INTRODUÇÃO
O surfe é uma modalidade esportiva com uma longa história que remonta a antigas formas de navegação e tradições desenvolvidas pelos povos originários do Peru e das ilhas da Polinésia. Esta modalidade desenvolve-se atualmente como uma prática de lazer e de competição, com ampla expansão pelo mundo (KAMPION; BROWN, 1998; BABOGHLUIAN, 2003; WARSHAW, 2010). A disseminação global da prática do surfe ocorre em função de vários motivos, como a busca de melhorar a saúde, a conexão com a natureza, por lazer e divertimento, superação de limites e motivos profissionais. Recentemente, a história do surfe sofreu um importante marco histórico, tendo sido incluída pelo Comitê Olímpico Internacional como modalidade-teste para os jogos Olímpicos do Japão, em 2020. Os recentes títulos mundiais obtidos pelos brasileiros Adriano de Souza, Gabriel Medina e Ítalo Ferreira também tem sido implicados com o aumento da popularidade da modalidade no Brasil (FERREIRA, 2018).
Revisões de literatura científica sobre o surfe, no tocante às questões socioculturais, destacam sua historiografia, desigualdades de gênero, interação entre surfistas e natureza, conflitos de sociabilidade derivados do localismo, relações entre esporte, mídia e religião (BRASIL; RAMOS; GODAS, 2013; PÉREZ-GUTIÉRREZ; COBO-CORRALES, 2020). No entanto, pouca produção científica sobre o surfe tem sido observada na área da Psicologia do esporte, especialmente no tocante aos aspectos psicológicos implicados diretamente à prática do surfe, os modos como seus praticantes se apropriam da modalidade, suas motivações e as implicações da prática para a saúde, entre outros.
Adicionalmente, o número de programas que utilizam o surfe como dispositivo terapêutico vem aumentando consideravelmente nos últimos anos. Segundo Benninger e colaboradores (2020), os primeiros programas terapêuticos tendo o surfe como intervenção principal, surgiram na década de 1990, tendo esse número aumentado para mais de 50 programas de surfe terapia espalhados pelo mundo em 2020. Tais programas terapêuticos tem sido destinados ao atendimento de uma população bem diversificada, sejam jovens com deficiência, pessoas com transtornos psicológicos, TEA e veteranos de guerra com TEPT. Em termos de publicação científica, Benninger e colaboradores (2020) indicaram que a primeira evidência científica sobre propriedades terapêuticas do surfe, só foi publicada em uma revista com revisão por pares no ano de 2010 (MORGAN, 2010) e que, apenas recentemente, foram publicados alguns poucos ensaios de controle randomizados (WALTTERS et al, 2019a, 2019b). Para os autores, existe ainda uma escassez de pesquisas sobre as práticas baseadas em evidências com surfe terapia que apóiem o impacto global das intervenções existentes.
Considerando as demandas para ampliação do conhecimento científico associado ao surfe em suas diferentes dimensões, presente pesquisa se direcionada ao levantamento de produções originais pertinentes a esse universo, com o objetivo de analisar como os processos psicológicos têm sido estudados neste contexto.
MÉTODOS
A metodologia foi elaborada com base no modelo Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses (PRISMA) (MOHER et al., 2015). As consultas foram feitas nas plataformas Web of knowledge e Pubmed (US National Library of Medicine) em agosto de 2019, com os descritores “Surf” AND “Psychology” e “Surf” AND “Sport”. Para inclusão de trabalhos no estudo, foram adotados os seguintes critérios: trabalhos publicados nos últimos dez anos que antecederam à consulta; trabalhos em conformidade com o tema surfe e psicologia ou surfe e esporte e que envolvam diretamente os construtos principais aqui tratados. Estabelecemos o critério de incluir apenas os trabalhos originais que avaliassem aspectos psicológicos na prática do surfe. Além deste, consideramos apenas os trabalhos disponíveis em formato completo nas bases de dados citadas; trabalhos escritos em língua inglesa ou que contenham um resumo em inglês. Estudos teóricos, meta-análises e revisões sistemáticas foram também excluídos da revisão. Para a extração dos dados na amostra final foram selecionadas as seguintes informações: ano da publicação, autores, amostra, aspectos psicológicos avaliados e principais resultados encontrados.
O processo de seleção dos trabalhos seguiu as etapas indicadas: 1) busca pelos descritores nas bases de dados; 2) exclusão dos trabalhos publicados há mais de dez anos; 3) exclusão dos trabalhos duplicados; 4) leitura dos resumos para verificação da adequação aos temas e critérios; 5) busca nas bases de dados virtuais pelo trabalho completo; 6) leitura completa e análise qualitativa dos artigos selecionados para amostra final.
Após a delimitação do conjunto de artigos selecionados, o mesmo foi submetido a processo de análise qualitativa de seus conteúdos, onde foram apreendidos os principais resultados e detalhes metodológicos de cada trabalho. Como parte da análise qualitativa dos artigos, foram construídas as categorias temáticas para sistematizar a discussão e interpretação dos mesmos: 1) aspectos psicológicos gerais pertinentes à prática; 2) implicações do surfe ao desenvolvimento humano; 3) efeitos terapêuticos desencadeados pelo surfe; e 4) efeitos negativos associados à modalidade.
A análise adotou parâmetros prescritos pelo modelo da Análise Temática Reflexiva (BRAUN; CLARKE, 2006; SOUZA, 2019). Mais especificamente, este modelo de análise pode ser caracterizado como um procedimento que possui o propósito de auxiliar a identificar, interpretar e caracterizar padrões (ou temas) a partir de uma perspectiva qualitativa (BRAUN; CLARKE, 2006; SOUZA, 2019). Dentre os modelos de Análise Temática, utilizamos a abordagem Reflexiva, que tem como princípio a codificação fluida e flexível de características específicas da amostra (como classificação conceitual, tipo de incidência, cronologia, entre outros aspectos) na interpretação dos dados, priorizando a identificação de temas, padrões ou classes específicas de significação à quantificação ou à acurácia de instrumentos de medidas. O presente estudo utilizou princípios da Análise Temática Reflexiva para caracterização e discussão dos resultados de acordo com os temas estudados pelos artigos encontrados na revisão sistemática.
RESULTADOS
Na revisão realizada na plataforma PubMed com os descritores “Surf” AND “Psychology”, verificamos inicialmente a ocorrência de 51 artigos. Porém, ao aplicarmos os critérios de inclusão e exclusão, a amostra final foi composta por apenas 1 artigo (PITTSINGER, 2017). Ao utilizarmos os mesmos descritores na plataforma Web of Science obteve-se inicialmente uma amostra de 31 artigos, porém ao aplicarmos os critérios de inclusão e exclusão somente 4 artigos estiveram aptos a compor o banco de dados (PARTINGTON et al., 2009; BRYMER; OADES, 2009; WIERSMA, 2014; PITTSINGER et al., 2017; CORREIA; ROSADO, 2019). Assim, utilizando os referidos descritores, tivemos o total de 5 artigos que atenderam aos critérios estipulados (Tabela 1, em apêndice).
Devido ao pequeno número de artigos encontrados na pesquisa com os descritores “Surf” AND “Psychology”, também foram utilizados os termos “Surf” AND “Sport” em uma consulta subsequente, adotando o critério adicional de que o estudo envolvesse alguma medida ou verificasse algum aspecto psicológico. Ao pesquisarmos com essa configuração na PudMed, tivemos como resultado 140 artigos. Ao aplicarmos o filtro dos últimos dez anos de publicações, tivemos um resultado de 88 artigos e, após aplicar todos os critérios já aqui descritos, tivemos uma amostra final de quatro artigos. Usando os mesmos descritores na plataforma Web of Science e após a aplicação de todos os critérios, o banco de dados se estabeleceu com 23 artigos (tabela 2, em apêndice). Considerando as duas pesquisas realizadas, obteve-se uma amostra final de 28 artigos que atenderam aos critérios desta revisão.
Nessa perspectiva, para facilitar a apresentação e discussão dos resultados, tal como proposto por Souza e colaboradores (2010), a amostra de artigos foi qualitativamente avaliada quanto aos objetos de estudo e posteriormente, os resultados foram agrupados em categorias interpretativas tal como preconizado pelos modelos de análise temática reflexiva (BRAUN; CLARKE, 2006; SOUZA, 2019).
DISCUSSÃO
É importante ressaltar que o banco de dados composto por 28 artigos que tenham utilizado medidas psicológicas no contexto do surfe, só foi possível ser estabelecido ampliando o escopo de busca para além das palavras-chave “Surf” e “Psychology”. Apesar das contribuições consistentes da Psicologia do Esporte nos últimos anos (CONDE et al., 2019), a construção do conhecimento científico inerente aos processos psicológicos no surfe tem sido feita em perspectiva interdisciplinar. Sendo assim, a maioria dos trabalhos só foi acessada com a utilização os termos “Surf” AND “Sport”.
Dentre os artigos encontrados, foi possível observar uma grande diversidade de processos e fenômenos psicológicos investigados. A análise permitiu a identificação de quatro categorias temáticas específicas. Em uma dessas categorias, foram agrupados os artigos que apresentavam implicações ou características inerentes ao campo da psicologia do desenvolvimento, seja através de perspectivas comparativas entre atletas experientes e novatos (PITTSINGER et al., 2017), sobre desenvolvimento da subjetividade, da corporeidade, da identidade e da dimensão biopsicossocial.
Muitos outros estudos se aplicaram ao estudo das implicações do surfe na promoção da saúde mental e de outros efeitos terapêuticos. Com o crescente número de artigos e evidências científicas sobre os efeitos terapêuticos associados ao surfe, o emprego do termo Surfe terapia tem sido utilizado pela International Surf Therapy Organization (ISTO) para caracterizar um método de intervenção que combina a instrução para o desenvolvimento no surf com atividades estruturadas para promoção de bem-estar psicológico, psicossocial, de saúde física e mental. Assim, alguns dos artigos originais encontrados em nossa revisão que estudaram efeitos terapêuticos foram agrupados em uma subseção intitulada “O potencial terapêutico do surfe”. Nesta temática apontaremos evidências que sugerem que programas terapêuticos através do surfe são efetivos para auxiliar na melhoria da qualidade de vida e ajudar na promoção da saúde mental em quadros clínicos específicos, como o Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), Transtorno do Espectro Autista (TEA), quadros de ansiedade e depressão e também como elemento de suporte e desenvolvimento social.
Contudo, também foram verificados relatos científicos de aspectos negativos implicados ao universo do surfe, como a dependência pela prática, riscos físicos, e fatores estressores provenientes do contexto de competição. Os artigos que não se enquadraram nas categorias acima identificadas, foram agrupados em uma categoria temática mais geral para discussão. Neste âmbito, perspectivas de estudo com metodologias variadas exploraram processos mais gerais associados à prática do surfe. Assim, optamos por discutir inicialmente alguns desses estudos, como evidências de processos psicológicos mais amplos e variados no contexto do surfe.
Aspectos psicológicos gerais pertinentes à prática do surfe
Pittsinger e colaboradores (2017) estudaram o efeito de 30 minutos de prática do surfe sobre o Afeto induzido pelo exercício, utilizando a Escala de Afetividade da Atividade Física (Physical Activity Affect Scale, PAAS). Os resultados apontaram que o afeto positivo e percepções de tranquilidade aumentaram significativamente após a prática do surfe, enquanto o afeto negativo e a percepção de fadiga diminuíram significativamente.
Wiersma (2014) indicou a existência de variações emocionais em seis fases específicas do surfe competitivo de ondas grandes. Os entrevistados relataram variedade e oscilações de estados mentais. A ansiedade foi amplamente identificada no momento que antecede a entrada dos surfistas no mar, com dúvidas frequentes acerca da sua preparação física e mental. Já, o medo, foi comumente relatado e associado ao momento antes de ficarem em pé na prancha para pegar a onda. Reforçaram que sentimentos de confiança e de comprometimento são também necessários para entrar no mar e surfar. Já na fase de wipe-out (queda da onda), os surfistas relataram estresse, desespero, euforia e esgotamento mental, pelo alto risco de lesões e até mesmo, de vida.
Brasil e colaboradores (2016) investigaram ações pedagógicas para o ensino do surfe, objetivando compreender quais as melhores ações para que o aprendiz possa ter pleno desenvolvimento na modalidade. Os autores sugeriram que as intervenções pelos treinadores e instrutores devem atender especificidades de cada aluno e do ambiente. O estudo também indicou que a relação subjetiva que o aprendiz estabelece com a atividade e com o ambiente é crucial para adesão e desenvolvimento no surfe. Ressalta-se a relevância do estudo em atentar-se à questão primordial que é a iniciação à modalidade.
Implicações do surfe ao desenvolvimento biopsicossocial
Alguns estudos encontrados apresentaram implicações ao campo da psicologia do desenvolvimento, indicando efeitos estruturantes do surfe em funções psíquicas, na formação da identidade e da subjetividade. O estudo de Furley e Dorr (2016) investigou processos de tomada de decisão em surfistas, considerando como variável independente, o quesito “experiência”. Os voluntários foram divididos em três grupos conforme experiência no esporte (grupo controle, surfistas principiantes, e surfistas com mais de dez anos de prática). Os pesquisadores fizeram uma simulação virtual das ondas se aproximando e os participantes deveriam indicar pressionando uma tecla indicativa se a onda seria surfável ou não. Como resultados principais, os autores apontaram que os surfistas com maior experiência apresentaram melhor acurácia, fazendo melhor distinção das ondas surfáveis das não surfáveis. Este estudo forneceu uma das primeiras evidências de que surfistas altamente experientes possuem vantagens cognitivas quando comparados a surfistas menos experientes ou a um grupo controle formado por pessoas que não surfam.
Algumas pesquisas consideram que o surfe pode servir também como aspecto estruturante da identidade e da subjetividade humana (SCHIMID, 2019; ROY, 2014; et al., 2019; WHEATON, 2017; WHEATON et al., 2017; WHEATON, 2019). Roy (2014) entrevistou 35 mulheres com idades entre 12 e 65 anos, que indicaram a existência de demandas emocionais importantes em torna-se surfista, considerando que a capacidade de surfar está diretamente ligada ao fato de se sentirem confortáveis para essa prática. Algumas mulheres entrevistadas relataram estratégias específicas para competir com homens pelo domínio de espaço e das ondas e outras, por exemplo, escolhem momentos do dia menos concorridos para surfar. Neste estudo, a maioria das entrevistadas expressou que a prática possibilita sentimentos que ajudam a estabelecer a identidade e a subjetividade pessoal.
Rynne (2016) buscou investigar as contribuições do surfe como fator de desenvolvimento físico e social nas vidas de adolescentes indígenas. Neste estudo, foram avaliados 54 participantes com variados níveis de envolvimento com a modalidade. Destes, 23 eram jovens indígenas australianos que participavam de um programa de surfe. Os resultados apontam que, dentre as pessoas envolvidas no projeto, a maioria adotava uma visão holística sobre a prática, compreendendo que esta propiciava também a reconexão com o mar e benefícios para toda a comunidade. Os voluntários relatam ainda que a prática tem sido um importante pilar para o repasse da cultura, propiciando a (re) conexão com a natureza, com o oceano, o desenvolvimento de conhecimento específico para o surfe e para interação com o oceano, (re) estabelecimento de laços sociais e comunitários.
O surfe também parece ter implicações ao desenvolvimento da corporeidade (BUSH, 2016). A construção da corporeidade feminina foi objeto de estudo na pesquisa de Bush (2016), que objetivou examinar como a cultura do surfe influenciou no desenvolvimento do estilo de vida e da identidade de mulheres na costa leste dos Estados Unidos. A pesquisadora verificou que a prática propiciou sentimentos de felicidade, melhorias em capacidades físicas e mentais. O surfe foi considerado por muitas como uma forma de terapia, utilizada como estratégia para superar ou lidar com adversidades emocionais.
Os estudos de Wheaton e colaboradores (WHEATON, 2017; WHEATON et al., 2017; WHEATON, 2019) implicam a prática do surfe na formação e no desenvolvimento da identidade em jovens (WHEATON, 2017) e também em adultos e pessoas idosas (WHEATON et al., 2017; WHEATON, 2019), ressaltando implicações ao desenvolvimento social e comunitário (WHEATON, 2017). Outras evidências indicaram que esportes radicais, como o surfe podem desenvolver também valores específicos como a humildade e a coragem a partir da prática contínua (BRYMER; OADES, 2016).
O potencial terapêutico do surfe
Em nossos resultados foram identificados vários estudos que reforçam a proposta de que o surfe deve ser considerado uma atividade terapêutica, capaz de auxiliar na melhoria sintomatológica em diversos quadros clínicos. O declínio da ansiedade, do estresse e de sintomas depressivos a partir da iniciação no surfe foram aspectos observados em algumas das pesquisas encontradas em nossa revisão (SCHMID et al., 2019; AMRHEIN et al., 2016; ROGERS et al., 2014; THORPE, 2015; SCHVIRTZ, 2018). Amrhein e colaboradores (2016) investigaram se surfistas relatariam menos sintomas de depressão e ansiedade do que a amostra normativa. Os resultados demonstraram que surfistas apresentam relatos acerca da espiritualidade e demonstram maior qualidade de vida, menores índices de depressão e de ansiedade. A prática do surfe também se mostrou eficaz na diminuição de sintomas do Transtorno de Estresse Pós Traumático (TEPT) como mostraram Caddick e colaboradores (2015a; 2015b), Caddick e Smith (2017), Rogers (2014), Caddick (2015) e Schvirtz (2018).
Outras implicações terapêuticas consideram que a prática do surfe pode desencadear aumento na autoconfiança (SCHIMID, 2019; MARSHALL, 2019; ROGERS, 2014; WIERSMA, 2014), mais sentimentos de felicidade (GOLDFREY, 2015; BUSH, 2016), maior sensação de liberdade (CADDICK; SMITH, 2017; CADDICK et al., 2015b) e aumento da resiliência (THORPE, 2015; MARSHALL, 2019). A sensação de bem-estar advinda da prática do surfe também foi evidenciada em alguns dos estudos identificados (MARSHALL, 2019; WHEATON et al., 2017; WHEATON, 2019; OLIVE, 2015; BEAUMONT; BROWN, 2015; BRASIL et al., 2016; CADDICK; SMITH, 2017; CADDICK et al., 2015b; SCHVIRTZ, 2018), aparecendo em aproximadamente 29% dos artigos inclusos.
Outros trabalhos indicaram efeitos positivos do surfe na qualidade das interações sociais (GODFREY, 2015; WHEATON et al., 2017; WHEATON, 2019; RYNNE, 2016; BEAUMONT, 2015; CADDICK et al., 2015a; THORPE, 2015). Neste quesito, o surfe aparece como aspecto que restabelece laços e afetividades, com implicações positivas também na economia de determinadas comunidades (BEAUMONT; BROWN, 2015; RYNNE, 2016).
Outros efeitos positivos advindos da prática do surfe foram o aumento do afeto positivo e da tranquilidade (PITTSENGER, 2017); melhoria de habilidades cognitivo-perceptivas (FURLEY; DORR, 2016); adequação funcional do comportamento (GOLDFREY, 2015); ampliação de sentimentos de empoderamento e autonomia (SCHIMID, 2019; MARSHALL, 2019).
Schmid e colaboradores (2019) investigaram os efeitos psicológicos decorrentes da prática do surfe em pessoas com deficiências variadas inseridos em um programa de reabilitação no Havaí conhecido como AccesSurf. Tal instituição tem por finalidade a capacitação de pessoas com deficiência para realizar natação e surfe adaptado. Para o estudo, foram recrutados participantes com mais de seis meses no programa. Os resultados apontaram melhorias nas capacidades físicas, mentais e sociais após a inserção no projeto. Descreveram o desenvolvimento de sentimentos de empoderamento, maior independência e que o surfe influenciou na reconstrução da identidade pessoal. Os participantes relataram declínio da ansiedade, do estresse e aumento da confiança. Descreveram também que sentiram uma melhoria significativa na qualidade dos relacionamentos interpessoais.
Godfrey, Devine e Taylor (2015) avaliaram 114 jovens encaminhados pelas redes de saúde, educação e assistência social, com diferentes queixas relacionadas à saúde mental ou exclusão social, ao projeto intitulado “Wave Project”, que possui como proposta a intervenção psicossocial através da iniciação ao surfe, buscando promover saúde e bem-estar. O estudo utilizou a Escala de Bem-Estar de Crianças de Stirling (SCWBS) e analisou também relatos dos pais. Como resultados, os pesquisadores reportaram que 96% dos participantes sentiram mudanças positivas em suas vidas, 98% se declararam mais felizes e que se divertiam bastante durante a prática do surfe (99%). Relataram também que fizeram mais amigos (89%) e que se sentiram mais aptos para as demandas do cotidiano (87%). Sobre as medidas de bem-estar, as análises estatísticas demonstraram aumento significativo na pontuação da referida escala após a inserção nas atividades de surfe. O relato dos pais corroborou com os resultados encontrados com os participantes, reforçando o achado de que o impacto do projeto foi extremante positivo para a vida pessoal e familiar.
Marshall e colaboradores (2019), também estudaram efeitos terapêuticos associados ao Wave Project. Nesse estudo, indicaram que o surfe foi capaz de afetar indicadores de autonomia, bem-estar, confiança, de proporcionar melhorias na saúde e de ampliar a resiliência, além de melhorar os laços sociais dos praticantes. Segundo os pesquisadores, os resultados advêm da combinação da prática do surfe com o ambiente proporcionado pelo projeto, pois, segundo os entrevistados, o ambiente e as vivências psicossociais são variáveis que propiciam alívio de seus problemas cotidianos, diminuindo sintomas de ansiedade e depressão.
Rogers (2014) estudou implicações do surfe como coadjuvante ao tratamento de TEPT e depressão, entrevistando 11 veteranos de uma ação militar realizada no Iraque com o diagnóstico de TEPT, transtorno depressivo maior ou ambos. Os participantes relataram melhora significativa nos sintomas de TEPT e depressão, aumento da confiança e o desenvolvimento de habilidades psicológicas específicas. Caddick e colaboradores (2015) também investigaram como o surfe pode auxiliar veteranos de guerra diagnosticados com transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), tendo identificado a diminuição de pensamentos disfuncionais e o desaparecimento de pensamentos suicidas. O surfe também aumentou felicidade, sentimentos de liberdade e propiciou melhorias na esfera social.
Thorpe (2015) verificou que modalidades de ação, incluindo o surfe, ajudaram seus praticantes a recriarem rotinas e imaginarem os espaços para além da destruição desencadeada por um terremoto em Christchurch (Nova Zelândia), em 2011. Os participantes afirmaram que os esportes ajudaram a vislumbrar novas possibilidades. Foi constatada a diminuição no estresse, na ansiedade e da tensão e que, em períodos de calamidade, a prática se tornou fundamental para que os entrevistados se tornassem mais resilientes e pudessem se recuperar.
O estudo realizado por Schvirtz e colaboradores (2018) se configura como relato de experiência de um surfista de 35 anos que sofreu um ataque de tubarão e teve uma amputação supracondilar do fêmur. Os pesquisadores relataram que o paciente se queixava de não conseguir praticar o surfe após a amputação e para a resolução de tal problema, foi desenvolvida uma prótese que permitia mais mobilidade e equilíbrio na prancha. Após a retomada das atividades, o participante passou a indicar que se sentia menos ansioso e também com menos dores neuropáticas. Em conclusão, Schvirtz e colaboradores (2018), afirmaram que essa atividade provavelmente pode auxiliar na reabilitação de amputados através da promoção de uma maior qualidade de vida e de bem-estar.
Como pode ser observado, existem vários relatos científicos sobre efeitos positivos do surfe na saúde mental. Deve-se, portanto, considerar a prática dessa modalidade como alternativa terapêutica complementar, mas que requer de estudos mais aprofundados para uma maior compreensão de seus efeitos terapêuticos. Tais aplicações terapêuticas devem considerar também alguns efeitos negativos associados à prática e descritos abaixo.
Efeitos negativos associados ao surfe
Apesar de terem sido verificadas evidências sobre efeitos terapêuticos associados ao surfe, deve-se também considerar a pesquisa de Burgess e colaboradores (2018), sobre lesões e indicadores de saúde. O referido estudo demonstrou que existe uma alta incidência de lesões nas regiões lombar, nos pés, no joelho e tornozelo. Os tipos mais frequentes de lesão foram escoriação e laceração. Embora a ocorrência de lesões físicas seja alta nesse meio, foram verificados que os escores médios do componente saúde física e mental do SF-12 foram maiores do que a norma da população.
Partington e colaboradores (2009) também estudaram alguns efeitos negativos associados ao surfe, como o próprio nome do artigo sugere “The dark side of flow...”. Partindo da hipótese de que o surfe poderia também causar uma espécie de dependência psicológica, os pesquisadores entrevistaram uma amostra de 15 renomados surfistas de ondas grandes, com uma entrevista semiestruturada. Como principais resultados, os autores indicaram que, apesar de inúmeros benefícios relatados, também foram relatadas evidências de que a prática pode se tornar algo vicioso. De acordo com os relatos, afirmativas de que precisavam experimentar sempre mais da experiência propiciada pelo surfe de ondas grandes, se assemelham a características de dependência psicológica. Contudo, os autores enfatizaram que somente alguns surfistas identificaram sinais de dependência, uma vez que colocaram a prática como prioridade, inclusive acima da própria vida, quando optaram a procurar sempre por ondas ainda mais perigosas. Tal estudo incita a reflexão sobre a centralidade que o surfe pode assumir no estilo de vida de praticantes que, quando em casos extremos, pode significar exposição a situações de risco, desencadear síndromes como Burnout, compulsão ou treinamentos excessivos, ampliando o risco de lesão relacionado à modalidade.
Outras evidências sobre efeitos negativos para quem usa o surfe como atividade laboral, são reportadas no trabalho de Evers (2019) que, através de entrevistas com 11 surfistas patrocinados para exposição midiática, indicou que a percepção de felicidade e bem estar no surfe não pode ser generalizada. Em sua pesquisa, alguns surfistas associaram características negativas ao trabalho midiático requisitado para divulgação do freesurf e que também são inerentes ao contexto competitivo. Este tem sido retratado também como sendo um ambiente hostil, que pode desencadear ansiedade e sensações de vulnerabilidade. O Freesurf é um termo utilizado para quem pratica o surfe como estilo de vida dissociado das competições.
Além dos estudos de Evers (2019), Correia e Rosado (2019) demonstraram que no ambiente de competição, sintomas de ansiedade e sentimentos de vulnerabilidade são realmente comuns. Este achado se opõe ao que foi identificado nas pesquisas de Schmid (2017), Amrhein (2016), Rogers (2014), Thorpe (2016) e Schvirtz (2018), que demonstram que praticar surfe pode diminuir os índices de ansiedade e de outros sintomas psicológicos. Possivelmente, tal diferença se deva ao fator “competição”, que deve influenciar os estados psíquicos gerando mais ansiedade e tensão. Ainda assim, Wheaton (2017), reforça a tese de que pelo fato de o surfe ser um esporte individual e o fato do sujeito depender apenas de si mesmo, pode fazer com que se observe menor de ansiedade e estresse nas competições de surfe.
CONCLUSÕES
O surfe tem sido caracterizado como um esporte com características psicomotoras peculiares e uma significativa história sociocultural, que expressa uma rica relação do homem com a natureza, especialmente com o mar e com as ondas. Nossa revisão possibilita a compreensão de que o surf tem sido utilizado em perspectivas diversas e com objetivos variados, tal como para fins de lazer, como estilo de vida, inclusão social ou para reabilitação física e mental, bem como fonte de renda de empresas, atletas, instrutores e profissionais do esporte.
Os resultados iniciais nos identificaram a necessidade da realização de mais estudos que estudem de forma mais aprofundada os correlatos psicofisiológicos envolvidos na prática do surfe, bem como aspectos sociais envolvidos. Nossa revisão indicou que ainda são muitas as lacunas a serem exploradas, bem como a diversidade de temas a serem investigados. Acredita-se que o desenvolvimento de novas pesquisas e práticas em Psicologia do Esporte relacionadas ao surfe possam se desenvolver a partir das categorias temáticas identificadas neste estudo, já que compilam as referências científicas para subsidiar o desenvolvimento teórico, de protocolos de investigação e intervenção.
Cabe destacar o potencial terapêutico da prática da modalidade, que já tem sido explorado em diferentes estudos e aos poucos, se convertem em ações de extensão e intervenção espelhadas pelo mundo em diferentes projetos terapêuticos e de desenvolvimento psicossocial. No Brasil, são várias as iniciativas, como no projeto Onda Azul (SC), Surf4Mind (UFRJ) e no projeto sUrFF terapia (UFF). Os indícios de evolução terapêutica encontrados na reabilitação em quadros neurológicos e psicológicos devem ser considerados como estratégia de promoção de saúde através da iniciação esportiva nessa modalidade. Tais indicadores podem estimular o desenvolvimento de políticas públicas para acesso e como modalidade complementar por parte de populações clínicas, grupos de risco e como opção recreativa para a população em geral.
No contexto do surfe de alto rendimento, acredita-se que as produções científicas devem ser ampliadas significativamente em função do surfe ter sido indicado como modalidade teste nos jogos Olímpicos. Nesta temática, observamos produções que tenham indicado ocorrências de eventos negativos, como a experimentação da ansiedade competitiva, fatores tensionais, hostilidade e alterações de humor em competidores, reações de medo e insegurança em condições extremas, bem como desgaste e fadiga mental. Ainda que tais aspectos não tenham sido reportados com consistência, tais achados poderão auxiliar atletas de alto rendimento e suas respectivas comissões técnicas a compreenderem melhor as principais demandas de preparação psicológica para competições e para o surfe em condições extremas. Além do conhecimento, tais indicadores também reforçam a necessidade de suporte emocional aos atletas de alto rendimento dessa modalidade. Espera-se que futuros estudos nesse contexto também possam verificar a influência dos diferentes estados mentais no desempenho esportivo, bem como as implicações emocionais e cognitivas ao desempenho no surfe de alto rendimento. Acredita-se que a condição neo-olímpica desta modalidade possa estimular a produção científica não apenas no alto rendimento, mas também concernente às suas implicações aos campos da reabilitação, educação (e desenvolvimento), saúde, competição e lazer.
Como pode ser observado, existem demandas e potenciais de pesquisa muito promissores a serem explorados acerca dos efeitos da prática do surfe e sobre processos psicológicos inerentes à performance de surfistas competidores. A presente revisão sistemática contribui ao desenvolvimento científico da Psicologia do Esporte no contexto do surfe, compilando os principais estudos realizados até o momento e indicando, ao menos, quatro campos temáticos de desenvolvimento científico nesta articulação.