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Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos

versão impressa ISSN 0034-7183versão On-line ISSN 2176-6681

R. Bras. Est. Pedag. vol.103 no.263 Brasília jan./abr 2022

https://doi.org/10.24109/2176-6681.rbep.103i263.4822 

Estudos

A formação inicial do(a) futuro(a) professor(a) de Letras: a mediação de leitura em foco

The future Language and Literature teacher’s initial training: focusing on reading mediation

La formación inicial del (la) futuro(a) profesor(a) de Letras: la mediación de lectura en foco

Adair Aguiar NeitzelI  II 
http://orcid.org/0000-0003-0096-5892

Cleide Jussara Muller ParejaIII  IV 
http://orcid.org/0000-0002-5576-2980

Amanda Demétrio dos SantosV  VI 
http://orcid.org/0000-0002-6576-2116

IUniversidade do Vale do Itajaí (Univali). Itajaí, Santa Catarina, Brasil. E-mail: <neitzel@univali.br>.

IIDoutora em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Florianópolis, Santa Catarina, Brasil.

IIIUniversidade do Vale do Itajaí (Univali). Itajaí, Santa Catarina, Brasil. E-mail: <cleidepareja@hotmail.com>

IVDoutora em Educação pela Universidade do Vale do Itajaí, (Univali). Itajaí, Santa Catarina, Brasil.

VUniversidade do Vale do Itajaí (Univali). Itajaí, Santa Catarina, Brasil. E-mail: <amandademetriods@gmail.com>

VIMestranda em Educação pela Universidade do Vale do Itajaí, (Univali). Itajaí, Santa Catarina, Brasil.


Resumo:

O objetivo deste artigo é discutir como ocorre a mediação do literário no curso de Letras de uma universidade do sul do Brasil da rede da Associação Catarinense das Fundações Educacionais (Acafe) e o impacto dessa mediação na formação do(a) futuro(a) docente. É uma pesquisa qualitativa de natureza exploratória. O instrumento de coleta utilizado consistiu em entrevista por meio de grupo focal com oito acadêmicos do curso de Letras, na disciplina de Estudos Literários. A professora de Literatura não foi entrevistada, mas é considerada sujeito de pesquisa porque, mediante os depoimentos dos acadêmicos, identificamos as percepções sobre a atuação dela em sala de aula, suas escolhas metodológicas e teóricas. A análise dos dados ocorreu de acordo com a análise de conteúdo segundo Franco (2008). O estudo fundamentou-se em Barthes (2015, 1992), Duarte Júnior (2010, 2012), Mirian Martins (2005, 2014), Neitzel et al. (2017), Todorov (2020), entre outros. Os resultados indicam que: a mediação da leitura do literário ocorreu a partir da concepção da professora de que mediar implica uma postura de valorização do outro; a mediação deu-se por meio de objetos e espaços propositores - livros, pinturas, músicas, cartões-postais, trechos de filmes, entre outros -, os quais a professora explorou para oportunizar aos(às) acadêmicos(as) a apreciação do texto literário como objeto estético e artístico; os espaços propositores, como corredores, escadas, bibliotecas, espaços ao ar livre e a própria sala de aula, foram experimentados para ampliar as percepções dos(as) acadêmicos(as) sobre a obra e por ela serem afetados(as). As experiências reverberaram e há indícios de que contribuíram para a educação estética dos(as) futuros(as) docentes.

Palavras-chave: ensino superior; formação de professores; mediação em leitura.

Abstract:

This paper aims to discuss how literary mediation occurs in a Language and Literature course at a university in the Southern of Brazil, which is part of Santa Catarina’s Association of Educational Foundations (Acafe) and its impact on the education of future teachers. This is an exploratory qualitative research. Data was collected through an interview with an eight-student focus group taking the Literary Studies subject. Though not an interviewee, the literature teacher was considered a research participant because, through the academics' testimonies, student’s perceptions were identified about her performance in the classroom, and her methodological and theoretical choices. The data analysis followed the content analysis based on Franco (2008). The study was drawn from Barthes (2015, 1992), Duarte Júnior (2010, 2012), Martins (2005, 2014), Neitzel et al. (2017), Todorov (2020), among others. Results indicate: the mediation of the literary reading occurred from the professor’s conception that to mediate implies an attitude of valuing the other; mediation took place by the proposition of objects and spaces - books, paintings, music, postcards, excerpts from films, among others -, which the professor explored to give the students the opportunity to appreciate the literary text as an aesthetic and artistic object; the proposition spaces, such as corridors, stairs, libraries, outdoor spaces and the classroom, were experimented to broaden the students’ perceptions of the book and to be affected by it. The experiences rippled and there are indications that they contributed to the aesthetic education of the future teachers.

Keywords: higher education; reading mediation; teacher education.

Resumen:

El objetivo de este artículo es discutir cómo ocurre la mediación de lo literario en la carrera de Letras de una Universidad del sur de Brasil de la red 'Associação Catarinense das Fundações Educacionais (Acafe)' y su impacto en la formación del(la) futuro(a) docente. Es una investigación cualitativa de naturaleza exploratoria. El instrumento de recolección de datos consistió en una entrevista a través de un Focus Group de 8 (ocho) estudiantes del grado de Letras, en la asignatura de Estudios Literarios. La profesora de literatura no fue entrevistada, pero se la considera sujeto de investigación porque, a través de los testimonios de los estudiantes universitarios, identificamos sus percepciones sobre su desempeño en el aula, sus elecciones metodológicas y teóricas. El análisis de los datos fue de acuerdo con el contenido, según Franco (2008). El estudio se fundamentó en Barthes (2015, 1992), Duarte Júnior (2010, 2012) Martins (2005, 2014), Neitzel et al. (2017), Todorov (2020), entre otros. Los resultados indican: la mediación de la lectura de lo literario ocurrió a partir de la concepción de la profesora de que mediar implica una postura de valoración del otro; la mediación se dio por medio de objetos y espacios propulsores - libros, pinturas, música, tarjetas postales, extractos de películas, y otros-, que la docente exploró con el fin de posibilitar a los(as) estudiantes universitarios(as) la apreciación del texto literario como objeto estético y artístico; los espacios propulsores, como pasillos, escaleras, bibliotecas, espacios al aire libre y el proprio aula en sí, fueron experimentados a fin de ampliar las percepciones de los estudiantes del grado sobre la obra y analizar como ella les afectó. Las experiencias repercutieron y hay indicios de que contribuyeron a la educación estética de los(las) futuros(as) docentes.

Palabras clave: educación superior; formación de profesores(as); mediación de lectura.

Introdução

Pesquisas na área da educação vêm assinalando que questões relacionadas à formação de leitores(as) na educação básica têm sua matriz na formação do(a) licenciado(a) em Letras, que nem sempre se porta como leitor(a) em sala de aula e não escolariza adequadamente o texto literário, como aponta Soares (2001). Lajolo (2009), Perrotti (1986), Zilbermann (2009), Yunes (1999), Silva (2009), Rösing (2009), entre outros, trazem à baila discussões que nortearam a formação do(a) profissional de Letras, pontuando a necessidade de explorar-se, no ensino da Literatura, sua função estética, de ampliar o cânone literário e de desenvolver mediações de leitura adequadas.

Pesquisas como as de Vetter (2017), Weiss (2016), Bridon (2013), Domingues (2017) apontam que, ainda no século 21, há um descompasso entre a formação do(a) futuro(a) professor(a) de Língua Portuguesa e Literatura e a formação leitora na educação básica, pois as mediações de leitura do literário em sala de aula nem sempre dão espaço para a leitura e, muitas vezes, confundem-se com o estudo da historiografia literária ou de seu resumo. As pesquisadoras tencionam sobre o processo de mediação do literário e sinalizam que as atitudes adequadas do(a) professor(a) no manejo com o texto literário são aquelas que aproximam o(a) leitor(a) do livro, que provocam nele(a) desejo pela leitura, que abrem as possibilidades de interlocução com o texto, que possibilitam a fruição.

Macedo (2019) apresenta um bom exemplo de como o(a) professor(a) em sala de aula pode dinamizar a leitura e causar em seus(suas) estudantes o desejo pela literatura: um(a) docente leitor(a) que inova nas metodologias de abordagem do texto, que coloca a leitura como prática diária e central de suas aulas, a literatura como uma prática social. O estudo aponta que o domínio conceitual do(a) professor(a) sobre a função da literatura é o motor das inovações que se podem propor, assim como sua compreensão sobre o protagonismo do(a) estudante na aprendizagem e sua formação leitora.

Formiga, Inácio e Barbosa (2015) discutem sobre o modelo de ensino de Literatura vigente na educação superior que, em grande parte, focalizou seus estudos em uma visão historiográfica da literatura. Agazzi (2014) corrobora essa ideia ao afirmar que é necessário “[...] transformar as práticas pedagógicas adotadas no ensino superior, a partir da ruptura com a concepção de um ensino de Literatura sustentado pelos modelos de historiografia literária positivista, pelos eventos literários exteriores à obra [...]” (Agazzi, 2014, p. 456). O que é ensinado aos(às) futuros(as) docentes na universidade irá refletir em sua postura diante do texto literário, nas práticas pedagógicas em sala de aula. Por essa razão, se o(a) acadêmico(a) - futuro(a) professor(a) - vive a experiência do literário por meio de mediações adequadas, ele(a) é ensinado(a) a ser um(a) mediador(a) emancipador(a) e poderá contribuir para a formação de leitores(as) da educação básica.

Os estudos de Rocateli et al. (2020) indicam a complexidade que envolve a docência no ensino superior e como a formação universitária influencia a prática dos(as) futuros(as) profissionais, como “[...] o docente universitário se torna referência para a ação docente dos professores da educação básica nos cursos de ensino fundamental e médio, no caso das licenciaturas [...]” (Rocateli et al., 2020, p. 754). As pesquisadoras apontam que essa complexidade exige mudanças de pensamento, principalmente nas relações entre professor(a) e aluno(a).

Caregnato et al. (2020), ao investigarem os temas emergentes na América Latina, com ênfase nas realidades nacionais da Argentina, do México e do Brasil, afirmam que, no Brasil, apesar dos avanços, é imprescindível investir mais na organização de programas de ensino e currículos de formação, de modo a enfatizar a necessidade de liberdade acadêmica e de autonomia universitária na organização dos currículos. Os autores, ao sinalizarem as políticas de acesso das universidades brasileiras, apontam a necessidade de conhecer-se melhor como os(as) estudantes escolhem seus cursos, como ocorre a socialização acadêmica e como são tecidas as relações pedagógicas e as condições de permanência e êxito final.

Entendemos que a sala de aula é um espaço também de convivência e, nela, a socialização acadêmica pode ser ampliada se a postura do(a) professor(a) formador(a) for aberta ao diálogo, não autoritária, pois a integração dos(as) acadêmicos(as) implica sua permanência no curso e seu êxito final. Além disso, as experiências em sala de aula, os relacionamentos vividos na formação inicial, como apontam Rocateli et al. (2020), impactam a atuação do(a) profissional em educação.

Corrêa (2015) fez um levantamento bibliográfico sobre pesquisas que envolvessem professores(as) formadores(as) em Letras/Inglês no Brasil entre 1987 e 2012, a partir da base de dissertações e teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Seu estudo revela a carência de pesquisas sobre a temática da formação inicial nessa área. A investigação que desenvolvemos diz respeito aos(às) formadores(as) de Letras/Língua Portuguesa e respectivas Literaturas e se aplica às metodologias empregadas no ensino das disciplinas de Estudos Literários nos quatro primeiros períodos do curso de Letras, com foco nas mediações literárias propostas pela formadora, segundo as percepções dos(as) acadêmicos(as) do curso. Destinamos um olhar atento para os(as) formadores(as) dos(as) licenciandos(as), pois sua postura diante do texto literário gera impactos significativos nas escolhas que eles(as) fazem quando atuam em sala de aula.

Caminho metodológico

Este estudo teve como problema de pesquisa: Como uma professora formadora medeia a leitura do literário no curso de Letras? Os sujeitos de pesquisa foram uma professora de Estudos Literários e oito acadêmicos (nomeados aqui de Sujeito 1, Sujeito 2 e assim sucessivamente) do quarto período do curso de Letras na disciplina de Estudos Literários de uma universidade do sul do País da Associação Catarinense das Fundações Educacionais (Acafe); no entanto, a entrevista por meio de grupo focal foi efetuada apenas com os acadêmicos. Esclarecemos que essa professora atuou nos quatro primeiros períodos do curso e que, ao todo, eram nove acadêmicos(as), todavia, um não aceitou fazer parte da investigação. A professora de Literatura não foi entrevistada, mas é considerada sujeito de pesquisa porque, por meio dos depoimentos dos acadêmicos, identificamos suas percepções sobre a atuação da professora em sala de aula, suas escolhas metodológicas e teóricas.

A coleta de dados ocorreu no final do quarto período do curso, e o instrumento de coleta consistiu na aplicação de entrevista por meio de grupo focal com os(as) acadêmicos(as). Os depoimentos foram analisados com base na transcrição feita da filmagem do grupo focal, que, de acordo com Bauer e Gaskell (2007), tem como objetivo construir um espaço a possibilitar a inter-relação e o compartilhamento de ideias entre os participantes. Para análise dos dados, utilizamos a análise de conteúdo segundo Franco (2008). Para a autora, a análise de conteúdo “[...] permite ao pesquisador fazer inferências sobre qualquer um dos elementos da comunicação” (Franco, 2008, p. 20), uma vez que é uma abordagem que se centra na mensagem verbal, gestual, fotográfica, entre outras, diretamente percebida ou não.

Esta pesquisa se caracteriza como qualitativa, que, segundo Minayo (2001, p. 22), “[...] aprofunda-se no mundo dos significados das ações e relações humanas, um lado não perceptível e não captável em equações, médias e estatísticas”. Assim sendo, esse modo de pesquisar não se preocupa com algo que pode ser quantificado, mas, sim, com os fenômenos, os processos e as relações que ocorrem. É também uma pesquisa exploratória por ser “[...] aquela realizada em áreas (de conhecimento) ou focada em problemas a respeito dos quais há escasso ou nenhum conhecimento acumulado e sistematizado” (Univali, 2011, p. 32). Esperamos com esta investigação contribuir e aprofundar os estudos acerca da formação inicial dos(as) licenciandos(as) de Letras e dos(as) formadores(as) e a respeito da mediação do literário no ensino superior.

Esse projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da instituição executora, Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (Caae) 97666818.0.0000.0120, Parecer nº 2.945.358, e os sujeitos participantes assinaram o Termo de Consentimento. Asseguramos que a pesquisa foi conduzida de maneira ética, respeitando todas as salvaguardas éticas necessárias e os requisitos da Resolução CNS nº 466, de 12 de dezembro de 2012, e suas complementares.

O ensino da Literatura em cursos de licenciatura

[...] quem mói no asp’ro, não fantasêia. [Guimarães] Rosa (2015, p. 21).

Um dos grandes desafios de cursos de formação inicial de professores(as) na área de Letras é o de promover o acesso ao livro de literatura por meio de práticas de leitura que salvaguardem a sua função estética, como afirma Todorov (2020). A epígrafe, extraída de Grande Sertão: Veredas, convida-nos a pensar sobre a concepção de literatura, assim como nas suas funções, questões que sustentam as escolhas que o(a) docente faz em sala de aula.

Tendo em vista os pressupostos teóricos discutidos por Barthes (2015), Eco (1986) e Calvino (1990), entendemos que a literatura, seja na educação básica ou no ensino superior, tem uma função estética e artística que necessita ser respeitada. O livro é um objeto artístico e estético, e a leitura do literário precisa ser um movimento que ensina o(a) leitor(a) a jogar com o texto, que evoca o(a) leitor(a) a fazer perguntas ao texto, a dialogar com ele, entrar em suas fugas, tergiversá-lo, estabelecer uma relação de fruição com ele. Esse jogo que se institui entre leitor(a) e obra causa deslocamentos no(a) leitor(a) e possibilita a fruição.

Segundo Barthes (2015), ler por fruição desestabiliza as bases seguras do(a) leitor(a) e o(a) coloca em estado de perda, um movimento em que ele(a) é provocado(a) a ler para além do que está posto no texto, a perceber as suas dobras. Nesse movimento, o(a) leitor(a) é provocado(a) a posicionar-se, a buscar a sua própria visão de mundo, função do texto literário, como bem lembra Coutinho (2005). A leitura por fruição, nesse sentido, não pode ser confundida com a leitura de prazer, pois esta não causa rupturas no(a) leitor(a), é uma leitura confortável, que o(a) contenta.

Com Guimarães Rosa (2015), aprendemos que a arte é uma necessidade para desembotarmos nossos sentidos, para nos deslocarmos da rotina do dia a dia. Quando nos robotizamos, passamos a moer no áspero, pois não criamos espaço para a fantasia, para aquilo que não faz parte da vida prática. A arte é uma potente via de criação, de produção de sentidos, de experiência, quando explorada pelas vias estésicas. Sendo arte, a literatura educa esteticamente quando ela se dá no fazer uma experiência, quando a leitura gera um acontecimento individual, único, conceito desenvolvido por Heidegger (2003) e Larrosa (2016).

Para Heidegger (2003), a experiência é algo que nos atravessa, atropela-nos, acontece-nos e, por isso, ela não se transmite, mas se faz. Fazer uma experiência é deixar-se tocar, é “[...] atravessar, sofrer, receber o que nos vem ao encontro [...]” (Heidegger, 2003, p. 121), e, por meio dela, modificamo-nos, transformamo-nos. A experiência é o próprio caminho percorrido; não é algo que está fora de nós, nos instrumentos e nos números, e, por isso, não é possível ter uma experiência, mas fazê-la.

Larrosa (2016, p. 18), a partir desse conceito formado por Heidegger, afirma:

É experiência aquilo que ‘nos passa’, ou que nos toca, ou que nos acontece, e, ao nos passar, nos forma e nos transforma. Somente o sujeito da experiência está, portanto, aberto à sua própria transformação. (Larrosa, 2016, p. 28).

Para o filósofo, a experiência é, portanto, algo individual, singular, mesmo que seja vivida em grupo, e, assim, as pessoas podem viver o mesmo acontecimento; todavia, fazem experiências divergentes. O acontecimento, nessa perspectiva, é algo que encarna no sujeito da experiência de forma a reverberar em sua vida.

Duarte Júnior (2010) aponta que a educação estética é um movimento de estesia do sujeito que é o contrário de anestesia, um movimento de percepção do mundo por meio dos sentidos que amplia os nossos saberes acerca do mundo vivido. Esses sentidos podem ser provocados de diversas formas, mas aqui discutiremos pelo viés das artes, especificamente pela literatura.

Schiller (2002) conceitua a educação estética como um estado de desenvolvimento em que o homem joga com a obra de arte. Pela apreciação e pela reflexão, mobilizamos a razão e a sensibilidade, o sensível e o inteligível, sem apartamentos, de forma integrada e una. Esse movimento oportuniza o desenvolvimento do impulso lúdico, mobilizado pelo jogo que o leitor opera com a obra, embate que promove a fruição. Ao desenvolvermos o impulso lúdico, mobilizamos nossa autonomia intelectual. Esse conceito de educação estética é importante quando tratamos da arte, porque, se o texto literário não tiver sua função estética explorada, se ele for tratado como um texto informativo, por exemplo, cuja mensagem a ser interpretada é o foco, sua leitura pode não educar esteticamente, o leitor pode não fazer uma experiência.

A educação estética é um movimento de unificabilidade, de percepção do mundo, por meio dos sentidos e do inteligível, que amplia os saberes acerca do mundo vivido. Esses sentidos podem ser provocados de diversas formas, mas aqui discutimos pelo viés das artes, especificamente pela literatura. Desse modo, se a função estética da literatura for explorada também nos cursos de formação inicial de professores(as), pelos(as) formadores(as), se a teoria literária ombrear a leitura do literário, não sendo esta o pretexto daquela, os(as) futuros(as) docentes de Língua e Literatura irão fazer uma experiência e educar-se esteticamente. Além disso, eles(as) entenderão, na prática, como mediar o texto literário respeitando, explorando e potencializando sua função artística e estética, e suas escolhas em sala de aula não se distanciarão dessa compreensão. Para a mediação de leitura adequada acontecer, são necessários intercessores(as) que promovam um estado de provocação, de afetamento, de oportunidades aos(às) envolvidos(as). Quando o(a) professor(a) formador(a) possibilita o encontro sensível com a obra literária, quando oportuniza o jogo entre leitor(a) e obra, o(a) licenciando(a) vai processando, internalizando, experienciando formas adequadas de mediar o texto em sala de aula.

Essa compreensão se distancia de imposições com valores utilitaristas ou intelectualistas, que respaldam um pensamento cartesiano em virtude da deificação da razão, e se aproxima de “[...] uma relação sensível com as obras de ontem e hoje, uma reflexão sobre o que é vivido e uma apropriação do conhecimento de várias disciplinas relacionadas a essas obras” (Petit, 2020, p. 28). Aparta-se de concepções de formação docente fundamentadas em visões metodologizantes ou aplicacionistas (Tardif, 2002). É uma concepção que celebra o dinamismo, o corpo, a vitalidade, o afeto, os sentidos, o estético, como sinaliza Duarte Júnior (2010). Para Petit (2020, p. 28), “o que está em jogo nessas iniciativas é o fato de se levar em consideração a criança, o sujeito, em suas dimensões sensíveis, psíquicas, físicas e não apenas intelectuais”. Por isso, problematizamos, neste artigo, o conceito de mediação de leitura, tendo em vista que a concepção de literatura adotada pelo(a) docente irá direcionar suas escolhas e, por meio delas, ele(a) poderá promover o fazer uma experiência pela leitura do literário - um movimento de mediação que poderá educar esteticamente.

No que diz respeito ao conceito de mediação, partimos da ideia de que “mediar é estar entre muitos” (Martins, M., 2014, p. 228), e, portanto, as aulas de Literatura precisam ser encontros de diálogo sobre o texto, sem se priorizarem chaves de leitura. Segundo Neitzel et al. (2017, p. 330-331), “mediar é suspender a narrativa”, “é calar”, “é permitir a digressão, a reversibilidade”, “é provocar o outro a construir proposições, a colocar pontos de interrogação”, “é propor experiências estéticas em porções”. Esses são gestos esperados do(a) professor(a) formador(a) que entende a literatura como um direito, uma possibilidade de ajudar as pessoas a “[...] construírem-se, a descobrirem-se, a tornarem-se um pouco autoras de suas próprias histórias, mesmo em contextos sociais bastante restritivos” (Petit, 2020, p. 24).

Se “mediar é suspender a narrativa” (Neitzel et al., 2017, p. 330-331), o fio condutor do diálogo iniciado pelo(a) professor(a) formador(a) precisa abrir caminhos para que outros fios sejam entrelaçados. Não se trata do movimento de perguntas feitas pelo(a) docente e de respostas dadas pelos(as) mediados(as). A preocupação é oferecer aos(às) envolvidos(as) várias entradas ao texto literário. Como nos falam Martins e Demarchi (2016, p. 6), “[...] divertindo-se no compartilhar, impulsionando poiéticas, sensibilidade e intelecto agitando-se, abrindo mapas, dobrando mapas, multiplicando mapas, em meio à diversidade ampliando fronteiras e paisagens outras”. O(a) professor(a) formador(a) é o(a) mediador(a) que entrelaça o primeiro fio, mas é com a partilha de outros(as) que o tecido de impressões e ideias vai sendo ampliado e ramificado.

A mediação pode instaurar um espaço de abertura ou de limitação do texto literário, pois, dependendo da postura do(a) mediador(a), o texto pode perder seu encantamento, sua potência estética. Se o(a) professor(a) formador(a) entender que “mediar é calar” (Neitzel et al., 2017, p. 330), os(as) participantes são convidados(as) a trilharem seus próprios caminhos de interpretação e a negociarem impressões com os seus pares. O texto literário propõe jogos de linguagem, e o(a) professor(a) formador(a) abre possibilidades, dá vasão ao(à) leitor(a) para jogar com o texto. Assim, os deslocamentos de leitura acontecem, produzindo uma visão ampliada do objeto em questão.

Entretanto, essa relação com o objeto estético, para ser provocativa, para ser inventiva, precisa “permitir a digressão, a reversibilidade” (Neitzel et al., 2017, p. 330). Nesse sentido, a boa mediação é aquela que possibilita que o(a) leitor(a) faça o percurso de ir e vir ao texto sem um caminho linear, sem impor a sua visão sobre o texto, deixando a responsabilidade ao(à) leitor(a) de desvelar os sentidos camuflados pela linguagem literária. O que o(a) professor(a) formador(a) necessita fazer é convidar ao jogo, criar tensões, provocar a reflexão. Nessa perspectiva, Martins e Demarchi (2016, p. 5) afirmam que “[...] a arte é campo propício a propostas inventivas que requerem abertura, despojamento e percepção ativa para entrar em jogos irrepetíveis”. O(a) professor(a) formador(a) que oportuniza a reversibilidade auxilia os(as) leitores(as) a retomarem suas hipóteses, confrontarem-se, seguirem adiante. Se, no meio do caminho, houver a necessidade de retornar, assim será.

Um(a) professor(a) formador(a) que entende que o texto literário é composto de bifurcações diversas, porque ele(a) se vale da linguagem poética - a qual exige interações errantes para que o sentido seja construído -, propõe uma mediação na qual o(a) leitor(a) poderá fazer inferências, construir saídas e entradas, ir em busca de sentidos vários. Essa compreensão se respalda no conceito de que “[...] mediar é provocar o outro a construir proposições, a colocar pontos de interrogação” (Neitzel et al., 2017, p. 330), a produzir deslocamentos.

Para Neitzel et al. (2017), a mediação do literário necessita ser percebida como uma experiência estética, um momento de nutrição estética, que, segundo Martins, M. (2005), é potencializada pela mediação cultural, a qual é entendida como um

[...] encontro, meio, estratégia, método para ensinar determinado conteúdo, ou, ainda, momento de refinamento cultural, percepção, que provoca trocas, nutrição e experiência estética, conhecimento para a apreciação ou processo de criação (Martins, M., 2005, p. 43).

Para que esse movimento seja criado e oportunizado aos(as) envolvidos(as), há de proporem-se “experiências estéticas em porções” (Neitzel et al., 2017, p. 331), a passos miúdos, para enlaçar o(a) leitor(a). Martins e Picosque (2012, p. 36) afirmam que:

[...] é preciso oferecer a nutrição apresentando o objeto cultural sem pressa, desacelerando o tempo para que o corpo possa vaguear e coletar impressões, sensações, se deixando invadir pela estesia, pelo saber sensível.

Análise de dados: experiência com a leitura do literário no ensino superior

Até aquela ocasião, eu nunca tinha ouvido dizer de se parar apreciando, por prazer de enfeite, a vida mera deles pássaros, em seu começar e descomeçar dos voos e pousação. Aquilo era para se pegar a espingarda e caçar. Mas o Reinaldo gostava: ‘É formoso próprio...’ - ele me ensinou. [Guimarães] Rosa (2015, p. 126).

Em Grande sertão: veredas, a personagem Riobaldo é afetada por Reinaldo (mais conhecido por Diadorim), que o ensina a ressignificar seu modo de ver a vida, de forma sensível. Reinaldo atua como um mediador na vida de Riobaldo, pois o provoca a entrever, a olhar de outro modo para o mundo, o que talvez, sozinho, Riobaldo não conseguisse. Esse movimento de deslocar o olhar automatizado, anestesiado, para um olhar estésico é tarefa do(a) professor(a) formador(a), que, por meio de suas escolhas, pode promover a educação estética dos(as) envolvidos(as).

Mediar o texto literário em cursos de licenciatura, em especial no curso de Letras, exige principalmente oportunizar momentos em que os(as) acadêmicos(as) possam apreciá-lo como objeto artístico e estético e fazer uma experiência, como sinaliza o Sujeito 4: “E a gente não se prende... O fato de a gente não se prender às escolas literárias, de fazer todo aquele início, meio e fim, de todas elas... A gente vai aprendendo na experiência”. Para além de estudar as escolas literárias, o contato íntimo e coletivo com o texto é fundamental para que a leitura encarne e os(as) acadêmicos(as) reverberem esse encantamento em seu fazer no cotidiano. Para Nhoque (2020), ao sentir o texto literário, fruí-lo, ele passa a encarnar no(a) leitor(a) e o(a) leitor(a) encarnar-se nele, atravessando suas fugas. Fazer uma experiência com a leitura do literário trata-se:

[...] de um leitor que, por tê-la encarnado, transborda a leitura do literário, a repercute em saberes, modos de ser e de ver a vida e se relacionar com o outro, assim amplia suas vivências e posteriores experiên cias. (Nhoque, 2020, p. 183).

Um(a) professor(a) formador(a) que instiga, provoca, cria pontes entre o objeto de estudo e os(as) leitores(as) é um(a) mediador(a) que amplia as possibilidades da leitura encarnada, abrindo espaços para os(as) acadêmicos(as) se exporem ao texto, produzirem pensamentos, argumentos, em um ambiente propício para o debate, como relata o Sujeito 3:

[...] a professora sempre nos motivou, né, desde a... Desde a leitura da Clarice Lispector a todas as obras, a mais do que analisar, mas refletir sobre aquilo que a gente tá lendo. E criar os nossos próprios argumentos. Eu vejo que a gente sempre teve uma liberdade muito grande pra discutir aquilo que a gente pensa e saber argumentar aquilo sobre que a gente pensa sobre a obra.

Esse sentimento de liberdade comentado pelo Sujeito 3 indica que a professora formadora adota uma postura de valorização do outro, de escuta e de diálogo. Os(as) acadêmicos(as) aprendem a não se conformar com o raso, mas a ruminar o texto, refletir sobre ele e criar seus próprios argumentos e interpretações. O(a) leitor(a) do literário, nessa dinâmica, “[...] busca uma leitura provocativa, desafiadora, na qual possa penetrar, atravessar, desvelar... fruir. E encharcado, transbordante, encarnado dessa leitura relaciona-se com a vida, com o outro” (Nhoque, 2020, p. 182).

Entrar em contato com o texto de diversas formas, por diferentes vias, senti-lo, apreciá-lo na leitura individual, mas também discuti-lo no grupo, são movimentos que oportunizam o fazer uma experiência quando o sujeito se afeta pelo texto. Segundo Nhoque (2020, p. 184), uma experiência a partir da leitura do literário

[...] ocorre quando o leitor valoriza a sensibilidade intelectual no ato de ler, como tam bém percebe a leitura como possibilidade de contato com toda a sensibilidade que transborda nas relações sociais.

O leitor atravessa a obra e a obra o atravessa, estabelecendo uma relação de afetamento, como relata o Sujeito 2:

Eu acredito que quando a professora trabalha essa mediação da leitura do literário e a gente, é... nessa relação que a gente tem com a obra de maneira silenciosa, de maneira de leitura em grupo, de maneira de... na discussão, de certa forma, essa experiência atravessa a gente, isso acontece dentro da gente. Então acho que por causa disso a gente leva para a vida, leva isso adiante.

Quando o(a) professor(a) formador(a) sugere a leitura da obra literária pelo sensível e pelo inteligível, entrelaçados, envolvendo o(a) leitor(a) no jogo que a obra propõe, explorando o plural do qual é feita a obra, o impulso lúdico pode ser desenvolvido e o texto reverberar, ecoando no(a) leitor(a). Barthes (1992) intitula esse tipo de texto aberto às interferências do(a) leitor(a) de escrevível, que venha impelir, na pluralidade dos acessos, a abertura da pluralidade das linguagens.

É... Isso mexe muito comigo... às vezes, eu vou para casa e fico pensando, e eu vou e estudo à parte, assim. Por mais que eu sou meio tímida e não demonstre muito, mexe dentro de mim. Mexe com o meu conceito sobre várias coisas, mexe com meu conceito de vida, sobre várias questões. Então... Para mim, é bem forte. São experiências bem fortes. (Sujeito 4).

Um texto que reverberou no(a) leitor(a), que mexeu com seu conceito de vida, certamente irá repercutir na sua identidade docente, processo que:

[...] se fundamenta na reflexividade dos professores em formação acerca de seu percurso formativo realizado num processo caracterizado pela autoria e pela agentividade, pela autonomia e pela criticidade. (Pietri; Rodrigues; Sanchez, 2019, p. 4).

Uma das potencialidades de uma obra aberta é não apenas mudar a visão das pessoas, mas causar estranhamento, mexer e remexer com os sentidos provocando o(a) leitor(a) a criar sua própria visão. Podemos perceber pelo relato do Sujeito 4 que a leitura do literário o provocou a esses movimentos, que a sala de aula, o contexto em que desenvolve sua formação profissional, foi o espaço para a reflexão. Entendemos que, quando a leitura do literário é mediada de forma a afetar o(a) leitor(a), ela educa esteticamente, e essa educação promove a autonomia intelectual. Essas práticas literárias vividas pelos(as) acadêmicos(as) irão repercutir na formação deles(as) como futuros(as) professores(as) em sala de aula, conforme afirma o Sujeito 3:

De certa forma a gente, é. a gente dá a aula daquilo que a gente aprendeu na aula. Então, eu vejo diferença assim, na hora de a gente replicar isso, porque eu vou replicar para o meu aluno, eu sei aquilo o que eu aprendi. Então, a forma como eu aprendi literatura provavelmente vai ser a forma como eu vou replicar para o meu aluno aprender literatura.

Evidenciamos, com esta pesquisa, que a dinamicidade da professora formadora em explorar os espaços e os objetos propositores disponíveis também contribui para o fazer uma experiência. Os espaços podem ser grandes auxiliadores na aproximação do(a) leitor(a) com a obra, porque, por meio deles, pode-se criar uma ambiência de leitura para o atravessamento da obra, para a interlocução com o texto. Segundo Elaine Martins (2018), em seu estudo sobre os espaços propositores das bibliotecas, estes são fundamentais para boas práticas de mediação cultural. A autora ressalta que:

[...] esses espaços contribuem para que o sujeito construa imagens e sentidos ao passo que é sujeito da experiência, que vive os espaços, que convoca valores da intimidade, que se coloca em movimentos carregados de hesitação. (Martins, E., 2018, p. 65).

Para os(as) acadêmicos(as) do curso de Letras, a exploração de espaços propositores na universidade foi importante na relação que construíram com os textos literários. O Sujeito 1 comenta sobre as leituras feitas em diversos espaços e como elas o provocaram à leitura:

[...] a gente já teve que fazer leitura dramática, meio que gritando, num corredor cheio de sala de aula... Do pessoal dos outros cursos saírem da sala no fim da aula olhando pra gente com cara muito feia, assim. Ou de trancar a escada do segundo andar, do C4, lendo um trecho da Odisseia encarando quem passava. Foram algumas experiências [...].

Os espaços propositores não precisam ser esteticamente construídos para realizar a leitura do literário, podem ser espaços públicos de uso comum, mas que também provoquem os(as) leitores(as) a terem uma experiência com o texto, como cita o Sujeito 1. Corredores, escadas, espaços diversos possibilitam o trânsito de pessoas. Lidar com esse fluxo cria uma relação diferente com o texto. Além de espaços públicos, a sala de aula também pode ser explorada quando cadeiras e carteiras são trocadas de lugar, são movimentadas, afastadas, como relata o Sujeito 2: “Não é simplesmente mandar a gente subir na cadeira e ler o texto. Mas ela faz isso com um propósito que a gente percebe que é que a gente sinta o texto, que ele se encarne na gente”.

Além dos espaços propositores, os objetos propositores são muito importantes para ativar a percepção dos(as) acadêmicos(as) para o texto literário. Destacamos que o livro é o objeto propositor principal em uma mediação de leitura, pois a formação de leitores(as) depende dele, sendo necessário que seja amplamente lido na sala de aula. Constatamos que as aulas não ficaram restritas à leitura de resumos sobre os livros, mas aconteceu o movimento de entrada e leitura no livro, como sinaliza o Sujeito 2:

Na mediação da professora, o que eu percebo é que ela vai muito pra encantar primeiro o aluno para o livro... Depois vir com essas perguntas. Então, ela primeiro quer que a gente entre na obra… da maneira melhor possível... E eu fico pensando: 'Poxa! se a gente tivesse tido essa mediação já no ensino médio, né?'.

Para que o(a) acadêmico(a) tenha acesso ao livro de forma produtiva, o(a) professor(a) pode trazer outros objetos propositores, como obras de arte, músicas, trechos de filmes, cartões-postais, entre outras linguagens artísticas. Os objetos podem levar o(a) acadêmico(a) ao livro, criar uma ponte e aguçar o desejo desse encontro. Assim, o objeto propositor pode desencadear dois movimentos: para que o(a) acadêmico(a) se mobilize a ler e entrar no texto e, também, para que ele(a) seja provocado(a) a ampliar as suas relações intertextuais, sua visão do texto e sua visão de mundo. De acordo com o Sujeito 4: “Todas as obras que a gente trabalha, ela lança um desafio para relacionar... É... Ou com uma obra de arte, ou com uma música, ou um teatro... Ou com algo parecido. E trazer uma discussão relacionando”.

O objeto propositor não precisa necessariamente ser um objeto, ele pode ser uma sequência de questionamentos que o(a) professor(a) faz para que os(as) estudantes reflitam sobre o texto e dialoguem. Neitzel, Pareja e Krames (2020, p. 60) apresentam-nos o conceito de mediador(a) como propositor(a): “[...] aquele que chama o leitor a reescrever a obra, a construir sentidos novos a cada leitura, incitando-o a encontrar aquilo que não esperava, operando um trabalho produtivo e inesgotável”. Nesse sentido, o(a) leitor(a) afetado(a) pela leitura e pela mediação elabora perguntas ao texto, pois quer buscar aquilo que ainda não sabe, quer surpreender-se. Vários sentidos habitam no texto, mas é o(a) leitor(a) quem desvela esses e outros significados, quem constrói relações, quem comanda a leitura.

Para Neitzel, Pareja e Krames (2020, p. 60):

[...] cabe ao mediador ajudar o leitor a adentrar nessa floresta escura e espessa, [...], levando-o a perceber as ambiguidades do texto, seus meandros e suas significações e como toda travessia, nunca saímos dela como entramos.

Adentrar o texto literário, percorrer seus meandros, jogar com ele são movimentos oportunizados pelo(a) professor(a) formador(a) que proporcionam ao(à) leitor(a) coragem para enfrentar desafios, experienciar novas relações consigo e com seus pares. O Sujeito 4 ressalta essa função do(a) mediador(a), que é a de promover travessias:

Eu acho que tem o direcionamento dela, vem parte do professor, mas parte também a permissão de deixar o aluno participar, deixar o aluno se envolver, assim. E chamar cada vez mais a penetrar na obra, entrar na obra de uma forma mais intensa, não ficar no raso. Eu como acho que... é como o Sujeito 2 falou de instigar, provocar, fazer aqueles questionamentos em que provoquem, sabe? Tira da tua zona de conforto e te coloca a pensar, te coloca a ir um pouco mais além.

A travessia oportunizada pela mediação provocadora da professora formadora chama o(a) leitor(a) a penetrar na obra, desvelar seus sentidos, construir outros, fazer muitas perguntas ao texto, ampliando, assim, as “[...] possibilidades de [ele] entrar no texto, perceber a plurissignificação da obra literária, compartilhar suas descobertas, dialogar, criar intimidade com a obra, mas também abandoná-la” (Neitzel, Pareja e Krames, 2020, p. 53). É nesse movimento de entrada no texto que o jogo entre leitor(a) e obra se estabelece, jogo que desenvolve o impulso lúdico, o qual propicia a educação estética, segundo Schiller (2002). Um movimento que exige que o(a) leitor(a) rumine o texto porque ele é repleto de artimanhas, de jogos que precisam ser desvendados pelo(a) leitor(a). Por isso, o ato de ruminar perante o texto é fundamental para que novos caminhos sejam trilhados. Para que essa relação de jogo se estabeleça, como afirmam os Sujeitos 6 e 2, ao enfatizarem a necessidade de reler o texto para entrar em suas fugas, é preciso um envolvimento que não se dá só pelo prazer, mas pela fruição.

S6: Pra gente ler em casa o máximo de vezes que a gente conseguir. No mínimo uma vez, mas só que ler mais vezes. E foi mais ou menos o mote, o começo, do… dessas aulas que a gente teve com a professora, foi… pra tentar ensinar pra gente que reler, é… fuçando a obra outras vezes, é, a… Vou usar uma expressão que era… era… Como que era? A… a… S2: Ah, ruminar.

As descobertas feitas nessa dinâmica de leitura individual e ruminativa, quando compartilhadas no coletivo, revelam a grande rede semântica pela qual o texto é composto, porque cada leitor(a) adentra uma fuga e traz ao grupo sua percepção. Quando a mediação acontece na interação entre os(as) envolvidos(as), em um jogo coletivo de forças na roda de leitura, oportuniza-se a percepção “[...] de que a coletividade fortalece a individualidade, exatamente, porque pode ampliar a visão que uma pessoa tem do mundo, de sua intimidade, dos textos literários” (Agazzi, 2014, p. 448). Os dados são lançados na obra pelo(a) autor(a), mas cabe a cada leitor(a) desvelar suas forças. Esse desafio se inicia na leitura individual e continua produzindo sentidos quando se dá no coletivo, na partilha que auxilia o(a) leitor(a) a descortiná-los, descobrir suas entradas, brincar com os sentidos, jogar com o texto. O Sujeito 5 comenta sobre a importância de movimentos em grupo para pensar-se sobre o texto:

Eu acho que algo que todos nós concordamos é que, por exemplo, quando nossos professores mandam a gente ler um livro, nós podemos até ler um pouco, mas... Até que todos se juntem e discutam sobre o livro, parece que... Não tem tanta graça. Quando todo mundo se junta, e dá opiniões, e fala coisas que percebeu, que descobriu... Vira outra coisa. Com a gente isso aconteceu com o livro “Vermelho amargo”, que... Foi um marco, assim, eu acho [...].

Observamos, na narrativa do Sujeito 5, que a formação de professores(as) leitores(as) necessita ter a ênfase no objeto de estudo, no livro. Contudo, essa provocação não pode ser pretexto para o estudo da teoria literária ou da língua, pois ambas são forças da literatura, que estão entranhadas no texto literário e vão sendo observadas, analisadas, compreendidas na leitura e no afetamento do texto. Quando o(a) futuro(a) professor(a) de Letras se afeta pelo texto, ele(a) compreende sua força estética e passa a enxergá-lo pelo viés da apreciação e da reflexão, sem apartamentos, e pode descortinar maneiras de mediá-lo de forma sensível.

Todorov (2020) faz uma provocação a respeito da ênfase que deve ser dada ao ensino da Literatura nas escolas. O autor conclui que o ensino não pode recair sobre a disciplina em si, mas sobre o seu objeto de estudo, que é a leitura, o livro. A partir do relato dos sujeitos participantes desta investigação, constatamos que a ênfase dada pela professora formadora da disciplina de Estudos Literários do curso de Letras da universidade pesquisada se dá na obra, na leitura do literário, sem pretexto para o ensino da teoria. Identificamos que o ensino da teoria se dá entrelaçado na leitura das obras, pelas incursões feitas no texto, reunindo a teoria aprendida com a prática da leitura. Nesse movimento, abre-se espaço para que a experiência individual e coletiva ocorra, para que o(a) leitor(a) jogue com o texto e desenvolva, por meio da literatura, a educação estética.

O encantamento dos(as) acadêmicos(as) pela leitura do literário é o primeiro passo para a formação dos(as) futuros(as) professores(as) como leitores(as) encarnados(as). Isso pode ser potencializado com vistas à postura do(a) professor(a) formador(a) perante o texto, o modo como ele(a) fala sobre os livros que lê, como faz a mediação, como manuseia os livros. Formar leitores(as) exige que o texto reverbere em si, por isso, as aulas necessitam ser encontros sensíveis e reflexivos que objetivem uma educação emancipadora, no sentido trabalhado por Rancière (2005). O(a) mestre(a) emancipador(a) é aquele(a) que acompanha, orienta e possibilita momentos em que os(as) leitores(as) podem atuar com liberdade para escolherem seus caminhos. A leitura que afeta reverbera no(a) leitor(a), e um mediador(a) que é afetado(a) afeta o outro, abre-se um espaço de trocas simultâneas, um cresce com o outro, é uma via de mão dupla. Desse modo, entendemos que a formação de professores(as) requer não apenas conhecimentos teóricos sobre a obra literária, mas a compreensão de como um(a) leitor(a) se torna encarnado(a) na experiência da leitura, de modo que a literatura se torne algo intrínseco à sua vida.

Por meio dos excertos dos(as) acadêmicos(as), inferimos que a imagem que eles(as) celebram da formadora é a de uma profissional que é leitora, que tem paixão pela obra, cujo domínio conceitual não distancia professor(a) e aluno(a), ao contrário, aproxima-os(as). Além disso, constatamos que as ações da professora formadora impactaram positivamente a forma desses(as) licenciandos(as) de conceberem a literatura, pois suas mediações proporcionaram aos(às) acadêmicos(as), futuros(as) professores(as), experiências estéticas com o texto literário.

Considerações finais

[...] vivendo se aprende; mas o que se aprende mais, é só a fazer outras maiores perguntas. [Guimarães] Rosa (2015, p. 338).

Riobaldo, personagem da obra Grande sertão: veredas, convida-nos a pensar no movimento de aprender, ato que é tão intrínseco à vida, que pode ser potencializado quando produz outros questionamentos e não se encerra nas respostas. É um ato que pode ser incentivado por um(a) mediador(a), sendo ele(a) um(a) professor(a), um(a) familiar, um(a) amigo(a).

Nesta pesquisa, traçamos como objetivo discutir como ocorre a mediação do literário no curso de Letras de uma universidade do sul do Brasil da rede da Acafe e o impacto dessa mediação na formação do(a) futuro(a) professor(a). Para alcançar esse objetivo, analisamos as falas dos(as) acadêmicos(as) extraídas por meio de um grupo focal. Identificamos que a mediação no curso de Letras ocorreu a partir da concepção da professora formadora a respeito do que é mediar, conceito que implica uma postura de valorização do outro. Por meio de encontros com o texto literário, professora formadora e acadêmicos(as) cresceram juntos, pelos diálogos provocativos. O texto literário na universidade ganhou a companhia de muitos e a percepção de diferentes pessoas ampliou seu potencial estético.

Muitas experiências enriquecedoras de leitura foram vividas na universidade, e a mediação deu-se por meio da exploração de objetos e espaços propositores. Os objetos propositores utilizados durante os encontros foram livros, pinturas, músicas, cartões-postais, trechos de filmes, entre outros, os quais a professora formadora explorou para oportunizar aos(às) acadêmicos(as) a apreciação do texto literário como objeto estético e artístico. Já os espaços propositores, como corredores, escadas, bibliotecas, espaços ao ar livre e a própria sala de aula, visaram ampliar a percepção dos(as) acadêmicos(as) sobre a obra e por ela serem afetados(as). Observamos que as experiências com esses objetos e espaços propositores foram fundamentais para que os(as) acadêmicos(as) se aproximassem do texto literário e compreendessem a função estética da literatura.

Dessa forma, concluímos que, por meio da mediação da professora formadora, os(as) acadêmicos(as) perceberam que o texto literário, para além de ser estudado a partir de seus aspectos formais e teóricos, necessita ser sentido e experienciado. Essas vivências foram incorporadas nos envolvidos e vão reverberar em suas práticas em sala de aula. A universidade possui grande responsabilidade na formação do(a) futuro(a) docente de Letras, na sua formação leitora, uma vez que, se os(as) acadêmicos(as) viverem o texto literário como experiência, eles(as) saberão lidar com a formação de leitores(as) na educação básica.

Esta pesquisa evidenciou que, quando o(a) professor(a) formador(a) explora de forma artística e estética o texto literário, ele(a) pode oportunizar aos(às) acadêmicos(as) fazer uma experiência por meio da literatura. Os cursos de formação inicial de professores(as) necessitam proporcionar aos(às) acadêmicos(as) experiências que os tornem leitores(as) encarnados(as), se ainda não o são, pois, assim, em seu fazer docente, a literatura ganhará espaço como objeto artístico e estético e será escolarizada de maneira adequada, agenciando leitores(as).

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Recebido: 12 de Março de 2021; Aceito: 07 de Outubro de 2021

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