INTRODUÇÃO
A ubiquidade dos dispositivos tecnológicos em nossa vida, tributária da multiplicidade de artefatos de tecnologia digital presentes em nosso cotidiano, só cresce. São tecnologias móveis (LUCENA, 2016), tecnologias vestíveis (MOREIRA & BARANAUSKAS, 2015), temas como a realidade virtual (PEREIRA & PERUZZA, 2002), a inteligência artificial (HARASIM, 2015) ou a internet das coisas (SILVA et al, 2017) que têm atravessado as formas de como nos relacionamos com o mundo e, sobretudo, como aprendemos sobre/com os elementos culturais.
Tal campo de possibilidades tem sido periodicamente agendado pela EDUCAUSE (ADAMS BECKER, PASQUINI & ZENTNER, 2017) no que se refere às tendências de inovação (distintas formas de experimentar ferramentas já conhecidas) e à adoção de recursos tecnológicos (incorporação de novas ferramentas tecnológicas no campo da educação), mas sem restringir uma temática ou área de ensino específica.
Especificamente no campo da Educação Física, as tecnologias digitais têm ganhado visibilidade na verificação de níveis de atividade física dos sujeitos em idade escolar (BRACCO, 2001) ou especificamente nas aulas de Educação Física escolar (MOREIRA, 2014).
Contudo, se historicamente as práticas corporais expressas pelo esporte, exercícios físicos e ginásticos em escolas estiveram vinculados a uma perspectiva de saúde em um viés estritamente biológico, é possível verificar nos dias de hoje uma revisão dessa postura. Os principais indícios são demonstrados nas análises dos documentos curriculares que dialogam com esse tema quando em nível nacional (AGUIAR et al, 2019) ou mesmo de materiais didáticos em contextos mais específicos (ABIB; SILVA & DAMICO, 2019).
De forma afirmativa, é possível perceber na literatura acadêmica um incremento de publicações que buscam realinhar os debates entre saúde e Educação Física e, em síntese, tem predominado a defesa de que o debate da educação física relacionada à saúde em espaço escolar deve ser feito a partir de perspectiva pedagógica (OLIVEIRA; GOMES & BRACHT, 2014).
De certo que o crescimento do uso de dispositivos tecnológicos tem promovido novos arranjos no cenário de consumo e circulação de artefatos que concorrem para a vivência das práticas corporais. Os acelerômetros, frequencímetros, pedômetros, dentre outros, têm gerado novas formas de pensar a noção de cuidado de si, de saúde e de performance. Os dados gerados por tais dispositivos, sem os necessários tratos pedagógicos, retomam as bases de marcadores biológicos como únicos parâmetros para esquadrinhar corpos e seus feitos. Para exemplificar esse padrão, observamos que os aplicativos mais baixados envolvendo a temática saúde nos dispositivos com sistema operacional Android são, “Samsung Health”, “Nike Run Club - Treinar para Corridas & Caminhar” e “Exercícios em Casa - Sem Equipamentos”1 que sugerem atividades e quantificam marcas entre suas principais funcionalidades. Nesses termos, pergunta-se: como a literatura acadêmica tem respondido ao debate da saúde e Educação física na atual ambiência digital.
Cientes da permeabilidade de tais dispositivos, mas interessados nas reverberações que estes podem trazer para o campo pedagógico da educação física, o objetivo deste estudo é descrever e discutir os achados de uma revisão exploratória da produção do conhecimento sobre a abordagem do tema de saúde na Educação física escolar que consideram os dispositivos/aplicativos tecnológicos.
O trabalho justifica-se na medida em que se inscreve na ausência de sínteses da produção do conhecimento no trato pedagógico dos artefatos tecnológicos para pensar as relações entre Educação Física escolar e saúde ao passo que busca dar sentido à quinta competência da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para a Educação Básica para um dos temas afins à educação física. O material supracitado (BRASIL, 2018), como documento de orientação curricular brasileiro, aponta que o aluno deve “compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas sociais” (p. 9). Considerando que as práticas corporais constituem uma das principais práticas sociais de nossas crianças e jovens, bem como a promoção da saúde é uma condição social para o bem viver, nos inscrevemos neste debate.
NOSSOS PASSOS METODOLÓGICOS: explorando a literatura
O trabalho que ora apresentamos trata-se de uma revisão não sistemática e exploratória da literatura acadêmica da Educação Física, com o objetivo de mapear e contextualizar as discussões que relacionam a saúde e a tecnologia digital na Educação Física escolar. Para tanto foi realizada uma busca no universo dos periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) presentes nos estratos qualis A1, A2, B1 e B2 (Área 21 - classificação de periódicos do quadriênio 2013-2016). Para um recorte otimizado, ainda foi considerado como critério de inclusão dos periódicos a aderência à identidade epistemológica da subárea sociopedagógica da Educação Física, bem como ter alguma afinidade com o tema da pesquisa, a saber: relações entre saúde e tecnologia no ensino de Educação física escolar nos últimos 10 anos
As buscas foram realizadas no período de agosto de 2019 à novembro de 2019 nas revistas abaixo relacionadas.
Qualis2013-2016 | Periódicos |
A1 | Physical Education and Sport Pedagogy |
Sport, Education and Society | |
International Review for The Sociology of Sport | |
Leisure Studies (print) | |
A2 | Educational Research Review |
European Sport Management Quarterly | |
Journal of Physical Activity & Health | |
A2 | Movimento (UFRGS. ONLINE) |
B1 | Motriz: Revista de Educação Física (ONLINE) |
Motricidade (SANTA MARIA DA FEIRA) | |
Revista Brasileira de Ciências do Esporte (ONLINE) | |
Revista da Educação Física (UEM. Online) | |
Revista Brasileira de Educação Física e Esporte | |
B2 | Licere (Online) |
Motrivivência | |
Revista Brasileira de Ciência e Movimento | |
Revista Brasileira de Atividade Física e Saúde | |
Pensar a Prática (online) |
Fonte: Dados obtidos pela Plataforma Sucupira considerando a classificação de periódicos do quadriênio 2013-2016.
Ao acessarmos cada portal dessas revistas apresentadas no quadro 1 plotamos nas barras de busca os indexadores: “escola”, “tecnologia” e “saúde”. Não obstante, nos periódicos de língua inglesa utilizamos “health”, “technology” e “school”. Foram considerados todos os artigos que responderam a essa busca e estavam dentro do período entre 2011 e 2020. Dessa forma, nosso parâmetro de discriminação foi analisar os resumos/abstracts dos artigos disponíveis e se possuíam alguma conectividade entre os indexadores pesquisados e o período em foco. Diante dos resultados das análises percebemos que somente 2% dos artigos analisados envolvem, de fato, o tema discorrido neste estudo.
No quantitativo geral encontramos mil e nove (1009) textos após a utilização dos três indexadores. Tivemos como critério a associação dos três termos no mesmo texto para revistas internacionais e apenas dois termos no mesmo texto para revistas nacionais2.
Os periódicos estrangeiros correspondem ao maior quantitativo de artigos encontrados e utilizados na pesquisa. Finalizada a catalogação dos 1009 artigos, procedeu-se a leitura dos resumos para identificar a pertinência da publicação junto aos usos, reflexões ou implicações de tecnologias digitais no campo da Educação Física escolar. Ao final da seleção, vinte (20) estudos foram designados para a leitura completa, dentre eles, apenas quatro (04) correspondem a periódicos brasileiros. Abaixo, no quadro 2, nota-se esse detalhe e a exatidão dos dados desse levantamento.
Revista | Encontrado | Selecionado |
Physical Education and Sport Pedagogy | 99 | 1 |
Sport, Education and Society | 253 | 10 |
International Review For The Sociology of Sport | 146 | 0 |
Leisure Studies (print) | 197 | 3 |
European Sport Management Quarterly | 43 | 0 |
Journal of Physical Activity & Health | 57 | 2 |
Educational Research Review | 44 | 2 |
Revista Motriz | 2 | 0 |
Movimento | 13 | 0 |
Motricidade | 9 | 0 |
Revista Brasileira de Ciências do Esporte | 15 | 2 |
Revista da Educação Física (UEM. Online) | 0 | 0 |
Revista Brasileira de Educação Física e Esporte | 0 | 0 |
Licere (Centro de Estudos de Lazer e Recreação. Online) | 79 | 2 |
Motrivivência | 5 | 0 |
Revista Brasileira de Ciência e Movimento | 10 | 0 |
Revista Brasileira de Atividade Física e Saúde | 5 | 0 |
Pensar a Prática (online) | 32 | 0 |
Fonte: dados obtidos pelo levantamento da pesquisa
Entre os periódicos investigados, o “Sport, Education and Society” mostrou significativa discrepância entre os demais, com um total de 253 publicações, corresponde a 25% dos artigos encontrados. Essa discrepância também ocorreu entre os artigos, com 10 selecionados, como constatamos no quadro 2, equivalente a 50% dos artigos selecionados para uma análise na íntegra.
A este respeito, é oportuno destacar que no Reino Unido - país-sede da revista supracitada, assim como em muitos outros no mundo, o componente curricular correlato à Educação Física no Brasil, tem desde seus títulos o termo da saúde associado à Educação Física (Health and Physical Education - em uma tradução livre “Saúde e Educação Física”). Fato que pode influenciar nos achados da pesquisa, sobretudo no número de artigos encontrados.
Dentre os mil e nove (1009) artigos encontrados, vinte (20) se enquadraram em consonância com a temática (quadro 3). Seguem abaixo os trabalhos considerados para fim de análise:
Periódico | Artigos | Ano |
---|---|---|
Physical Education and Sport Pedagogy | Barriers and facilitators to using digital technologies in the Cooperative Learning model in physical education | 2017 |
Sport, Education and Society | Tracing the feedback loop: a Foucauldian and actor-network-theory examination of heart rate monitors in a physical education classroom | 2019 |
Experiencing risk, surveillance, and prosumption: health and physical education students’ perceptions of digitized health and physical activity data | 2019 | |
Rethinking the relationship between pedagogy, technology and learning in health and physical education | 2017 | |
‘Better understanding about what's going on’: young Australians’ use of digital technologies for health and fitness | 2020 | |
Teacher-as-knowledge-broker in a futures-oriented health and physical education | 2015 | |
Young people’s uses of wearable healthy lifestyle technologies; surveillance, self-surveillance and resistance | 2019 | |
Research Forum Introduction: eHPE | 2014 | |
Moving online physical education from oxymoron to efficacy | 2015 | |
Digital Technology in physical education: global perspectives | 2019 | |
Digital technologies and learning in physical education: pedagogical cases | 2017 | |
Leisure Studies (print) | (Re)thinking digital leisure | 2016 |
Foreword: lively devices, lively data and lively leisure studies | 2016 | |
Journal of Physical Activity & Health | Investigating the Use of an Electronic Activity Monitor System as a Component of Physical Activity and Weight-Loss Interventions in Nonclinical Populations: A Systematic Review | 2019 |
Revisiting Factors Associated With Screen Time Media Use: A Structural Study Among School-Aged Adolescents | 2018 | |
Educational Research Review | The effects of school-based physical activity interventions on students' health-related fitness knowledge: A systematic review | 2015 |
Is mobile instant messaging (MIM) useful in education? Examining its technological, pedagogical, and social affordances | 2017 | |
Revista Brasileira de Ciências do Esporte | Efeitos dos exergames em crianças com risco e dificuldade significativa de movimento: um estudo cego randomizado | 2018 |
‘‘Jogando’’ com as diferentes linguagens: a atualização dos jogos na educação física escolar | 2016 | |
Licere (Centro de Estudos de Lazer e Recreação. Online) | O Efeito dos Exergames na Motivação para a Prática de Atividade Física em Jovens | 2017 |
Fonte: dados obtidos pelo levantamento da pesquisa
EM BUSCA DE CONEXÕES ENTRE TECNOLOGIAS DIGITAIS E SAÚDE: o que nos diz a literatura?
Em um primeiro olhar, nossa busca nos leva a crer que as conexões entre Educação Física escolar (EFE) e saúde não possuem grande relevo na literatura nacional. Essa constatação se dá pelo pequeno número de manuscritos encontrados, mas também pela compreensão já registradas na literatura da dificuldade de superação da relação causal entre ‘atividade física/aquisição da saúde’ pela área em um padrão descrito por (FERREIRA, DE OLIVEIRA & SAMPAIO, 2013) ao analisar o discurso dos professores de EF na interface entre a saúde e EFE na rede municipal de ensino de Fortaleza/CE. Em seu turno, a literatura internacional tem se debruçado de forma mais incisiva e a mais tempo, considerando o quantitativo de manuscritos encontrados e que somente em revistas internacionais foi verificado debates sobre o tema na primeira metade do período investigado.
A percepção de que a produção nacional tem menor repercussão em nossos achados não necessariamente indica que a produção sobre tecnologia na Educação física escola não tenha assento em no Brasil. Como contra-argumento para essa falsa impressão podemos citar que, ainda no ano de 2005, a Revista Brasileira de Ciência do Esporte (RBCE) pautou um número inteiro dedicado à temática de “Linguagens, Comunicação, Mídia e Educação Física/Ciências do Esporte” (V. 16, n. 2, Janeiro de 2005) e a revista Motrivivência repete tal ato no ano de 2010 com a temática “Educação Física e tecnologias digitais” (ano XXII, n. 34, junho de 2010), totalizando mais de 27 artigos sobre o tema. Contudo, o tema da saúde não esteve centralidade nestas coletâneas, sobretudo em suas relações com o campo escolar e a tecnologias digitais.
Ao explorar a literatura, o periódico que demonstrou discutir direta e sistematicamente as questões da saúde na EFE e suas relações com a tecnologia digital foi a revista Sport, Education and Society. Alguns pontos foram recorrentes em uma leitura flutuante do material, a saber: discussão ética que envolve o destino final dos dados gerados pelo uso de tecnologia, bem como a gamificação dos processos tecnológicos para a promoção de saúde (LUPTON, 2016); as críticas sociais que envolvem a saúde devido ao tempo de jovens em frente às telas de dispositivos digitais (NGANTCHA et al, 2018); ou até mesmo a valorização da tecnologia como ferramenta pedagógica para promoção de saúde (CASEY, GOODYEAR & ARMOUR, 2017).
De acordo com a incidência de temas que emergem como possíveis problemáticas nos textos selecionados relacionando o uso de tecnologias digitais e saúde, optamos por categorizar esses escopos a fim de contextualizar os referenciais teóricos e aprofundarmos as reflexões. Neste sentido, por recorrência temática, elencamos os trabalhos analisados em três categorias: a) tecnologia e suas implicações pedagógicas; b) monitoramento e uso de dados, um debate ético e; c) jogos digitais e tecnologias móveis. Assim sendo, nos debruçaremos sobre cada classificação apontada buscando dar visibilidade às problematizações evidenciadas na literatura estudada.
Tecnologia e suas implicações pedagógicas
Dentre os recortes temáticos escolhidos, este pode ser considerado um dos principais tópicos de estudos voltados à problematização pedagógica da EFE após o crescimento exponencial da implantação de tecnologias digitais em sua cena (CASEY, GOODYEAR & ARMOUR, 2017a). Não obstante a isso, em nossas buscas pôde-se perceber uma significativa parte de estudos dialogando principalmente com o fomento de práticas pedagógicas com uso de tecnologias como ferramenta educativa pode engajar professores no uso de tecnologias, fazendo-os inclusive questionar suas escolhas e percursos metodológicos, e otimizar o processo de aprendizagem de escolar. Esse foi, por exemplo, o que mobilizou Casey Goodyear e Armour (2017b) a problematizar casos pedagógicos a partir dos usos de tecnologias digitais. Em sua obra, alertam os autores, não fica claro o impacto das tecnologias digital no ensino e sobretudo no aprendizado dos alunos. De acordo com tais autores, embora tenha possível observar “inovação, elas não chegaram onde esperávamos. O conceito tradicional de educação física permaneceu praticamente intacto, com a tecnologia atuando para reforçar suas práticas3” (CASEY, GOODYEAR & ARMOUR, 2017b, p. 255).
Em nossos achados na exploração da literatura o engajamento de professores é questionável. Após uma pesquisa realizada com professores, sobre o uso de ferramentas tecnológicas no curso health and physical education (HPE), Casey (apud VRASIDAS, SIPILA & KRETSCHMANN’S, 2016) reporta que quase metade dos professores se sentem despreparados para o uso de tecnologia em sala de aula. Ora por uma falta de experiência e conhecimento das tecnologias digitais, ora por optar, na maioria das vezes, por um uso tradicional da tecnologia. Tais percepções docentes os leva à recusar o uso de tecnologias colaborativas ou recursos interativos mais recentes, como mídias sociais, aplicativos e dispositivos móveis. Considerações similares também foram encontradas no Brasil em estudos como o de Souza Junior (2018) na formação continuada de professores na cidade de Natal/RN. É nessa perspectiva que Barriers and facilitators to using digital technologies in the Cooperative Learning model in physical education (BODSWORTH & GOODYEAR, 2017) argumenta que apenas a tecnologia como um fim em si mesma nas aulas, não garante o aprendizado dos alunos, mas sim a integração do processo pedagógico com a tecnologia.
Como reflexão dos usos da tecnologia como ferramenta pedagógica temos o artigo “Digital Technologies and learning in physical education: pedagogical cases” (SARGENT, 2017), que trata-se de uma resenha do livro “Digital Technologies and learning in physical education: pedagogical cases”, discutindo de que forma a tecnologia pode contribuir como ferramenta de suporte ao ensino nas aulas de EFE, analisando as potencialidades pedagógicas presentes na interação do professor, aluno e currículo, com a tecnologia. O autor deixa claro que o livro não é um guia de tecnologia na Educação Física, mas sim, uma análise como esresas tecnologias contribuem para o ensino. Outros autores também já resenharam tal obra (ARAÚJO, 2019) o que demonstra a potência do debate pedagógico que habita em tal obra.
No artigo intitulado “Is mobile instant messaging (MIM) useful in education? Examining its technological, pedagogical, and social affordances” (TANK & HEW, 2017), os autores abordam como os aplicativos de mensagens instantâneas móveis, como WhatsApp® e Telegram® que conectam os jovens no dia a dia, seja em conversas privadas ou em grupos, podem servir como ferramenta pedagógica em sala de aula. Tais inquietações são um reflexo do que se tem colocado como a perda da centralidade da sala de aula como único espaço de ensino-aprendizagem, uma consequência da perda de território proposto pelo Virtual (LÉVY,1996). Ainda nesta abordagem, encontramos na literatura o artigo “Moving online physical education from oxymoron to efficacy” que refere-se ao ensino da EFE em plataformas online, discorrendo os prós e contras desse método instrutivo. Segundo Kooiman e colaboradores (2015), este tipo de prática é utilizada em grande parte dos estados do EUA, onde existem modalidades totalmente online e semipresenciais. Contudo habita nas reflexões dos autores alguns questionamentos sobre as reais repercussões desta formação.
Ao adentrar este diálogo nos deparamos com problemáticas já presente no campo da tecnologia digital e que se desdobram no espaço educacional, com suas ramificações diversificadas em diferentes vertentes sejam elas acessos, competências, conectividade, dentre outros. Todos os pontos questionados nos trazem implicações da interação do professor, currículo e aluno. Para Lupton (2014), estes questionamentos sobre a EFF e tecnologia na sala de aula são de grande valia para repensar a formação docente, pois precisa-se notadamente de maiores cuidados analíticos para pensarmos em uma EFE democrática, politizada e participativa. Outra perspectiva é levantada pela mesma autora, Lupton (2016), em seu manuscrito ‘Better understanding about what’s going on’: Young Australians’ use of digital technologies for health and fitness, que procura levantar dados sobre onde as pessoas buscam se informar sobre saúde. Entretanto, nas entrevistas realizadas na parte metodológica, os entrevistados relataram algo interessante, que foi não acharem que os aplicativos funcionariam bem nas aulas de Educação Física, por considerá-los muito individualistas, e não considerar o coletivo - a exemplo do Fitbit.
Em síntese, os textos destacam uma crescente preocupação com a emergência das tecnologias digitais e seus impactos do fazer docente no que se refere sobretudo aos usos e novas modalidades de ensino possíveis, ressaltam ainda uma necessária revisão da formação dos professores considerando tal fenômeno.
Monitoramento e uso de dados, um debate ético
No debate de monitoramento e uso de dados, muitos artigos da Sport, Education and Society fizeram relação direta com a abordagem foucaultiana, desenvolvendo uma discussão ética entre o controle de dados, vigilância, e o controle exercido sobre os usuários. A ideia, por exemplo, levantada em Experiencing risk, surveillance, and prosumption: health and physical education students’ perceptions of digitised health and physical activity data (PANG et al. 2019) é que os aplicativos de saúde são como uma central de monitoramento do corpo que gera um potencial disciplinador, onde os usuários muitas vezes se sentem coibidos a alcançarem suas metas diárias e a compartilhar isso e monitorar os amigos ou conhecidos que também fazem o mesmo. Tais considerações parecem ser uma atualização do que Fraga (2006) técnicas biopolíticas e disciplinares, que poderiam a vir constituir uma “biopolítica informacional”. Por sua vez, Oliveira e Fraga (2019), ao centrarem atenção nas reverberações de um aplicativo fitness, dão relevo a características bem similares ao debate Pang e colaboradores (2019), os quais nominam como exibição de si (self-disclousure) e quantificação de si (quantified self). Todas presentes em uma nova dinâmica de controle guiados pela positividade (HAN, 2017).
Outro aspecto/consequência apontado pelos autores dos manuscritos se que inserem nessa categoria, como em Young people’s uses of wearable healthy lifestyle technologies; surveillance, self-surveillance and resistance (GOODYEAR, KERNER & QUENNERSTEDT, 2019), é o perigo que a autovigilância oferece à atuação dos professores, podendo por consequência controlar o processo educacional (LUPTON, 2016). Esmonde (2019), em Tracing the feedback loop: a Foucauldian and actor-network-theory examination of heart rate monitors in a physical education classroom, argumenta que existem “entusiastas da tecnologia” e “céticos”, enquanto os primeiros alardeiam os benefícios da tecnologia, os outros apenas os malefícios. Contudo, a principal consideração deste manuscrito é de que para que a tecnologia faça diferença nas aulas de Educação Física não é preciso somente ter os equipamentos, mas entendê-los e saber o que os números/códigos/dados significam, influenciam e repercutem na vida do usuário-aluno. Desse modo, Bodsworth e Goodyear (2017) elucidam em Barriers and facilitators to using digital technologies in the Cooperative Learning model in physical education sobre a integração da tecnologia com o processo pedagógico, fazendo com que esses dados sejam úteis, e fazendo um uso crítico e, a partir disso, incluir nas aulas de Educação Física (PANG et al, 2019). Infelizmente, não temos muitas experiências neste sentido.
No manuscrito de Macdonald (2015), Teacher-as-knowledge-broker in a futures-oriented health and physical education, anuncia-se a visão do professor de educação física como um mediador do conhecimento, ensinando os alunos a fazer esse uso crítico dos conteúdos e ferramentas da web, como tecnologia e selecionar as suas fontes de pesquisa e informação sobre saúde e educação física. Em oposição ao que são denominados de céticos por Esmonde (2019), Silk e colaboradores (2016) advertem que vida está conectada ao mundo digital, sempre quantificando dados e instrumentalizando o corpo, sendo impossível ignorar tal fenômeno. Em tal manuscrito busca-se discutir como o lazer vem sendo estudado e abordado na era digital, as relações de poder existentes na digitalização do lazer e ainda, contribui para uma análise crítica e democrática acerca do assunto.
No conjunto dos textos, destaca-se uma preocupação com a alto relevo reservado aos dados gerados pelas tecnologias digitais durante das práticas corporais, em detrimento do que estas podem colaborar para o processo de ensino-aprendizagem das mesmas.
Jogos digitais e tecnologias móveis
Para Lupton (2016) os dados gerados pelo uso de tecnologias para o lazer, sejam através de aplicativos ou jogos digitais, estão cada vez mais se emaranhado a nossa individualidade, nossos interesses, costumes, rotinas, no mundo virtual criam uma “datificação” com implicações fortes para a cultura de lazer. A autora sugere que as tecnologias digitais contribuem para novas formas de conceitualizar áreas da vida, como jogos ou atividades de lazer que antes não eram pensadas ou tratadas como forma de aprendizado. Neste sentido ganham destaques os jogos ou tecnologias móveis como novas formas de viver e partilhar os elementos da cultura.
Nos manuscritos encontrados e que se vinculam a esta categoria encontramos diferentes abordagens do digital. Um primeiro exemplo considera um jogo digital como ferramenta referencial para transposição. Martini e Viana (2016) relatam a experiência vivida pelos alunos do curso de EF no ensino superior que se baseia no desenvolvimento de transposição de jogos eletrônicos para o espaço disponíveis para aulas. Nessa experiência os autores dão relevo ao debate de como as relações entre alunos participantes foram reformuladas.
Um outro exemplo de nosso material explorado advém da experiência relatada por Pereira, de Souza Serapião e Govone (2017) que aciona os temas de vida ativa e os fitness game, exegaming (EXGs) ou exer-gaming4, termos que designam jogos que interagem com o usuário de maneira simultânea ao exercício, através de sensores de movimento. Trata-se de uma intervenção com os EXGs que, segundo e relato, as ideias sobre saúde e bem-estar de jovens universitários foi alterada, proporcionando engajamento em atividades da vida cotidiana.
Outrossim, em nossa exploração também observamos uma ideia mais afeita à abordagem biológica do uso dos EXGs. Em “Efeitos dos exergames em crianças com risco e dificuldade significativa de movimento: um estudo cego randomizado”, Medeiros e colaboradores (2018), utilizando o Kinect e o XBOX-360, apresenta e discute como as crianças adaptam-se ao uso desses dispositivos e de que forma isso poderia contribuir para esse grupo nas aulas de EFE.
Ainda nessa perspectiva dos games, Gard (2014) em Research forum introduction: eHPE, estabelece uma discussão onde discorda de uma TED talk que tem como palestrante Gabe Zichermann, onde afirma que a forma de entretenimento dominante atualmente são os jogos digitais, espaço antes ocupado pela leitura. A proposta do artigo é incitar a discussão sobre essa gamificação e começar a fazer as perguntas para construir esse debate.
Como último exemplo de artigos que se vinculam a essa categoria, Sypes e colaboradores (2019) realizou uma revisão bibliográfica de 22 estudos que medem a capacidade e eficiência dos ectronic activity monitor systems (EAMSs) na perda de peso e na atividade física, entre os estudos pesquisados, o uso de EAMSs pareceu mais eficaz quando envolvia e o uso da tecnologia combinada a um apoio externo de intervenção, utilizando os recursos de estabelecimento de metas ou conexões com outros usuários do dispositivo. Tal material está afinado com a emergência de trabalhos apontados por (MOREIRA & BARANAUSKAS, 2015), sobretudo no que se refere às tecnologias wearables, tais como os frequencímetros, pedômetros e acelerômetros. Tal material se associa facilmente à categoria anterior no tocante a produção de dados que podem tencionar tanto para uma forma de autoconhecimento e aprimoramento do corpo, bem como um sistema de controle.
Os capítulos que se agrupam nesta categoria centram-se no processo de virtualização das práticas corporais expressa nos EXGs, realidade virtual, realidade aumentada, e-sports5, ou até mesmo na influência da mídia ou espetacularização dos esportes (COSTA, 2017). A consequência maior desse processo de virtualização das práticas é o que Oliveira e Fraga (2019) chamam de gamificação da vida (gamification of life) e que têm relações nos estilos de vida das pessoas e nos rastros virtuais que elas deixam em seus perfis em redes sociais, aplicativos e demais rastros virtuais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A exploração na literatura ora apresentada nos aponta a reflexão de uma contínua necessidade da intervenção do professor de educação física a revelia do que possa se alardear. A familiarização com a cibercultura, as demandas das novas gerações e o incremento contínuo de artefatos tecnológicos têm requerido da área novas competências para com trato de seus temas. Sendo a saúde um tema historicamente afim da EF, o desafio está em desconstruir sua linear associação ao exercício físico, ao passo que ainda aprendemos a como agenciar nossas aulas ambientadas em uma cultura digital.
Considerando que este escrito teve o objetivo de descrever e discutir os achados de uma revisão exploratória da produção do conhecimento sobre a abordagem do tema de saúde na Educação Física escolar que consideram os dispositivos/aplicativos tecnológicos, apontamos que existe um tímido, mas crescente debate emergente na área de EFE que articule saúde e tecnologia digital. É destacável que, a partir de nossos critérios de inclusão e exclusão de revistas e artigos, o debate numericamente mais latente na literatura internacional, bem como é importante destacar uma centralidade importante na Revista Sport, education and society, com 50% do total dos artigos analisados.
No cerne dos debates de nossa amostra estão as preocupações com: (01) as implicações pedagógicas que as tecnologias digitais trazem para o fazer pedagógico na EFE, bem como a formação de professores; (02) as preocupações éticas com a geração de dados durante das práticas corporais, em detrimento das colaborações destas para o processo de ensino-aprendizagem e; (03) o processo de gamificação da vida e das virtualizações das práticas corporais.
Se a literatura nos coloca mais questões do que nos trás respostas, este é um indício no quanto estamos no início do debate. Na agenda de pesquisa que se abre a partir de então, focaremos no debate com professores da Educação Básica de como eles pensam ser possível trabalhar com o tema da saúde na disciplina de Educação Física e mediados por tecnologias digitais. Este exercício em algum momento também alimentará outras revisões exploratórias como esta.