conhecimentos (SILVA, 2007), é importante afirmar que o contato com determinados “textos” culturais promovido pelo currículo, além de viabilizar o acesso e uma gradativa compreensão dos conteúdos veiculados, influencia as formas de interpretar o mundo, comunicar ideias e sentimentos, contribuindo para a formação de diferentes representações culturais.
Nos termos da presente pesquisa, a preocupação recai sobre as práticas corporais enquanto artefatos culturais distintivos, alocados no currículo da Educação Física como objetos de estudo. Por empregarem uma gestualidade carregada de sentidos, as brincadeiras, esportes, danças, ginásticas e lutas são concebidas como textos corporais, configurando formas de expressão, produção e reprodução de significados culturais (NEIRA; NUNES, 2006).
Para os Estudos Culturais, campo teórico que analisa como a cultura constitui a vida das pessoas, revelar os mecanismos pelos quais se constroem determinadas significações e ressignificações é o primeiro passo para reescrever os processos discursivos e alcançar a formação de outras identidades (NELSON et al., 2008).
Em tempos de repetidas críticas aos diversos modelos curriculares em voga e diante da tentativa de transformar a realidade social brasileira, o processo discursivo posto em ação pelo currículo como um todo e do componente Educação Física em específico, assume um papel fundamental. A análise dessa dinâmica mediante um conhecimento mais profundo das lutas por significação que explicita poderá suscitar movimentos em prol da melhoria ou modificação na educação. Eis a importância de pesquisas dedicadas a conhecer os efeitos de qualquer proposta curricular, dentre elas, a perspectiva cultural da Educação Física.
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
A bricolagem de métodos busca dar coerência aos posicionamentos político e epistemológico que inspiram a presente investigação. Kincheloe (2006) definiu a bricolagem como um modo de investigação multimetodológico que busca interpretar diferentes pontos de vista a respeito de um mesmo fenômeno, confrontando-os com distintos referenciais teóricos.
Em trabalho posterior, Kincheloe (2007) explica que o termo bricolagem é compreendido como o emprego de variados métodos e estratégias à medida que se tornam necessários no desenrolar do estudo. A opção pela etnografia, nos moldes propostos, deve-se à necessidade de recolher as experiências curriculares dos participantes no exato momento em que ocorrem e por permitir o reconhecimento das representações que os sujeitos elaboram acerca das situações vividas.
Durante o caminho, foi necessário repensar a pesquisa, sensível a outros elementos que foram emergindo. Por isso, recorreu-se à autoetnografia, uma espécie de autonarrativa, uma possibilidade de o sujeito narrar-se e emergir nessa cultura (BOSSLE; MOLINA NETO, 2009). A junção da etnografia com a autoetnografia permitiu ampliar a compreensão sobre os efeitos das experiências didáticas com o currículo cultural.
A presente pesquisa empreendeu observações participantes de aulas de Educação Física em escolas públicas, entrevistas semiestruturadas com estudantes e professores, além da recolha de documentos que subsidiaram a ação didática (planos de ensino, diários de classe e atividades). As transcrições das observações e das entrevistas, bem como os materiais reunidos foram submetidos à análise cultural. Ademais, como um dos pesquisadores é um professor que coloca em ação o currículo cultural de Educação Física, os significados produzidos pelos estudantes a partir das suas aulas também se transformaram em objeto de análise.
Nesse caso, o investigador, em certa medida, é sujeito da sua própria pesquisa, o que permite colher dados importantes sobre o entendimento do seu trabalho. Esse procedimento é importante porque o pesquisador consegue fazer outras leituras do cotidiano, além dispor de diferentes canais de comunicação com os vários atores do currículo, detalhes que podem levar tempo para serem percebidos quando se está imerso em outra realidade. (SALOMÃO, 2017).
A autoetnografia estabelece conexões mais próximas com da ação didática e a pesquisa. Nesse jogo discursivo, a pesquisa se realiza a todo momento e permite que o pesquisador identifique gestos, olhares e diferentes textos que dão pistas para o entendimento do trabalho, em outras palavras, permite exorcizar alguns fantasmas e pensar “sobre os jogos de linguagem, reciprocidade, intimidade, poder e redes de representação.” (SILVEIRA, 2007, p. 123).
Pesquisar a própria prática pedagógica e avisar os estudantes sobre a pesquisa diminui a tensão e a necessidade de o entrevistado resistir a respostas de forma sutil impostas por relações de poder entre entrevistador e entrevistado, professor e estudante, também diminui a tensão na qual o entrevistado fica encurralado e acaba se apropriando de diferentes estratégias de fuga para escapar daquilo que o pesquisador deseja ouvir e que muitas vezes induz a um jogo de cartas marcadas.
A autoetnografia alinhada a diversos momentos de entrevista se apresenta como uma possibilidade interessante de percepção de sentidos, de efeitos discursivos e de momentos onde emergem diferentes significados e são produzidas outras identificações durante a prática pedagógica.
Compondo a colcha de retalhos que caracteriza a bricolagem (NEIRA; LIPPI, 2012), recorreu-se também à etnografia para entender o contexto da pesquisa e observar mais de perto. Esse procedimento se apresenta como uma alternativa interessante para substituir métodos desgastados, tipologias massificantes e quantitativas.
A análise com ênfase no cotidiano e na subjetividade revela uma possibilidade para se pesquisar o efeito do currículo nos sujeitos da educação. Fonseca (1999) defende que o método etnográfico além de ser importante para a compreensão do mundo intelectual, fornece pistas interessantes para pesquisar a sala de aula e o currículo em ação.
Nesta pesquisa, observou-se a prática pedagógica de três professores que afirmam colocar em ação o currículo cultural da Educação Física. Chegou-se a eles por meio do Grupo de Pesquisas em Educação Física escolar da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Segundo a caracterização disponível no site2 do grupo, trata-se de um coletivo que busca inspiração nas teorias pós-críticas para desenvolver experiências didáticas. O tempo de magistério dos participantes varia entre 8 e 10 anos, sempre atuaram em escolas públicas municipais ou estaduais. A mudança de instituição, quando aconteceu, deveu-se à busca por unidades de ensino que primassem pelo trabalho pedagógico coletivo, estabelecendo um diálogo com as culturas do entorno.
A imersão deu-se em quatro instituições públicas de Educação Básica situadas no município de São Paulo. Duas escolas municipais de Ensino Fundamental (escolas 1 e 2); uma escola estadual de Ensino Fundamental e Médio (escola 3) e um Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos (escola 4). Este, situado no bairro do Capão Redondo (Zona Sul), enquanto as demais se localizam, respectivamente, nos bairros da Vila Maria (Zona Norte), Jardim Esther (Zona Oeste) e no Jardim Ângela (Zona Sul). A localização das escolas foi considerada na escolha, seja em função da proximidade com o local de trabalho ou de moradia do pesquisador. A fim de preservar a identidade das pessoas envolvidas, as instituições que acolheram a investigação serão numeradas e nenhuma forma de identificar os sujeitos será empregada.
Em função dos objetivos da pesquisa, adotou-se a etnografia como método durante o estudo do futebol feminino (escola 1) e das lutas (escola 3). Serviram como técnicas para produção de dados, a observação seguida de descrição em diário de campo e um questionário. A autoetnografia foi adotada nas escolas 2 e 4. Nesse caso, além da observação e descrição em diário de campo, uma página secreta do Facebook serviu como instrumento para potencializar as manifestações dos estudantes acerca da tematização do circo (escola 2). Na escola 4, durante o período da pesquisa, foram abordados o maracatu e a capoeira.
Para interpretar os materiais produzidos, optou-se pela análise cultural. A escolha se fez pela contribuição que o método pode oferecer para o campo dos Estudos Culturais. Além do rompimento com o cânone que sempre esteve presente nas ciências positivistas, o deslocamento gerado por esse movimento teórico permite que a cultura seja analisada nos diferentes locais.
A análise cultural permite “examinar um pouco mais detidamente as relações entre linguagens, representações, produções de significados (e) discursos.” (WORTMANN, 2002, p.78). A linguagem tem um papel importante porque é por meio dela que as pessoas interagem através de um complexo sistema de signos, sem ela não seria possível a comunicação. Ademais, é o que viabiliza o diálogo e permite que os sujeitos interpretem o mundo de uma determinada maneira.
Apoiada na noção de representação cultural de Hall (1997), essa forma de interpretação permite analisar os diferentes circuitos de significação colocados em ação. Torna-se central o entendimento de como os significados e as práticas são construídas no discurso e, como o poder e a linguagem regulam condutas e ajudam a construir representações produzindo diferentes sujeitos.
A questão da análise cultural, segundo Wortmann (2002), é “penetrar nas linguagens” e “garimpar” os significados em uma multiplicidade de textos. Ao se aventurar por esses campos não se pretende desocultar ou denunciar o que supostamente possa estar escondido, o que se busca é simplesmente praticar Estudos Culturais como sugerem diferentes autores.
ANÁLISE E DISCUSSÃO
Ao analisar a documentação compilada, compreende-se facilmente que as significações proferidas pelos estudantes relacionadas às práticas corporais tematizadas nas aulas e seus respectivos praticantes, experimentaram um movimento de polissemia e ampliação. O ato de significar está atrelado a uma cadeia de enunciados que extrapola os discursos acessados somente no currículo escolar. As representações culturais são produzidas discursivamente pelas diferentes pedagogias disponíveis na sociedade e esse processo ocorre em meio a relações de poder.
Importa reconhecer que os olhares lançados aos acontecimentos das aulas estão contaminados pelos Estudos Culturais, haja vista sua influência nas práticas pedagógicas conduzidas pelos professores que afirmam colocar em ação o currículo cultural da Educação Física. Diante desses limites, convém identificar algumas marcas e traços deixados pelas experiências pedagógicas observadas, para então adentrar às análises.
Os discursos que circularam nas tematizações investigadas permitiram identificar que o processo de significação colocado em ação ocorreu de maneira diferente do que se poderia imaginar. Contrariando os resultados de pesquisas anteriores (NEIRA, 2014, 2015 e 2016) que afirmavam que os efeitos do currículo cultural decorriam do processo de desconstrução3 promovido em momentos pontuais, observou-se que, desde o início da tematização, os significados atribuídos pelos estudantes sobre as práticas corporais sofreram diferentes deslocamentos discursivos.
Só é possível entender os efeitos do processo de significação se forem conhecidas as posições de sujeito que elas incitam, pois, segundo Woodward (2007, p. 17), “a representação inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos como sujeitos. É por meio dos significados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos.”
O ato de significar uma prática corporal logo no início da tematização pode produzir discursivamente diferentes significações, a depender de quem fala e das relações de poder envolvidas. Consequentemente, a luta pela significação está pautada na circulação de discursos verbais e não verbais. Esse detalhe é importante porque, na perspectiva cultural da Educação Física, as práticas corporais são tomadas como textos da cultura produzidos pela linguagem corporal.
Uma vez iniciados os trabalhos, observou-se que a diversidade de significados partilhada pela turma vem à tona indicando várias possibilidades de conceber a manifestação em tela. Na escola 4, por exemplo, os estudantes reagiram da seguinte forma às primeiras imagens da capoeira: “Isso não pode ser arte marcial, se precisar bater eles batem, a capoeira é luta, dança, esporte”. (Diário de campo, 10/05/2015).
Durante o mapeamento4 sobre o futebol realizado na escola 1, o professor lançou as seguintes questões: “Com as experiências que vocês têm, o que os leva a falar do jogo?”; “O que mais têm a dizer das experiências?”; “Dá para jogar no campo?”; “Saindo deste espaço, o futebol de rua tem árbitro?”; “Por que se chama pelada?; Quem pôs as regras?” E os estudantes retrucaram: “Acho desnecessário gastar dinheiro com o futebol”; “Futebol feminino não é reconhecido”; “A mesma coisa [futebol feminino], mas não passa na TV”; “Alegria que fica dentro de nós quando fazemos o gol”; “O dinheiro que vem do clube para reformar os estádios, na Copa do Mundo, vem dos governos”; “Acho o futebol preconceituoso”. (Diário de campo, 19/04/2016)
Durante uma atividade de aprofundamento5, o professor sugeriu a leitura de um texto do escritor uruguaio Eduardo Galeano: “O texto serviu de alguma coisa?”; “Por que se chama pelada?”; “Quem pôs as regras?”. Logo surgiram as primeiras falas dos alunos, relacionando o esporte ao investimento financeiro, ao reconhecimento social e às questões de gênero: “Acho desnecessário gastar dinheiro com o futebol”; “Acho futebol preconceituoso”; “Porque não investe no feminino?”; “E na Copa do Mundo, só tem jogo masculino!” e “Nas Olimpíadas, as mulheres são as melhores”. (Entrevistas realizadas em 16/08/2016)
A citacionalidade exercida pelos docentes direcionou-se à desconstrução dos discursos que inferiorizam o Outro, colocando em ação uma postura que vai além do binarismo, graças às atividades de ampliação6 que viabilizam o acesso a diferentes significados, privilegiando outros olhares.
Nesse movimento, o currículo cultural não deseja definir isso ou aquilo, se o futebol é um esporte exclusivo dos setores mais abastados e se a capoeira é luta ou, também, jogo ou brincadeira. Nesse processo de deslocamento discursivo, abrem-se possibilidades para as práticas corporais serem ressignificadas de infinitas maneiras.
No trabalho observado na escola 3 ocorreu algo semelhante. As lutas tematizadas durante as aulas receberam significados atrelados à macumba. No decorrer das situações didáticas, os estudantes puderem perceber que essas práticas corporais, em outras culturas, vinculam-se à cerimônia de casamento, ritual de respeito aos mortos, competição etc. O professor adotou a precaução de não fixar significados, não os encerrando em uma única possibilidade de ser. (Diário de campo, 24/10/2016)
Veja-se o seguinte diálogo: “O que é macumba?”; “Se não é macumba é o quê?”; “Que ideia você tem sobre macumba?”; “Para fazer o mal, teve um dia que fui ao shopping e no caminho vi aquela coisa lá cheia de ovo dentro, tinha farofa, pinga, vela”; “Se eu vir isso na frente, eu chuto”; “Para mim, macumba é um instrumento”, disse o professor. “O que vocês estão falando que é macumba pode ser uma oferenda de alguma religião afro-brasileira”. (Diário de campo, 13/09/2016).
Como a linguagem é central nesse processo, as atividades de ampliação sugeridas pelo currículo cultural instigam a circulação de significados atribuídos às práticas corporais, sobre o quais não se tem qualquer controle. Vale ressaltar que para os Estudos Culturais, a representação é apenas um traço. Nunca, o ato ou processo de significação determinam o que uma coisa é. Não existe uma relação direta entre algo e a representação que lhe é atribuída. Uma representação não permanece intacta, ela jamais se define. É sempre adiada e, às vezes, severamente disputada de acordo com o circuito de cultura que está em jogo (WORTMANN, 2011).
Por meio da tematização, o conhecimento é tecido rizomaticamente. Por meio das ações didáticas conectam-se diferentes saberes, todos passíveis de produzir outras significações (SANTOS, 2016). A maquinaria que constitui o currículo cultural fortalece o diálogo com outras formas de ser e viver. Tomem-se como ilustrações as questões disparadas pelas crianças ao artista circense convidado para conversar com elas durante a tematização do malabarismo: “Como você aprendeu a fazer malabares?”; “Há quanto tempo você prática?” e “O que te satisfaz nessa prática?” (Diário de campo, 27/07/2015).
Trazer os representantes das práticas corporais à escola pode levar os estudantes a tomarem contato com outros discursos a respeito dessas pessoas e suas vivências com as práticas corporais. Perguntando ao artista circense de onde vinha, quanto ganhava e como vivia, acessaram os significados que desestabilizaram as representações anunciadas até então. Num dos encontros, os alunos puderam entender mais sobre a relação que o artista tem com o trabalho e com o seu público. Ele relatou que mora no mesmo bairro onde fica a escola, em uma casa boa e disse à turma que por filosofia de vida gosta de interagir com as pessoas. Explicou, também, que conseguir algum dinheiro era um dos objetivos que o levava a trabalhar no semáforo, mas não era o principal. Destacou que o retorno profissional estava na satisfação de se comunicar com as pessoas e fazer amizades. (Diário de campo, 25/08/2015).
Um segundo artista circense relatou que se formou em História, atuava em eventos e locais fechados como festas de aniversário e intervenções em empresas. Disse que já trabalhara nos semáforos, respeita bastante aqueles que o fazem, mas prefere outros espaços. Diante do contato com maneiras distintas de ser e de viver o circo, alguns estudantes observaram que ser circense não é sinônimo de pedir dinheiro na rua. Até pode ser, mas também, fazer amizades e trabalhar em outros locais. (Diário de campo, 25/08/2015). O acesso a essas informações desestabilizou as formas de ver dos estudantes, que passaram a compreender que os circenses podem pertencer a diversos segmentos sociais, não sendo obrigatoriamente pobres, nem dependentes da “ajuda” de estranhos para sobreviver.
Na escola 4, o maracatu foi representado pelos alunos da seguinte maneira: “Maracatu é coisa do demônio”; “Eu não vou estudar essas coisas do demônio, não!” e “Sangue de Jesus tem poder!” (Entrevistas realizadas em 05/05/2016). Entretanto, durante a tematização, ao entrevistarem seus representantes, acessaram as concepções de amizade, amor, resistência, cortejo, coroação dos reis do Congo e cultura. Quando o mesmo professor tematizou a capoeira com outra turma, percebeu significados parecidos, alguns estudantes disseram que era “macumba”. Mais uma vez, após os encaminhamentos pedagógicos culturalmente orientados, a prática passou a ser vista como luta, jogo, possibilidade de viver uma vida digna, mandinga, malícia, manha e diversão.
Os brincantes que visitaram a escola em meio à tematização do maracatu explicaram que o cortejo lhes trazia recordações de familiares falecidos, além de coleguismo e resistência, pois associavam-no à luta dos negros escravizados no Brasil e às relações de amizade que construíam: “Maracatu é amor”; “Maracatu é coleguismo, é uma palavra que define também o que é isso para mim” e “O maracatu é um momento de compartilhar, um com o outro, amor e resistência”. (Diário de campo, 08/08/2016).
As atividades de ensino elaboradas para hibridizar discursivamente as representações culturais também geram efeitos inesperados. Logo após elaborarem questões acerca do maracatu e assistirem a um vídeo sobre maracatu rural, os estudantes aprofundaram seus conhecimentos mediante a realização de pesquisas na sala de informática da escola. Uma aluna leu em um site que o maracatu estava ligado ao candomblé. No mesmo instante, bateu na mesa e cruzou os braços: “Professor, eu li aqui que maracatu é coisa do demônio e eu sou evangélica, não vou fazer mais nada.” (Diário de campo, 16/03/2016).
O acesso a esse significado fortaleceu a representação que possuía sobre a prática corporal, aumentando sua resistência ao tema. Atento a esse efeito e conforme os discursos que estavam emergindo, o professor organizou uma atividade que propiciou a desconstrução desse significado. Para tanto, contou com a ajuda da colega de História. Percebeu que seria necessário discutir com a turma a escravização dos negros no Brasil, visando identificar como surgem os discursos preconceituosos a respeito dos produtos culturais da população negra. Começou questionando sobre a vida na África e obteve como resposta: “Lá deve ter bastante miséria e pobreza!” (Diário de campo, 08/09/2015).
Na sequência, apresentou-lhes outros discursos a respeito da vida no continente africano. Discutiram sobre a diversidade étnica, a vinda dos negros à força e comercializados como qualquer outra mercadoria. Com base na historiografia consultada, aproveitou a oportunidade para ancorar socialmente o maracatu como representação do cortejo de coroação dos reis e rainhas vindos do Congo. Durante a exposição, um aluno que havia se recusado a participar da conversa com os brincantes de maracatu convidados, chegando a interpelá-los com expressões desrespeitosas, disse: “Professor, posso falar? Na última aula também vi lá na sala de informática que o maracatu era religião, e eu sou evangélico e fiquei meio estranho, agora com sua explicação comecei a entender que é cultura de um povo, história de um povo”. (Entrevista realizada em 12/04/2016).
Nesse ato político, os professores conseguem borrar as relações de poder e fazer com que os estudantes reflitam sobre os discursos que constituíram suas maneiras de observar a prática corporal e as pessoas que dela participam. Fica evidente que durante as suas trajetórias de vida, os alunos e alunas acessaram uma “única” maneira de ver, isso pode determinar o olhar preconceituoso que lançaram sobre o maracatu e explicar por que emergiram certas significações.
As atividades de desconstrução empreendem um longo e detalhado processo de transformação do olhar sobre o objeto investigado. A depender dos discursos colocados em circulação pelas ações didáticas, é possível desestabilizar os significados iniciais.
A autoetnografia realizada levou o professor a entender que a ressignificação7 pode ter um efeito rápido e provisório. Daí a importância do encaminhamento pedagógico do aprofundamento. Entre uma atividade na sala de informática para pesquisar sobre o maracatu e outra, cujo objetivo era mostrar um panorama da história dos negros e suas manifestações culturais, a desconstrução de ideias preconceituosas em alguns alunos parece ter acontecido de forma abrupta.
Observa-se que os efeitos do currículo não seguem uma ordem esperada, não ocorrem em um tempo previsto e, principalmente, não atingem todos os alunos da mesma forma, visto que cada estudante, na sua singularidade, interpreta os significados a partir dos discursos que acessou tanto na escola como fora dela.
As representações culturais não apresentam uma estrutura fechada e definida, as pessoas inseridas em determinada cultura acessam a todo momento diferentes narrativas disponíveis no tecido social. Quando incitados por questões polêmicas, é comum os estudantes ecoarem representações proferidas por pastores, familiares, programas televisivos, entre outros.
Na tematização do maracatu, a atividade de aprofundamento descrita anteriormente produziu efeitos parecidos mediante a desconstrução das representações. Após discutir com os estudantes as narrativas coloniais naturalizadas que circulam na sociedade por meio de assertivas como: “quero esclarecer uma coisa”, “negro quando não caga na entrada caga na saída” e “amanhã vou trabalhar que é dia de branco”, um dos estudantes retirou o aparelho celular do bolso e mostrou para sala uma apresentação de Stand Up em que o comediante problematizava exatamente esses discursos.
Aproveitando a menção, o professor lançou um debate sobre como as piadas podem contribuir para um discurso de inferiorização de determinados grupos sociais. Nesse momento, um tanto irritado, um aluno disparou: “Ninguém faz piada com branco e nem com pessoas magras, por isso que eu odeio esse tipo de brincadeira! Com as mulheres a gente só ouve piadas ridículas o tempo todo, no trânsito, no Facebook, se a gente der risada também a gente contribui com isso, né?” (Diário de campo, 19/09/2016).
Os discursos proferidos pelos estudantes ajudam a pensar a importância dessas situações didáticas. Afinal, a participação do sujeito, explica Hall (2005), não é uma ação que tem princípio e fim em si mesma, “mas consiste em agir sobre a lógica dos discursos construídos socialmente e aos quais se tem acesso, aproximando-os de suas próprias experiências e analisando-os.” (NEIRA, 2016, p. 127).
A etnografia realizada na escola 2 revela o mesmo fenômeno. A partir de uma atividade de leitura da prática corporal8, a gestualidade de uma jogadora apresentada nos vídeos com vistas a desfamiliarizar o olhar dos estudantes sobre o futebol, foi comparada à dos homens. Embora a menção tenha causado certa mudança no semblante das meninas, ninguém se pronunciou. Mesmo sabendo que os efeitos do currículo não podem ser controlados, a atitude política adotada pelos docentes cujas aulas foram observadas baseou-se num diálogo constante com as diferenças. Segundo Nunes (2018), um dos principais traços da Educação Física culturalmente orientada.
Em tempos pós-modernos, aquilo que sempre foi narrado de forma inferior tem sido, em alguns momentos, significado de outra maneira, circulando e gerando tensões na ordem vigente (HALL, 2000). Nesse movimento,
[...] a significação é o subproduto de um jogo potencialmente interminável de significantes, e não um conceito firmemente ligado a um determinado significante. O significante não nos revela o significado diretamente, como um espelho reproduz uma imagem; na língua, não há uma série harmoniosa de correspondências diretas entre o nível dos significantes e o nível dos significados (EAGLETON, 1997, p. 176).
Durante as aulas ocorreram diferentes processos de ressignificação, afinal, o contato de um discurso com um outro produz outras possibilidades de ver. Nesse movimento, o signo deixa de ter apenas um único significado.
A representação cultural que os estudantes exteriorizam não desaparece, não é apagada nem tampouco substituída, no decorrer do processo ela pode ser hibridizada, na medida em que é interpelada por outras significações. A autoetnografia e as etnografias realizadas mostraram que os professores que assumem a pedagogia cultural não impõem significados “verdadeiros”, esperando que os estudantes substituam suas concepções iniciais. Ao contrário, o currículo cultural é uma prática de ressignificação.
Quando os docentes que colocam o currículo cultural em ação tematizam uma prática corporal, esse movimento de definição dos significados não ocorre, pois o que se percebe é um processo é de indefinição, de abertura, em que diferentes significados emergem e circulam: “Aprendemos que maracatu é música, amizade e que tem dois tipos de maracatu”; “Não aprendi muita coisa porque cheguei hoje, mas foi muito bom porque agora sei que não é religião”; “Eu não sabia, mas maracatu é dança”; “Aprendi os nomes dos instrumentos e as músicas”; “Eu aprendi que é uma cultura diferente”; “Aprendi sobre os instrumentos e sobre a cultura”; “Nós aprendemos os significados das danças culturais e as diferenças dos instrumentos” e “Aprendi que o maracatu é uma dança bem legal para gente mexer com o corpo”. (Entrevista realizada em 18/08/2015).
A linguagem também opera na produção de sistemas classificatórios tomando a identidade como norma (HALL, 1997) e, nesse processo, a construção das representações culturais é fortalecida. A árbitra de futebol entrevistada pelos alunos contou que ouve xingamentos e comentários desrespeitosos durante as partidas. Geralmente, são discursos machistas que colocam as mulheres em determinadas posições de sujeito: “vagabunda”, “puta”, “gostosa”, “vai lavar louça...”
Durante a tematização das lutas também eclodiram diferentes significações: “Cheguei achando que fosse jiu-jitsu e agora sei que essa luta é muay thai” e “Eu não fiz nada porque não gosto! Acho isso muito chato!” Na tematização da capoeira, após conversarem com um grupo de capoeiristas professor e estudantes travaram o seguinte diálogo: “O que vocês aprenderam com a visita dos capoeiristas? O que ficou de importante que vocês podem socializar com as demais pessoas?”; “Aprendemos que são pessoas como as outras, têm outras religiões e até patrocínio”; “Eu mesma achava que era coisa de macumbeiro, mas não é nada disso”; “Até eu pensei que era só essas coisas de macumba” e “Eu achei legal porque a capoeira pode ajudar a tirar as crianças da rua”. (Diário de campo, 18/08/2015).
Como se observa, esse movimento incessante da linguagem escapa de qualquer desejo moderno de controle, basta a comunicação entrar em ação que a disputa se estabelece e a tensão se inicia. Não há como negar que o currículo cultural da Educação Física, tal como apontou Santos Júnior (2020), cria condições para a enunciação dos saberes discentes. O que não significa seu aceite imediato. As situações didáticas que caracterizam a proposta, desde que elaboradas com base no olhar e escuta sensíveis do professor, instigam a desconstrução e a ressignificação, seja dos significados atribuídos às práticas corporais ou às pessoas que delas participam.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise dos materiais elaborados durante a etnografia e a autoetnografia permite afirmar que o currículo cultural em ação produz deslocamentos discursivos sobre as práticas corporais e seus representantes. Divergindo de estudos anteriores dedicados ao tema (NEIRA, 2014; NEIRA, 2016), observou-se que esse efeito decorre do conjunto das situações didáticas compreendidas pela tematização, isto é, do mapeamento até a conclusão dos trabalhos.
Percebe-se que os professores adotam uma posição política diante das representações culturais que emergem e se preocupam em não fechar ou determinar os significados atribuídos às práticas corporais e às pessoas que delas participam. O que evidencia a sua importância no processo pedagógico.
De maneira geral, os resultados dão a perceber como o currículo analisado contribui para modificar o olhar dos sujeitos e como os acontecimentos os afetaram, produzindo outras maneiras de significar, sempre no movimento de abertura, de ampliação das perspectivas e de outras formas de ser e viver.
A presente pesquisa não teve o intuito de reificar os resultados. Não há qualquer intenção de afirmar que os mesmos efeitos devam ocorrer em outros espaços e com outros estudantes. Nesse sentido, não se deseja universalizar ou estabelecer quais encaminhamentos pedagógicos devam ser desenvolvidos para que outras pessoas, em outras escolas, possam deles se apropriar com o intuito de “mudar” os estudantes.
Destaque-se, também, a importância de se pesquisar espaços reduzidos ou pequenas realidades para perceber os movimentos na cultura e sinalizar a potência de vida que surge nas micro-relações cotidianas. Essas situações também compõem o currículo e se conectam a ele de múltiplas maneiras. Por essas razões, é importante dizer que a presente pesquisa apresenta um caráter local, contextual e singular. Se as observações fossem realizadas em outros ambiente, se fossem observadas as práticas pedagógicas de outros professores, se o envolvimento com os participantes fosse diferente ou se a relação com os docentes ocorresse de outra maneira, os resultados poderiam ser distintos.
Espera-se que o presente estudo contribua com o debate em torno dos efeitos dos currículos nos sujeitos e, sobretudo, com o conhecimento acerca de uma Educação Física mais democrática e que tem por objetivo principal a invenção de uma sociedade menos desigual. Para tanto, é fundamental fortalecer a posição de sujeito dos estudantes, só assim sentir-se-ão confortáveis a manifestarem suas representações, configurando um contexto favorável ao diálogo e à ressignificação.